PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) O circuito cultural da Black Rio: Políticas de estilo, consumo e identidade negra1 Luciana Xavier de Oliveira2 Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense Resumo O Movimento Black Rio se tornou um fenômeno de massa no Rio de Janeiro, particularmente entre uma juventude afro-brasileira dos subúrbios e bairros operários da Zona Norte. Nos anos 70, milhares de jovens compareciam, todos os finais de semana, aos bailes black para dançar ao som de discos de soul americanos tocados por celebrados DJs. O fenômeno ganhou destaque por seu caráter de resistência cultural e afirmação de uma identidade “negra”, que se oporia à retórica do mito da democracia racial. Neste artigo, pretendemos aprofundar a discussão em torno de possibilidades de movimentações políticas em torno do consumo cultural, interessando-nos por perceber como o movimento Black Rio, através do estabelecimento de redes de consumo, lazer e entretenimento, configurou-se como um circuito cultural e um novo projeto identitário. E o consumo, neste sentido, pode ser entendido como uma maneira de expressar cidadania e identidade, dotado de um potencial político pautado pelo estilo. Palavras-chave: Movimento Black Rio; consumo; identidade; estilo; circuito cultural. Introdução O soul se tornou um fenômeno de massa no Rio de Janeiro, particularmente entre uma juventude afro-brasileira dos subúrbios e bairros operários da Zona Norte. O discurso Black Power, em particular, encontrou ali um solo fértil para se manifestar. Em 1976, milhares de jovens compareciam, todos os finais de semana, aos bailes realizados em clubes recreativos para dançar ao som de discos de soul norte-americanos tocados por celebrados DJs. A quase totalidade dos textos jornalísticos, trabalhos acadêmicos e depoimentos públicos que abordam a memória do chamado movimento 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 09 - Comunicação, Discursos da Diferença e Biopolíticas do Consumo, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Jornalista, Bacharel em Comunicação pela UFRJ, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. E-mail: [email protected]. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Black Rio se debruçam sobre a tônica da temática da busca, construção e afirmação de uma identidade específica Uma identidade “negra”, que se oporia fortemente à retórica do mito da democracia racial (McCANN, 2002). Não raramente, é possível observar o modo como diferentes autores de áreas diversas articulam as suas investigações na abordagem do fenômeno, que giram em torno da constituição dos bailes black como espaços de novas constituições identitárias afro-brasileiras (VIANNA, 1997, ESSINGER, 2005, HANCHARD, 2001, FRIAS, 1976, THAYER, 2006, GIACOMINI, 2006). Neste conjunto de textos “clássicos” que abordam a história do movimento Black Rio, perpassa-se a ideia de que o negro brasileiro, enquanto elemento étnico, para além do fenótipo, estaria em busca de uma identidade autônoma e autêntica, diante do fato de que sua cultura específica – seja o samba ou religiões de matriz africana – terem sido, com sucesso, mas não sem tensões, apropriados pelo Estado na formatação de uma identidade nacional. Assim, o também chamado movimento Black Soul seria uma resposta e reação a um suposto “assalto cultural” cometido pelo Estado e pelas elites brancas brasileiras. Como solução, seus principais participantes acabaram por beber de fontes internacionais, notadamente da cultura negra norte-americana, a fim de suprir uma “carência identitária”. De certa forma, todos os textos estão unidos sob um caráter de valorização, mesmo que percebendo algumas tensões, de uma nova produção cultural negra independente. O que logo se mostra contraditório, visto que, desde o seu princípio, haviam conexões e relações estreitas entre esse circuito underground e o mainstream cultural carioca. Seja no trânsito de DJs entre bailes Zona Norte e boates da Zona Sul, seja no flerte inicial, e depois confirmado, com gravadoras multinacionais na produção e circulação de discos, seja com a grande imprensa (mesmo que esta olhasse o movimento com desconfiança), ou seja, com instâncias da cultura mainstream da cidade. Aprofundando a discussão em torno de possibilidades de movimentações políticas em torno do consumo cultural, interessa-nos perceber como o movimento Black Rio, fundamentalmente através do estabelecimento de redes de consumo, lazer e PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) entretenimento, guiadas pela música, configurou-se como um circuito cultural (Johnson, 1999) que vinculou cidadania e apropriação de um espaço público, através da proposição de novas representações socioculturais e políticas através de práticas de consumo diferenciadas, marginais, e, ao mesmo tempo, que flertavam com uma cultura mainstream. Ações complexas desencadeadas, basicamente, e em um primeiro momento, a partir da intensa atuação das equipes de som ou equipes de baile que organizaram as movimentações em torno dos grandes bailes black dos anos 70. Esses DJs e produtores se consideravam expoentes de uma liberação racial e também musical, como receptores e retransmissores de uma cultura negra internacional. Essa atitude cada vez mais influenciava seus trabalhos artísticos, encorajando uma profunda adoção não apenas das sonoridades do soul norte-americano, mas também do seu ethos: black is beautiful, black power, soul brothers unidos em uma causa comum. (McCANN, 2002, p. 34). Os aspectos musicais e sociais do fenômeno nunca foram inteiramente contabilizados. O consumo do soul norte-americano precedeu uma formatação de uma consciência racial nos bailes black, e, em muitos casos manteve-se desconectado e independente das ideias de uma política negra. (McCANN, 2002, p. 35). Na tentativa de compreender as lacunas deixadas na interpretação deste fenômeno, é fundamental perceber a articulação concreta dos vários estratos que compõem os processos culturais. Segundo Johnson (1999, p.23), uma dificuldade apontada é que “as formas abstratas de discurso desvinculam as ideias das complexidades sociais que as produziram ou às quais elas, originalmente, se referiam”. Assim, conforme o autor, as abstrações simples sobre os processos culturais não dão conta de suas respectivas complexidades. Para Johnson, todas as práticas sociais podem ser examinadas de um ponto de vista cultural, e todas as práticas culturais precisam ser compreendidas em suas condições específicas do consumo e da leitura. Neste sentido, nos parece que os trabalhos interpretativos e analíticos produzidos a respeito do movimento Black Rio enfocam, basicamente, suas articulações simbólicas e discursivas em relação a um processo de conscientização PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) racial pautado pela cultura, sem perceber esse status articulado a novas formas de produção, circulação e consumo desta produção cultural, pautada por complexidades e tensões, mas dotada de uma articulação política construída a partir de outras vias que não o exercício político convencional. Assim, ao descolar-se o sentido político do próprio ato do consumo, perde-se de vista a complexidade de suas dimensões enquanto uma grande marca na cultura popular urbana dos anos 70, e como um legado para expressões culturais subsequentes também pautadas pela sobreposição de música, consumo e movimentação social. O consumo da música, nesta proposta, pode ser entendido como uma fundamental e profícua maneira de expressar a cidadania e identidade, que podem, assim, se recompor em circuitos desiguais de produção, comunicação e apropriação cultural (GARCIA-CANCLINI, 2007, p. 137). Pois, de acordo com Mike Featherstone (1995, p. 121), “usar a expressão cultura de consumo significa enfatizar que o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação são centrais para a compreensão da sociedade contemporânea”. O autor ainda reafirma a necessidade da “simbolização e o uso de bens materiais como ‘comunicadores’, não apenas como utilidades”. Percebese, nesse caso, o consumo como uma manifestação de sujeitos e identidades, que interagem entre si a partir de uma experiência coletiva de apropriação e uso de produtos culturais em um conjunto de processos sociais que explicitam um “exercício refletido de cidadania” (GARCIA-CANCLINI, 2008). Conceituando circuito cultural O uso do conceito de circuito cultural de Richard Johnson (1999), para a compreensão do movimento Black Rio, tem algumas vantagens. A primeira é reconhecer que os dinamismos da cultura são múltiplos e que devem ser tratados em suas especificidades. A segunda vantagem é enfatizar que os “circuitos culturais” são fenômenos sociais totais que envolvem, ao mesmo tempo, as dimensões simbólica, estética, social e econômica. Tais circuitos são identificáveis nos seus momentos de produção, circulação/transmissão e recepção (consumo ou reconhecimento) PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) envolvendo um fluxo de eventos realizados por agentes culturais e articulados por formas de organização social (administração pública, mercado e sociedade civil/comunidade). Com vistas a dar conta da complexificação das questões relacionadas à cultura, bem como de suas ricas categorias intermediárias, Johnson (1999, p.31-32) propõe um modelo de análise por estratos. Um modelo que, idealmente, ambiciona ver os diferentes e mais variados ângulos de um mesmo e complexo processo. Para tanto, lembra o autor, faz-se necessária uma descrição (ao menos provisória) dos diferentes momentos dos processos culturais, aos quais estariam relacionadas distintas problemáticas da Cultura. O resultado deste exercício, a priori, é sempre um modelo não acabado, mas “um guia que aponta para as orientações desejáveis de abordagens futuras ou de que forma elas poderiam ser modificadas ou combinadas” (JOHNSON, 1999, p.33). Para o autor: Todos os produtos culturais, por exemplo, exigem ser produzidos, mas as condições de sua produção não podem ser inferidas simplesmente examinandoos como “textos”. De forma similar, os produtos culturais não são “lidos” apenas por analistas profissionais, mas pelo público em geral. Por isso, nós não podemos predizer essas leituras a partir de nossa própria análise ou, na verdade, a partir das condições de produção. (1999, p.34). A coordenação ou comunicação dos agentes culturais entre si e entre o circuito que estabelecem envolve padrões de ação dinâmicos pautados por determinados eventos que formam uma rede caracterizada por capilaridade, mobilidade, descentramento, múltiplas articulações e interdependências. Neste sentido, a cultura é entendida como um conjunto móvel e dinâmico de processos políticos, sociais, simbólicos, econômicos, associados aos circuitos culturais. Essa vertente de pesquisa estuda mais o papel dos meios na vida cotidiana do que o impacto ou o sentido da vida cotidiana na recepção de um determinado texto midiático (ESCOSTEGUY, 2007, p. 118,). Os circuitos associam sistematicamente agentes culturais e instituições que regulam a comunicação entre eles, seja na forma de trocas monetárias e simbólicas, ou na produção de regras. Importante aqui é que a PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) comunicação deve ser vista como um processo de coordenação do fluxo das ações, e que a diversidade dos circuitos culturais indica a necessidade de uma multiplicidade de políticas culturais, cada uma delas com desenhos e formas de ação específicas em arranjos variados, ora organizados por seus atores sociais, ora pela própria sociedade, ou pelo Estado, ora pelos seus mercados. Identidade ou mercado? Ao tomarmos de empréstimo o modelo concebido por Johnson a fim de explicar a dinâmica da cultura e dos produtos culturais, entendemos que, enquanto exercício teórico-metodológico, o Circuito da Cultura possibilita uma articulação potencialmente produtiva de interpretação dos distintos momentos dos processos culturais. Que também acabam por incluir os elementos culturais já ativos no interior de contextos particulares (as culturas vividas) e as relações sociais das quais essas combinações dependem. Em seu artigo Errância e Exílio na Soul Music (2010), a autora Rita Aparecida Ribeiro faz um estudo comparativo entre o movimento Black Rio e sua influência na cidade de Belo Horizonte, cujos rastros podem ser percebidos na criação e consolidação de eventos espontâneos como o Quarteirão do Soul. Ribeiro, no entanto, corrobora as principais visões a respeito da Black Rio como um momento da história cultural do negro brasileiro a partir do qual “se formava um movimento social, até certo ponto itinerante (pois os bailes mudavam a cada final de semana), mas fortemente coeso a partir da criação de uma identidade coletiva.” (RIBEIRO, 2010, p. 167). Primeiramente, é importante pautar aqui a necessidade de um cuidado para com visões homogeneizantes dos processos culturais, entendendo que a cultura é palco de conflitos e tensões em processos dinâmicos de legitimação e transformação. Ao analisarmos mais profundamente a atuação das equipes de som mais importantes do período, podemos perceber que, de forma alguma, havia mesmas preocupações e agendas políticas na pauta dos bailes por elas organizados. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Por volta de 1976, existiam centenas de equipes de soul atuando no Rio e em São Paulo. Os DJs, usualmente, faziam parte de uma equipe, que incluía de duas a seis pessoas, responsáveis por instalar o sistema de som, iluminação e preparar a decoração do salão. Além de escolher a música e criar o “clima”, os DJs eram responsáveis por animar os bailes, realizando sorteios e concursos, e incentivando o público a dançar. Como mestres de cerimônia, muitos DJs iam além do papel de tocar discos e proferiam discursos inflamados e politizados em torno da conscientização racial, pautavam bailes como os do Clube Renascença (GIACOMINI, 2006). Mas, em outras festas, o mote eram premiações para os blacks mais bonitos, para os que se parecessem com o músico Isaac Hayes ou James Brown, para os melhores dançarinos3, buscando uma valorização da performance em detrimento de uma preocupação de “pedagogia política”. Outros buscavam apenas entreter suas audiências, visto que, naturalmente, algumas equipes levantaram a bandeira do Orgulho Negro mais seriamente do que outras. Foi o caso de Ademir Lemos, um DJ branco4 que começou sua carreira no final dos anos 60, especializado em tocar rock and roll em bailes na Zona Sul carioca. Ele fez sua transição para o soul em meados dos anos 70, com vistas a se aproveitar do emergente mercado na Zona Norte. Já possuindo um maior capital para investir em aparelhagens de som importadas e para comprar os últimos lançamentos da música americana, sua equipe se tornou uma das mais bem-sucedidas do circuito do soul, cobrando em torno de 1000 dólares por um típico baile de final de semana (McCANN, 2002). Os negócios de Lemos na área de produção fonográfica eram bem mais lucrativos. Restrições de importação limitavam severamente a habilidade de selos norte-americanos independentes como Motown e Stax de penetrar no mercado 3 Em 1976, por exemplo, uma equipe organizou um concurso para premiar o participante que ostentasse o look mais parecido com Isaac Hayes. O prêmio, uma caderneta de poupança em um banco, sugeria uma preocupação econômica por parte do público-alvo dos bailes: uma classe trabalhadora que aspirava por ascensão social. (Frias, 1976, p. 2). 4 Para Palombini (p. 52, 2009), Ademir Lemos era mestiço, o que pode denotar tensões nas apreensões e percepções sobre cor e raça entre observadores brasileiros (no caso, Palombini) e americanos (McCann), de acordo com suas experiências culturais e raciais específicas de seus países. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) brasileiro do disco, favorecendo, assim, multinacionais com afiliadas brasileiras, como a CBS e a Philips, dona da Polygram. Levando vantagem com essas restrições, as multinacionais, ao lado de selos brasileiros regionais, adquiriram os direitos para distribuir singles americanos independentes no Brasil, visando também ao lançamento local de coletâneas. Ademir Lemos negociou as marcas das mais importantes equipes de soul para as companhias de disco, e atuou como uma espécie de produtor de coletâneas de diversos cantores de soul, vendidas sob a marca dessas equipes. Em 1976, por exemplo, Lemos produziu uma coleção de sucesso para a CBS, comercializada com o nome de Soul Grand Prix, o mesmo de uma equipe de soul, e ambos dividiram os lucros sob a venda dos álbuns. Os bailes de soul eram, praticamente, um mercado garantido para esses álbuns. Sorteios e concursos realizados nos bailes serviam para aumentar a demanda. Em meio a esse sucesso comercial, Lemos rapidamente adotou a retórica do soul, particularmente um discurso menos militante, do “negro é lindo”. (FRIAS, 1976, p. 5). O Movimento Black Rio foi, portanto, um fenômeno social nascido com uma luta em seu coração pelo seu próprio significado: seria um veículo para a consciência política negra, ou simplesmente mais um modismo pop enriquecendo produtores experientes? (McCANN, 2002, p. 49). Ao mesmo tempo, o fenômeno também possibilitava a ascensão de jovens negros que começavam a abrir novas frentes de trabalho também. Mr. Funky Santos, que se auto-intitula o realizador da “primeira festa black, a primeira festa negra, 100% negra nesse país” (Mr. FUNKY SANTOS, 2007 apud RIBEIRO, 2010, p.109), teve uma intensa atuação no mercado carioca da black music. Comandou programas nas rádios Imprensa FM, Roquete Pinto, Tropical e Manchete FM e, com sua foto nas capas, lançou, até os anos 80, uma série de cinco coletâneas em vinil dos hits de funk que tocava. Na Top Tape, uma das mais importantes gravadoras cariocas nos anos 70 e 80, foi responsável também pela produção de dezenas de álbuns de outras equipes de som, como da Soul Grand Prix, Black Power e Cash Box. Esse novo segmento de mercado foi um resultado direto do chamado milagre econômico, promovido pelo governo militar, que rapidamente abriu o país ao capital PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) internacional no começo dos anos 70. A crise provocada pela dívida externa e a hiperinflação da década de 80 revelou as falhas e corrupção nas contas da ditadura. Mas, a curto prazo, o “milagre” aumentou a circulação de capital e favoreceu a oferta de empregos em várias partes (pobres, marginalizadas) do país, como, por exemplo, na Zona Norte do Rio. Enquanto a crescente oferta de empregos permitiu à juventude negra carioca um maior poder de compra, especialmente de discos e novas roupas, o contexto também possibilitou uma revelação de novas dimensões do racismo. Especialmente à medida que esses jovens descobriram, mais uma vez, que suas oportunidades de crescimento eram muito menores em comparação às oportunidades de seus colegas brancos. Sendo assim, não é de se admirar que esses jovens tenham escolhido exercer seu novo poder de compra, enfatizando uma contestação aparente da estrutura social vigente, do status quo, a partir de rituais e práticas diferenciados. Esse flerte direto com a indústria fonográfica, inserindo-se nas rádios e gravadoras, chegou também à grande mídia, quando o soul começou a ser incorporado a trilhas sonoras de novelas e programas de TV. Responsável por altos índices de vendagem, o soul tornou-se um segmento rentável e lucrativo, influenciando culturalmente também comportamentos, estética e vestuário. A moda soul, principalmente aquela surgida no Rio de Janeiro, alternava-se entre a influência dos cantores e artistas negros dos EUA, incorporando elementos de uma estética africana em estampas, adereços e penteados. Recursos que auxiliavam na difusão de uma estética e uma ideologia altamente influenciada pela cultura negra norte-americana. Os frequentadores dos bailes – brancos, negros e mestiços – ajudaram a consolidar um estilo de se vestir que mesclava as várias informações visuais que recebiam através de revistas, filmes, programas de TV e capas de discos. Essa busca por uma diferenciação a partir da escolha de determinadas itens do vestuário (como sapatos de plataforma ou bicolores, calças boca-de-sino) e a utilização do cabelo natural, no mesmo estilo dos integrantes do movimento Black Power norte-americano, demarcavam uma tentativa não só de uma incorporação de uma estética internacional PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) por parte dos jovens frequentadores dos bailes, em sua maioria, de classes subalternas. Representava também uma possibilidade de articulação a um conjunto de símbolos marcadamente diaspóricos, como forma de diferenciar-se enquanto alternativa para um mercado consumidor jovem em formação, baseado em valores e padrões moldados por uma cultura globalizada. Pela sua própria natureza como fenômeno de mercado, contudo, essas escolhas populares culturais eram, inevitavelmente, “impuras”, e não eram inócuas, e acabaram enriquecendo DJs brancos e produtores brancos, na mesma medida que produtores e DJs negros. O que contradiz a ideia de que “eram uma massa de jovens negros brasileiros criando seus próprios eventos culturais, completamente separados (pelo menos, aparentemente) das instituições da elite branca” (McCANN, 2002, p. 34). O que está em jogo aqui é: se não há, de forma alguma, homogeneidade no movimento, em seus objetivos e finalidades, como é possível manter-se uma visão idílica em torno dos processos de construção identitária, sem levar-se em consideração a afirmação de diferentes e tensivas formas de identidade através do consumo, sem também resumirse a visões homogeneizantes e datadas sobre a negatividade do mercado versus a positividade da autenticidade? Mainstream ou Underground? De fato, a soul music integrou uma importante parte da música brasileira produzida nos anos 70, e modificou a cena cultural carioca do mesmo período. O historiador Bryan McCann traça um panorama sobre o surgimento do soul enquanto gênero e movimento no período citado, abordando os bailes blacks, de um lado, e a produção musical de um soul brasileiro, cujas manifestações se deram, de certa forma, independentemente. Como parte das atividades de lazer dos finais de semana no subúrbio carioca, os bailes soul começaram a ser realizados em clubes de futebol e clubes sociais recreativos, como o Renascença, voltados para grupos de trabalhadores e para uma classe média negra emergente. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) A ditadura iniciou uma lenta abertura em meados dos anos 70, relaxando a censura e a tentativa de controle sobre reuniões e ajuntamentos públicos, permitindo uma maior gama de expressões culturais públicas. As estrelas emergentes do soul, entre artistas e DJs, bem como dos frequentadores dos bailes e outros membros, estavam perfeitamente prontos para transformar esse momento em uma oportunidade para a mobilização racial negra. A classe trabalhadora da Zona Norte constituía-se como um espaço ideal para a emergência do movimento Black Power brasileiro, uma plataforma de fãs que representava um reservatório de ambição social e descontentamento, ambicionando ascensão econômica e social. Cada vez maiores e reunindo mais pessoas, os bailes black passaram a ser organizados em grandes quadras das escolas de samba do Rio, atraindo públicos de até 15 mil pessoas (ALBERTO, 2009). Em meio a essas movimentações, a Black Rio mostra sua face ambígua, pois mesmo que os bailes black tenham criado um circuito paralelo de entretenimento na Zona Norte, eles foram particularmente felizes em invasões ocasionais de espaços predominantemente brancos (ocasionais não, por que haviam bailes fixos no Canecão e no Jardim Botânico), como o Museu de Arte Moderna, tênis clubes da Zona Norte, e discotecas da Zona Sul. Essas invasões, claro, podem ser facilmente percebidas como meras tentativas de ascensão social em um circuito mainstream, negando uma retórica oposicional mais forte e diluindo as especificidades que marcaram o começo do soul (McCANN, 2002). Ao mesmo tempo, majors do disco, estações de rádio e casas de show estavam ansiosas para lucrar com o potencial comercial do movimento soul, assegurando que o soul teria seu momento e lugar garantido na consciência (cultura) nacional. A expansão do seu público na segunda metade dos anos 70 possibilitou às equipes e a seus produtores o aluguel de grandes espaços e o pagamento de anúncios nas rádios, o que angariou maiores vendas de discos. No curso da década de 60, as afiliadas brasileiras da Polygram e Warner se tornaram os selos mais poderosos do país, empurrando selos domésticos para as margens. Seu crescimento se deu, em larga extensão, ao aumento da popularidade da PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) música americana, vendida no Brasil através dessas afiliadas locais. O tamanho das majors multinacionais, além disso, permitiu enorme poder aquisitivo para compra de espaços publicitários na TV e no rádio para veiculação de propagandas e distribuição de produtos (McCANN, 2002, p.40). Inicialmente, gravadoras de pequeno porte como a Top Tape e a Tapecar fizeram os primeiros lançamentos de coletâneas com repertórios de equipes como a Soul Grand Prix e a Dynamic Soul (ZAN, 2005). As equipes logo descobriram que a única forma de manter o entusiasmo do público ao longo de um baile com duração de seis horas era a incorporação de performances ao vivo. Os espetáculos, cada vez mais ambiciosos, deram um especial incentivo aos cantores de soul brasileiros diante de uma audiência massiva. Críticos do movimento logo apontaram para o fato de seu caráter comercial e importado (ver FRIAS, 1976, BAHIANA, 1980, HANCHARD, 2001). “Adeptos do mito da democracia racial acusavam o movimento soul de importar o vírus perigoso da divisão bi-racial e animosidade norte-americana para um inadequado clima tropical” (McCANN, 2002, p. 35). Mesmo esquerdistas críticos da ideologia oficial encontraram muitos pontos para criticar o fenômeno Soul pelo seu mercantilismo, seu estrangeirismo aparente, e, por utilizar, no lugar de uma instrumentalização política, uma abordagem “pop-cultural” no enfrentamento do racismo. Por um breve período, de 1975 a 1978, aproximadamente, essas críticas parecem não ter tido qualquer efeito: o rolo compressor do soul espalhou-se do Rio para São Paulo e para a Bahia, incorporando inflexões locais à medida que se difundia. Conclusão Como aponta Zan (2005), ao falar sobre o contexto o movimento Black Rio pode ser compreendido como um exemplo de estratégia de reconversão cultural, seguindo proposição de George Yúdice (1997). Estratégia adotada mediante um sistema marcado pela globalização econômica e mundialização cultural, a reconversão cultural possibilita que os sujeitos passem a desenvolver novas práticas, habilidades e linguagens para sua reinserção em novas condições de produção, de consumo e de PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) sociabilidade. “Neste contexto, a apropriação e a ressignificação dos gêneros da Black Music norte-americana pelos jovens dançarinos reafirmava a ideia da diversidade cultural” (ZAN, 20005, p. 7). No entanto, para o autor, que se propõe a analisar o trabalho da Banda Black Rio, criada no período, esses hibridismos musicais, retomando conceito de Canclíni, referiam-se quase que com exclusividade ao campo da produção, vista, nesse sentido, como um fator de “resistência cultural”, segundo o autor, sem perceber as nuances criativas nem as reconfigurações identitárias pautadas no próprio ato do consumo, que, de acordo com nossa visão, também é político. Retornando à proposta de Johnson (1999), seu modelo de circuito cultural consiste em pensar cada um dos momentos que compõem o circuito da cultura à luz dos outros, para não perder de vista a especificidade das suas diferentes instâncias. “Segue-se que se estamos colocados em um ponto do circuito, não vemos, necessariamente, o que está acontecendo nos outros. [...] Além disso, os processos desaparecem nos produtos” (Johnson, 1999, p. 33). A proposta analítica do circuito da cultura poderia, assim, dar conta de uma série de manifestações relacionadas ao fenômeno da Black Rio que apontam para o potencial das “políticas de estilo”. Desenvolvida brevemente por Paulina Alberto (2009) no extenso artigo When Rio Was Black, que analisa os vários discursos e debates produzidos sobre o movimento soul à época do seu surgimento, na compreensão de seu sentido político, as políticas de estilo denotariam, pois, um intenso potencial transformador, pautado não por ações institucionalizadas ou por estratégias ligadas diretamente à movimentos sociais políticos, como o então emergente Movimento Negro brasileiro. Para Alberto, dados seus limitados recursos e fontes, os frequentadores e produtores dos bailes black utilizavam uma estratégica combinação de criatividade e consumo para configurar seu estilo, marcando os bailes e seus cotidianos por um “explícito gesto político” (2009, p. 39). Visto como um empreendimento comercial negro patrocinado por consumidores negros entusiasmados, a Black Rio, longe de ser apolítica, pode ser interpretada como uma significante e simbólica forma de política, na qual a liberdade para consumir estava ligada a PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) demandas por modernas formas de cidadania. (ALBERTO, 2009, p. 34). Catalisador de uma política pautada pela identidade (HANCHARD, 2001), o circuito dos bailes black também denota um contexto marcado por um sentimento de esgotamento e de fracasso de uma perspectiva integracionista do negro, que associa o samba a uma proposta nacionalista (GIACOMINI, 2006, p.212). Proposta esta que seria responsável, direta ou indiretamente, pela precária situação do negro na sociedade brasileira por fortalecer a ambiguidade do mito da democracia racial. Neste sentido, os bailes black podem ser compreendidos como produtos de novas estratégias interpretativas culturais e articulações identitárias por parte de grupos sociais marginalizados, mas que flertavam e se articulavam também a uma cultura mainstream, integrando-se à paisagem cultural carioca. Seu resgate histórico e compreensão vai além de uma análise de formas estilísticas ou questões mercadológicas, chegando até ao que entendemos por movimentações políticas através da cultura. Todas essas estratégias que entrelaçavam estética, performance, linguagem, sonoridades e discursos eram formas de negociação de posições, acionando diversas representações de acordo com uma proposta diferenciada de consumo, mas também de existência política. Na medida em que o soul teve implicações políticas para esses produtores, essas implicações decorreram, acima de tudo, da transgressão de fronteiras sociais. Antes de mais nada, o soul foi, para a maioria de seus participantes, uma celebração de novas opções culturais populares proporcionadas pelo crescente poder de mercado de um segmento populacional jovem afrodescendente periférico brasileiro. Referências Bibliográficas ASSEF, Cláudia. Todo DJ já sambou: a história do disc-jóquei no Brasil. São Paulo: Conrad, 2003. ALBERTO, Paulina. When Rio Was Black: Soul Music, National Culture, and the Politics of Racial Comparison in 1970s Brazil. Hispanic American Historical Review. Durham, Carolina do Norte: Duke University Press, 2009. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) BAHIANA, Ana Maria. Enlatando Black Rio. In: __________. Nada será como antes – MPB nos anos 70 (pp.216-222). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Circuitos de cultura/circuitos de comunicação: um protocolo analítico de integração da produção e da recepção. Revista Comunicação, Mídia e Consumo, 4(11), 115-135. São Paulo: ESPM, 2007. ESSINGER, Sílvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro e São Paulo: Record 2005. FEATHERSTONE, Michael. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Nobel, 1995. FRIAS, Lena. Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil. Jornal do Brasil, 17 jul. Caderno B. p. 1 e 4-6. Rio de Janeiro, 1976. GARCIA-CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008. ______. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2007. GIACOMINI, Sônia. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro, o Renascença Clube. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: UFMG e IUPERJ, 2006. HANCHARD, Michael George. Orfeu e o poder: movimento negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro: UERJ, 2001. JOHNSON, Richard. O que é, afinal, estudos culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 1999. McCANN, Bryan. Black Pau: uncovering the history of Brazilian soul. Journal of Popular Music Studies, 14, 33–62, 2002. PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca, Opus 15 (1), 37–61, 2009. RIBEIRO, Rita. Errância e exílio na soul music: do movimento Black-Rio nos anos 70 ao Quarteirão do Soul em Belo Horizonte, 2010. Tempo e Argumento, 2 (2), 154-180. Florianópolis, 2010. THAYER, Allen. Brazilian Soul and DJ Culture’s Lost Chapter. Wax Poetics, 16, 88–106, 2006. VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. ZAN, Jorge Roberto. Jazz, soul e funk na terra do samba: a sonoridade da banda Black Rio. ArtCultura, 7 (11), 187–200, 2007. YÚDICE, George. A funkificação do Rio. Em Herschmann, Micael (org.). Abalando os anos 90 – funk e hip-hop: globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.