REYNALDO PORCHAT LENTE DA FACULDADE DE DIREITO DE SÃO PAULO DA RETROACTIVIDADE DAS LEIS CIVIS São Paulo Duprat & Comp - Rua Direita. 26 1909 DA RETROACTIVIDADE DAS LEIS CIVIS CAPITULO I Do conceito da retroactividade 1. A efficacia e o imperio da lei têm um determinado limite de tempo, que é fixado pelo momento inicial da sua publicação o pelo mo-mento final da sua abrogacão. Dentro nesse espaço de tempo, são regulados pela lei vigente todos os actos que nelle se realisam produzindo relações juridicas. Mas quando uma lei é abrogada por uma outra lei. acontece geralmente que certos actos que furam praticados no do-minio da primeira, produzem consequencias ou effeitos que se projectam pelo tempo posterior a abrogação e vão eífecttvar-se ou tornar-se exigiveis quando já se acha em vigor a nova lei prerrogativa. —4— E se é verdade que a autoridade da lei cessa quando é ella abrogada, parece, á primeira, vista, que não póde mais ser invocada para regular quaesquer relações de direito, uma vez que pela publicação de uma nova lei começou esta a exercer plenamente a sua autoridade. Entretanto o direito permitte que, mesmo dentro no periodo de tempo em que domina a lei nova, seja invocada a lei antiga para reger certos actos que nasceram sob o seu imperio, e que ainda pão se acham de todo consummados, bem como as consequencias e os effeitos resultantes desses mesmos actos. 2. Quando a lei nova em vigor não attinge com a sua autoridade esses actos e suas consequencias, e os deixa inteiramente regulados pela lei antiga, sob cujo dominio tiveram nascimento, se diz que não ha retroactividade, isto é, que a lei nova não retroage, não tem acção alguma sobre taes actos praticados no passado, antes do momento da sua publicação, embora só depois desta se tornem exigíveis as respectivas consequencias e effeitos. Ao envez, quando a autoridade da lei nova se exerce sobre actos que foram praticados sob o dominio da lei antiga, e regula os effeitos e consequencias que venham a produzir-se já sob o imperio da nova lei, se diz que ha retroactividade, isto é, que a lei retroage, e que debaixo de sua acção cáem —5— os actos que. nasceram antes da sua publicação, mas cujos effeitos venham a tornar-se exigíveis depois delia. 3. Quaes sejam os actos que escapam á acção da lei nova, e quaes sejam os que a ella se submettem — é o importantíssimo problema juridico, que deu logar á construcção da theoria da retroactividade das leis, chamada por alguns ctheoria da não retroactividade das leis», (¹) por outros, «theoria da irretroactividade», (2) «theoria dos direitos adquiridos» (3) e que outros denominaram «questões de direito transitorio». (4) 4. O assumpto, quer sob o ponto de vista puramente theorico, quer sob o ponto de. vista do interesse prático, é dos que têm des-pertado as maiores controversias, ou, como diz Clovis Bevilaqua, é um dos pontos mais obscurecidos pela discussão jurídica. (5) Já no dar o nome á theoria, como acabamos de ver, não se harmonisam os escriptores. 5. E o desaccôrdo ainda se manifesta com maior inconvenieacia para o estudo da materia no definir-se o que seja retroactividade da lei. (¹) Baudry Lacantinerie—Trait. de Droit. Cio., % ed. v. I n. 125, nota I (²) Pacifici-Mazzoni — Ist. di Dir. Cio. Ital., v. I n.° 85 e segs. (³) Lassalle—Théor. Systém. d.s Droits. Acguis., trad. franc. 1,904— v. 1. (45) Chabot de 1'Allier—Quest. trans. sur le Cod. Civ. ( ) Clovis Bevilaqua—Th. Ger. do Dir. Civ. pag. 19. 7. Os actos ou relações jurídicas perante os quaes a lei nova não retroage, são os convencionalmente chamados — direitos adquiridos. Quando, ao executar-se uma lei nova qualquer, depara-se um direito adquirido que possa ser lesado, a lei não tem applicação ao caso, porque a retroactividade seria injusta. Quando não se encontra direito adquirido, applica-se a lei, mesmo retroactivamente, porque a retro-actividade é justa. A expressão — direito adquirido— é usa-da de longa data, geralmente adoptada, e exprime com clareza a idéa que nella se quer incluir. Não têm razão, portanto, Planiol, (¹) Vareilles Sommières (2) e os que com elles criticam o uso dessa expressão, sem lhe apresentarem substitutivo satisfactorio. Se, em alguns casos, ha difficuldade em decidir se se trata de um direito adquirido ou de uma espectativa, isso não autorisa a declarar inexacta ou falsa a distincção. £' verdade que pode ser ella tomada em sentido differente quando se trate de outra materia jurídica; mas, empregada em qualquer questão pertencente á theoria da retroactividade das leis, tem um significado proprio, technica-mente firmado, e que não se confunde com qualquer outro. (1) Planiol— Trait. de Dr. Civ., 4 ed., v. I, n. 24I. (2) Vareilles Sommières — Une theor. nouv. sur la no* re-troact. des lois, apud Baudry, ob. cit., n. 125, n. I. CAPITULO II Do direito adquirido ; direito consumma-do ; faculdades ; espectativas. 8. Direito adquirido — Se é pelo reconhecimento da existencia ou inexistencia do direito adquirido, que se conclue pelo effeito não retroactivo ou retroactivo de uma lei nova, cumpre fixar, de modo claro, o que seja — direito adquirido. Ingentes têm sido as tentativas feitas para o definir; e os mais notaveis jurisconsultos têm tomado parte na tarefa. Quasi sempre falhos ou incompletos os resultados, Planiol (¹) ainda modernamente chegou a chamar de artificial e viciosa a doutrina do direito adquirido, julgando impossível dar-lhe uma definição satisfactoria. (2). Mas não. pensamos com Planiol. Depois do preciosíssimo contingente trazido pelo insi(1) Planiol—loi-, cit. (2) Guilherme Alves Moreira, na sua substanciosa obra ultimamente publicada, applaude a critica de Planiol; e para não empregar a expressão consagrada— direito adquirida —usa de outras equipollentes : «direito definitivamente individualisado >, « situação subjectiva definitivamente constituída >, etc.—Inst. dt Direito Civil Português—1907—v. I m. 36, 37 e 38.) — 12 — 121. Mais do que todas, a noção dada por Savigny, (1) contribue efficazmente para for-mular-se uma definição do direito adquirido. Para elle, direitos adquiridos são consequencias de factos juridicos passados, mas consequencias ainda não realisadas, que ainda não se tornaram de todo effectivas. Direito adquirido é, pois, todo o direito fundado sobre um facto juridico que já succedeu, mas que ainda não foi feito valer, são «as relações jurídicas de uma pessoa determinada, isto é, os elementos de uma esphera de independente domínio da vontade individual, e não as faculdades abstractas de todos os homens ou de classes inteiras de homens», nem as «espectativas, que se fundam sobre uma antiga lei, mas são destruídas pela lei nova». Nessa noção, vem se destacados alguns característicos do direito adquirido: — consequencias de facto realisado sob a lei antiga, constituindo relações de direito, onde se manifesta o domínio da vontade individual, mas que ainda não se fizeram valer. 13. Posteriormente Lassale, imprimindo uma orientação profundamente philosophica ao estudo da materia, em sua admiravel monogra-phia sobre o assumpto (2) veiu, com idéas inteiramente novas, accentuar uma das feições (1) Savigny—ob. cit. v. 8 § 385, pags. 382, 385, 386 e 387. (2) Lassalle— ob. cit. — 13 — mais características do direito adquirido, mostrando a razão por que elle se impõe ao respeito perante quaesquer disposições de uma legislação futura. Para Lassale, o direito adquirido se apresenta como a effectuação da livre 'vontade do individuo. Quem o adquiriu, obrou como um ente livre que pensou e quiz, sabendo o que queria, conhecendo a lei vigente, e acceitando voluntariamente as consequencias do seu acto. Uma lei nova que o violasse, constituiria uma affronta á inviolabilidade da personalidade humana. Este cunho da individualidade da pessoa, que assignala o direito adquirido, deante do qual deve desapparecer qualquer effeito de uma lei nova, é um dos pontos em que mais realça a theoria de Lassalle, e em que mais proveitosamente elle contribue para o conhecimento da natureza desse direito. A theoria do eminente escriptor pecca, porém, por ter elle, arrastado pelas exagerações da sua escola philosophica, affirmado que o direito adquirido resulta exclusivamente de um acto da liberdade individual, da acção livre da vontade, e não póde nascer de uma simples determinação legal independentemente do concurso da vontade do individuo. E' um pequeno senão, que torna incompleta a sua brilhante doutrina, excluindo da categoria dos direitos adquiridos alguns direitos, que devem ser incontestavelmente considerados taes. — 14 — Porque, como justamente observa Gabba (l) comquanto seja verdadeiro que a maior parte das relações jurídicas sejam postas em existencia pela vontade humana, e por isso a maior parte dos direitos adquiridos o sejam por meio de actos voluntarios, é, entretanto, certo que alguns direitos nascem directa ou indirectamente ipso jure, isto é, por obra da lei, e constituem verdadeiros direitos adquiridos. 14.. Foi com o aproveitamento dos elementos colligidos nas difinições precedentes, que o insigne Gabba, corrigindo e completando as idéas anteriormente expostas, conseguiu formular a su.t longa definição do direito adquirido. «E' direito adquirido», define elle, «todo o direito — a) que é consequencia de um facto idoneo a produzil-o em virtude da lei do tempo em que esse facto foi realisado, embora a occa-sião de o fazer valer não se tivesse apresentado antes da existencia de uma lei nova sobre o mesmo objecto, e —b) que nos termos da lei sob o imperio da qual se deu o facto de que se originou, entrou ímmediatamente a fazer parte do patrimonio de quem o adquiriu.»(2). (2) Gabba— ob. cit. p- 175. (2) Gabba—eb. cit p. 191. Espínola—Syst. de Dir. Civ. Brasil, pag. 170 nota 5—reconhece que esta definição apresenta um criterio distinctivo sufficiente não só sob o ponto de vista theorico, como tambem para as necessidades da prática. Não pensa assim o douto Lacerda de Almeida—que a critica com rigor, em substancioso artigo publicado no Jornal do Commecio de 28 de fevereiro de 1909. — 15 — Essa definição, desde que seja completada com esta frase final, que lhe offerecemos em additamento,— «ou constituiu o adquirente na posse de um estado civil definitivo»,— encerra todos os característicos distinctivos do direito adquirido, que são: 1.° um facto acquisitivo, idoneo a produzir direito, de conformidade com a lei vigente; 2.0 uma lei vigente no momento em que o facto se realise; 3.0 capacidade legal do agente ; 4.0 ter o direito entrado a fazer parte do patrimonio do individuo, ou ter constituído o adquirente na posse de um estado civil definitivo; 5.0 não ter sido exigido ainda ou consum-mado esse direito, isto é, não ter sido ainda realizado em todos os seus effeitos. 15. I.° o facto — A expressão facto, segundo observa o autor da definição, deve ser tomada no seu mais amplo sentido, comprehen-dendo os factos e as relações jurídicas. E esse facto deve ser realisado completamente, de ac-cordo com a lei em vigor, porque se o facto) não tiver sido perfeito, como exige essa lei, não será apto a fazer adquirir um direito. O direito de uma pessoa determinada nasce do facto — jus oritur ex facto. Emquanto não se verifica o facto, que produz a acquisição de um direito, ha apenas possibilidade de direito, simples faculdade jurídica abstracta, ou mera espectativa. Para que o facto acquisitivo possa produzir direito, deve consistir em uma modalidade da situação em que o homem está pelo simples facto de ser homem. Essa modalidade pode provir ou de acto positivo da vontade humana, ou de fortuitas contingencias da vida social, de que a lei faz originar-se um direito. O acto voluntario pode ser praticado por uma só pessoa, seja a propria que adquire o direito, seja um terceiro, ( actos unilateraes ), ou por mais de uma pessoa (convenções); e pode ainda ser praticado ou com o proposito de fazer surgir um direito, ou sem o escopo de crear direito A palavra—facto—comprehende, pois, essas tres modalidades indicadas. Donde se conclue que um direito adquirido póde provir ou de um acto da propria vontade do adquirente, ou de um acto voluntario de outra pessoa, ou da determinação da lei, em virtude de uma cir-cumstancia qualquer ou caso fortuito. 16. Para que o facto acquisitivo seja apto a produzir direito adquirido, deve reunir certos requisitos essenciaes, que são os seguintes : a) Deve ser praticado de conformidade com a lei vigente, sendo observadas as condições e as formalidades prescriptas sob pena de nullidade. E' claro que um facto realisado — 17 — contra o disposto na lei em vigor seria inválido ou nullo, e de facto nullo não póde resultar nenhum direito. E desde que a lei estabelece certas fórmalidades especiaes internas ou externas, para que um acto seja idoneo a produzir direito, é certo que o facto acquisitivo deve ser posto em existencia com observancia dessas fórmalidades que a lei do tempo exige. E' perante esta lei que se deve verificar se o facto é legal, quer quanto á materia, quer quanto á fórma, e se está apto a produzir effeitos juridicos — tempus regit actum. Se não contiver as condições e as fórmalidades exigidas pela lei do tempo em que teve existencia, é nullo e não produz effeito algum. 17. Entretanto, alguns autores sustentam que, embora seja nullo um facto por ter sido praticado com falta de alguma condição ou fórmal idade exigida pela lei do tempo, esse facto convalescerá quanto á substancia ou quanto á fórma, isto é, se tornará válido, desde o momento em que appareça uma lei nova dispensando a condição e a fórmalidade que não foi observada. Assim, por exemplo, se um testamento fôr feito por um menor, e sómente perante quatro testemunhas, o que será motivo de nullidade perante a lei actual, tornar-se-á válido se, por occasião da morte do testador, houver uma nova lei permittindo que os me- — 18 — nores façam testamento e que os testamentos sejam feitos perante quatro testemunhas. Lassalle argumenta em prol dessa opinião, no tocante á convalescença material, embora) quanto á convalescença fórmal a restrinja só ao que elle chama —fórmas probatorias, e diz que, desde que a lei nova aboliu a disposição prohibitiva que impedia a manifestação da vontade, não ha razão para que essa manifestação da vontade não produza effeito, uma vez que ella ainda subsiste, e que desappareceu o unico obstaculo que havia. E procurando encontrar fundamento para a sua opinião no direito romano, mostra que, se entre pessoas de differente religião, ou ligadas por parentesco em gráu proximo, se realisasse um casamento prohibido, e, portanto, nullo perante a lei vigente, esse casamento tornar-se-ia válido desde o dia em que apparecesse uma nova lei abolindo taes impedimentos. Gabba rebate com vantagem a opinião de Lassalle, proclamando um principio inteiramente opposto. (1). Diz elle que, assim como a lei nova não póde apagar os effeitos das relações jurídicas validamente concluidas sob o imperio de uma lei precedente, assim tambem não póde, salvo em casos excepcionaes e expressamente determinados, attribuilos a actos que são nullos (1) Gabba—ob. cit., v. I, p. 243 — 19 — em virtude da lei sob cuja autoridade foram concluídos. Realmente, quem praticou um acto juridico violando as disposições imperativas da lei vigente, não póde esperar que esse acto venha algum dia a produzir effeito, como se a lei houvesse sido observada. Pode acontecer mesmo que uma pessoa viole a lei intencionalmente, certo de que o seu acto nunca produzirá effeito juridico. E seria uma violencia que a doutrina viesse válidar um acto contra a vontade de quem o praticou. 18. Nada faz para o caso o exemplo que Lassalle pretendeu encontrar no direito romano, onde, no fr. 4 e no fr. 65 § 1—de ritu nupt. (23-2) se declara que, embora originariamente inválido o casamento de um impubere, ou de um magistrado provincial com uma mulher da província por elle administrada, esse casamento se torna valido, desde o momento em que o impubere se torne pubere, ou o magistrado deixe o cargo que exercia. Em verdade, nesses casos, o direito romano admitte que se torne válido um acto que originariamente era nullo, não porque appare-cesse uma lei nova abolindo os impedimentos, como faz suppor Lassalle, — pois, não ha, nas hypotheses figuradas, nenhuma mudança de legislação, — mas sim, porque, como bem claramente se vê pelos exemplos, cessaram as cir- — 20 — cumstancias de facto que produziam a nullidade perante a lei vigente. Antes, o direito romano proclama o principio contrário, de que não convalescem os actos nullos, o que se vê estabelecido não só em materia de legados e fideicommissos pela regra cataniana (D. 34-7 ), segundo a qual o que é vicioso desde o principio não póde ter força nem effeito em qualquer tempo, como tambem nas regras geraes de direito, onde diz Paulo que—quod initio vitiosum est, non potest tractu temporis convalescere (fr. 29—de reg.jur. (50-17), e L. Rufino que—quæ ab initio inuti-tilis fuit institutio, ex postfacto convalescere non potest. (fr. 210 h. t.) O instituto da ratihabitio tambem em nada apoia a doutrina de Lassalle, porque, na ratihabitio—ratum habere,—ha uma approvação e ratificação daquillo que foi feito por falso procurador1,— rem haberi ratam hoc est comprobare adgnoscereque quod actum est a falso procuratore. (1) Está claro que não se cogita ahi de mu-dança de legislação. Savigny diz positivamente que a fórma de um negocio juridico deve julgar-se exclusivamente segundo a lei existente no tempo em que foi elle realisado de modo que uma lei posterior não influe sobre a sua válidade, quer simplifique, quer complique a antiga fórma. Esta (1) Ulpianus, fr. 12 § —rat. rem haberi (46—8). — 21 — maxima póde exprimir-se com as palavras — tempus regit actum, —• que correspondem, e aliás com maior gráu de certeza, á regra de direito local — locus regit actum (1). 18. b) O facto deve realisar-se em tempo proprio, isto é, deve ser posterior á publicação, e anterior á abrogação da lei que lhe dá effeito juridico. Realmente, o effeito juridico de um facto só lhe pode ser reconhecido pela lei dentro de cujo período de obrigatoriedade elle teve existencia. Algumas vezes acontece que uma lei nova attribue effeitos juridicos diversos a um facto dado no domínio da lei antiga. Mas isso só se pode verificar a respeito de um facto de natureza permanente, começando os effeitos jurid icos depois da publicação da nova lei, e sob a condição de não serem lesados direitos adquiridos. 19. c) Deve ser perfeito, isto é, reali-sado completamente e em todas as suas partes. Diz-se assim, porque o facto acquisitivo pode ser simples ou complexo. Simples é aquelle que se realisa em um só momento, não apresentando partes successivas, separadas por um intervallo de tempo, (compra e venda, mutuo, etc.) Complexo é aquelle que se compõe de partes, as quaes vão tendo existencia separadamente, com intervallos de tempo. O facto complexo ainda (1) Savigny, ob. cit. v. 8 ( 388. p. 409. — 22 — pode verificãr-se de tres modos: ou posto em existencia por uma só pessoa, que praticou a série de actos em um período mais ou menos longo de tempo : (a usucapião); ou por duas ou mais pessoas, praticando cada uma separadamente, uma parte distincta do facto: (a suc-cessâo testamentaria); ou por um acto humano qualquer, ao qual se ligue um acontecimento posterior, que a pessoa não tem o poder de evitar: (os factos condicionaes). Emquanto o facto não está realisado era todas as suas partes, não póde produzir um di-reito adquirido. 20. Os autores discutem se, estando rea-lisada apenas uma parte do facto complexo quando appareça uma lei nova, pode a pessoa ainda realisar as outras partes para o fim de adquirir um direito. Gabba (1) responde fazendo distincções: E' permittido aperfeiçoar o facto, quando a parte que falta seja infallivel, devendo necessariamente verificar-se, (2) ou quando seja uma verdadeira e propria condição, cujo implemento não possa ser evitado pela pessoa contra quem se fórma o direito adquirido, ou quando seja um desenvolvimento ou transfórmação de um direito adquirido anterior em que ella tenha a sua base. (1) Gabba— ob. cit. p. 229. (2) Conf. Papinianus, fr. 79 princ. — de cond. et demonst. (35—O Ulpianus, fr. 921—de novat— (46—2). — 23 — Fóra dessas tres condições, não é permit tido completar ou aperfeiçoar o facto, pois a parte realisada pode conter apenas uma espe-ctativa e não um direito adquirido, visto que «não se póde admittir direito adquirido a adquirir um direito». 21. 2.° A lei vigente — Gabba (¹) diz que todas as vezes que affirmamos a existencia concreta de um direito, essa affirmação tem dois objectos: i.° a existencia de um facto do qual, ou em virtude do qual nós consideramos que surgiu o direito, 2.° a existencia de uma lei que daquelle facto faz nascer um direito. A lei nova, embora affirmando ou negando alguma cousa, deve referir-se a um objecto con-Icreto, visando determinados factos ou circum-stancias. Antes de concretisado no facto, o direito existe apenas em abstracto, em um simples estado de possibilidade na lei que dá a norma de agir e reconhece nos indivíduos uma faculdade jurídica. E formulando uma proposição fundamental na theoria da retroactividade, o eminente escriptor observa que não se pode admittir um direito concreto, que não tenha o seu fundamento em uma lei ou norma jurídica positiva, ( comprehendendo os usos e costumes), vigente no tempo em que o direito surge, e não provenha de um facto ao qual essa norma [jurídica attribue a virtude de produzir direito. (¹) Gabba—ob. cit. p. 195. A lei do tempo é que regula o facto. E não é possível applicar a um mesmo caso juridico duas leis emanadas em tempo diverso, salvo quando o facto juridico é complexo, e se decompõe em partes distinctas que tiveram existencia em tempo e sob leis differentes. 22. 3.° Capacidade legal do agente — Para que um facto seja idoneo a produzir direito, é necessario que o agente tenha capacidade jurídica reconhecida pela lei vigente no momento em que surgiu o facto. As questões de dolo, violencia ou erro, que podem viciar a vontade e influir sobre os effeitos de um acto praticado, devem ser tambem julgadas de accor-do com a lei do tempo. A capacidade de agir, diz Savigny, deve ser julgada exclusivamente segundo a data do facto juridico, seja . no tocante ao estado do facto, seja no que concerne á lei existente. Assim, se um menor conclue um contracto sem assistencia do tutor, este contracto é e permanece nullo, ainda depois que o menor tenha attingido a maioridade, e mesmo que uma lei posterior antecipe a epoca da maioridade. E da mesma fórma, o contracto feito por um maior de 21 annos é e permanece válido, mesmo que depois seja adoptada a legislação romana que fixa o começo da maioridade em 25 annos. (1) (¹) Savigny—ob. cit. v. 8 § 387 p. 408. — 25 — 23. 4.° Caracter patrimonial ou concreta utilidade resultante da posse de um estado civil definitivo — (¹) Nem de todos os direitos se pode dizer que são adquiridos. Para verificar-se a existencia de um direito adquirido, é necessario que elle constitua uma utilidade concreta da pessoa, utilidade que pode traduzirse ou por vantajosas condições pessoaes subjectivas, resultantes da posse de um estado civil definitivo, ou por vantagens patrimoniaes, comprehendidas estas na sua mais ampla accepção. (2) A primeira fórma de utilidade attinge as qualidades constitutivas do estado da pessoa, (3) a segunda o patrimonio propriamente dito, concretisando-se em cousas externas, objectos de direito. O direito adquirido é, pois, individual, ou por fazer parte do patrimonio material de uma pessoa, ou por ligar-se intimamente á individualidade de alguem como um dos seus caracteres distinctivos. Limitando cuidadosamente o conceito do direito aquirido, adverte Gabba (4) que <direitos concretos e adquiridos são sómente aquelles (1) Filomnsi Guelfi— ob, cit- § 32 p. 111—diz que o direito adquirido, que deve ser respeitado, pertence ao domínio do direito privado devendo ter sido produzido de modo legitimo e fazer parte do patrimonio da pessoa. (2) Huc—Code Civil v. I n. 66. 3 ( ) Baudry Lacantinierie—ob. cit., v. 1 n. 146. (4) Gabba—ob. cit. p ato. — 26 — que, dentro da esphera do poder facultado pelas leis concernentes ás pessoas e ás cousas, visam a um determinado e vantajoso effeito, por essas leis contemplado de modo explicito ou implícito, e surgem nos indivíduos, ou por virtude da operosidade humana, ou por virtude directa da propria lei, em seguida a factos e circumstan-cias, nos modos e condições por ella preestabelecidas. > 24. 5.° Não estar ainda consumma- do o direito.—Como ultimo elemento caracteristico do direito adquirido, exige a definição que o direito ainda não tenha sido feito valer, isto é, que ainda não tenha sido realisado em todos os seus effeitos. Nesta condição está o criterio pelo qual se distingue o direito adquirido daquelle que já foi consummado. Desde que o titular de um direito já o fez valer contra quem elle existia, e desde que já se realisaram os effeitos delle decorrentes, esse direito entrou para a classe dos factos consummados. deante dos quaes nem é possivel cogitar de acção re-,-troactiva de lei alguma. O direito adquirido é um direito que pertence a alguem, mas que ainda não produziu todos os seus effeitos, e que, por isso, póde ainda ser exigido judicialmente pelo seu titular. O direito consummado é aquelle que já se fez inteiramente effectivo, é um facto acabado, totalmente realisado, e a respeito do qual nada é possivel reclamar senão — 27 — o respeito ao que já aconteceu e que já produziu todos os seus effeitos. 25. Por dois modos o direito se consumiria : por solução amigavel (transacção), ou por sentença judicial. Já dizia Paulo, nos arts. 229 e 230—de verb. sig. (50-16) que, pelas expressões transacta ou finita devemos entender não só aquellas cousas sobre as quaes houve controversia, mas tambem aquellas que se possuem sem ter havido controversia. Pertencem a esse numero os negocios terminados por um julgamento, os que se resolveram por uma transacção, ou os que Analisaram por um silencio de longo tempo. Transacta finitave intelligere debemus, non solum quibus controversia fuit, sed etiam quæ sine controversia sint possessa : ut sunt judicio ter-minata, transactione composita, longioris tempo-ris' silentio finita. Na c. 7—de leg. (1-14), Theodosio e Valentiniano determinaram que as leis e as constituições só regulam os casos futuros e não podem revogar os factos passados—leges et cons-titutiones futuris certum est dare fórmam ne-gotis: non ad fada prceterita revocari; e na c. 2 § 23—de vet. jur. enucl. (1-17) Justiniano, promulgando as Instituías, o Digesto e o Codigo, ordenou que só tivessem força de lei para os casos futuros e pendentes, e não para os — 28 — que estivessem terminados por sentença judicial ou por composição amigavel, pois que estes de nenhum modo devem ser resuscitados—et suum vigorem in judiais os tendentes in omnièus causis, sive quæ postea emerserint sive in judiciis adhuc pendent nec ea judicialis vel amicalis forma com-pescuit. Quæ enim jam vel judiciali sententia finita sunt vel amicali pacto sopita, hæc resus-citari nullo volumus modo. E neste sentido, muitos outros textos se encontram affirmando todos que as leis novas não podem affectar os casos que já terminaram por transacção ou por sentença, isto é, os factos consummados—(c. 16—de transac. (2-4), c. 22 § I — de sacr. -eccl. ( 1-2 ) c. 17 § 1 —de fide instrum, (4-21), c. 15 § 5—de legit. hæred. (6-58), nov. 19 pr. e cap. 1. 26. Releva notar que os autores divergem quanto á questão de saber se se deve applicar ao caso uma lei publicada posteriormente á sentença judicial, quando sobre esta pende ainda decisão de um tribunal superior, por ter sido contra ella interposto recurso de appellação. Gabba (1) diz que, na sua opinião, não ha duvida que sobre tal sentença deve influir toda e qualquer lei retroactiva por mera vontade do legislador, emanada pendente a causa. Em direito romano, porém, não póde ser admittida semelhante opinião, porque Justiniano (¹) Gabba, ob. cit. p. 37. — 29 — declarou expresssamente, em a nov. 115. pr. e cap. I que «se se interpuzer appellação contra a sentença pronunciada em uma causa, os juizes a devem julgar observando as leis vigentes no momento em que a sentença foi pronunciada, mesmo quando appareça, depois da sentença, uma lei nova, cujas disposições sejam applica-veis a casos anteriores.» Savigny justifica a disposição romana, di-zendo que o juiz da primeira instancia sómente podia decidir segundo a lei vigente no tempo da sua sentença, e ao tribunal de appellação só é permittido modificar uma sentença errada, mas nunca uma sentença justificada por si mesma. (¹). Tratando se de recursos contra a sentença que ainda não passou em julgado, a regra geralmente admittida é que uma lei nova não póde abolir, com effeito retroactivo, um recurso que a lei antiga admittia quando foi pronunciada a sentença. E Gabba entende que um recurso introduzido por lei nova não póde ser adoptado contra uma sentença pronunciada sob a vigencia de uma lei que o não admittia. (2). 27. Faculdades e expectativas.—Conhecida a natureza do direito adquirido, pelo estudo dos seus elementos constitutivos, podemos distinguil-o não só do facto consummado, (12) Savigny, ob. cit. § 397 p. p18. ( ) Gabba, ob. aí. v. 4 p. 539. — 30 — como acabámos de vêr, mas ainda das simples faculdades e das meras espectativas, conforme a technica usada pelos autores, repellida modernamente, sem razão alguma, por Planiol (1) e os que o acompanham. Faculdade, como a palavra bem claramente significa, é a simples capacidade, não exercitada, de praticar actos juridicos; é um direito que a lei reconhece, mas que nunca foi posto em prá-tica, do qual ainda não foi feito uso pela pes-soa de quem se trata, como, por exemplo, a faculdade de contrahir casamento, ou a faculdade de testar. Essa faculdade se mantém como tal, emquanto a pessoa não a exercita por meio de um facto acquisitivo de direito. Ella é anterior ao direito adquirido, e simples meio para o adquirir. Espectativa é a mesma esperança de um direito que, pela ordem natural das cousas, e de accordo com uma legislação existente, entrará provavelmente para o patrimonio de um individuo quando se realise um acontecimento previsto. A espectativa se distingue da faculdade,porque se transfórma em um direito que entrará para o patrimonio do individuo independentemente de qualquer acto deste. A faculdade só produz acquisição de direito quando exercida pelo titular O conceito da espectativa está para (1) Planiol, ob. cit. v. I n. 249. Clovis Bevilaqua.—Theor, do Dir. Civ. pag. 21. — 31 — o de faculdade, como o conceito de probabilidade está para o de possibilidade. A espectativa se distingue do direito adquirido porque este, como vimos, já entrou para o patrimonio da pessoa, ou, ao menos, já se concretisou em uma utilidade pessoal ou real para o individuo, ao passo que aquella é apenas uma esperança. Não ha direito adquirido, diz Filomusi Guelfi, quando um direito está no seu fieri ou devenire. (1) O direito em espectativa pode ser alterado por lei. O direito adquirido nem a lei o pode alterar. Um exemplo de espectativa de direito é a que tem o filho sobre a legitima paterna, porque em virtude de um acontecimento previsto, e de accordo com uma legislação vigente, elle espera que essa legitima entre para o seu patrimonio e constitua um direito adquirido. 28. Cumpre notar que o direito adqui-rido pode ser condicionado. E é preciso maior attençâo, neste caso, para não o confundir com a espectativa. Para isso, deve-se observar que o direito adquirido condicionado tem todos os elementos de um direito adquirido, e já se concretisou em utilidade para o individuo, dependendo apenas da realisação de uma condição ou de um termo para que possa ser exigido. Por isso, no direito condicionado o adimplemento (1) Filomusi Guelfi -obr. cit. $ 32. — 32 — da condição, mesmo que se verifique sob o dominio de uma lei nova, tem effeito retroacti-vo, de modo que o direito se considera como real e effectivo desde o momento em que nasceu sob condição. Como diz Savigny, a diffe- rença está nisto : na espectativa o exito depende inteiramente do mero arbítrio de uma outra pessoa ao passo que na conditio e no dies não tem logar este arbítrio. (1) 29. Feitas essas distincções indispensa-veis, podemos repetir, com segurança, a regra fundamental já exposta: — que a lei nova não pode ferir direitos adquiridos. Ou, em outros termos, deixando de parte os factos consumma-dos, que, como dissémos, estão inteiramente fóra de qualquer questão de direito transitorio, podemos dizer: — que a lei nova é retroactiva quando encontra simples faculdades ou meras espectativas; — não é retroactiva quando encontra direitos adquiridos. (1) No primeiro caso, a retroactividade é justa, porque, como já foi demonstrado, as faculdades e as espectativas são direitos in abstracto, que ainda não se realisaram por um facto, e ' que não constituem parte do patrimonio, nem con(1) Savigny—obr. cit. v. i $ 385, p. 388, $ 392 p. 434. (2) Dernburg— obr. cit. $ 43 n. 8—manifesta-sa contrário á opinião dos que dizem que a nSo retroactividade só se verifica em face dos direitos adquiridos; mas as poucas palavras do notavel jurisconsulto não bastam para produzir convicção. Elle mesmo reconhece que ta simples espectativas não têm defeca (cit. § in fin). — 33 — creta utilidade pessoal do individuo. Uma lei nova pode justamente extinguil-as sem causar damno algum, porque, como ensina Gabba, (1) desde que não haja lesão a direitos adquiridos, toda lei nova deve receber a mais ampla appli-cação a tudo o que concerne ao seu objecto, quer se trate de factos ou relações juridicas inteiramente novas, quer de consequencias de factos e relaçOes jurídicas anteriores. E ninguem se pode dizer lesado pela applicação da lei nova, pondera Baudry Lacantinerie, desde que ella não o despoja de algum direito adquirido. (2) No segundo caso, a retroactividade é injusta, porque, desde que o direito foi realisado, tornou-se adquirido, entrando a fazer parte do patrimonio de uma pessoa, ou constituindo-a na posse de um estado civil definitivo, e qualquer effeito retroactivo de uma lei nova seria uma offensa á pessoa, e grave lesão ao seu patrimonio, o que o direito não pode admittir. 30. Lassalle, com aquella profundeza philosophica que caracterisa o seu importante trabalho sobre esta materia, diz mesmo que — não retroactividade das leis e respeito aos direitos adquiridos são conceitos identicos. A retroactividade é inadmissível porque ella importa em uma invasão sobre a liberdade e a responsabi(1) Gabba— ob cit\ v. I p. 182. (2) Baudry Lacantinerie—ob. cit. v. 1 n. 127. — 34 — lidade do homem. Aquelle que agiu livremente, conhecendo a lei vigente, e de conformidade com ella adquiriu um direito, sujeitando-se a todas as consequencias do seu acto nos termos dessa mesma lei, por confiar na ordem jurídica existente, não póde, sem violencia, ser, por disposição de uma lei nova, privado desse direito adquirido. O effeito retroactivo da lei, neste caso, seria uma affronta á personalidade do individuo, desrespeitando a vontade por elle manifestada de accordo com a lei que conhecia. E a lei nova que declarasse expressamente ter effeito retroactivo, seria, na expressão de Las-salle, não uma lei, mas «o não direito absoluto, a destruição da idéa do direito em geral». O verdadeiro fundamento do respeito aos direitos adquiridos, está, pois, na inviolabilidade da personalidade humana, e na inseparabilidade do conceito do direito e do de uma pessoa que pensa e quer livremente. (1) 31. Mas não basta essa inviolabilidade da personalidade humana para justificar o respeito aos direitos adquiridos, diz proficientemente Gabba (2), completando a doutrina de Lassalle: «na retroactividade injusta os homens não vêm sómente offensas á personalidade, a qual, ás vezes, é sacrificada á razão de Estado, (1) Lassalle— ob. cie. v. I cap. II p. 65 e segs. (2) Gabba—ob. cie. p. 177. — 35 — mas elles vêm, além disso, verdadeiros damnos, verdadeiras diminuições de seu patrimonio pessoal e material. E isto porque o direito adquirido não é sómente uma manifestação do pensamento e da vontade do homem, mas é tambem um positivo augmento ou melhoramento da sua situação jurídica; e, porisso, o não direito que nasce da injusta retroactividade da lei, não é tolerado pelos homens, não só porque offende a dignidade humana, mas tambem porque di-minue o bem estar e produz um positivo prejuízo. » E' uma exigencia racional do direito, diz Filomusi Guelfi, que a lei não declare injusto ou nullo um acto exercido pela vontade sob a garantia de uma lei anterior. Desde que o primeiro direito formal, (a primeira lei) garantia o acto ou o facto, elle reconhecia a sua conformidade com a justiça e o direito; ora, se appa-rece um novo direito formal, com um conteudo diverso da justiça ou do direito, elle não pode nem deve desconhecer que a primeira lei correspondia ás exigencias historicas da justiça; e quem, na prática de um acto, se tem conformado com as prescripções do velho direito formal, prestou a homenagem devida ao proprio direito, donde resulta a exigencia de que seja 1 respeitado o seu acto. ( ) O principio da não retroactividade é, segundo Planiol, a salvaguarda necessaria dos direitos individuaes. Não haveria (1) Filomusi Guelfi—ob.cit. § 32—Dernburg—ob. cit. v. I p. 43. — 36 — nenhuma segurança para os particulares, escreve elle, se seus direitos, sua fortuna, sua condição pessoal, os effeitos de seus actos e de seus contractos pudessem, a cada passo, ser postos em questão ou supprimidos por uma mudança de vontade do legislador. O interesse geral, que não é aqui senão a resultante dos interesses individuaes, exige, pois, que aquillo que foi regularmente feito sob o imperio de uma lei, seja considerado como válido, e, por consequencia, estavel, mesmo depois da mudança da legislação. (1) 32. O que se diz do direito adquirido, isto é, que a lei nova não retrotrahe o seu effeito quando o encontre, porque a retroactividade seria injusta, applica-se tambem ás consequencias do direito adquirido, porque ellas participam da mesma natureza deste. (2) Assim, adquirido um direito qualquer, todas as faculdades que delle decorrem como consequencias ou effeitos, são tambem direitos adqui-ridos e fórmam com elle uma só entidade. De facto, seria illusorio o respeito em que se deve ter o direito adquirido, se se pudesse impedir, por uma lei nova, a realisação das consequencias ou dos effeitos delle derivados, pois, um direito adquirido, como diz Gabba, (1) Planiol—ob. fit. v. I n. 240. (2 ) Alves Moreira—ob. cit. v. I n. 37. — 37 — algumas vezes se apresenta como uma unidade simples, mas outras vezes se apresenta como um complexo de muitas faculdades ou direitos que, ou coexistem, ou se exercitam successiva-mente em dadas circumstancias. (1) Neste ultimo caso, quando os direitos se exercitam successivamente uns como consequencias dos outros, estas consequencias participam da mesma natureza do direito adquirido, se contêm os mesmos caracteres deste e se se apresentam como um seu desenvolvimento ou transformação. Não importa que essas consequencias sejam previstas pelas partes contractantes, ou sejam exclusivamente estabelecidas pela lei vigente ao tempo em que se deu o facto. E' um desses princípios que se podem chamar fundamentaes e sagrados, porque têm por base a razão, a justiça e a fé inviolavel dos contractos, diz Chabot de 1'Allier, esse pelo qual se reconhece que nada deve ser alterado por uma lei nova relativamente aos effeitos de uma convenção irrevogavel. (2) Com a conclusão do contracto, escreve Savigny, as duas partes contractantes adquirem um direito á efficacia constante de todas as regras concernentes ás questões delle deriva-das. E esse direito é um direito adquirido, que (1) Gabba—ob. cit. v. I p. 276. (2) Chabot de I'AIlier—ob. cit. — 38— deve ser mantido em frente de qualquer leí nova. Esta maxima é verdadeira e tem applica-ção tambem aos contractos cujo effeito é diffe-rido pela dependencia de um termo, ou tor-nado incerto em virtude de uma condição. Além de estar de accordo com o principio fundamental da theoria, tem ella uma verdadeira importancia prática, porque é só pela sua appli-cação que se póde inspirar a confiança indispensavel á segurança do commercio, de que a efficacia dos contractos se manterá inalteravel. (1) 33. Grande divergencia tem dividido os autores quanto ao caracterisar quaes sejam as consequencias dos actos e contractos juridicos, que devem ser consideradas como direitos adquiridos para escaparem a qualquer acção da lei nova. Não nos sendo possível, pela natureza desta exposição, acompanhal-os nas longas discussões sustentadas a respeito, basta-nos declarar que a doutrina hoje triumphante é a de Gabba, que, deixando de parte a distincção entre consequencias e effeitos, e entre consequencias immediatas e remotas, affirma que «todas as vezes que nas consequencias dos (1) Savigny — ob. cit. § 392 p. 434-435 — Dernburg,—ob. cit. § 43. reconhece que, uma vez constituídas as relações juridicas, mau grado a entrada em vigor de novas leis, continuam perennemente a desenvolver os effeitos juridicos produzidos segundo a lei do tempo de sua constituição, a cujo domínio ficam sujeitas. — 39 — direitos adquiridos, isto é, nos effeitos destes, não directos e immediatos, mas occasionaes e eventuaes, ou posteriores aos immediatos e directos, queridos e postos como taes pelos contractantes e pela lei, todas as vezes que, em taes consequencias se encontre o caracter de desenvolvimento ou transfórmação do originario direito adquirido, ellas têm o caracter de outros tantos direitos adquiridos, e qualquer outra distracção se torna inutil. (1) Só com esse criterio é possível fixar a extensão do direito adquirido. (1) Gabba—ob. cit. p. 295. CAPITULO III Das leis expressamente retroactivas 34. A exposta razão fundamental que determina a inviolabilidade do direito adquirido, repellindo, em qualquer hypothese, a retroactividade injusta, faz com que, de accôrdo com Struvius e Lassalle, e a despeito da opinião contrá-ria de grande numero de autoridades, não admitíamos a acção retroactiva por disposição expressa do legislador, quando este tenha por escopo ferir direitos adquiridos. Admittir a retroactividade pela simples intenção do legislador, é renunciar a todo ponto de vista scientifico, é duvidar da sciencia. (1) Como diz Berriat Saint Prix, o proprio poder legislativo não pode despojar um cidadão dos direitos que compõem seu patrimonio; elle não pode graval-o com um onus que diminua a sua fortuna. (2) (1) Lassalle—ob. cit., v. I, p. 45. (2) Berriat Saint Prix — Ther. du Dr. Constit—1851 —ns. 736 e 737. — 42 — Filomusi Guelfi que, conforme o direito] positivo italiano, reconhece no legislador a fa-culdade de declarar expressamente retroactiva uma lei, adverte, ponderosamente, ser de bôa politica que elle não abuse desse poder, por-quanto o principio da não retroactividade, ge-ralmente acceito, que exige o respeito aos actos praticados de conformidade com a lei antiga, deve tambem ser attendido pelo proprio legis-lador. (1). 35. E' tão procedente pela sua legitimidade jurídica esse principio, que, em alguns paizes, já foi elle acolhido como preceito constitucional para servir de salutar aviso aos legisladores ordinarios. A França, embora sem exito, já tentou collocal-o em uma das suas constituições. (2) Nos Estados Unidos da America do Norte, a constituição federal prescreve, no art. I sec. 9 n. 3, que não poderá ser votada lei que tenha effeito retroactivo (ex post facto). (3). E entre nós tem sido esse principio acceito desde a organisação do Imperio, como uma das garantias dos direitos do homem. Assim, a constituição imperial estabeleceu, no art. 179 § 3, que a disposição da lei não terá effeito retroactivo, e a constituição federal republicana, (1) Filomusi Guelfi— ob. cit., § 32. (2) Constituição de 5 fructidor anno III (22 de agosto de 1795) (3) Tambem a const. da Noruega, art. 97, a da Grecia, art. 7 e a carta constitucional portugueza, art. 145 § 2. — 43 — no art. II n. 3, prohibe aos Estados, como á União, o prescrever leis retroactivas. E', portanto, inadmissível no Brasil, de accôrdo com a verdadeira doutrina, a acção retroactiva da lei por disposição expressa, que muitas legislações permittem, e de que tanto abusou a legislação romana no tempo dos imperadores. Como bem pondera Savigny, é sum-mamente importante que se possa ter uma confiança segura na autoridade das leis existentes. Cada qual deve poder estar certo de que os negocios juridicos que fez, conforme as leis existentes, para adquirir direitos, produzirão os seus effeitos ainda no futuro. (1). 36. Deve-se notar que o dispositivo constitucional citado refere-se ao legislador e não ao juiz. A sua fórma não deixa nenhuma duvida sobre isso, porque véda que elle, quer nos Estados, quer na União, prescreva leis com effeito retroactivo expresso. Ao juiz não fóra possível prohibir que applicasse as leis com ef-feito retroactivo nos casos em que ellas o tenham pela natureza do objecto sobre que recáem. Desde que uma lei nova não encerre disposição expressa sobre acção retroactiva,—e entre nós isso é impossível, como vimos — o juiz deve dirigir-se, na applicaçâo das leis, guiado apenas pelos princípios doutrinarios já expostos, (1) Savigny—ob. cit., § 385, p, 390. — 44 — que determinam que uma lei nova deve ser applicada do modo o mais completo, abrangen-do todos os casos que se incluam na esphera do seu objecto, e respeitando apenas aquelles em que se verifique a existencia bem caracte-risada de um direito adquirido. CAPITULO IV Dos institutos juridicos de duração perpetua 37. Um dos pontos em que alguns es-criptores têm procurado justificar a retroactividade expressa, é aquelle referente ás leis que têm por fim abolir certos institutos de duração perpetua, como a emphyteuse, os feudos, a servidão da gleba, a escravidão, etc. Realmente, os progressos da civilisação, impulsionando o aperfeiçoamento do direito, têm determinado a necessidade de abolir os institutos juridicos, que não se adaptam mais ás novas condições, á indole, aos costumes do povo. Ao mesmo tempo, não é possível deixar de reconhecer que a abolição desses institutos produz effeitos directos sobre o patrimonio dos indivíduos, constituindo um verdadeiro ataque aos direitos adquiridos. Ora, se, de conformidade com o principio fundamental da theoria da retroactividade, as leis novas não podem retrotrahir o seu effeito de modo a lesar direitos adquiridos, segue-se — 46 que, uma vez resalvados da acção retroactiva da nova lei esses direitos, e sendo elles de natureza perpetua, como é o direito do emphyteuta sobre o immovel emphyteuticado, ou o do senhor sobre o escravo, a lei abolitiva não poderia realisar o seu fim, seria uma lei inefficaz. 39. A' vista disso, alguns autores esforçam-se por demonstrar que semelhantes leis têm effeito retroactivo completo, levando de vencida os direitos adquiridos; e assim deve ser, dizem elles, porque, desde que seja reconhecida a necessidade de abolir institutos de natureza per-i petua, por nao estarem mais de accôrdo com as idéas e as condições da sociedade civil, é que esses institutos nao têm mais legitimidade perante os princípios superiores do direito, da justiça e da razão (1). E em nome desses princípios, póde ser considerada como justa, nesses casos excepcionaes, a retroactividade com offensa aos direitos adquiridos (2). No caso em que a lei positiva é, de facto, a negação do direito e da justiça, dizia o notavel profes-sor Conselheiro Justino de Andrade, a lei nova, que a revoga, tem effeito retroactivo, em face de um principio irrefragavel, que é o seguinte : (1) Struvius chama-lhes «horrores, vergonhas moraes injus tiças que não têm por si existencia jurídica. — Apud Savigny, ob, cit. p. 527. (2) Vincenzo Simoncelli— Sui limitti della legge nel tempo — Studii di diritto in onore di Vittorio Scialoja— igo5, v. 1 p. 382. — 47 — — « as leis que restabelecem o direito natural le reparam os direitos imprescriptiveis da humanidade, devem receber immediata applicação por todos os meios possíveis.» 39. Para outros, a inviolabilidade dos [direitos adquiridos é um dogma tão respeitavel, que, mesmo nesses casos figurados, não é admissível que a lei nova os extinga sem que los indivíduos prejudicados sejam devidamente recompensados pelo Estado com a competente indemnisação pelo damno que soffrerem. No Brasil, quando foi abolida a escravidão, pela lei de 13 de maio de 1888, os poderes publicos entenderam do primeiro modo, a despeito do preceito constitucional vigente, achando justa a retroactividade da lei para o effeito de extinguir, como extinguiu, sem indemnisação alguma, os direitos adquiridos dos senhores so-bre os escravos, que constituíam uma propriedade garantida pelas leis. Na Inglaterra, quando foi abolida a escravidão nas possessões inglezas, entendeu-se do segundo modo, que está mais de accordo com o rigor do direito, despendendo o governo in-glez avultadas sommas para indemnisar os damnos causados aos senhores dos escravos. O certo é que, a despeito das divergencias quanto ao dever de indemnisação, que nos pa-rece um consectario do respeito aos direitos — 48 — individuaes, todos concordam em que as leis abolitivas de institutos de duração perpetua necessitam, para a realisação do seu fim, do mais amplo effeito retroactivo, extinguindo mesmo os direitos adquiridos. E', segundo pensamos, uma excepção á doutrina exposta, excepção justificada pela necessidade jurídica que dictou a nova lei. CAPITULO V Das leis sobre prescrlpçíio 40. A materia concernente á prescripção, quer acquisitiva, quer extinctiva, tem despertado a attenção especial dos auctores, porque ella se concretisa sempre em um facto complexo, a respeito do qual sérias difficuldades se apresentam ao tratar-se da applicação de uma lei nova. Sendo a prescripção o instituto jurídico em virtude do qual, decorrido um certo lapso de tempo, e verificadas certas condições legaes, uma pessoa adquire ou perde direitos, é claro que» quando apparecem leis novas alterando o espaço de tempo, ou modificando os requisitos da prescripção, surge logo a questão de saber se uma prescripção começada no domínio da lei antiga e ainda não terminada ao apparecer a lei nova, continúa a ser regulada por aquella lei, ou se será regulada pela lei nova, ao menos quanto a parte que falta para completar o tempo. 41. Os escriptores divergem, dizendo uns, inspirados pelo cod. civ. francez, art. 228I, — 50 — que, começada a prescripção, tem o prescri-bente um direito adquirido a que ella seja re-gida pela lei sob a qual teve começo, e, por-tanto, a lei nova não pode retroagir, alcançando uma prescripção já começada. Dizem outros, influenciados pelo antigo cod. prussiano, que, se a prescripção começada ainda não está finda ao apparecer uma nova lei, fica ella subrnettida ao regimen desta, porque, na hypothese, o facto acquisitivo, que é complexo, não se reali-sou perfeitamente, e, portanto, não produziu um] direito adquirido. 42. De conformidade com o que já foi dito a respeito do facto acquisitivo complexo, não temos dúvida em admittir, em geral, esta segunda opinião, porque, como ficou anterior-mente explicado, emquanto não se realisam todas as partes do facto, não pode elle produzir um direito adquirido. Como pondera Windscheid, o começo da prescripção não imprime ainda ás relações o seu perfeito cunho jurídico; portanto, a nova lei domina a prescripção em curso, e aquelle que está prescrevendo não pode pretender terminar a prescripção segundo a norma juridica antiga, desde que a nova norma não admitta tal prescripção, ou requeira uma condição que o direito anterior não exigia, como, por exemplo, a bôa fé. (1) (1) Windscheid—ob. vit. vol. I $ 32 nota 10. — 51 — 43» Assim, applica-se retroactivamente a uma prescripçao em curso: a) A lei nova que abolir a prescripçao re lativa ao mesmo objecto regulado pela lei anb) A lei nova que augmenta o prazo prescripcional estabelecido pela lei antiga, de modo qne a prescripçao em curso sómente pode produzir os seus effeitos depois de decorrido o novo prazo, embora, por equidade, deva computar-se o tempo já realisado sob a lei antiga, porque, como diz Windscheid, o direito novo só exige que um determinado estado de cousas haja durado um certo tempo, mas não que tenha durado um certo tempo sob o seu imperio, (I) c) A lei nova que abrevia o tempo prescripcional estabelecido pela lei anterior, de modoque a prescripçao se completa uma vez decor rido o menor prazo estabelecido por aquella lei,computado, tambem por equidade, o tempo de corrido no domínio da lei antiga, (2) salvo se fôr brevíssimo o tempo que faltar depois de publicada a nova lei, ou se, no dia da publica ção, já estiver decorrido todo o prazo ' exigido (1) Windscheid, lod. cit. (2) A solução mais jurídica, diz Planiol (ed. cit. a. 248) é estabelece uma proporção entre o tempo decorrido e o tempo a decorrer. Em contrario: Savigny, (ob. cit. § 391 p. 430) que entende dever deitar-se ao adquirente s escolha aa cxplicação de lei antiga ao de nota. — 52 — por esta, pois, nestes casos, a prescripçãol deria produzir surprezas gue o direito não admittiria, e poderia dar-se mesmo o absurdo de realisar-se uma prescripção em um prazo menòf do que o exigido pela lei vigente ao tempo emj que ella se verificou. d) A lei nova que dispõe sobre requisitos para a prescripção, quer exigindo mais quer exigindo menos, de modo que a parte que faltar para completar-se a prescripção em curso, deve ser julgada de accordo com os requisitos determinados pela lei nova. Pela mesma razão de equidade se tem admittido que a parte já decorrida da prescripção deve ser apreciada conforme os requisitos da lei antiga, pois seria impossível exigir, relativamente a facto passado, a observancia de requisitos que só mais tarde fóram reclamados por uma lei nova, salvo se se tratar de um novo requisito que se refira ao principio ou a todo o período da prescripção/ como, por exemplo, o requisito da. boa fé, caso em que a parte decorrida perde todo o valor para o effeito da prescripção. (l) Quanto á lei nova que dispensa certos requisitos exigidos pela lei antiga, não ha dúvida que tem effeito retroactivo para reger a prescripção em curso, mas nao pode validar a parte da prescripção já de-decorrida no domínio da lei antiga, se nao fo(1) Windscheid, loc. cit. — 53 — ram observados os requisitos que esta lei exigia. Applica-se aqui o que já dissémos a respeito na convalescença dos actos juridicos, onde já ficou demonstrado que uma lei nova, abolindo requisitos que a lei antiga exigia, não pode fazer válido aquillo que perante esta lei era nullo. e) A lei nova que introduz novos modos de interrupção da prescripção. Todas essas regras, em virtude das quaes uma prescripção em curso fica sujeita ás disposições da lei nova, são consectarios da affirmação, anteriormente feita, de que emquanto não está terminado o tempo da prescripção não ha direito adquirido para o prescribente. CAPITULO VI Das leis interpretativas 44. As leis interpretativas merecem uma ligeira referencia ao tratar-se da theoria da retroactividade, não porque sejam ellas leis retroactivas, mas porque, em virtude da sua applicação aos factos anteriores, que se deram no dominio da lei interpretada, e que aindanão foram consummados, tem ellas uma acção apparentemente retroactiva. Não existe uma verdadeira retroactividade, porque entre a lei novainterpretativa e a lei antiga interpretada nãoha um conflicto de leis no tempo ; aquella apenasesclarece o sentido obscuro desta, confirmando-lhe, porém, todas as disposições; nihil dat sed datum significai (1); não é propriamente uma lei nova differente da antiga, mas surge, por uma necessidade geral, sem estatuir nada de novo, para fazer um só corpo com a lei interpretada e ter applicação desde a data em que esta entrou em vigor. (1) Ulpianus fr. 21 § I—qui testam, fac. poss. (28-1) — 56 — 45. Justiniano, em a nov. 19 pref. in fin., resolvendo dúvidas levantadas ácerca do effeito retroactivo da lei interpretativa pela qual esclareceu o sentido das leis anteriores relativas á legitimidade dos filhos nascidos antes do contracto dotal, decidiu que a nova lei deveria ser applicada mesmo aos filhos nascidos antes da sua promulgação, embora não estivesse isso declarado expressamente, porquanto, se é verdade que quando se quer dar effeito retroactivo a uma lei, deve isso ser dito de modo expresso, não é, todavia, necessario fazer o mesmo quando seja promulgada uma segunda lei que não seja senão um complemento da primeira. Por isso, e para não encher o codigo de cousas superfluas, deixou de declarar, na terceira lei sobre o assumpto, o tempo em que devêra entrar em vigor, porque é sabido geralmente que uma lei interpretativa dispõe para todos os casos regidos pela lei a que se refere — cum omnibus manifestum sit oportere ea, quae adjecta sunt, per interpretationem in illis valere, in quibus et interpretatis legibus fit locus. E em a nov. 143 cap. 1, fixando a verdadeira interpretação da lei relativa á punição dos dè-lictos de rapto de mulheres, determinou que a interpretação constante dessa novella se ap-plicará não só aos casos futuros, senão tambem aos passados, como se a lei interpretada tivesse sido promulgada ab initio com essa in- — 57 — terpretação—quam interpretationem non in futuris tantummodo casibus, verurn in prateritis etiam valere sancimus, tamquam si nostra lex ab initio cum interpretatione tali promulgata fuisset. 46. Não alcança, porém, a lei interpre-tativa aquillo que já estiver terminado por tran-sacção ou por sentença judicial. Dil-o positivamente a citada nov. 19 cap. 1 — exceptis illis negotiis, quae contingit ante leges a nobis positas aut decreto judicum aut transactione determinari. Esse decreto judicial a que se refere o texto é, sem duvida, aquelle que já passou em julgado, porque a sentença sobre a qual pende um recurso de appellação, fica sujeita á unica interpretação verdadeira, que é a fixada pela nova lei, a qual os juizes supe- riores têm o dever de applicar como parte in- tegrante da lei interpretada, reconhecendo como falsa qualquer interpretação differente que houvesse sido dada pelo juiz de primeira instancia. Esta conclusão é uma consequencia do principio de que a lei interpretativa se considera como vigente desde a data da lei interpretada, postos fóra do seu alcance apenas os factos consummados. (1) (1) Espínola—ob. cit, p, 181 n.° 33—observa, com razão, que não pode haver direito adquirido baseado na interpretação falsa da lei. — 58 — 47. Cumpre fazer aqui a mesma observação que fizemos no paragrapho em que estudámos as leis interpretativas, isto é, que uma lei não é interpretativa só porque assim a denomina o legislador, mas sómente o é quando tem por fim simplesmente interpretar uma outrae nada innovar. (1) Aquellas que apparecem com esse nome, mas innovam as 4eis interpretadas, modifican-dolhes as disposições, não devem ser tratadas, em sua applicação, como leis interpretativas. (1) Bacon—aphor. n. 51. CAPITULO VII Doutrinas diversas 48. Os princípios até aqui expendidos, que constituem, segundo pensamos, as bases fundamentaes de uma verdadeira theoria da retroactividade das leis, patenteam desde logo que, filiado á exacta doutrina tão admiravelmente exposta por Gabba, cujos ensinamentos nos vêm guiando em toda esta materia, não podemos acompanhar a alguns dos mais notaveis jurisconsultos, que têm construído differen-tes doutrinas sobre tal assumpto. 49. Assim, para começar pelo maior de todos em saber e em autoridade, não acceita-mos como principio basico aquelle que Savigny estabelece como fundamento de sua doutrina, dizendo, que são retroactivas as leis que se referem ás instituições jurídicas, isto é, que dispõem sobre a existencia, a não existencia, ou o modo de existir dessas instituições em geral, e que não são retroactivas as leis que se referem á acquisição de direitos, isto é, as — 60 — que regulam as concretas relações de direito entre pessoas determinadas. (1) Não ha dúvida que, a despeito de certas) difficuldades mostradas por Lassalle, (2) e de dizer Dernburg (3) que o limite entre essas duas classes de leis não se manifesta claro nem estavel, é theoricamente verdadeira a distincção feita por Savigny entre leis que se referem ao ser ou não ser das instituições jurídicas, e leis que se referem á acquisição de direitos. Com effeito, as primeiras são aquellas que cream ou extinguem certos institutos juridicos, como, por exemplo, o da emphyteuse, o do divorcio, o do fideicommisso, o da tutela da mulher, etc, as segundas são aquellas que regulam as relações jurídicas concretisadas entre as pessoas que, por meio delias, adquirem ou perdem direitos. Mas não é possível admittir-se que só em virtude do seu objecto, as leis tenham ou deixem de ter acção retroactiva. 50, Na verdade, as leis sobre existencia de institutos juridicos, segundo Savigny, ou têm por fim crear novos institutos, ou abolir os que existem, ou alterar o seu modo de ser, No primeiro caso, não se pode cogitar de retroactividade, porisso que, antes da nova lei, (1) Savigny, ob, cit. v. 8 § 383 e segs Sobre a comprehen-são dessas duas categoria de leis. veja-se o largo e interessante estudo de Simoncelli na monographia cit. pag. 355. (2) Lassalle, loc. cit. (3) Dernburg, loc. cit. — 61 — pada podia haver concernente ao instituto creado. No segundo caso, a lei que decreta a abolição de instituto juridico, é uma lei prohibitiva, pela qual se ordena que nada mais se faça relativamente ao instituto abolido. Mas é Savigny mesmo quem demonstra que nem todas as leis prohibitivas são retroactivas. Imagine-se uma lei abolindo o instituto do divorcio, ou o da adopção de filhos. Essa lei poderá, juridicamente, ter effeito retroactivo ? Sem dúvida que não: todos os divorciados, bem como os filhos adoptados no regimen da lei antiga, escapam á acção da lei nova, e podem fazer valer, em qualquer tempo, os seus direitos adquiridos. 51. Quanto ás leis sobre o modo de ser dos institutos juridicos, não é possível dis-tinguil-as das que se referem á acquisição de direitos, pois, como diz Gabba, o modo de ser dos institutos juridicos não consiste senão na qualidade e nos limites dos direitos que, por occasiâo e em virtude dos mesmos institutos, podem ser adquiridos. A celebre const. 27—de usuris (4-32) serviu de objecto para demonstrar como foi impossível a duas intelligencias privilegiadas concordarem na qualificação desse preceito do imperador Justiniano. Savigny (1) con-demnou a lei por entender que ella se referia (1) Savigny, ctí. p. 435. — 62 — á acquisição de direitos; ao passo que Lassalle (1) a applaudiu não pensando do mesmo modo. 52. Lassalle refuta a Savigny dizendo que a sua distincção repousa apenas em abstractas categorias intellectuaes, que não servem de segura base, e accrescenta que as leis, con-forme sejam consideradas sob o ponto de vista do individuo ou do objecto, podem classifícar-se como leis sobre acquisição de direitos, no primeiro caso, e no segundo, como leis sobre existencia de direitos. Realmente se nota, na obra de Savigny, um certo arbítrio no classificar as leis em uma ou em outra categoria. (z) 53. Quanto á não retroactividade das leis que se referem á acquisição de direitos, é doutrina perigosa e falsa, porque essas leis têm por objecto relações jurídicas entre pessoas determinadas, e, como já longamente demonstrámos ao expôr a verdadeira theoria, é certo que nem todas as relações de direito produzem direito adquirido, e quando não ha um direito adquirido, sabemos que as leis novas retrotrahem o seu effeito. 54. Entretanto, se não é possível accei-tar como um principio fundamental da theoria da retroactividade a distincção a que acabamos de alludir, devemos, todavia, reconhecer a grande (1) Lassalle, cit. p. 289. Pandette (trad ital.) v. I § 32 nota 6. (2) Windscheid. —Dirit. delle — 63— Importancia da doutrina savigniana, já pelas vastas idéas com que ella enriqueceu o assumpto, já porque aprofundou a noção do direito adquirido, distinguindoo das simples faculdades e das meras espectativas. Releva notar, porém, que Savigny, admittindo ao seu principio, para justificar a ampliação ou a estricção da efficacia da lei nova, certas excepções que, segundo elle, devem ser determinadas expressamente pelo legislador, (1) deixa vacillantes as bases da sua doutrina, che- gando mesmo ás vezes a perdel-as de vista. E é digno de nota, que, nos resultados praticos da applicaçâo das leis novas, e nas consequen- cias finaes de suas minuciosas lucubrações, Savigny, em regra geral, põe-se de accordo com a verdadeira theoria do respeito ao direito adquirido. Isto nos permitte observar com Gabba que, attendendo mais aos factos que ás pala-vras, pode-se dizer que a verdadeira doutrina de Savigny não é aquella que parece contida nas formulas por elle inventadas; é, porém, uma doutrina muito mais simples, e que todos podem cornprehender, isto é, que, em regra geral, todas as leis se podem applicar a consequencias de factos e relações juridicas anteriores, desde que com isso não se offendam direitos adquiridos. (2) (1) Savigny, cit § 397 (2) Gabba, cit. p. 170. — 64 — 55. A doutrina dos que sustentam que são retroactivas as leis prohibitivas, tambem não assenta em fundamento solido. Esse criterio deduzido da fórma da lei, é completamente accidental, e extranho aos princípios que regem a efficacia da lei no tempo, sendo certo, como já referimos acima, que innumeras leis prohibi-tivas não podem ter effeito retroactivo, se a sua applicação importar em offensa a direitos adquiridos. Por exemplo, uma lei que prohiba os contractos de quota litis, ou uma lei que prohiba o emprestimo de dinheiro a juro maior do que seis por cento, não se applicam aos contractos já feitos e ainda não exigidos. (1) Os exemplos apontados pelos adeptos dessa doutrina, referem-se todos a institutos juridicos de duração perpetua, ácerca dos quaes só por excepção se justifica o effeito retroactivo, como já foi anteriormente demonstrado, (cap. IV) 56. Uma outra conhecida doutrina prégada por Odilon Barrot, na Assembléa nacional franceza, declarava que não é verdadeiro o principio de que as leis não são retroactivas, porque a verdade é que as leis favoraveis são retroactivas. Isto pode ser até certo ponto admittido, desde que se considerem leis favoraveis aquel-las que não ferem direitos adquiridos. Sé, po(1) A c, 27 de uzuris (4-32) foi uma violencia aos direitos. adquiridos, só tendo applicação por forca. da vontade expressa de Justiniano. — 65 — rém, ao applicar-se uma nova lei favoravel a um individuo, houver lesão ao direito adquirido de outrem, não é possível dar a essa lei effeito retroactivo. Tudo se resolve, pois, em uma questão de direito adquirido. A theoria da retroactividade das leis favoraveis ao individuo sómente pode ser acceita na esphera do direito criminal, em virtude do principio — nulla poena sine lege, e em homenagem á humanitatis causa. (1) 57. A doutrina que estabelece como criterio para a retroactividade a intenção do legislador expressamente manifestada na lei, é insubsistente por arbitraria, submettendo a razão jurídica aos dictames autoritarios dos legisladores. Já expuzémos, anteriormente, os motivos por que entendemos que o legislador não tem o direito de impôr effeito retroacivo ás leis que promulga, (cap. III). 58. A doutrina de Lassalle é de inesti-timavel valor em virtude do seu profundo estudo philosophico ácerca do direito adquirido. Já fizemos ver que, segundo elle, é a inviolabilidade da pessoa humana o verdadeiro fundamento do respeito devido ao direito adquirido. Para elle, respeito ao direito adquirido e não retroactividade da lei são conceitos identicos. Como vemos, essa base geral da sua doutrina é quasi egual Cod. Penal, art. 3.0 — 66 — á de Gabba. Mas afasta-se deste autor no ponto fundamental em que Lassalle expõe o conceito do direito adquirido, affirmando que elle sempre) resulta de um acto da vontade humana. Ora, conto já ficou demonstrado que ha direitos adquiridos que nascem por obra da lei, e indepen-, dentemente de qualquer manifestação da vontade, é logico que, a despeito dos justos encómios que merece, a doutrina de Lassalle não é admissível em todas as suas partes. 59. Uma das doutrinas mais generalisa-das, e que de longo tempo vem conquistando foros de verdade, é a que sustenta que são retroactivas as leis de ordem publica ou as leis de direito publico (1). Esse criterio é, porém, inteiramente falso, (2) tendo sido causa das maiores confusões na solução das questões de retroactividade. Antes de tudo, cumpre ponderar que é difficilimo discriminar nitidamente aquillo que é de ordem publica e aquillo que é de ordem privada. São tão intimas as relações de direito publico e de direito privado, que já Bacon observava no seu aphorismo III —jus privatum, sub tutela juris publici, latet. O interesse pu(1) Simoncelli, na monographia citada, defende com brilhantismo essa doutrina, cercando-a de limitações derivadas da distincção entre leis absolutas ou cogentes e leis simplesmente dispo-sitivas facultativos, Applaudindo, com algumas restricções, a doutrina de Savigny, procura demonstrar que ella assenta, em ultima analyse, no principio de que são retroactivas as leis de ordem publica absolutas. (2). Alves Moreira, ob. cit. n. 36. blico e o interesse privado se entrelaçam de tal fórma, que as mais das vezes não é possivel separai-os. E seria altamente perigoso proclamar como verdade que as leis de ordem publica ou de direito publico têm effeito retroactivo, porque mesmo deante dessas leis apparecem algumas vezes direitos adquiridos, que a justiça não permitte que sejam desconhecidos e apagados (1). O que convém ao applicador de uma nova lei de ordem publica ou de direito publico, é verificar se, nas relações juridicas já existentes, ha ou não direitos adquiridos. No caso affírmativo, a lei não deve retroagir, porque a simples invocação de um motivo de ordem publica não basta para justificar a offensa ao direito adquirido, cuja inviolabilidade, no dizer de Gabba (2) é tambem um forte motivo de interesse publico. 60. Porisso é que, no direito judiciario e no direito processual, se é verdade que as novas leis se applicam geralmente aos casos pendentes, onde não se vêm senão simples faculdades, entretanto deparam-se algumas vezes, mesmo nesses departamentos juridicos, certos direitos adquiridos, que escapam á acção das leis novas. (1) Simoncelli mesmo o reconhece, confessando que no direito pri vado prevalece a irretroactividade, e no direito publico prevalece a retroactividade (pag. 361.) (2) Gabba, 06. cit, p. 151. — 68— Assim, se o direito de acção, em regra, não é um direito adquirido, podendo ser abolido pelas novas leis, emquanto não foi exercitado, como, por exemplo, a acção de divorcio, a de dissolução de casamento, a de investigação da paternidade, etc, ha casos, todavia, era que constitue elle um verdadeiro direito adquirido, quando a acção faz parte da essencia desse direito sendo uma consequencia delle, ou sendo a transfórmação desse direito no meio indispensavel para o fazer valer, como são as acções que nascem de um titulo de credito. Nestes casos, uma lei nova não pode, sem injusta retroactividade, declarar inadmissível a acção concedida pela lei anterior, porque seria illusoria a acquisição de um direito se não houvesse para o seu titular a segurança de o poder exigir judicialmente no futuro. (1) Assim tambem os actos processuaes, em regra, não attribuem direitos adquiridos aos litigantes, de modo que uma lei nova se applica sempre retroactivamente aos processos pendentes, visto que a fórma de processo não é da essencia do direito dos indivíduos, e pode ser alterada em qualquer tempo pelo legislador. (1) Essa verdade foi reconhecida pala sentença da Côrte de Cassação de Paris applicando aos creditos dos judeus a disposição do celebre decreto de Napoleão I, de 17 de março de 1808, em que foi declarado que não tinham acção perante os tribunaes os emprestimos feitos por judeus a menores sem auctorisação dos tutores, etc. A Côrte decidiu que o decreto não era applicado aos emprestimos anteriores á tua publicação. — 69 — Mas certos casos ha em que, praticado um acto processual, elle faz nascer, em quem o praticou, um verdadeiro direito adquirido aos effeitos decorrentes do acto, e uma lei nova, sem injusta retroavidade, não pode impedir que taes effeitos se realisem. 61. O principio fundamental da theoria da retroactividade, adverte Cabba, (1) deve applicar-se egualmente ao direito privado e ao direito publico; e, portanto, as leis novas, de quaesquer especies que sejam, devem respeitar os direitos adquiridos. O que ha de singular no tocante ás leis de direito publico é que, nas relações jurídicas por ellas creadas, visando especialmente funcções de interesse publico ou de indole politica, os indivíduos em geral se sujeitam ás publicas exigencias, e não nascem tão facilmente os direito adquiridos, que são de indole privada. (2) Dahi o dizer-se geralmente que as leis concernentes ao interesse publico ou politico se applicam immediatamente com effeito retroactivo. (1) Gabba—eit. p. 140. (2) Baudry Lacantinerie 06. eit. n. 143. CAPITULO VIII Doutrina romana 62. Na exposição que fizemos, em largos traços, dos princípios fundamentaes da theoria da retroactividade das leis, não nos prendêmos aos textos da legislação romana, porque, dos seus diversos dispositivos esparsos pelas colle-cções, fóra impossível deduzir systematicamente uma doutrina completa e acceitavel sobre a retroactividade. Certamente não passou despercebido aos romanos o alto interesse juridico que se liga a este importantíssimo assumpto, que já tinha despertado a attenção dos philosophos antigos. Na Grecia, Platão e Socrates já prégavam, como verdade philosophica, que as leis, cujo fim é o util, sómente podiam dispôr para o futuro. Mais tarde Cicero, na sua segunda oração contra Verres, referindo-se á lei Voconia, fazia ver que as leis não deviam reger actos do passado. (1) O direito canonico tambem elaborou (1) Cicero—In Verrem. I—42—In lege Voconia non est, Fe-cit Fecerit: neque in ulla prateritum tempus reprehenditur, nisi ejus rei, qum sua sponte tam scelerata ac nefari est, ut etiamsi lex non esset, magno opere vitanda fuerit... De Jure vero civili si quis novi instituit, is non omnia quae ante acta sunt, rata este patietur — 72— regras a respeito do assumpto. No corpo da legislação de Justiniano deparam-se muitissimos textos no Codigo e nas Novellas, contendo diversas regras sobre applicação da lei relativamente ao tempo, que não offerecem base, po-rém, para a construcção de uma theoria homogenea e logica. 63. Parece que o verdadeiro fundamento romano para uma doutrina da retroactividade, é a celebre c. 7—de leg. (1—14) em que os imperadores Theodosio e Valentiniano decretaram que—é certo que as leis e as constituições sómente regulam os negocios futuros, e não podem revogar os factos passados, salvo se expressamente for declarado que os seus, preceitos se extendem ao tempo passado e tambem aos negocios pendentes.—Leges et consti-tutiones futuris certum est dare fórmam negotiis, non ad facta praeterita revocari, nisi nominatim etiam de praeterito tempore adhuc pendentibus negotiis, cautum sit. (1) Desse claro preceito se deduzem dois princípios reguladores da acção da lei no tempo. O primeiro é que a lei não tem effeito retroactivo, visto que só rege os negocios juridicos futuros, não devendo applicar-se aos negocios (1) Este preceito já tinha sido proclamado como norma legislativa por Theodosio (I) como consta da c. 3—Cod. Theod.—de const. (I - I) Omnia constituía non praeteritis calumniam faciunt sed futuris regulam imponunt. — 73— passados, mesmo que os seus effeitos não se possam exigir senão no futuro. (1) O segundo é que a lei tem effeito retroactivo quando assim o determina expressamente o legislador. 64. Roborando o primeiro principio en-contramse varias outras disposições especiaes, quer no Codigo, quer nas Novellas : —a c. 66 (65) § I.°—de Anastacio—de decur.(IO-31- 32), referindo-se á const. de Zenon relativa á causa de isenção dos cargos curiaes, diz que essa constituição só terá vigor desde o dia em que se publicou, porque convém que as leis imponham regras para o futuro e não para o passado—cum conveniat leges futuris regulas im-ponere, non praeteritis calumnias excitare. O mesmo declara Justiniano na c. un. § 13— de lat. libert. (7-6), dispondo sobre a extincçâo da liberdade latina e a transmissão dos bens dos libertos latinos fallecidos antes da data da lei —maneant apud eos jure antiquo firmiter detenta et vindicanda: in futuris autem libertis praesens constitutio locum sibi vindicet. Tambem na c. un. § 16—de rei uxor. (5-13), legislando sobre a natureza do dote e as acções respectivas, determina que as disposições dessa lei são sómente applicaveis aos dotes que se dêm ou promettam ou se recebam sem documento depois da sua data, pois que os instrumentos (1) Savigny, ob. cit. nota, b ao § 386 pag. 393. — 74— já preparados nada devem perder quanto aos seus effeitos e força— qua omnia in his tan-tummodo dotibus locum habere censemus, quae post hanc legem data fuerint vel promissa vel etiam sine scriptis habitae : instrumenta enim jam confecta viribus suis non patimur, sed suum expectare eventum; na c. un. § 16 — de cad. toll. (6-51), legislando sobre legados, ordena que as innovações feitas só se appliquem ás disposições de ultima vontade dos que morrerem depois data da lei, e que as dos que já morreram sejam reguladas pelas leis antigas —locum autem constituimus in his de-functorum elogiis, quae post hac composita fuerint: anteriores etenim casus suo Marte discurrere concedimus, na nov. 18, cap. 5, introduzindo um novo direito ácerca da successão das concubinas e dos filhos naturezas, diz que essa lei sómente valerá para o futuro. . . e não tem força para os casos0 passados, porque estes não podiam estar sujeitos a regras que ainda não existiam: — valebit itaque lex nobis in futuris, et maxime omnium haec,quoniam earum, quae dudum non recte tenebant, plurima et eme-davit et explanavit, et quod prtoeriit, no potest ab ea, quae nondum erat, regulis subici. Na nov. 54. pref. e cap. I, declarou que a lei que decretou a liberdade dos filhos de escravo com mulher livre só teria aplicação ao filhos que nascessem depois da lei, e não aos que houves- — 75 — sem nascido antes —propterea sancimus omnes qui nati sunt a tempore legis Aos solos (liberos) esse adcripticia fortuna, si ex liberis nascantur matribus, omne prozteritum antiquce servandum legi; na nov. 66, cap. I § 4 declara validas as disposições testamentarias feitas de conformidade com a legislação anterior, accrescentando que seria na verdade absurdo que aquillo que foi feito correctamente tivesse de ser mudado posteriormente por causa que então não existia— erit namque absurdum, ut quod factunt est recte ex eo quod tunc non erat factunt postea mute-tur; na nov. 99, cap. 1, legislando sobre a exigibilidade de obrigações solidarias, prescreve, no § 2 in fin, que essas disposições sómente são applicaveis aos contractos celebrados depois da data da lei, regendo-se as anteriores pelas leis então vigentes — Ais omnibus incipientibus in contractibus sequentis temporis et ab hujus legis positione; quod autem proeteriit (et) ante eam posi-tis pro his relinquimus legibus. Esse dispositivo confirma o principio geral que, em materia de contracto, manda attender sempre ao seu inicio e a sua causa—uniuscujusque enim contractus initium spectandum et causam. (1) Relativamente ás leis que prescrevem fórmas para os actos juridicos, tambem Justiniano proclamou a mesma regra sobre a não retro(1) Ulpianus, fr, 8 princ — mandati v.contra (17-1). — 76 — actividade. Assim, na c. 7 —de curat.fur. (5-70), depois de se referir á nomeação de curadores ao alienado, e ás fórmalidades com que devera ser nomeados, diz no § 11, que essas innova-ções estabelecidas pela nova lei só se applicam aos casos futuros —futuris casibus imponantur devendo as anteriores nomeações reger-se pelo direito antigo — sed antiquo ordine statuti in antiquos quantum ad creationent permaneantterminos. Tambem na c. 29— de testam. (6-23), depois de determinar que, na confecção dos testamentos, sejam observadas certas fórmalidades, ordena no § 7, que essa lei sómente seja obrigatoria para o futuro; e dando ahi a razão fundamental da não retroctividade, pergunta: como poderia ter peccado aquelle que, não conhecendo a lei nova, observou a disposição da lei antiga? —qua in posterum tantummodo observari cencmus, ut, quae testamenta post hanc novellamnostri numinis legem conficiuntur, hesc cum tali observatione procedant: quid enim antiquitas peccavit, quce pressentis legis inscia pristinam secuta est observationem ? Tendo-se em vista todos esses textos, e muitos outros que poderiam ser citados, parece que a legislação romana guardava o principio da não retroactividade das leis. 65- Entretanto, ao lado desse principio assim acceito de modo absoluto e exagerado. — 77 — sem cogitar de distincçao alguma, lá está proclamado, na cit. c. 7—de leg. (1-14), um outro principio opposto ao primeiro, pelo qual se reconhece no legislador o poder de dictar a acção retroactiva de qualquer lei por meio de uma declaração expressa. A vontade do legislador tornou-se, pois, supremo arbitro para quebrantar as diversas regras que pareciam cuidadosamente resguardar as relações juridicas anteriores do effeito retroactivo das leis novas. E de tal fórma abusou elle dessa faculdade, promulgando leis com retroactividade expressa, que Struvius chegou a dizer que a legislação romana assegurava a retroactividade da lei mais com palavras do que com factos. E Dernburg observa que o principio proclamado expressamente pelos romanos, de que as leis não são retroactivas, não constitue uma insuperavel barreira á legislação, mas é simplesmente uma maxima que o legislador póde por bons motivos desprezar. (1) 66. Entre as diversas leis romanas, retroactivas por disposição expressa, destacam-se as celebres constituições 3 —de partis pign. (8-34), (35), e 27 — de usuris (4—32), que contêm injusta retroactividade por offenderem incontesta-, veis direitos adquiridos derivados de contractos feitos de conformidade com as leis anteriores vigentes. (1) Dernburg— ob. cit., v. I § 43. — 78 — Pela c. 3, publicada no anno 326, Constantino com o intuito de melhorar a sorte dos devedores, aboliu os pactos commissorios, pelos quaes era emmittido ao credor pignoraticio, para pagamento da divida, fazer-se proprietario do objecto apenhado, qualquer que fosse o seu valor. E decretando essa abolição, determinou expressamente que a lei não só prohibia que se fizessem no futuro pactos dessa natureza, mas ainda mandava que ficassem sem effeito os pa- ctos presentes e passados, podendo os credores apenas cobrar a importancia que deram de emprestimo. Pela c. 27, publicada no anno 529, Justiniano, querendo corrigir a interpretação dada á c. 26— h. t. do anno 528, em que estabeleceu o maximo possivel das taxas de juro nos contractos, ordenou que aquelles que antes da publicação desta lei houvessem contractado juros mais elevados do que o permittido por ella, os reduzissem ao typo nella fixado, a contar da data da publicação, embora pudessem exigir, até essa data, os juros anteriormente convencionados. Por tudo quanto já sabemos á respeito da theoria da retroactividade, evidencia-se a injus- trça que se encerra no effeito retroactivo attri-buido pelos imperadores a essas constituições, que extinguem e modificam contractos feitos de accordo com as leis vigentes no tempo em que fóram elaborados. 79 Essas constituições, como ponderosamente diz Bergmann a proposito da c. 27, constituem mm verdadeiro desvio do principio da não retroactividade, que só poderia justificar-se em virtude das circumstancias especiaes produzidas pelo abuso da usura. (1) Alguns autores têm querido enxergar um caso de retroactividade expressa nas compilações de Justiniano, porque na c. Tanta § 23, determina elle que as Instituías, o Digesto e as constituições do Codigo tenham perpetuo vigor, devendo reger não só os casos futuros senão tambem os pendentes, exceptuados apenas os que já estejam terminados por sentença judicial ou transacção amigavel. Não é possível, porém, ver ahi um caso de retroactividade, porque» não se trata propriamente da applicacão de leis no- vas, mas sim de simples compilação de um di- reito já vigente. (2) A doutrina romana é, pois, a que está synthetisada na referida c. 7 — de leg. (1-14), dou- trina que não se compadece com os princípios científicos do direito, já porque, exagerada em sua primeira regra, nega á lei nova qualquer Perfeito retroactivo, sem distinguir a natureza dos actos ou relações jurídicas que ella póde encon- (1) Savigny, cit. § 392 p. 435. (2) Savigny, cit. § 383 p. 373. — 80 — trar, já porque, autoritaria em sua segunda regra contradicente á primeira, faz da vontade do legislador o arbitro do effeito retroactivo das leis, o que não pode ser legitimado em frente da verdadeira theoria jurídica. CONSELHEIRO RUY BARBOSA PROBLEMAS DE DIREITO CONFERENCIA REALISADA POR CONSELHEIRO RUY BARBOSA NA FACULDADE DE DIREITO DE BUENOS-AIRES 1916. LONDRES: JAS. TRUSCOTT & SON, LTD. Conferencia realisada em 14 de Julhe de1916, na Faculdade de Direito de Buenos-Aires, pelo Embaixador do Brasil Conselheiro Ruy Barbosa. PROBLEMAS DE DIREITO INTERNACIONAL. Sr. Ministro. Sr. Decano. Senhoras. Senhores. A insigne honra, com que hoje me confundis, não cabe na minha pessoa: só a póde receber dignamente a minha nação. O valor inestimavel do vosso acto e as palavras, de immerecidissima liberalidade, commoventes, além do mais, pela sinceridade da sua benevolencia e pela sua intenção affectuosa, com que me acabais de acolher pela boca do mestre eminente, a quem commettestes a missão de me saudar, calaram no mais intimo de minha alma; as não obscureceram, na minha consciencia, a certeza da 2 PROBLEMAS DE DIREITO minha desvalia, da minha insuficiencia, da minha mesquinhez, diante do espectaculo em que me envolve esta assembléa magnifica, entre os accentos da eloquencia que ainda nella resoam e sob a impressão da grandeza do apostolado que se professa nesta casa. Que sou, afinal, para me tocar, neste scenario soberbo, o papel a que me elevastes ? Apenas um velho amigo do direito, um cultor, laborioso, mas esteril, das lettras, um humilissimo obreiro das sciencias. Nada mais. Toda a significação da minha vida se reduz ser exemplo de trabalho, de perseverança, de fidelidade a algumas idéas sãs. Espirito continúamente em busca de um ideal, nunca cheguei a divisal-o senão do fundo obscuro da minha mediocridade, muito ao longe, como esperança que se esbate num sonho de realidade. Na politica, bem que os meus concidadãos, nimiamente generosos, me hajam cumulado, por ta complacencia, de mercês e dignidades, para as quaes me fallecem títulos de merecimento, as circumstancias me têm circum-scripto á condição de um elemento pertinaz INTERNACIONAL. de resistencia, talvez prestadio, algumas vezes, para obstar ao mal, mas quasi sempre sem autoridade para conseguir o bem. Porque, nos paizes de educação civica escassamente desenvolvida, só os detentores do poder tém nas mãos a força do bem ou do mal. Collocado momentaneamente no Governo por uma revolução, tive a parte que não podia evitar nos serviços dos que a organi-saram e, seguramente, um quinhão mais crescido nos seus erros. Depois, collabora-dor na fundação das instituições que desses acontecimentos nasceram, devotei o resto da minha existencia, com pouco resultado e diligencia extrema, ao labor de as interpretar, de as submetter a um como curso de lições de cousas, para lhes facilitar o uso, pondo ao alcance de todos, e de as defender contra os sophismas, equívocos ou abusos. No merito dessa lida, porém» ingrata e ordinariamente infrutífera, não vejo nada que me enalteça acima da minha propria vulgaridade, na qual envelheci, cada vez mais consciente da minha fraqueza, da 4 PROBLEMAS DE DIREITO minha ignorancia, da minha desautoridade, assim no terreno das idéas, como no dos factos, cujo torvelhinho nos arrebata, nos flagella, nos consome, para, ao cabo nos abandonar, já inuteis, á margem da eternidade, por onde a torrente da vida corre para os seus destinos ignorados. Na cerração que os encobre, entretanto, ha, de vez em quando, clarões grandes, que rasgam o espaço do inundo moral, e nos deixam vêr, além das fronteiras das nossas desillusões, nos longes mais remotos do nosso descortino, os espigões de serra do futuro, dourados pelo sol de promessas divinas. Sorprendido, então, nessas entre abertas de luz, o homem, reconciliando-se com a fé, que se lhe esmorecia, sente se ajoelhado aos céos no fundo mysterioso de si mesmo, passando pela visão de que a obscuridade das cousas não é senão o véo do templo, no vão silencioso de cuja infinita nave a mão de Deus, insensível ás nossas impaciencias, reserva os thesouros incalculaveis da sua bondade para as raças e as nacionalidades que os souberam merecer INTERNACIONAL. 5 E' justamente num desses momentos que eu me sinto agora, transpostas essas portas, que da contemplação do firmamento argentino na transparencia do seu azul e na pureza da brancura das neves dos seus horizontes andinos, nos conduz a este santuario do estudo, do saber e da justiça. Direis que se assiste a uma transfiguração, que a presença de um sacerdocio evocou a de uma divindade, que dos gabinetes e salões da academia surgiram as ogivas, as cupulas, as cariatides silenciosas de uma cathedral, erguendo nas mãos e sustentando no dorso o peso dos tectos sagrados, que a tribuna se converteu em pulpito, um incenso subtil bebe o ambiente, e os portadores invisiveis das preces murmuradas no segredo das consciencias evolam para o regaço do Criador o holocausto das orações, como a evaporação balsamica das manhãs ergue no ar limpido o aroma dos prados, o cantico das flores, a embriaguez dos jardins. As vozes do nosso egoísmo emmudeceram, e no recolhimento das almas, na sua vibração interior, nas ondas de emoção que as percorrem, se ouve PROBLEMAS DE DIREITO o sussurro de uma aspiração transcendente e de uma confiança nova. Sacrificate sacrificium justitiae, et sperate in Domino. E' sob a influencia de uma dessas com moções, bem raras na minha edade crestada pela aridez da experiencia, que entro á vossa hospitalidade, e saúdo os lares augustos desta casa. Por aqui passaram gerações e gerações, á cata desses veios preciosos da sciencia das sociedades, em cujas ramificações profundas a incognita doe problemas da organização da família humana e suas condições de evolução na face da terra aguarda o trabalhar incansavel dos mineiros, que as difficuldades renascentes e recrescentes da eterna tarefa não desani mam. Aqui se muniram com o primeiro traquejo no commercio das leis os vossos magistrados, os vossos parlamentares, os vossos estadistas de mais nota. O fôro, a administração, o magisterio dessas vastas e complexas disciplinas, sobre as quaes assenta a estructura dos Estados, têm aqui o viveiro das capacidades, o laboratorio das soluções, a escola dos systemas, das theorias. INTERNACIONAL. 7 das verdades apuradas e das questões em estudo. Todo o progresso intellectual da vossa patria transitou, na sua gestação, na sua expansão, na sua consolidação, na sua fructificação, por estas salas, por estes bancos, por estas cathedras venerandas, que o lustre de annos gloriosos reveste dessa santidade com que a patina do tempo consagra os bronzes antigos. Todas essas imagens, as sombras dessas tradições, o concurso dessas memorias, aureoladas pela admiração e pelo reconhecimento dos contemporaneos, todas ellas, convocadas agora pelas datas patrioticas e pelos fastos liberaes de Julho, cuidaríeis que enchiam o vestibulo desta Faculdade, quando, pouco ha, lhe transpuzeram o limiar os meus passos hesitantes de fórasteiro, acabrunhado pela vossa generosidade e pela convicção invencivel de não ter com que vol-a saiba retribuir. A longa e lustrosa theoria dos vossos immortaes, o seu longo prestito de laureados, desáobrando-nos aos olhos a historia da intellectual idade argentina, misturou-se e confundiu-se com as 8 PROBLEMAS DE DIREITO galas desta festa. Mas a vista interior me continúa a discernil-os aqui juntos, envolvendo a multidão rumorosa dos viventes na muda turba dos redivivos, e interrogando com a sua curiosidade penetrante a temeridade do extranho, que não teve a discrição de se escusar ao vosso chamado. A que viria aqui o extrangeiro, o desconhecido, o incompetente? Senhores, ao trazer á soberania de grandeza argentina o tributo da obediencia de um coração livre, que não sei se vos deve mais hoje nas honras desta solemnidade, quando me recebeis como o mensageiro do meu Governo e da minha nação, ou ha vinte e tres annos, quando nao negastes ao expatriado o asylo da vossa hospedagem, o refugio das vossas leis, a segurança da vossa protecção. Foi então que as leituras do meu exílio me levaram a estrear os volumes do vosso Alberdi, o primeiro escriptor vosso que me poz em communhao com o pensa mento liberal argentino, e que, nao obstante as suas prevenções antí-brasileiras, cada vez mais admiro, e ainda hoje tenho por uma INTERNACIONAL. 9 das intelligencias mais selectas da littera-tura americana. O illustre tucumano, uma das glorias da antiga Universidade de Buenos Aires, no segundo quartel do seculo passado, por duas vezes, nos máos dias de sua terra, experimentou as tristezas do fóragido, indo buscar, successivamente, em Montevidéo e no Chile, á sombra do agasalho extrangeiro, o abrigo, onde exercer os seus direitos de pensar e escrever livremente. Foi em condições como essas, que vim conhecer, em 1893, as plagas argentinas. "Yo dejé mi pais," dizia elle mais tarde, ' yo dejé mi pais en busca de la libertad de atacar la politica de su gobierno, quando ese gobierno castigaba el ejercicio de toda libertad, como crimen de traicion á la patria." Não lhe bastava, como a outros, "el deseo de ser libre." Não tinha para com a liberdade esse "amor platonico." Era "de un modo material y positivo " que lhe queria. "Amo-a, para a possuir," ac-crescentava. "La amo, para poseerla. .. . Pero no hay mas que un modo de poseer su 10 PROBLEMAS DE DIREITO libertad, y ese consiste en poseer la seguridad completa de si mismo. Libertad que no es seguridad, no es garantia, es un escolio." Era assim que a definia a Inglaterra, que a definem os Estados Unidos, e o espirito argentino, interpretado nos escriptos de um dos seus mais luminosos pensadores, já então não sabia definir de outro modo. "La civilizacion política es la libertad. Pero la libertad. ... no es otra cosa que la seguridad : la seguridad de la vida, de la persona, de la fortuna. Ser civilizado, para un sajon de raza, es ser libre. Ser libre es estar seguro de no ser atacado en su persona, en su vida, en sus bienes, por temer opiniones desagradables al gobierno. La libertad que no significa eso, es una libertad de comedia. La primem y ultima palabra de la civilizacion es la seguridad individual." Toda a civilização, pois, te encerra na liberdade, toda a liberdade na segurança dos direitos individuaes. Liberdade e segurança legal tio termos equivalentes e INTERNACIONAL. 11 substituíveis um pelo outro. 0 estado social que não estriba nesta verdade, é um estado social de oppressão : a oppressão das maiorias pelas minorias, ou a oppressão das minorias pelas maiorias, duas expressões em substancias irmãs da tyrannia, uma e outra illegitimas, uma e outra absurdas, uma e outra barbarizadoras. As Republicas latinas deste continente, que se desnaturaram das suas constituições mais ou menos livres, e se afundaram na selvageria, não devem essa infausta sorte senão á desgraça de menosprezarem e não praticarem este singelíssimo rudimento de philosophia constitucional. Olvidada ou abolida essa noção elementar, os Governos, dedicados pelas suas cartas á fórma republicana, mas realmente assentados na intolerancia, derivam acceler-adamente para esse estado singular de chronicidade na epilepsia, cujos pheno-menos o Sr. Lucas Ayarragaray descreveu com lampejos de Tacito no seu livro La Anarquia Argentina y el Caudillismo, e um dos vossos maiores historiadores, o Sr. 12 PROBLEMAS DE DIREITO Vicente Lopes, caracterizou em termos frisantes, quando se occupa, na sua grande "Historia de la Republica Argentina, com "el descenso fatal del organismo politico hacia la tirania absoluta." A dominação espanhola nao havia apparelhado os povos, como a colonização britannica da America do Norte, para o regimen da liberdade. Da sujeição absoluta ás fórmas embryonarias da obediencia passiva não se havia de chegar, sem transições dolorosas, á autonomia no governo do povo pelo povo. A semente cultivada pelo truculento despotismo dos reis absolutos germinou logicamente no brutal despotismo dos caudilhos. Dahi, esse "poema barbaro " de servidão e da desordem, essa " subversão cyclopea," a " gauchocracia," que requintam a anarchia até a demencia, exaltam a crueldade até o delírio, produzem a mashorca e o caudilho, tingem de sangue a historia das pompas, e, com a superstição de um militarismo selvagem, com os costumes de um partidarismo atroz, dividem a sociedade em verdugos e INTERNACIONAL. 13 proscriptos, classificam os cidadãos em patriotas e traidores, enthronizam no poder os mandões sanguisedentos, e ermam de espíritos cultos o paiz, provocando com elles o desterro, onde rutilam, em constellações deslumbrantes, as vossas estrellas de primeira grandeza: os Sarmientos, os Al-berdis, os Rivadavias, os Tejedores, os Lopez, os Mitres, os Varelas, os Canes, os Echeverrias, os Lavalles, os Gutierres, os Indartes, os Irigoyens e tantos e tantos outros, onde se concentram, e de onde se derramam os raios mais luminosos da in-telligencia argentina. Todos os que não se alistam nessa demagogia de crueza e pilhagem, estão " fóra da protecção das leis," são " execrandos criminosos," nutrem "sentimentos infames," passam pelos "entes mais vis da sociedade," formam a categoria dos " immun-dos" e "selvagens." Na litteratura virulenta, que emana desses paroxismos sinistros, a plethora do odio fratrioida introduz esse vocabulario monstruoso, onde cada ultraje reflecte as paixões mais tene- 14 PROBLEMAS DE DIREITO brosas da vesania da força, armada com as "faculdades omnimodas," as dicta-duras tumultuarias, os plebiscitos grotescos, em que a unanimidade dos votos recolhidos pelo Terror corôa "os restauradores das leis," e os decretos de traição, que fulminam os mais nobres representantes da cultura jurídica, então nascentes ainda, mas já viva, exuberante e radiosa. Bem longe vão já, para a Argentina, esses dias malditos, de inenarravel negrume. Para ella passaram, se bem não hajam passado para outras regiões deste continente. Ainda ha vinte e tres annos, republicas havia, debaixo do Cruzeiro do Sul, onde os expatriados políticos eram alvejados do destino pelos estygmas de traições, vibrados em actos officiaes, para enxovalhar no extrangeiro os perseguidos. Vós, porem, muito ha que consolidastes a vossa civilização. Vinte e cinco annos, pelo menos, de governo estavel, ordem constante e ininterrupto progresso vos libertaram para sempre das recahidas no mal da anarchia. Um desenvolvimento colossal da riqueza, as INTERNACIONAL. 15 accumulações do trabalho na prosperidade, uma transfusão abundante de sangue europeu, um civismo educado nos melhores exemplares da liberdade conservadora, grandes refórmas, escolhidas com discrição, adoptadas com sinceridade e praticadas com inteireza, escoimaram, nos derradeiros vestígios da antiga doença, o vosso robusto organismo, talhado para um crescimento gigantesco, asseguraram-vos no mundo uma reputação definitiva, e fixeram na Republica Argentina um dos centros da civilização contemporanea, uma nação cujo invejavel adeantamento se póde resumir numa palavra, dizendo que a Republica Argentina é um paiz organizado. Quando se conquista e se firma uma situação destas, bem se póde volver a memoria para os máos dias de outro tempo com tranquillidade e orgulho. Por esses máos dias não responde a raça, nem o territorio, nem o ceu americano. Respondem as influencias da conquista, da colonização e da oppressão ultramarina. Saturados de uma educação monastica e despotica, supersticiosa e 16 PROBLEMAS DE DIREITO servil, os povoadores destas terras nellas implantaram, com o peccado original da sua descendencia, o atavismo dos vicios enviscerados no organismo dos povoe ibericos por seculos desse absolutismo, cuja malignidade culminou sob o Demonio do Meio-Dia e seus degenerados successores. Como ao Sr. Bartolomeu Mitre, a mim tambem me parece que "ningun pueblo se hubiese gobernado mejor a si mismo en las condiciones en que se encontraron las colonias hispano-americanas, al emancipar-se y fundar la Republica, que estaba em su genialidad pero no en sus antecedentes y costumbres." O Sr. Luis Varela, na sua notavel Historia Constitucional de la Republica Argentina, evidenciou, com a differença entre os dous movimentou emancipadores, quanto excedia era difficuldades o das Provincias Unidas do Rio da Prata, no começo do seculo dezenove, ao dos Estados Unidos da America do Norte, no ultimo quartel do seculo dezoito. Os Norte-Americanos de fenderam direitos, em cuja posse estavam INTERNACIONAL. 17 desde o seu estabelecimento, ao passo que os Argentinos entraram em revolução, para haver direitos, a que aspiravam, e nunca haviam tido. Os puritanos que povoaram as colonias norte-americanas, para ali se transplantavam com as instituições civilisa-doras da GrãBretanha. Mas os Espanhoes, que occupavam as regiões platinas, eram conquistadores dos territorios, que senhoreavam, dobrando-se á lei das armas. Nas cartas outorgadas pela corôa da Inglaterra as povoações norteamericanas tinham . verdadeiras constituições, nas quaes se ex-tendiam aos emigrados todas as liberdades fruidas na mãe patria. As colonias hes-panholas não eram mais que feitorias, dis-cricionariamente administradas pelos vice-reis, em nome -do soberano europeu. Quando se redimiram da metropole, os domínios inglezes ja eram entidades autonomas, dotadas politicamente, de governos republicanos representativos. Os Argentinos, ao desligarem-se dos vínculos coloniaes, não encontraram, no acervo com que entravam á vida autonoma, senão 18 PROBLEMAS DE DIREITO as tradições da centralização hespanhola, as leis das índias, e um esboço rudimentar de municípios nos cabildos das cidades. Ali, todo o poder local nascia do povo, cujos suffragios elegiam os governos. Aqui, os governados não tinham voto, individual ou collectivo, na escolha da sua administração. Lá, para constituir a nação, bastou que os Estados se unissem, abdicando uma diminuta fracção da sua soberania. Cá, estava tudo por crear em materia de instituições, locaes, provinciaes e nacionaes, que a Republica, assomando a um fiat popular, evocava do chãos, e improvizava do nada. Não admira, pois, que os homens de visão clara tremessem pela obra, que se ia emprehender, e o Dr. Manuel Castro, antes do Congresso de Tucuman, exprimisse os seus receios, dizendo: "Demos que se organize la más bella Constitucion Federal que han conocido los Estados. Qual será el genio, que acerte á ponerla en ejecucion ? Momento peligroso; el tiempo resolverá esta gran cuestion." A questão, com o tempo, acabou por se INTERNACIONAL. 19 resolver. Mas não a resolveu o genio de ninguem. O milagre de a ter resolvido pertence ao genio do povo argentino. Foi o seu instincto democratico, as suas quali- dades poderosas de assimilação, as suas dis- posições naturaes para se familiarizar com as instituições livres, o que apparelhou, através de longas provações, o vosso ingresso franco e total ao consenso das nações realmente emancipadas. Quando o drama da revolução estalou, em 1810, no vasto scenario da America latina, com as insurreições que rebentaram desde o Prata até ao Chile, desde Venezuela até ao Mexico, num impulso geral que abrange todas as colonias hespanholas, a dynastia de Fernando VII e Carlos IV, desthronados, em 1808, pela invasão napoleonica, vê reali-zarem-se os presentimentos do Conde de Aranda que, já em 1783, aconselhava ao seu soberano abrir mão, espontaneamente, do domínio de todas as suas profissões nas duas Americas, fundando ali tres reinos distinctos, sobre os quaes se estendesse a sombra da velha monarchia européa, elevada á dignidade Imperial. 20 PROBLEMAS DE DIREITO O celebre homem de Estado, num rasgo de admiravel descortino, annunciara desde aquella epoca a desaggregação dos latifundios internacionaes, que a Corôa de Cas-tella imaginava submettídos ao seu senhorio por uma dependencia indissoluvel. A separação das colonias norte-americanas lhe não abalara a confiança na vassalagem das suas. Mas o Presidente Conselheiro do Governo de Madrid, pelo contrario, medindo o alcance dessa lição, buscava desilludir o throno hespanhol. "Acabamos," dizia elle, "acabamos de reconoecer una nueva potencia, en un pais en que no existe nin-guna otra en estado de cortar su vuelo. Esta republica Federal nació pigmea. Llegará un dia, en que crezca y se torne un gigante y un coloso en aquellas regiones. Dentro de poços anos veremos con verdadero dolor la existencia de ese coloso. Su primer paso, quando haya logrado engrandecimiento, será apoderar sede la Flórida y dominar el golfo de Mejico. Estos temores soo muy fundados, y deben realizar se dentro de poços anos, sino presenciamos otras INTERNACIONAL. 21 commociones más funestas en nuestras Americas." As fontes coroadas nao costumam escutar avisos destes. Carlos III nao dá ouvidos ao seu previsto aconselhador. Mas no encalço da revolução da America do Norte, ahi vinha a revolução franceza, e no da revolução de 1780 o diluvio napoleonico, em cujos tormentos sossobra na Hespanha ia casa de Bourbon. As scentelhas de Washington e Pariz nao tardam em crepitar nos ares do Prata. Os animos embebidos pelos lescriptos de Moreno e Belgrano, na philo-sophia franceza do seculo XVIII, se agitam inflammados, e os acontecimentos vôam de tropel numa carreira vertiginosa para o advento desta nacionalidade, desde 1806, quando, com a reconquista de Buenos Aires, o Cabildo Abierto da Plaza Mayor e a entrada triumphal de Liniers, se teve "la primera aparicion del pueblo argentino," até 1816. quando a assembléa de Tucuman proclama definitivamente a emancipação nacional. Em 10 de Fevereiro de 1807 uma Junta 22 PROBLEMAS DE DIREITO de Notaveis deliberara a suspensão do vicerei, a sua prisão e a apprehensao dos seus papeis. E' o que os vossos historiadores chamam, com razão, o primeiro triumpho do povo soberano. De 2 a 5 de Julho se peleja o ataque e defesa desta cidade. As forças inglezas de mar e terra capitulam, embarcam, abandonam o Rio da Prata. ' Buenos Aires," dizia Don Cornelio de Saavedra, " Buenos Aires con sus solos hijos y sus vecindarios, hizo esta memorable defensa, y se cubrió de gloria." A revolução do 1 de Janeiro de 1809, desarmando as forças hespanholas, rendidas á milícia popular, dá mais um grande passo no caminho da independencia. Com essa victoria das armas de Buenos Aires se olhava a estrada á revolução do anno seguinte. A de 1810, encetada a 20 de Maio, já se pode ter por consummada em 22, quando o Cabíldo Abierto. que recebeu o nome de Congresso Geral, derriba o vice rei e as autoridades hespanholas. Já então o sentimento geral se pronuncia na phrase memoravel de Moreno: "La Espana ha caducado en America." INTERNACIONAL. 23 Dous dias depois uma reacção momentanea tenta restabelecer as leis do reino. Mas, nessa mesma data, pela noite, a povo da cidade, entregue a si mesmo, se agita ameaçadoramente nas ruas, e, ao amanhecer do dia seguinte, as massas populares quebram as cadeias da sujeição colonial, proclamando, com a eleição da Junta Governativa, a constituição da primeira autoridade estabelecida para gerir as Províncias Unidas do Rio da Prata. £' a revolução de 25 de Maio, com a qual expira o vicereinado de. Buenos Aires. As outras cidades e villas, convidadas por esta, concorrem com os seus deputados á organização de um governo federal, de um executivo, estabelecido em Dezembro de 1810, no qual já se esboça a federação, o systema representativo, a fórma republicana, que outros actos da grande revolução não se demorariam muito em desenvolver, concluir e solidificar. Nos dous annos subsequentes cresce a agitação redemptora e organizadora. Em 1811 a Junta Governativa dá á republica nas- 24 PROBLEMAS DE DIREITO cente, com o Regulamento Organico de 22 de Outubro, a sua primeira constituição, cujas disposições, na sua maioria, antecipam as da constituição actual. E' ahi que a nação recebe o seu baptismo com o nome de Províncias Unidas. Já nesse documento primitivo da vossa existencia constitucional se reserva ao poder legislativo a declaração de guerra, a celebração dos trabalhos, a tributação do paiz, a creaçao dos tribunaes e empregos publicos, a inviolabilidade dos membros do congresso, a responsabilidade legal do poder executivo, a independencia da justiça, as garantias individuaes e, entre essas, a maior de todas, a do habeas-corpus, que, entre nós outros, no Brasil, tem adquirido o maior desenvolvimento mas não se nacionalizou na legislação brasileira, senão vinte e um annoe depois de estar consagrada no vosso primeiro tentame de constituição. Mezes depois, em Abril de 1812, um acto do Governo fecha o territorio do paiz ao trafico de carne humana : "Se prohibe absolutamente la introdnccion de expedíciones de esclavos en el territorio de las Províncias INTERNACIONAL. 25 Unidas"' E' a grande aspiração humanitaria, que o Brazil só havia de realizar trinta e nove e os Estados Unidos cincoenta e dous annos mais tarde, á custa da mais espantosa das guerras civis que têm ensanguentado o mundo. Quarenta e oito annos depois do acto de 1812, a Constituição argentina de 1860 estatuiu : "Não ha escravos entre a nação argentina : os poucos hoje existentes ficam livres desde o juramento desta Constituição." Ainda então os Estados Unidos não haviam logrado essa conquista, que, justamente nessa epoca, estava em vesperas de originar a tremenda revolução intestina, que, durante um lustro, ameaçou dissolver a União Norte Americana, e o Brazil só vinte e sete annos mais tarde conseguiu realizar. Commentando este parallelo, senhores, escrevia eu, ha sete annos, na imprensa brazileira: "Se o Brazil tivesse imprimido na pedra angular da sua independencia e da sua organisação politica o mesmo principio christão, o rumo da nossa civilisação, a 26 PROBLEMAS DE DIREITO celeridade do nosso progresso, a índole do nosso caracter, seriam outros. Infelizmente bem diversa era a sorte que nos reservava a inconsequencia original dos autores da nossa emancipação. Os nossos futuros historiadores não poderdo dizer, como, já ha doze annos, diziam, em relação á Republica Argentina, o historiador da sua independencia, que a escravaria, como instituição, mui pouco alterou as condições economicas e moraes da sociedade nascente. Longe disso, entre nós, pelo contrario, toda cadeia da nossa historia vae prender com o anel de ferro da escravidão africana. Dahi emanaram os maiores contrastes entre o homem e a natureza, que enxovalham a nossa reputação e abatem a nossa frente, diante do estrangeiro. Durante tres gerações fomos livres, prosperos e ricos á custa da op-pressão doa nossos semelhantes. Vamos atravessando hoje a grande expiação que nfto falta jamais, que não perdôa aos attentados historicos, aos crimes capitaes contra a humanidade. A carcassa do captiveiro morto hontem está em decomposição no meio INTERNACIONAL. 27 de nós, a nos envenenar do miasma cadaverico, almas, idéas, instituições. Por isso nos fallece, até hoje, do aspecto dos homens e das cousas o lustre, o donaire, o esmalte da civilisação européa. Estes estygmas são tenazes, e não se dissimulam. Elles representam a justiça divina, de cujas sentenças os povos, como os individuos, não se resgatam senão pelo soffrimento. "O que para a extirpação desse cancro devemos ao contacto argentino não passou despercebido ao nosso reconhecimento. O Conselheiro Saraiva, em 1865, previa que a alliança do Imperio com as Republicas platinas daria em resultado neces sario a eliminação de escravatura no Brazil. Seis annos mais tarde, Paranhos, advogando o projecto, de que sahiu a lei de 28 de Setembro, confirmava eloquentemente esses presentimentos. "Achei-me, ao terminar a guerra do Paraguay, em relações com cincoenta mil Brazileiros, que estavam em contacto com os povos vizinhos; sei, por confissão dos mais illustrados dentre elles, quantas vezes a instituição odiosa 28 PROBLEMAS DE DIREITO da escravidão no Brazil nos vexava humilhava ante o estrangeiro; e póde perguntar-se aoe mais esclarecidos dos nossos concidadãos que fizeram essa campanha, se todos elles regressaram, ou não, desejando ardentemente ver iniciada a refórma do elemento servil, se se deve, ou nao, em parte a elles, o mais poderoso impulso, adquirido pela idéa nestes ultimos tempos. Desse titulo de precursor da manumissAo geral dos escravos na America, referendado pelos maiores estadistas brasileiros," e dessa sua collaboraçao, pela influencia, na obra da nossa regeneração social, tinha toda a razão em se nao esquecer, nos festejos de Maio de 1888, a nação Argentina. Foi com a consciencia do seu contingente superior nessa conquista humana que ella nos abrio os braços fraternalmente, celebrando comnosco o ultimo acto da sup-pressão do captiveiro no mundo civilizado. Mais vale entre dons povos, uma tradição destas na sua historia, que a escriptura de um tratado de allianca nas suas chancellarias. INTERNACIONAL 29 Na ordem usual e natural das cousas a independencia dos povos antecede a sua emancipação. Entre nós, porém, os successos alteraram notavelmente a sequencia habitual da evolução politica no curso da humanidade. Quando o brado final da vossa emancipação reboou de Tucuman pelas regiões do Prata, em 1816, já estava elaborada a Constituição inicial da Argentina, a matriz das suas Constituições ulteriores, na obra de Deão Funes, nesse Regulamento Organico dos tres poderes, que, desde 1811, adoptára e promulgára a Junta Conservadora de Buenos Aires. Tal era a impaciencia em que ardia, fremente na consciencia do seu vigor, a antiga colonia espanhola por entrar logo, em cheio, no gozo da sua maioridade, com o seu Governo organizado e os seus direitos definidos, e tantos os elementos de cultura já desenvolvidos nas camadas superiores da nova sociedade, o escol de homens capazes que ella reunia, o acatamento popular que os cercava, a intuição do futuro que os esclarecia. 30 PROBLEMAS DE DIREITO Nem por isso, entretanto, desmerecem do seu reconhecido valor os fastos civicos de Tucuman, onde o movimento encetado em 1806 e glorificado em 1810 culminou com aj sua terminal em 1816. O triumpho imprevisto de Belgrano, em Setembro de 1812, renovára a face da revolução, batendo os exercitos espanhoes, e arremessando para o Perú as forças do General Tristan. O povo daquella cidade historica acudira inflammado ao appello do libertador, toda a população viril pegára em armas, e as proprias mulheres se associaram activamente ao enthusiasmo geral, trabalhando no amanhar do cartuchame. Passando por sobre as ordens categoricas do Governo, o arrojado General deu a batalha desaconselhada pelos seus superiores, na qual joga a vida a tudo perder, em um duello de honra inevitavel. "Algo es preciso aventurar, y esta es la ocasion de hacerlo. Felices nosotros, si podemos conseguir nuestro fin, y dar á la patria un dia de satísfacion, despues de las amarguras que estamos passando!" INTERNACIONAL. 31 Não enganava o coração presago. Os soldados realistas são recassados. As forças "del ejercito chico," na ironia de Belgrano, derrotam "el ejercito grande" tem toda a insolencia da presumpção, que encarecera com a jactancia deste appellido as tropas inimigas. Tucuman, a bem fadada província septentrional, ganhára a divisa do seu escudo de armas. Era o tumulo dos tyrannos, como propheticamente lhe chama, na solemnização da victoria, o General laureado. O Estatuto Provisional, decretado em Maio de 1815, pela Junta de Observacion, designára, "como lugar intermedio no territorio das Províncias Unidas," para a reunião da Constituinte que se projectava, . a capital celebrizada pelos ultimos revezes do poder militar estrangeiro. Ia-se con-summar assim a revolução de 15 de Abril, que, em 1813, mandára convocar para logo um Congresso Geral, onde se formulasse a Constituição do Estado. O Paraguay não responde. A Banda Oriental, Entre Rios, Comentes e Santa Fé jazem sob o jugo de 1 32 PROBLEMAS DE DIREITO Artigas. Mas as outras provincias, incluídas, afinal, a de Cordoba e a de Salta, concorrem pressurosas ao chamado. A assembléa dahi resultante não iguala em cultura politica a de 1813, composta dos patriotas de 1810; mas reflecte com exactidão as localidades que representa, e congrega no seu seio, geralmente, os homens de mais prestimo e estima em cada província, avultando, entre elles, algumas individualidades superiores, e sobresahindo neste numero tres monges tão illustres pelas virtudes e letras quanto pelo seu civismo e pelas suas idéas liberaes. No fervor destas o clero anda á competencia do fôro e o commum do povo. Producto comparativamente venturoso de uma eleição, a que a indifferença publica de certas localidades e os odios regionaes de outras não parecia augurarem bom resultado. Três correntes distinctas se lhe debatem no seio, tres credos a dividem: a centra lização, federação, a restauração dos Incas Mas as opiniões, divergentes nessas tendencias locaes, se incluiu na generalidade, para INTERNACIONAL. 33 a monarchia, que entre os seus adeptos conta Rivadavia, San Martin e Belgrano. E'um corpo heterogeneo, desunido, fluctuante, e o quadro social que o cerca, elle mesmo o debuxa, mediante a penna de Frei Caetano Rodrigues: as províncias divididas; desavindos os povos; rotos os laços da união social; os governos mal seguros; uma luta geral de interesses; as forças do Estado vacillantes; esgotadas as fontes da prosperidade commum; '' armada,'' no horizonte, 'una negra tempestad" e a nação em caminho de ' una espantosa anarquia." Felizmente as divergencias, que, em materia de fórma de governo, agitam a heterogenea assembléa se retrahem, e desarmam todas, á voz dos grandes patriotas, ante a suprema aspiração de todas as almas : a proclamação da independencia nacional por acto nacional de uma assembléa nacional. "Hasta quando esperamos para declarar nuestra independencia?" pergunta San Martin occupado, então, em Mendoza, com a organização do 34 PROBLEMAS DE DIREITO exercito dos Andes. Com elle insta e urge Belgrano. E' o sentimento unanime. A autoridade dos dous oraculos o estimula. A pressão augmenta ainda com as diligencias de Pueyrredón, o Director Supremo, que o Congresso acaba de nomear. A assembléa já não póde resistir ou retardar. A independencia das Províncias Unidas é a Ordem do Dia para a sessão de 9 de Julho. O Congresso não a discute: acclama-a entre os applausos da multidão que a victoria, num acto da mais elevada linguagem e entrega ás Províncias, ás populações, aos exercitos, que o vão jurar em paroxismos de enthusiasmo. Deverei aqui repetir-vos essas nobr palavras? Deixae-me, senhores, a gra commoção de vol as repetir. "Nós," diziam os vinte e nove deputados, "Nosotros los representantes de las Províncias Unidas de Sud America invocando al Eterno que preside a Universo, en el nombre y por la autoridad de los pueblos que representamos, protestando al ciclo, a las naciones y hombres INTERNACIONAL 35 todos del globo la justicia que regia nuestros votos, declaramos solemnemente a la faz de la tierra que és voluntad unanime y indubitable de estas províncias romper los vínculos que las ligaban á los reyes de Espana, recuperar los derechos de que fueron despojados, e revestirse del alto caracter de una nación libre e inde-pendiente del rey Fernando VII, sus sucesores e metrópoli. Quedan en consequencia, de hecho y derecho, con amplio e pleno poder para darse las fórmas que exija la justicia e impere el cúmulo de sus actuales circunstancias. Todas y cada una de ellas asi lo publican, declaran y ratifican, comprometiéndose, por nuestro medio, al cumplimiento y sostén de esta su voluntad, bajo el seguro de sus vidas, haberes y fama." Antes de assim proclamada, a independencia já era facto consummado. Declarada até se devia ella considerar pelos actos das assembléas de 1811 e 1813. Esses actos affirmam que nas duas assembléas "reside a soberania das Províncias Unidas do Rio 36 PROBLEMAS DE DIREITO da Prata," estabelecem que "os deputados das Províncias Unidas são deputados da nação em geral," e mandam cunhar moeda com o exergo de armas nacionaes. Mas essa vontade assente e irretractavel do povo ainda não recebera, num acto especial, a consagração distincta e solemne, que a devia sellar, nem se imprimira a necessaria centralização do Governo, que tinha de presidir á marcha das armas victoriosas na consolidação militar da independencia declarada. Taes sacas unicas resoluções em que o consenso unanime dos povos que ella representa lhe dão a força de se impor á obediencia de todos. Cingindo-se a essas medidas capitaes, a assembléa inspira-se nesse bom senso, nesse tacto, nesse instincto pratico, de que Belgrano, escrevendo a Rivadavia, em Fevereiro de 1810, a gabava com encarecimento neste expressivo testemunho : " Creo que hay muy poços, que no deseen lo mejor, y por eso son las cuestiones; y, quando parece que van a devorarse, basta que uno hable con juicio, aun que no INTERNACIONAL. 37 tenga la voz de un estentor, para que todos le sigan. Siempre será una eterna gloria para nuestro país esa deferencia a la razon." Eis a obra do Congresso de Tucuman, cuja existencia interior se desdobra numa luta de contradicções inconciliaveis, cuja physionomia se compõe das antitheses mais radicaes, mas cujos actos dominantes salvaram a revolução, tornando irrevogavel a redempçao argentina, imprimindo unidade nacional ao governo das províncias emanoipadas e estabelecendo, com esses dous factos, os alicerces da construcçáo majestosa, cuja data inaugural celebramos no augusto anniversario destes dias. E' assim que o tempo, o maior e o mais certo factor da justiça na ordem das cousas humanas, vinga a sagrada memoria desses bemfeitores de sua nacionalidade, os seus illustres patriarchas, das injurias da espantosa guerra social, ás mãos de cuja anarchia, mais tarde, cáem vencidos, quando a demagogia militar, no anno vinte, dissolve o Congresso de Tucuman e o 38 PROBLEMAS DE DIREITO directorio por elle constituído, impondo aos fundadores da independencia e aos salvadores da revolução a vilta de traidores, cobrindo-os de ultrajes, e sub-mettendo-os a um processo monstruoso, onde os accusados se vêem condemnados de antemão, em termos brutaes, pelos caudilhos, a que nem a revolução, nem a independencia deve o menor serviço. Paremos aqui, senhores. Não me caberia seguir, destas alturas em deante, a trajectoria dessa revolução, que renascendo sempre das suas catastrophes, e multiplicando sem cessar os seus loiros, transpõe os Andes, levanta o Chile, espraia a sua inundação até as costas do Pacifico, insurge o Peru, estende a marcha redemptora até o Equador, onde se vai associar á revolução colombina, ao mesmo passo que das extremas septentrionaes da America do Sul, outra vaga revolucionaria desce, varrendo os Exercitos de Hespanha, e, encontrando se com as ondas victoriosas do movimento argentino, junta com as delle as suas forças na ultima batida ás armas INTERNACIONAL. 39 da metropole, cuja resistencia agoniza nas montanhas peruanas, após os golpes mortaes que lhe infligiram as batalhas de Chacabuco e Maypú, Carabobo e Boyacá. Essas façanhas medem, a contar de 1816, os seis annos transbordantes de victorias libertadoras, ao termo dos quaes, D. Bartholomeu Mitre, depois de os resumir nesta synthese eloquente, capitula a situação deste modo: "Las colonias his-panoamericanas eran libres de hecho y de derecho por su proprio esfuerzo, sin auxilio extrano, luchando solas contra los poderes absolutos de la tierra coligados en su contra; y del caos colonial surge un nuevo mundo—ordenado, coronado de las dobles luces polares y equatoriales de su cielo. Pocas veces el mundo presencio un génesis politico semejante, ni una epopea histórica mas grandiosa." Bem natural era que na America do Norte encontrasse agrado e sympathia a emancipação das colonias da America do Sul, reconhecida, em 1822, pelos Estados Unidos. Mas onde parece que se teve a 40 PROBLEMAS DE DIREITO comprehensão mais nitida, mais viva, mais completa do interesse, que representavam para a humanidade os extraordinarios successos, de que era theatro este continente, foi na Europa liberal, especialmente na Inglaterra, a mãe de todas as liberdades modernas, a grande escola da sciencia dos homens de Estado. As palavras do Marquez de Lansdowne, em 1823, na Camara dos Communs, propondo que a Grã-Bretanha reconhecesse a independencia das províncias hispano-americanas, são um verdadeiro hymno ao futuro da America. "A grandeza e relevancia do assumpto de que vou tratar, é tal," diz elle, em accentos commovidos, "que raro se terá submettido maior, nem igual, á consideração de um corpo politico. Os resultados abrangem um territorio, cuja magnitude e capacidade de progresso como que abysma a imaginação, quando o tenta abraçar, porque se estendem a regiões, que vão dos 37 gráos de latitude norte aos 41 de latitude meridional, numa linha, portanto, não INTERNACIONAL. 41 menor que a de toda a Africa, com a mesma direcção e mais largura que todos os dominios nossos na Asia e na Europa. Nessas regiões se cruzam rios majestosos, com variedade tanta de clima e de tal maneira temperados os calores equatoriaes, que disposta se acha, ali, a natureza, para dar, em resumo, tudo quanto ha mais de appetecer em todo o mundo. Habitam essas terras vinte e cinco milhões de almas, de varias, raças, que sabem guardar a paz, viver em harmonia, e, que debaixo de condições mais propicias do que as em que até ágora têm lidado, bem depressa acabariam por encher os amplos vazios de terreno inculto, cuja fertilidade as prosperaria rapidamente, povoando aquelle vasto continente de nações poderosas e bem afortunadas. Os seus habitantes levaram aos labios a taça da liberdade, e ninguem poderá mais atalhar o rumo á sua civilização, nem aos sentimentos nobres e grandiosos, que se levantaram na sua carreira. A regeneração desses paizes ha de ir adeante." Não se poderia falar mais 42 PROBLEMAS DE DIREITO divinamente. Era como que a propria sabedoria, prenunciando, abraçada com a liberdade, os destinos do Novo Mundo. A re-monarchização da America era, a esse tempo, um dos sonhos do absolutismo europeu. A assembléa da reacção assentára o seu programma no congresso de Verona. Um exercito francez, invadindo a Hes-panha, restaura o throno de Fernando VII Não resta senão que a Santa Alliança estenda o braço através do oceano, para arrebatar ás colonias hispano-americanas recémlibertas os fóros da sua liberdade, sagrada em tantas campanhas por sacrifícios tão sublimes. No Governo da senhora dos mares, vela, porém, o genio de um grande amigo da humanidade. A sua autoridade oppôz o veto britannico ao infernal attentado. "A America hespanhola é livre," diz elle. "Novos seculorum nascitur ordo." E é assim que esse grande ministro adquire jús a exclamar, tres annos mais tarde, no Parlamento inglez: "Eu chamei á vida um novo mundo, para restabelecer o equilíbrio do antigo." INTERNACIONAL. 43 Estas palavras de uma altiloquencia religiosa e uma uncção prophetica, ouvi-as eu citar, senhores, poucos annos ha, em circumstancias que tocam especialmente á Republica Argentina, e adquirem singular relevancia entre os acontecimentos que infelicitam e enoitecem os nossos dias. Nas minhas reminiscencias, tão diversas e interessantes, da ultima conferencia de Haya, uma das que mais acaricio, é a das relações cordiaes, em que ali me achei sempre com os vossos tres eminentes delegados, entre os quaes me permittireis destacar agora o estadista, por tantos titulos illustres, que, chamado, pouco depois, a governar este paiz, deixou da sua administração um sulco luminoso de refórmas, cujos benefícios estaes sentindo, e hão de ter longa influencia no vosso progresso constitucional. Na sessão plenaria com que, vai fazer nove annos, se encerrou, em Haya, a famosa assembléa das nações, o eloquente delegado argentino proferiu um discurso dos mais apreciados, logo no começo do qual se 44 PROBLEMAS DE DIREITO evocava a imagem do celebre estadista inglez e as suas palavras immortaes. "De ora avante," dizia o Sr. Saenz Pena, "de ora avante poderemos affirmar que a igualdade politica dos Estados cessou de ser uma ficção, e está consagrada como realidade evidente Já não existirá, de futuro, um direito das gentes para a Europa, outro direito das gentes para a America. A historia da Grã Bretanha registou esta sentença memoravel, pronunciada, no parlamento de Westminster, pela voz de um precursor : "Chamei á vida o Novo Mundo, para restabelecer o equilíbrio do antigo." Proferiu elle estas palavras no primeiro quartel do seculo XIX, e, ao alvorecer do seculo XX, está consum-mada a evolução; os soberanos da Russia e dos Paizes Baixos, convocando-nos a este recinto, são os executores testamentarios da prophecia de Jorge Canning. O equilíbrio está restaurado pela virtude do direito e pela harmonia das leis historicas, que concertam e juntarm os dois mundos como as duas metades de orna só esphera, INTERNACIONAL. 45 allumiada por uma só justiça e pela mesma civilização." Não eram transcorridos muitos annos, senhores, que estas expressões traduziam com singular felicidade as esperanças de todo o genero humano, quando acontecimentos sem parelha na memoria dos homens vieram descobrir com estrondo a miseravel fallacia das nossas previsões. Uma dessas metades do globo, o nosso hemispherio, continúa (se tambem nisto nos não enganamos), a sustentar-se tranquilla na divina estructura do planeta. Mas a outra, sacudida nos eixos por catastrophes de grandeza desmarcada, estala e vacilla sobre si mesma, sacudida por um cyclone de calamidades. Os grandes Estados chofram uns contra os outros, em prodigiosa collisão, ao impulso das suas massas, como pedaços de corpos celestes que se encontrassem e entrebatessem, apagados os luzeiros do Senhor, nos espaços da noite infinita. Os Estados pequenos, varridos como a palha ao açoite do vento, ou inquietos ao sopro da rajada que lhes roça as fronteiras, 46 PROBLEMAS DE DIREITO perderam a segurança, ou a existencia, entregues aos azares da luta entre os maiores. Mãos poderosas, desencadeando a procella, quebraram as amarras eternas do futuro das nações, ameaçadas agora pelas incertezas de uma situação que aboliu todas garantias da confiança dos homens nos homens, dos povos nos povos. Terriveis sorpresas vogam no oceano tenebroso do inesperado, onde até as nuvens de ceo cospem destruição, e os recessos do abysmo se associam á cegueira exterminadora, que lhe coalha a superfície, ao largo, dos destroços de todas as tradições christas. Nega-se o direito, bane se a justiça, elimina-se a verdade, contesta-se a moral, proscreve-se a honra, crucifica-se a humanidade, o vendaval de ferro ataca os symbolos sagrados, a arte, os thesouros da sciencia accumulada, os grandes archívos da civilização, os sanctuarios do trabalho intellectual. Nada mais subsiste, de todas as leis, senão a lei da necessidade, a lei da força, a lei do sangue, a lei da guerra. O Evangelho substitue-se pela religião da polvora e do aço. INTERNACIONAL 47 Os Scythas barbaros, nos templos de Marte, diz-nos o testemunho de Herodoto, no quarto livro da sua Historia, erguiam por idolo, em cada uma das suas azas, um alfange desembainhado. Eis o nume dos nossos tempos: uma espada erecta no grande altar do Universo, onde outrora os christãos adoravam a caridade, a clemencia e a doçura de um Deus que se entregou á morte, por nos livrar do mal, e nos fazer irmãos. Onde, pois, hoje, essa "virtude do direito," essa "harmonia das leis historicas," esse "equilíbrio restaurado" entre as nações, que ao vosso representante na Conferencia da Paz inspiravam aquellas palavras memoraveis? Onde esse direito das gentes, que elle celebrava com orgulho ? Onde o terreno juridico deparado aos "executores testamentarios da prophecia de Canning," na mutua collaboração dos dous continentes ? Onde a igualdade no direito entre os pequenos Estados e os Estados poderosos ? Emquanto naquelle concilio dos povos, 48 PROBLEMAS DE DIREITO com o concurso de todas as nações constituídas, supponhamos estar codificando num corpo de leis os usos internacionaes, que o consenso unanime das sociedades santificava, o meio moral do seculo estava passando, e já de longos annos antes, desde o terceiro quartel do seculo findo, por um surdo trabalho de adaptação aos interesses que haviam de irromper neste conflicto, e com elle abalar até aos fundamentos a machina da terra. O cataclysmo actual, antes de acabar a sua preparação nas forjas de canhões, começara a ser preparado no ar que as consciencias respiram. Os grandes exterminios de homens pelas epidemias nos vêm da atmosphera envenenada pelos miasmas e dos vehiculos imperceptíveis, que nos introduzem nas veias, ou nos insinuam nos pulmões os germens homicidas. Foi, analogamente, com uma profunda saturação atmospherica de venenos moraes e com uma vasta diffusão de parazitas malignos que se dispoz o mundo para a erupção do flagello, cuja crueldade o devia afogar em tantas des- INTERNACIONAL 49 graças. Primeiro que sahisse das fabricas de armamentos, das casernas e dos estadosmaiores, esta guerra tinha accumulado os fluidos, que a viriam animar, nos livros, nas escolas, nas academias, nos laboratorios de pensamento humano. Para entrar em luta com a civilização, a força comprehen-dera que era necessario constituir-se em philosophia adequada, corrompendo as intelligencias, antes de subjugar as vontades. Tudo nos mostra que "a guerra e a paz, bem como todas as cousas, bôas ou más, nas relações humanas, e, com ellas, os problemas concernentes ao bom ou máo uso nosso da materia prima, que a natureza ministra ás nossas acções, dependem sempre da justiça ou falsidade encerradas nos ideaes dos homens." Uma das feições características da guerra actual está no sentimento, generalizado hoje entre os proprios combatentes, de que "esta guerra é, essencialmente, uma guerra de idéas." Os povos, cuja fortuna se joga nesses embates 50 PROBLEMAS DE DIREITO furiosos e descompassados, acabaram por ver que o medonho conflicto, em cujo sorvedouro se engolem nações e territorios como barcos desarvorados, "tem, fundamentalmente, por causa as theorias, as aspirações, os devaneios," de uma propaganda nutrida por um nucleo de espíritos cultos, mas pervertidos e desvairados por um nacionalismo doentio. Graças a esses influxos perniciosos é que se converteram nos mais figadaes inimigos uns dos outros grandes povos christãos— irmanados pela raça, pelas affinidades de idioma, pelas tradições religiosas, pelos interesses economicos, pelas alliançAs regias, pela collaboração nos campos de batalha, pelas sympathias intellectuaes, pelas inclinações populares. As doutrinas precedem aos actos. Os factos materiaes emanam dos factos moraes. Os acontecimentos resultam da ambiencia de erros ou verdades. A guerra, debaixo da qual se estorce a Europa mutilada, teve por origem um montão de theorias disformes e virulentas, que, durante INTERNACIONAL. 51 meio seculo, nas regiões mais acreditadas pela sua cultura, encheram os livros dos philosophos, dos historiadores, dos publicistas, dos escriptores militares. As nações ameaçadas pela pullulação desses germens peçonhentos não perceberam os signaes que lhes manifestavam a tendencia e o objecto. Deixaram que a torrente epidemica se avolumasse nas suas matrizes, por não darem a importancia devida á relação de causalidade inevitavel entre essas influencias apparentemente abstractas e o curso dos negocios humanos, os sentimentos dos povos, os actos dos governos, os destinos do mundo. Os professores, os jornalistas, os tribunos são, hoje, os que semeiam a paz ou a guerra. As bocas de fogo succedem ás bocas da palavra. A penna desbrava o campo á espada. Voltaire, repartindo o mundo entre as tres mais cultas nações de sua epoca, distribuía a uma o domínio da terra, a outra o dos mares, á terceira o das nuvens. Mas, se é nas nuvens que habitam os meta-physicos, os ideologos, os utopistas, tambem 52 PROBLEMAS DE DIREITO dessas alturas, onde se condensam emanações de idéas, pode chover sangue. Não é, porém, das nuvens que se pregou, em nossos dias, o catecismo da guerra. E' das cadeiras donde se proporcionava a instrucçao á mocidade, donde os sabios fallavam aos sabios, donde a historia dictava os seus oraculos ás escolas, donde se dava aos cidadãos a lição do dever, aos governos a da soberania, aos soldados a da obediencia, aos generaes a do mando. Dahi é que um dos mais graduados mestres da sciencia nova professava estes ensinamentos: "A guerra é a sciencia politica por excellencia. Provado está. muitas e muitas vezes, que só pela guerra vem um povo deveras a ser povo. Só na pratica em commum de actos heroicos a bem da patria é que uma nação logra tornar se, real e espiritualmente, unida." Não é a guerra esse mal necessario, de que Aristoteles fallava. Nfto; pelo contraria, "no eterno conflicto entre os Estados é que a Historia tem a sua belleza. Simplesmente insensato é INTERNACIONAL. 53 pretender acabar com essa rivalidade. Os civis têm emasculado a sciencia politica," desconhecendo que a guerra é a segunda funcção do Estado. "Essa concepção sentimental desvaneceu-se no seculo XIX depois de Clausewitz. Os povos mais civilizados são os que melhor pelejam, e esta " é a cousa principal da historia.'' A grandeza depende mais do caracter que da educação; e é nos campos de batalha que se fórma o caracter. Assim dogmatiza o historiador, o cathedratico official. Ouviremos, depois delle, o philosopho? "A guerra," diz elle, "é a divindade, que consagra e purifica os Estados...... Uma boa guerra santifica todas as causas. Contra o risco de que o ideal do Estado se corrompa no ideal do dinheiro, o unico remedio está na guerra e, ainda uma vez, na guerra." Quereis escutar, agora, o estrategista, o general, o chefe de exercitos ? Escutai-o :Sem a guerra as raças inferiores e desmoralizadas ligeiramente eliminariam as raças saudaveis e longevas. Sem ella o 54 PROBLEMAS DE DIREITO mundo acabaria numa decadencia geral. A guerra é um dos factores essenciaes da moralidade." Nao basta ? Attentai ainda: " O peior de todos os erros na guerra é o mal entendido espirito de benevolencia . . . . Porque aquelle que usa de sua força inexoravelmente, sem medir o sangue derramado, levará sempre vantagem grande ao adversario, se este nao se houver do mesmo modo. A estrategia regular consiste, primeiro que tudo, em descarregar no exercito do inimigo os mais terriveis golpes que se possa, e depois em causar aos habitantes do seu territorio soffrimentos taes, que os obriguem a desejar cora anciedade a paz, e constranjam o seu governo a solicital-a. As populações não tê devem deixar senão os olhos, para chorar a guerra." Um general, dos promovidos á notoriedade por esta guerra, formula em synthese expressiva a lei dessa alchimia moral, que transfórma em rasgos de clemencia as mais barbaras impiedades. "Dureza e rigor, diz INTERNACIONAL. 55 elle, se convertem nos seus contrarios, desde que com ellas se logre incutir no adversario a resolução de exorar a paz." Donde inevitavelmente se conclue que, como, sob este ponto de vista, quanto mais torturadas as populações não combatentes, mais anciosas pela paz, tanto mais caridade haverá na guerra, quanto mais crueza nella se use. " O paiz soffre," dizia um dos heroes dessa tragedia, philosophando sobre as agonias de uma região condemnada á fome. "A população vê-se faminta. E' deploravel; mas é um bem. Não se faz a guerra com sentimentalidades, Quanto mais implacavel fôr, mais humana será, em substancia, a guerra. Os meios de guerra que mais de prompto forçarem a paz, são, e hão de ser os mais humanos." Tão consubstanciada se acha a luta pelas armas, aos olhos dessa philosophia truculenta, com as exigencias essenciaes do nosso destino, que só em graduação differe a guerra da paz. Toda a vida se reduz á guerra, desde a que nos circula nas veias, até a que assola a 56 PROBLEMAS DE DIREITO terra entre os povos invasores e os invadidos. E, como, segundo um dos artigos desse credo, "o justo se decide pelo arbitramento da guerra, pois as decisões da guerra são biologicamente exactas, desde que todas ellas emanam da natureza das cousas" ; como, por consequencia, sendo a mesma guerra o criterio da guerra, sendo ella só quem se julga a si mesma, a sentença das armas constitue a expressão inelutavel da justiça—toda a historia vindoura dos homens se teria de resumir numa palavra : a invasão. Invasão obtida pela força, ou repellida pela força. Invasão exercida contra a fraqueza e aturada pela fraqueza; visto como, na lei proclamada oracularmente pelos infalliveis da nova cultura, a guerra é o processo de legitima desapropriação das raças incapazes pelas capazes. Pela guerra nos salvaremos, ou nos extinguiremos pela guerra, eis o dilemma em ambas as pontas do qual, a guerra, com principio de todas as cousas, desaba sobre nós com o peso da sua inevitabilidade. Guerra ou gr terra. Guerra INTERNACIONAL- 57 em acção ou guerra em ameaça. Luta contra a guerra ou guerra. Sujeição á guerra ou extermínio pela guerra. As consequencias do terrivel argumento são irrecusaveis. O essencial agora ao homem não consiste em aprender a pensar, a sentir, a querer, de accôrdo com esses mandamentos, que as crenças de nossos pais nos habituaram a considerar sagrados, que os nossos proprios instinctos por si sós nos dictariam, que o primeiro balbuciar da razão nascente nos ensina pela vóz do coração, que nos levam a respeitar a infancia, a velhice, a debilidade, o infortunio, a virtude, o talento. Não; o essencial, agora, não é amarmo-nos uns aos outros, como nos prescrevia o antigo Deus dos christãos, varejado hoje em dia nos seus templos, bombardeado nas suas cathedraes, profanado nas suas imagens, espingardeado nos seus sacerdotes. Não. O essencial é que emulemos entre nós a quem mais se distinguir nas sublimes artes de nos espionarmos, nos saltearmos, nos invadirmos, nos mentirmos, nos espoliarmos 58 PROBLEMAS DE DIREITO nos fuzilarmos, de nos trahirmos, nos extinguirmos. Dahi a mais absoluta inversão do que se chama direito internacional. Se a guerra é a pedra de toque do justo e do injusto, o arbitramento do licito e do illicito, a instancia irrecorrível do direito entre as nações, a guerra é a razão, a absolvição, a canonização de si mesma. Dahi o principo de que a necessidade, na guerra, sobrepuja a todas as leis divinas e humanas. Dous elementos compunham o direito internacional : a contraposição de um codigo de leis á doutrina da necessidade na guerra e a limitação das exigencias da necessidade na guerra pelas normas da humanidade o da civilização. E' com isso, justamente, que se acaba, declarando peremptoriamente que "a necessidade na guerra prevalece aos usos da guerra." A lei da necessidade na guerra manda que se atraiçôem os tratados? Atraiçoarse-hão. A lei da necessidade na guerra exige que se viole a neutralidade ? Violarse há A lei da necessidade na guerra quer INTERNACIONAL. 59 que se afundem navios neutros, afogando passageiros e tripulantes? Afundar-se-hão e afogar-se-hão. A lei da necessidade na guerra aconselha que se matem, ás cegas, velhos, mulheres e crianças, lançando bombas sobre a população adormecida em cidades pacificas e indefesas? Matar-se-hão. Para se chegar a esta moralidade, não valia a pena atravessar vinte seculos de Christianismo. Muito antes da éra christã, na Republica de Platão, já o cynismo de Thrasymacho afírontava a logica de Socrates, dizendo-lhe: "Eu proclamo que a justiça não é senão o interesse do mais forte." Mas Socrates mesmo nos conta que, ao discutir desta proposição, via no sophista o que nunca lhe vira. Viu-lhe córar as faces. Outrotanto não succederá, talvez, com os de hoje, bem que os paradoxos do grego não derramavam sangue, ao passo que os do militarismo actual cobrem de luto a face do globo. A mesma corrente de idéas, que põe, nas relações internacionaes, a guerra acima de 60 PROBLEMAS DE DIREITO todas as leis, começára por collocar, nas relações internas, o Estado acima de todos os direitos. O culto do Estado precedeu o culto da força militar, a estratolatria. O vosso Alberdi escreveu um excellente pamphleto sobre A omnipotencia do Estado, encarada alli como " a negação da liberdade individual. Mas nas doutrinas que hoje emprestam e deshonram a intelligencia humana, a religião do poder o sublima ainda mais alto: segundo ellas, pairando numa região de arbítrio sem fronteiras, o Estado, alpha e omega de si mesmo, existente por si proprio e a si proprio sufficiente, é '' superior a todas as regras moraes." Ampliado a muitos diametros, o super-homem nos dá o super-Estado, o Estado isento dos freios e contrapesos, a que a democracia e o systema representativo o submettem aos Governos limitados pelo elemento parlamentar ou pelas instituições republicanas. E, entendido assim, vem o Estado a ser uma entidade " independente do espirito e da consciencia dos cidadãos." E' "um organismo amoral e predatorio. INTERNACIONAL. 61 empennado em se sobrepór aos outros Estados mediante a força." Nem tem por onde se reja senão a sua vontade e soberania. O systema, presentemente, está completo : na politica interior, a força traduzida na razão de Estado: na politica exterior, a força exercida pela guerra. Nas relações internas duas moraes: uma para o individuo; outra para o Estado. Duas moraes, igualmente, nas relações inter-nacionaes: uma para os Estados militarmente robustos; outra para os Estados militarmente debeis. Para autorizar este retrocesso as idades primitivas, foi necessario decantar em todos os tons as virtudes civilizadoras da guerra, negar o alto valor dos pequenos Estados no desenvolvimento e no equilíbrio do mundo, reivindicar exclusivamente para as theorias do predomínio da força o caracter de exequibilidade, negando a efficacia das sancções moraes nas relações entre os povos. Ora, nenhuma dessas tres pretensões consulta á verdade ou se mantem perante o senso commum. 62 PROBLEMAS DE DIREITO Pôr em duvida, hoje, a autoridade da imoral no direito das gentes é riscar de um traço vinte seculos de progresso christao. As conferencias de Genebra e de Haya o revestiram de fórmas positivas, que os; terremotos internacionaes lograrão abalar passageiramente, mas que os hão de atravessar renovadas e victoriosas. Em Haya, quarenta e quatro potencias; deliberaram sobre o direito internacional, sujeitando-o a uma vasta codificação de estipulações, que se comprometteram a observar. Se essas normas passaram ultimamente por transgressões violentas, não é porque sejam abstracções vãs. Na existencia interior de cada Estado tambem se quebram a miude as leis nacionaes; e, se a condição habitual delias nao é a de serem burladas pela força constantemente, esta vantagem se deve ao apparelho tutelar da justiça, mais ou menos bem organizada em todas as constituições. E' o que ainda está por organizar, mas nao será impossível que se organize, por ventura mais do que INTERNACIONAL. 63 se cuida entre as nações independentes. Emquanto, porém, não se organiza, forças moraes ha que, se não abrigam os povos das contingencias da guerra, mantêm, pelo menos, em torno e acima desta, um conjunto de restricções e impossibilidades, oppostas ao excessos extremos do militarismo desencadeado. Não se diga, pois, como se tem dito, que, na esphera onde se agita a politica das potencias maiores, as noções usuaes da moral doutrinaria se não acolhem senão depois de alteradas por uma grosseira liga de vil egoísmo. Não ha duas moraes : a doutrina e a da praxe. A moral é uma só : a da consciencia humana, que não vacilla em discernir entre o direito e a força. Os interesses podem obscurecer transitoriamente esse orgão da visão interior : podem obscurecel-o nas relações entre os povos, como nas relações entre os indivíduos, no commercio entre os Estados, como no commercio entre os homens, nos Governos como nos tribunaes, na esphera da politica internacional, como na dos codigos civeis e 64 PROBLEMAS DE DIREITO penaes. Mas taes perturbações, taes anomalias, taes crises nao provam que nao exista em nós, individual ou collectivamente, o senso da moralidade humana, ou que as suas formulas sejam meras theorias. Nao é á nossa, pois, que cabe a qualificação de moral theorica. Á baixa liga de egoísmo entra em quasi todos os negocios liumanos, e o risco de ser annullada a lei pela força é commum a todos os domínios de nossa vontade, individual ou collectiva. Isso, porém nao demonstra que o mundo real se reduza todo elle a violencia e arbitrariedade. E tanto assim nao é, que, postos nesse terreno, os conflictos entre os povos são insoluveis. A propria victoria das armas, quando nao embebida na justiça, nao dirime solidamente: apenas se suffoca, e adia para, ulteriormente, renascer em novas guerras. Se a de 1870 nao houvesse tomado á França a Alsacia-Lorena, nao teria perpetuado entre os vencidos o sentimento da desforra entre os vencedores o da conquista. Só a moral, portanto, é pratica, só a justiça INTERNACIONAL 65 efficaz. Só as creações de uma e outra perduram. "A sociedade humana, escrevia, o anno passado, um auctor americano, dos mais notaveis, não póde estribar em ultima alçada por via da força. Quando numa eleição os republicanos votam fóra do poder os democratas, de onde fiam elles que os democratas entregarão o poder ? Do Exercito e da Marinha, direis. Mas quem manda no Exercito e na Marinha, quem dispõe desses instrumentos do poder são os democratas, que se acham no Governo. Não ha outra segurança de que os democratas delle desçam, e entreguem esses instrumentos de poder; não ha outra, senão o accôrdo, a convenção existente nas leis. Se elles não estivessem por esse accôrdo, os republicanos levantariam um Exercito de insurgentes, para tanger do Governo os democratas, precizamente como occorre em certas Republicas sul-americanas: obtido o que, occupariam o poder, até que os democratas, por sua vez, reunissem outro Exercito. De maneira que a sorte reservada aos Norte- 66 PROBLEMAS DE DIREITO Americanos seria, destarte, a mesma dos outros paizes, onde as revoluções succedem uma á outra, de seis em seis mezes. O que o evita é, unicamente, a confiança geral que todos nutrem de que nenhum dos parceiros ha de falsear as regras do jogo. Forçoso é confessar que se estenda a mesma convenção ao campo das relações internacionaes; e o militarismo nao perecerá, senão quando vier a ser geralmente reconhecida a necessidade para as nações de se regerem pela mesma norma. Toda a esperança de que elle acabe por extinguir está em vermos triumphar uma doutrina melhor, reconhecendo se que a luta pelo ascendente militar deve ser abandonada, nao por uma só das partes, mas por todas. Prescreva se o anarchismo internacional, a supposiçao de que entre as nações nao existe sociedade, trocando-se esses erros no reconhecimento franco de um facto obvio, qual o de que as nações fórmam uma sociedade e de esses princípios, onde toda a gente assenta a esperança da estabilidade da civilização dentro em cada Estado, se devem applicar igualmente como a unica INTERNACIONAL 67 esperança de se manter a civilização nas relações dos Estados uns com os outros." Para fazerem do direito da força e da excellencia da guerra os dous pólos da civilização, necessario será lavarem ao mundo superior da consciencia as devastações com que se tem assolado o mundo, onde reinam as conquistas materiaes do nosso progresso. Abala-se pelos seus fundamentos a razão humana, destruindo as fronteiras que separavam o bem e o mal, o justo e o injusto, a violencia e o direito. O mundo está farto de ouvir cantar em todos os tons de enthusiasmo a apologia do extermínio systematizado. Mas, quando, para a caracterização da guerra, não chegassem as maldades innominaveis, que essencialmente a definem, qualificada estava ella de sobra, sem mais nada, com essa aberração, que inventou, em benefícios dos interesses da guerra, o privilegio de legitimar a immo-ralídade, e que, deste modo, põe em conflicto duas moraes antagonicas, uma reservada aos fortes, com a garantia executiva das armas, outra consignada aos fracos, com a 68 PROBLEMAS DE DIREITO miseria da sujeição illimitada ao capricho dos fortes. Não existia a moral senão, justamente, para moderar os grandes e estudar os pequenos, refreiar os opulentos e abrigar os pobres, conter os fortes e garantir os fracos. Com a dualidade que introduziram, porém, na concepção da moral, a força e a guerra, apoderando-se do mundo, assentaram a moral no dinheiro, na soberba e no poder, fizeram da moral a humilhação, o ergástulo, o captiveiro dos fracos, dos necessitados e dos pequenos. Duplicando a moral, aboliram a moral; e como a moral é a barreira das barreiras entre as sociedades civilizadas e as sociedades barbaras, abolindo a moral, proclamaram implicitamente por ultimo destino do genero humano a barbaria. Barbaria servida pela physica e pela chi mica, barbaria adulada pelos sabios e doutos, barbaria dourada pelas artes e lettras, barbaria disciplinada nas secretarias e quarteis, barbaria com a pre-sumpçao da sciencia e o genio da organização, mas nem por isso menos barbaria, INTERNACIONAL. 69 antes, por isso mesmo, barbaria ainda peor. Maldita seja a guerra, que, reduzindo a moral a lacaia da força, rebentou o senso intimo dos povos, envolveu em trevas a consciencia de uma parte da humanidade! Não, não ha duas moraes. Para os Estados como para os indivíduos, repetirei, na paz ou na guerra, a moral é uma só. Nos campos de batalha, nas cidades invadidas, no territorio inimigo occupado, no oceano solapado pelos submarinos, nas incursões das bellonaves aereas, é ella quem protege os lares tranquillos nas cidades inermes, quem resguarda nos transantlanticos as populações viajantes, quem não deixa semear de minas as aguas reservadas ao com-mercio innocente, que livra dos torpedos os barcos de pesca e os hospitaes fluctuantes, quem abriga dos bombardeios as enfer- marias e bibliothecas, os monumentos e os templos, quem veda a pilhagem, a execução dos refens, a trucidação dos feridos, o envenenamento das fontes, quem guarda as mulheres, as crianças, os velhos, os enfermos, os desarmados. A moral é só esta. 70 PROBLEMAS DE DIREITO Não póde conceber outra. Se o mundo vir erguer-se agora um systenia, que lhe usurpe a ella o nome, revogando todos esses canones da sua eterna verdade, nao é a moral que se está civilizando : é a immoralidade acobertada com os títulos da moral destruída, a malfeitora occulta sob o nome da sua victima; e todos os povoe, sob pena de suicídio, se devem unir, para lhe oppor a unanimidade incondicional da sua execração. "O que nos importa a nós, antes de tudo, a nós pacifistas e democratas allemaes," dizia, ainda hontem, um destes num livre recentíssimo, "o que nos importa, é isto: não ha preço, a troco do qual possamos tolerar por mais tempo, em pleno seculo vinte, a coexistencia de duas moraes, uma a par da outra : uma para uso do cidadão, outra para uso do Estado. Machiavel é morto, e morto para todo o sempre. Os povos, os Estados, as dynastias estão submettidos. hoje em dia, á mesmas concepções moraes, As mesmas leis moraes que os simples cidadãos. INTERNACIONAL. 71 Devem proceder como gente honesta. Quando não, hão de vir a ser, em nome da justiça e da segurança publica, citados á presença da justiça, como qualquer outro delinquente. Não lhes é licito allegarem, para se defender, outros motivos, que não os do direito penal. Porque, actualmente, já não deve haver razão de estado nem direito publico especial, sobranceiros á discussão e extranhos ás noções da moralidade corrente. O que disso resta nos papeis diplomaticos e nos cerebros de certos sabios, a guerra actual o destruirá. Já não existe, nem poderá mais existir, na Europa, senão uma só moral: a moral juridica, ligando a todos e regendo tudo: reis e dynastias, cidadãos e paizes." Mas, senhores, a guerra não merece o reconhecimento do genero humano, nem mesmo pelas acções heroicas e virtudes sublimes, de que são theatro os seus campos. As influencias que elevam os homens a essas alturas da abnegação, a esses gloriosos extremos do sacrifício, não são os appetites sanguinarios do combate: é a preoccupa- 72 PROBLEMAS DE DIREITO ção dos interesses e direitos da paz, p zelo dos seus thesouros inestimaveis, que cada um dos combatentes cuida periclitantes com a guerra. Esses sentimentos, essas affei-ções, essas nobres qualidades se inflammam e deflagram na luta armada, que abre aos ameaçados o ensejo da resistencia ao perigo imininente. Mas o que illumiua essa luta, o que a engrandece, o que a santifica, é o amor da patria, o amor da familia, o amor da liberdade, o amor de tudo o que as com-moções militares inquietam e aniquilam. Ora esses sentimentos não se desenvolvem com maior intensidade em parte nenhuma do que entre os povos pacíficos, as nações liberaes, os governos democratizados. Haja vista a Inglaterra. Haja vista os Estados Unidos. Haja vista a Belgica. Haja vista a Suissa. Haja vista a França. A França, despercebida para a guerra, oppoe ao genio da organização o genio da mprovizaçao; as faculdades criadoras que este encerra, e quella não possue, cria, para se armar, uma metallurgia nova, improviza uma-resistencia sorprendente, desenvolve INTERNACIONAL. 73 virtudes inesperadas, excede-se a si mesma nos campos de batalha. A Inglaterra, militarmente desorganizada, obrigada a se attestar com o inimigo em sete ou oito frentes diversas, sobrecarregada no oceano com a policia dos mares, inquietada no seu territorio mesmo pela campanha aerea, entrega serenamente á morte a flor da sua aristocracia e da sua cultura, cobre-se de louros nos combates e levanta, pelo voluntariado, em dezoito mezes, um exercito de cinco milhões de homens. A Belgica, salteada pela mais imprevista das invasões, levanta mão da industria, para tomar a espada, a carabina, a lança, e, sobre os restos do torrão patrio, lacerada, incendiada, atormentada, mas não acobardada, não deshon-rada, não esmagada, enche a historia com os incomparaveis assombros da sua nobreza, da sua energia e do seu heroísmo. A Suissa, irreductivel na sua liberdade e na sua democracia, impõe-se, com o civismo das suas milícias, ao respeito dos belligerantes, cujas fronteiras a sitiam por todos os lados. Os Estados Unidos, sem Exercito nem Marinha 74 PROBLEMAS DE DIREITO correspondentes ás suas responsabilidades, aos problemas du sua politica externa, ás condíções da sua situação internacional, não receiam pela segurança da sua posição no continente, nem tentem achar esgotado, quando o buscarem, esse reservatorio de virtudes e energias, onde os povos livres esperam encontrar, ao primeiro grito de necessidade, os elementos da sua defensiva. Um escriptor desse paiz, discorrendo da historia de uma das mais agitadas re-publicas sul -americanas, apurou que ella, durante os primeiros vinte annos da sua existencia independente lidára em mais de cento e vinte batalhas. Com esse campo de exercicio constante para as qualidade "viris e aventurosas "que se preconizam rume a vantagem das nações militarizadas, quem admittira, todavia, cotejo entre essas democracias batalhadoras e a dos Estados Unidos, inimiga da guerra pela ínodle. pela historia, pelas instituições, pelos costumes! A Turquia é a mais militarizada nação de toda a Europa: a Inglaterra, a menos militarizada. Qual das duas, pelo INTERNACIONAL. 75 que é, daria, dos princípios que a modelam, idéa mais favoravel! Dirão que a guerra estimula a industria e o commercio ? As vezes, mas passageiramente. Foi o que occorreu, por exemplo, depois da campanha russo-japoneza. Paizes houve, como os Estados Unidos, cujas vendas ao Japão, á Russia e á China cresceram após essa guerra. Mas, á excitação succedeu, logo em seguida, uma depressão profunda. Matára ella centenas de milhares de homens, empobrecera milhões; e os dous paizes abatidos com a sangria tiveram de economizar por muitos annos na proporção correspondente ao de-crescimento dos seus recursos com os sacrifícios da luta. Naturalmente é o que succederá tambem, passada a guerra actual. Os algarismos em que se houvessem de calcular os prejuízos desta conflagração inaudita, seriam de uma immensidade quasi astronomica. Já se computam em treze milhões os homens que ella ceifou, sumiu, ou poz fóra de combate. Mas, quando abaixo dessa parcella 76 PROBLEMAS DE DIREITO tremenda inscrevermos em milhares de mi-lhões as sommas de moeda consummida, as indemnizações, as requisições, as associa-ções, as cidades arrasadas, as províncias taladas, o incalculavel das culturas, das florestas, dos campos, onde aos povoados sobreveio a solidão, ás colheitas succedeu o morticinio e as terras que o arado revolvia são lavradas hoje pelos canhões, a imagina-çao recuará espavorida, Não fizeram tanto esses antigos despotas chineses, cuja carni-çaria mal chegava a tirar um milhão de vidas em dezenas de annos de reinado, nem esses conquistadores orientaes, que assigna-lavam com pyramides de cranios humanos a passagem das suas armas. Se "as guerras da resistencia á aggres-são, ou as de socorro aos opprimidos terem dado ensejo a esplendidas irradiações heroísmo, é que elle nasce da consciência juridica doa que se defendem, ou da abnega-ção pela solidariedade humana dos que sacrificam. Mas essas mesmas proezas do verdadeiro heroísmo, o dos que se matam pelo direito, seu ou alheio, constituem a INTERNACIONAL. 77 mais directa condemnação da guerra, que tripudia sobre essas virtudes, e junca dessas vidas preciosas o campo abominavel dos seus matadouros. Tirae essas excepções, nas quaes o que brilha nao são os benefícios da guerra, mas as palmas dos seus martyres, e o que a historia nos ensina é que a guerra nasce da tyrannia, ou a gera, que a guerra collide com as instituições livres, e as destroe, que a guerra deshumana as almas, e as corrompe, que. a guerra deschristianiza as sociedades e as asselvaja, que a guerra divide os povos e castas e os escraviza, que a guerra attenta contra Deus e lhe profana o nome, associando o ás mais horrendas barbarias. As nações que se dizem organizadas por ella, constituídas para ella e por ella engrandecidas, sao machinas de combate, mecanismos de aggressao, onde na pelle de cada individuo está mettido o sargento instructor, onde se reduz a sciencia a um papel diminuído e subalterno, onde a educação militarista mata a iniciativa, proscreve o ideal, automatiza a vida, arregi- 78 PROBLEMAS DE DIREITO menta a sociedade, imprime a tudo a nota da dependencia militar, faz da guerra a verdadeira religião nacional. A militarização das potencias divide o mundo em nações de presa e nações de pasto, umas constituídas para a soberania e a rapina, outras para a servidão e a carniça. A politica da guerra é a aggressao organizada quoerens quem devoret. Mas onde se pronuncia a seu caracter superlativamente aggressivo é na guerra preventiva, invenção digna da barbaria distillada pela cultura. Um paiz declara guerra a outro, invade-o e devasta-o, embora delle não haja recebido offensa alguma, e apenas se defenda contra o invasor depois da invasão. Mas nem por isso exorbitou. Estava no seu direito, e muito bem fez; porque lá tinha as suas razões, para acreditar que, se não se antecipasse, outros paizes, inimigos seus, lhe tomariam a deanteira em occupar o territorio daquelle. E' como se eu me apoderasse da casa do visinho e a incendiasse, por acreditar que outro da visinhança, não me apressando eu em a INTERNACIONAL. 79 queimar, se me anteciparia em praticar o mesmo attentado. Essa escusa, entre indivíduos, não livraria o criminoso da responsabilidade e da cadeia, senão da morte. Mas, entre nações, é a base de uma theoria o fundamento de uma generalização, a justificação de uma lei nova. Quatrocentos e dezeseis annos antes de Christo, narra Thucydides que Athenas, debatendo com o povo da pequena ilha de Meios o dilemma de sujeição ou exterminio, que lhe impunha, cortou a questão, dizendo : ' Bem sabeis, como nós, que na ordem do mundo só se fala em direito entre iguaes em força. Entre fortes e fracos, os fortes fazem o que podem e os fracos soffrem o que devem." Na ultima Conferencia de Haya, senhores, o contrario sustentaram todas as nações hispano-americanas. Com o maior ardor ali nos batemos todos pela igualdade jurídica de todos os Estados soberanos : e tal prestigio assumiu ali esse principio naquella assembléa incomparavel, que, por não o acceitar, caiu, com estrondo, o pro- 80 PROBLEMAS DE DIREITO jecto de organização da corte de justiça arbitral, comquanto fórmado pelas grandes potencias, que depois, quasi todas, o abandonaram, nao o podendo salvar. E' que os termos do pleito jã não eram os mesmos que no quinto seculo antes de Christo, quando a poderosa Athenas discutia com os ilhéos de Melos. Quando se fala hoje de Estados pequenos, são os não inscriptos no rol das grandes potencias, isto é, todos os Estados mais fracos. De sorte que, além dos Estados territorialmente pequenos da Europa, a lista abrange a America inteira, excep-tuada a União Norte-Americana e o Domínio do Canadá. Toda a America) latina, portanto, entrará, com a Belgica, a Hollanda, a Escandinavia, a Suissa, Por-tugal, a Grecia, a Servia, a Bulgaria, a Rumania, o Montenegro, na lista dessas entidades inferiores, cujo destino, pela lei de que o poder é o direito, se acha á mercê dos senhores da força. Não importa que os pequenos Estados tenham sido, talvez. ,(o conceito é de Bryce) INTERNACIONAL. 81 "os mais poderosos e uteis factores no adeantamento da civilização." Não importa que a esses pequenos Estados'' deva o mundo mais do que ás monarchias militantes," desde Luiz XIV. até hoje. Não importa que a GrãBretanha fosse, dada a sua população, um pequeno Estado, quando produziu Shakespeare, Bacon e Milton; como um pequeno Estado eram os Estados Unidos, quando produziram Washington e Franklin, Jefferson e Marshall. Nâo importa que em um desses dous pequenos Estados se laborasse o direito commum anglo-saxonio, no outro a carta da União Americana. Não importa que em pequenos Estados haja vindo á luz o Antigo Testamento, os poemas Homericos, a Divina Comedia, a Renascença Italiana. Não importa que a Allemanha de Kant e Lessing, de Goethe e Shiller não fosse mais que um grupo de principados e cidades livres. Não importa que a pequenos Estados, como o de Athenas, o de Florença, o de Weimar esteja ligada a humanidade por dividas inestimaveis. Não importa que pequenos Estados 82 PROBLEMAS DE DIREITO hajam dado á terra espectaculos e lições de incommensuravel grandeza moral, como o da emancipação helvetica, ha seiscentos annos, e o da luta das Províncias Unidas dos Paizes Baixos contra o colosso da mo-narchia hespanhola. Não importa que o valor da Hollanda e o da Belgica, como elementos essenciaes do equilibrio europeu, esteja consagrado pelos actos da politica ingleza no seculo XIV, no seculo XVI, no seculo XVII, no seculo XVIII, e no seculo XIX, defendendo nos Paizes Baixos, desde Fellipe II, Luiz XIV, Napoleão I, até hoje, a liberdade européa. Não importa o papel dos pequenos Estados, na America latina, quando a sua insurreição, no começo do seculo transacto, atalhando o vôo á Santa-Alliança, tanto contribuiu para a desoppressão da Europa. Não importa que entre esses Estados, paizes haja, como a Republica Argentina, o Chile, o Brazil, de immensos territorios, grandes populações, riquezas maravilhosas, alta cultura politica e factos que honram a historia da especie humana. INTERNACIONAL. 83 Nada importa; porque só uma consideração importará : a da sua inferioridade militar, a da sua insufficiencia guerreira, a da sua desvantagem em uma comparação de forças com as grandes nações armadas. Para estas nenhuma lei existe, segundo a hodierna moral bellica, a nao ser a de que a força prima ao direito, a de que o direito é apenas um accessorio da força. Segundo os magnates do systema, os pequenos Estados constituem para a tranquillidade dos grandes um risco perpetuo; são entre as potencias o pomo da discordia; dão frequente causa á guerra, e lhe deparam campo habitual no seu territorio mal defeso. Quando foi (a pergunta é de Geffken, que não tem a suspeição da ser latino) "quando foi que a Hollanda, a Belgica, ou a Suissa fomentaram jámais a discordia entre os Estados visinhos? "Certo que nunca. Mas La raison du plus fort est toujours la meilleure. A fabula de La fontaine encerra em si toda a evolução contemporanea do direito las gentes culto. Que vale ao cordeiro 84 PROBLEMAS DE DIREITO estar bebendo abaixo do lobo, no veio da corrente, si, a despeito da evidencia, o appetite do carniceiro voraz o argue de lhe turvar as aguas? Treitschke, o mestre de Bernhardi, considera "uma desgraça que o direito internacional tivesse por patria, durante tanto tempo, paizes como a Belgica e a Hollanda." "Esses paizes," diz elle, "em continuo risco de ser atacados, teem uma concepção sentimental dessa materia, e, por isso, a sua tendencia é appellar para o vencedor em nome da humanidade, como si taes appellos não fossem desnaturaes e insensatos, pela contradicção em que se acham com o poder do Estado." Aos olhos dos superhomens, que o insigne professor representa, " a Belgica, sendo um Estado neutro, é por sua natureza um listado emasculado." O epitheto é do insigne historiador. Vêde que tal desvirili-dade nas legiões do Rei Alberto! Ora, naturalmente, como, perdendo a virilidade, mudou ipso facto de sexo, o Estado neutro, precisamente por ser neutro, variou de INTERNACIONAL 85 estado pessoal. A condição dos que perderam a qualidade viril é a de protegidos ou captivas, como a mulher ou o eunuco. A noção da neutralidade, pois, já não poderia ser a que até hoje se tinha por tal. Quando os Estados poderosos neutralizarem uma nação culta e livre, não seria para lhe assegurarem a independencia, mas para a sujeitarem á tutela dos fortes. Nada obsta que essa independencia tenha a fiança de um tratado, e não só de um tratado especial, mas da convenção geral de Haya, que declara inviolaveis os territorios neutros. Nada obsta, porque os tratados são farrapos de papel. Assignar farrapos de papel foi, pois, tudo o em que nos estivemos occupando, nas conferencias de 1899 a 1907, os quarenta e tantos Estados, que alli sisudamente nos detivemos. O mundo inteiro se indignou contra a franqueza da nova doutrina. Mas não tinha razão. E' uma doutrina sincera. Não illude a ninguem. E tem o methodo de compendiar em uma só palavra a immensa revolução, por que passou, mani- 86 PROBLEMAS DE DIREITO pulada pelos interesses da guerra, a moral humana. Se os tratados são trapos de papel, porque se consignam em papeis, trapos de papel são contratos, porque todos em papel se escrevem. Se, celebrando-se no papel, os tratados, por isso, não são mais que trapos de papel, mais que trapos de papel não são tambem as leis, que no papel se formulam, discretam e promulgam. Se os tratados, porque recebem no papel a sua fórma visível, a trapos de papel se reduzem, as Constituições, que no papel se paetuam, não passam de trapos de papel. Trapos de papel maiores ou menores, mas tudo papel e em trapos. De maneira que todo o commercio humano, todas as relações da sociedade, todos os direitos e deveres, a familia, a patria, a civilização, o Estado, toda a fabrica do mundo racional, bem lançadas as contas, outra cousa não é que uma traparia de papel, valioso ou inutil, conforme se trate de impor aos fracos ou servir aos fortes. Menos do que papel é a palavra, porque INTERNACIONAL 87 é sopro; e todavia se imaginava outr'ora que ella vincula os reis e os povos, os homens e os numes, O verbo de Deus, antes de registado nas Santas Escripturas, o juramento na sagração dos soberanos, na inauguração das Constituições, na investidura das dignidades; no depoimento das testemunhas, a poesia homerica no canto dos aedos, a tradição na memoria das gentes, a eloquencia na voz dos oradores, tudo é palavra, cujo fiat, na Genesis, criou o mundo, cuja vibração, na historia, transfórma e revoluciona a terra. Quando a palavra se transfere da voz ao papel, cuidava o vulgo ingenuo que ella subia um gráo na escala da segurança, não porque a consciencia valha mais escripta do que falada, mas porque, falada, não deixa na escripta o rastro da sua authen-ticidade. Dahi o valor do papel, que não communica a sua destructibilidade, ao seu conteúdo, antes recebe do que elle contem a sua inviolabilidade. Essa a nobreza do papel. No papel se salvaram todos os monumentos das letras antigas. 'Nò| 88 PROBLEMAS DE DIREITO papel se perpetuavam os antigos fóraes dos municípios livres ... no papel se escreveu a Magna Carta. No papel fixa o mathematico os seus calculos, a chimica as suas formulas, a geographia as suas posições, a astronomia as suas medidas. No papel é que Leverrier descobriu Neptuno. Ao papel é que a amizade, o direito, a honra confiam os seus segredos, as suas dividas, os seus compromissos. No papel é que as sciencias, as litteraturas, as instituições eternizam as suas obras primas, os seus titulos de estabilidade, os archivos do seu passado, as garantias do seu porvir. Todo o universo moral, todo o universo politico, todo o universo humano assenta, hoje, em trapos de papel. As ventanias da guerra por elle passam, e o arrebatam, o dispersam, o somem. Ahi está porque ella começa incendiando biblio-thecas. São congeneres do papel, asylos do pó dos vermes e da intelligencia. A guerra, entregando-os ás chammas, saneia o globo. Deus não o creou para o verbo, mas para o ferro. INTERNACIONAL. 89 Si houvesse de acatar esses papelejos, esses papelioos, essa papelagem, a guerra estaria desalmada. A cada passo o fantasma de um direito, o tropeço de uma convenção, a impertinencia de uma garantia. Cedant arma togae, dizia outr ora o mundo. Mas, hoje, o que se diz ao mundo; é que cedat jus armis: ceda o direito á força. E como a força tem a sua culminação na guerra, a guerra é a lei das leis, a justiça das justiças, a soberania das soberanias. Essa grandeza não tolera a liberdade, nem a humanidade, nem a honestidade. Si um individuo repudiasse a sua assignatura em um contracto legitimo, a titulo de ser um trapo de papel, ninguem o trataria por homem de bem. Mas, si uma nação repudiar tratados solemnes, a titulo de serem papeletes, ninguem ousará dizer que fez o que n&o devia. Porque a força é o juiz dos seus direitos, a guerra é o arbitro dos seus poderes, e todas as convenções internacionaes encerram a clausula, subtendida, sempre do rebus sic stantibus. 90 PROBLEMAS DE DIREITO Emquanto as circumstancias não mudarem, isto é, emquanto outra não seja a vontade soberana do mais forte. E' pela guerra," diz Bernhardi, 'e só pela guerra que se póde realizar a expropriação das raças incompetentes. Domina o mundo a idéa de que a guerra é um instrumento politico antiquado, já indigno de povos adiantados em civilização. Nos outros, nos não devemos deixar seduzir dessas theorias. Os tribunaes de arbitramento são perigo, visto como podem tolher os movimentos ás potencias envolvidas no caso." "Raças incompetentes ''! Quaes são ellas! As nações desarmadas ou mal armadas. A competencia ou a incompetencia são as armas que as dão, ou as tiram. Não está no direito a competencia, porque o direito é apenas um expoente do poder. Não está na intelligencia, porque a intelligencia não é a machina de matar. Não está na riqueza, porque o mais rico dos Estados pode ser reduzido a um cemiterio pelo vendaval de INTERNACIONAL. 91 uma invasão. Não está nas convenções, porque o papel não vale senão pelo punho que o defende. Eis, senhores, os benefícios da guerra. Não se limita a exterminar as vidas. Acaba-nos com o senso moral. No lugar onde elle existia, um hediondo cancro prolífica as suas ironias monstruosas. A guerra não é um mal, mas um bem; '' uma necessidade biologica da mais alta importancia." Com ella não perde a cultura; pelo contrario, no desenvolvimento da cultura a guerra é o maior dos factores." O genero humano a não deve temer. Longe disso, "Deus ha de prover a que se renove sempre essa medicina drastica do genero humano." As diligencias tendentes á extincção da guerra não só insensatas, senão tambem immoraes, se devem estygmatizar como indignas da humanidade. "Cogitar em tribunaes de arbitramento é alimentar idéas, que representam uma presumpçosa intervenção no domínio das leis da natureza, e acarretarão, para a especie humana em geral as consequencias mais desastrosas' Bem 92 PROBLEMAS DE DIREITO fóra de arruinar os povos, a guerra os desenvolve e enriquece, pois, a historia inteira nos ensina que o commercio medra á sombra da força armada." Bem haja, pois, "o saudavel egoísmo que dirige ainda a politica da maioria dos Estados; porquanto graças a elle se baldarão os esforços envidados para estabelecer a paz, esforços extraordinariamente perniciosos," que contrariam "a idealidade, a inevitabilidade, as bençãos da guerra; estimulo indispensavel ao desenvolvimento do homem." Da paz, sim, é do que nos devemos recear; . porque a paz, se fosse acaso exequível, "nos conduziria á degeneração geral." Ella "não deve, nem poderá ser nunca o objecto da politica de uma nação "; visto como na guerra consiste "a lei natural, a que se podem reduzir todas as outras leis da natureza." Heraclito de Epheso dizia que " a guerra é a mãe de todas as cousas "; e os sabios da nossa idade não topam outra expressão mais digna de resumir a obra divina. "Os grandes armamentos constituem a mais necessaria precondição da salubridade nacional." INTERNACIONAL. 93 " O fim de tudo e a essencia de tudo, em um estado, é o poder; e quem não fôr astante homem, para encarar de resto esta verdade, renuncie a politica." O mais sublime dever moral do Estado não é guardar a justiça, nem sustentar a moral, "é augmentar o seu proprio poder." Da moralidade das suas acções o Estado é o unico juiz. "Os direitos reconhecidos," como os que se estipulam nos tratados, não são jamais direitos absolutos: sua origem humana os torna imperfeitos e variaveis; e condições ha, que não correspondem á verdade actual das cousas." "Todo o trabalho em favor da existencia de uma humanidade collectiva fóra dos limites dos Estados e nacionalidade é irrealizavel." "As nações fracas não têm o mesmo direito de viver que as nações poderosas e robustas." Eis, senhores, os axiomas da escola destinada a regenerar o mundo pela força. Si esse é o verdadeiro direito publico, ninguem se poderá queixar de que a guerra actual tenha dilacerado todas as convenções 94 PROBLEMAS DE DIREITO de Haya. As convenções de Haya são as mais solemnes de quantas a historia tem visto, são os actos juridicos da maior gravidade em que se tem manifestado reciprocamente a vontade livre dos Estados. Porque nunca se celebrou conselho de nações tão numeroso quanto esse, onde poderemos dizer que se reuniram, em numero de mais de quarenta, todos os governos regulares, nunca se debateram tão attentamente em commum entre Estados os seus mutuos direitos na paz e na guerra; nunca se deliberou com tanta luz, com tanta isenção, com tanta harmonia sobre essas questões supremas, nunca se erigiu ás leis da paz e da guerra uma construcçâo tão vasta, solida e excelsa. Dessa construcção, porém, o conflicto que ora rasga as entranhas da Europa não deixou pedra sobre pedra. Os factos se accumulam, descompassados, e tremendos. Como conciliar as convenções de Haya com a violação do territorio de nações neutras, invadido, occupado, talado, annexado? Com o uso de gases INTERNACIONAL. 95 asphyxiantes e jactos de petroleo inflamnado? Com o emprego de projectis explosivos e o envenenamento de fontes? Com o abuso da bandeira parlamentar e dos signaes da Cruz Vermelha? Com a imposição de requisições e indemnizações exorbitantes ás regiões occupadas? Com o bombardeio de povoados, cidades, villas, predios e vivendas indefesas ? Com o fogo dirigido contra edifícios consagrados aos cultos, ás artes, ás sciencias, á caridade, monumentos historicos, hospitaes e enfermarias? Com o constrangimento dos prisioneiros a tomar parte nas operações militares contra a sua patria, ou a servir de escudo vivo ao inimigo? Com o systema de obrigar os refens-a responderem por actos de hostilidade, a que são alheios, e que não podem evitar ? Com as penas collectivas, as contribuições esmagadoras, os exodos forçados, as exterminações implacaveis de populações inteiras, a pretexto de factos individuaes, por que não são responsaveis? Com a destruição desnecessaria de propriedades particulares e 96 PROBLEMAS DE DIREITO publicas, de bairros, aldeias e cidades inteiras, de estabelecimentos votados á religião, á beneficiencia, ao ensino, de mercados, museus, officinas indus-triaes, obras artísticas e laboratorios de saber, a titulo de castigos geraes? Com a pilhagem e o incendio, a expatriação e a deportação de habitantes innocentes, sem consideração de sexo, idade, condição ou soffrimento? Com o fuzilamento de prisioneiros ou feridos, e a execução em grosso de pessoas não combatentes? Com o ataque a navios-hospitaes, e a disseminação de minas fluctuantes pelo alto mar? Com a ampliação arbitraria da zona maritima da guerra? Com a destruição de barcos de pesca? Com o torpedeamento o afundamento de vasos neutros mercantes, e sacrifício das suas equipagens e dos seus passageiros, sem aviso, nem soccorro, ás centenas, aos milhares? Não me occupo, senhores, com a politica, mas com o aspecto juridico desses acontecimentos. Não é o Embaixador do Brazil que vós recebestes e elegestes INTERNACIONAL. 97 membro honorario do vosso corpo docente; é unicamente o jurista. Mas, para trazer o espirito absorto nestas questões, accresce ainda ao jurista a consideração da parte, modesta mas notoria, da parte assídua, laboriosa, intensa, que tomou nos trabalhos da ultima conferencia da Paz, e o cargo em que, ha nove annos, está, de membro da Côrte Permanente de Arbitramento. O meu caso vem a ser o do juiz que pergunta pelo codigo das leis cujas normas póde ter de applicar, e do legislador que estremece pelas instituições, em cuja elaboração cooperou, o de um signatario desses contractos que busca saber se entendia o que fez, se não se observa o que ajustou, se contribuiu para melhorar os seus semelhantes, ou se para os illudir e fraudar. A especie, assim considerada, suscita aos meus olhos uma questão de consciencia. Qual será, senhores, a situação dos que, tendo concertado e subscripto essas convenções, as vêem hoje rotas e conculcadas? Ante esse repudio total delias, só terão o direito de se magoar e clamar aquelles 98 PROBLEMAS DE DIREITO contra quem directamente se perpetram as transgressões? Ou, pelo contrario, da communhão dos contrahentes na elaboração e na assignatura decorrerão para todos as obrigações e os direitos de uma verdadeira solidariedade ? As convenções de Haya, tão bem o sabeis vós, senhores, quanto eu, não fóram celebradas separadamente entre nação e nação, duas a duas, em tratados bilateraes. Si o fossem, as outras poderiam cruzar os braços. Cada grupo teria a sua situação jurídica distincta e indifferente aos outros. Res tua agitur, non nostra. Mas, bem diversamente, essas convenções internacionaes se estipularam entre todas nações, e todas as nações em um convenio universal. Cada uma, portanto, das infracções dessa concordia geral interessa a todos os contractantes, e cada um dos seus signatarios recebe na sua individualidade, em cheio, o golpe desfechado em qualquer dos outros. Nenhum delles é ferido individualmente. Todos o são virtual e simultaneamente, na communhão INTERNACIONAL. 98 de compromissos e direitos que entre todos se instituiu. Nem é tudo. Evidentemente, senhores, quebrada a inviolabilidade jurídica de um pacto desta natureza, prova um ou mais dentre os pactuantes, com o silencio, e, pelo "silencio, o implícito assentimento dos demais (quis tacet, consentire videtur), que annullada está ella a respeito de todos os outros. Os que emmudecerem terão sanccionado caladamente o attentado, terão renunciado a invocar amanha, em seu proveito, a garantia, cuja fragilidade hoje admittiram, terão, portanto, convindo na fallencia da situação contractual, em que eram compartes. Com o desacato que soffreu sem reclamação dos cointeressados, o convenio decahirá inteiramente da sua autoridade. Era um systema de garantias, que se organizara e sagrara. Mas, na primeira occasião de exercer o seu imperio tutelar, e mostrar a sua efficacia protectora, uns o espezinharam e rasgaram com o maior desprezo, outros o viram romper e pisar, sem o menor abalo. Maltratado e 100 PROBLEMAS DE DIREITO enxovalhado assim, o venerando instrumento desse acto juridico sem par na sua grandeza moral valerá tão pouco amanhã, para abrigar os que hoje o não defendem, quanto na actualidade está valendo para conter os que agora o não respeitam. Na ultima conferencia de Haya a situação da maior responsabilidade coube ao Presidente dos Estados Unidos, o Sr. Theodoro Roosevelt, que, accedendo á iniciativa do Congresso pacifista de 1904, assumiu a de convidar as outras nações para a assembléa reunida na capital da Hollanda, e sobre os trabalhos dessa assembléa exerceu a influencia mais activa. Ninguem havia, portanto, mais autorizado para interpretar o espirito e alcance dos compromissos ali estipulados, que o illustre ex-Presidente da grande Republica norte-americana. Pois é elle, senhores, quem, escrevendo no New York Times, aos 8 de novembro do anno atrasado, assim nos esclarece acerca desses pontos : " Os Estados Unidos e todas as grandes potencias ora em guerra, fóram INTERNACIONAL. 101 partes no Codigo Internacional criado pelos regulamentos annexos ás convenções celebradas em Haya em 1899 e 1907. Como presidente da Republica, obrando no caracter de chefe do governo, e de accôrdo com os desejos unanimes do nosso povo, ordenei que se oppuzesse a essas convenções a assignatura dos Estados Unidos. Ora, eu não consentiria, de modo mais categorico o declaro, que se consummasse um tal farça, se me entrasse na cabeça que o governo do meu paiz se não considerasse obrigado a tudo quanto lhe estivesse ao alcance, para que as normas, em cuja determinação teve parte, recebessem a devida execução, quando occorresse a emergencia de serem executadas. Não posso conceber que nunca mais uma nação que se estima a si mesmo, entenda valer a pena assignar outras convenções de Haya, se nem os neutros de tamanho poder como os Estados Unidos lhes dão a importancia de reclamar contra a sua violação manifesta." Demos, porém, senhores, como eliminadas as convenções de Haya, e supponhamos que 102 PROBLEMAS DE DIREITO nada temos, as nações não belligerantea, com a liquidação de contas entre os bellige-rantes sobre as transgressões, reaes ou imaginarias, das leis de guerra. Inda assim, um ponto ha em que a indifíerença dos neutros não poderá deixar de cessar; é, pelo menos, quanto ás violações do direito dos neutros, commettidas pelos bellige-rantes. Todo e qualquer acto dessa natureza constituo uma negação geral dos direitos da neutralidade, e, conseguintemente, interessa a todos os neutros. Nos tempos de hoje, senhores, com a internacionalização crescente dos interesses nacionaes, com a permeação mutua que as nacionalidades exercem umas nas outras, com a interdependencia essencial em que vivem umas das outras as nações mais remotas, a guerra já não se póde insular nos Estados entre quem se abre o conflicto. Suas commoções, seus estragos, suas miserias repercutem ao longe, sobre o credito, o commercio, a fortuna dos povos mais distantes. E' mister, pois, que a neutralidade receba uma expressão, uma INTERNACIONAL. 103 natureza, um papel diverso dos de outrora. A sua noção moderna já não póde ser a antiga. Até onde a concepção da neutralidade, pondera um escriptor norte-americano, até onde essa concepção estriba no sup-posto de que as nações não-participantes em uma guerra nella nada tem que vêr, nem estão obrigadas a cousa alguma para com os belligerantes, se se podem isolar dos seus effeitos, essa concepção assenta em uma série de ficções. Pela expansão das suas relações mutuas, e com o argumento da reciproca dependencia entre ellas, as nações constituem, de facto, uma sociedade, e, reconhecidas as consequencias que nesse facto se envolvem, já não é possível a neutralidade em sentido real, no caso de uma grande guerra." Nas condições actuaes do mundo, não ha meio, com effeito, para os neutros, "de se esquivarem a pagar duro tributo por guerras, em que não teem parte nem responsabilidade." As operações militares, com o bloqueio, o exercicio do direito de visita, 104 PROBLEMAS DE DIREITO a repressão do contrabando, sejam quaes forem as reservas e attenções com que procedam os belligerantes, hão de magoar e desgostar os neutros. Por outro lado, o commercio de armas e munições bellicas, exercido abertamente por nações neutras com uma das partes combatentes em detrimento da outra, estabelece differenças incontestaveis na maneira de tratar os belligerantes. Theoricamente a lei é de igualdade. Na pratica a desigualdade é flagrante. Pode succeder, como tem succedido, que, dadas as circumstancias da luta, esse concurso da industria dos neutros seja decisivo para a victoria de um dos lados; e, dest'arte, paizes pelos quaes não se considera nem se deve considerar violada a neutralidade, contribuem directamente para a superioridade militar de uma das partes belligerantes, em prejuízo da outra. Daqui se concluirá que se devam refórmar as leis de neutralidade, para vedar o commercio particular de armas entre os neutros e os belligerantes? Não; porque, para chegarmos ahi á igualdade real na obser- INTERNACIONAL. 105 vancia das leis da neutralidade, necessario seria cortar, não sómente o commercio de artefactos militares, mas todo o commercio entre belligerantes e neutros. De outro modo, assegurado esse commercio a uns pelo domínio dos mares e tolhido a outros pelo bloqueio, o simples trafego de mantimentos, que vão abastecer um dos belligerantes, não abastecendo o outro, póde actuar decisivamente para o aniquilamento dos bloqueados e o triumpho dos bloqueantes. Mas, levada até ao extremo de suspender inteiramente o commercio com todas as nações em guerra, para estabelecer entre todas um pé de igualdade absoluta, a neutralidade importaria na abolição do bloqueio o que é absurdo; porquanto seria desarmar, na guerra naval, os combatentes das suas superioridades naturaes. Toda a neutralidade, pois, hoje, encerra em si restricçoes e differenças que negam a neutralidade. Demais, instituída a prohibição absoluta do commercio de armas, o que lograva era unicamente assegurar á paz armada as conspirações da ambição militar, resultados ainda mais certos. 106 PROBLEMAS DE DIREITO As nações pacificas seriam, assim mais facilmente victimas da sua desambiçâo, da sua boa fé, da sua confiança na honra dos tratados. Não se poderiam valer, contra a guerra inesperada e subita, do recurso nos mercados productores de armamentos. Todas, portanto, se veriam obrigadas a dar-lhe, na paz, as maiores proporções extremas, para se acautelarem das surprezas da guerra; com o que a paz viria a tornar-se cada vez mais inevitavelmente um estado virtual de guerra. Não restaria então outra escolha na vida internacional, sinão entre guerra e guerra; guerra apparelhada, ou guerra declarada, guerra imminente, ou guerra presente. Não é, pois, nessa declaração absurda que se hão de alterar as regras da neutralidade; porque seria alteral-as em beneficio da militarização do mundo. A refórma a que urge submettel-as deve seguir a orientação opposta: a orientação pacificadora da justiça internacional. Entre os que destroem a lei e os que a observam não ha neutralidade admissível. Neutralidade INTERNACIONAL 107 não quer dizer impassibilidade : quer dizer imparcialidade; e não ha imparcialidade entre o direito e a justiça. Quando entre ella e elle existem normas escriptas, que os discriminam, pugnar pela observancia dessas normas não é quebrar a neutralidade : é pratical-a. Desde que a violencia pisa aos pés arrogantemente o codigo escripto, cruzar os braços é servil-a. Os tribunaes, a opinião publica, a consciencia não são neutros entre a lei e o crime. Em presença da insurreição armada contra o direito positivo, a neutralidade não póde ser a abstenção, não póde ser a indifferença, não póde ser a insensibilidade, não póde ser o silencio. Se o fosse, a obra de Haya não seria sómente um capricho futil: seria uma cilada atroz. Porque, descansados no sup-posto valor dos seus dictames como limites á força e garantias do direito, os povos se entregaram á espectativa do regimen juridico alli cuidadosamente regulado, para accordarem de repente ao troar dos canhões, que os despedaçaram. 108 PROBLEMAS DE DIREITO Os Estados soberanos não se reuniram durante longos nezes na capital da Hollanda para examinar didacticamente os problemas do direito internacional, e redigir em collaboração um manual theorico do direito das gentes. A Conferencia da Paz não foi uma academia de sabios, ou um congresso de professores e jurisconsultos, convocados para discutir methodos e doutrinas: foi a assembléa plenaria das nações, onde se converteram os usos fluc tuantes do direito consuetudinario em textos fórmaes de legislação escripta, sob a fiança mutua de um contracto solemne. Desde então, os governos que o assignaram, se não se constituíram em tribunal de justiça, para sujeitar os transgressores á acção coercitiva de sentenças executorias, contraíram, pelo menos, a obrigação de protestar contra as transgressões. Essa é, portanto, uma situação inquestionavel, que os Estados firmaram pelas convenções de Haya. Esse é um direito que a neutralidade, mediante ellas, conquistou, e um dever, a que por ella se sub- INTERNACIONAL 109 metteu : o direito e o dever de constituir um tribunal de consciencia, uma instancia de opinião, uma alçada moral sobre os Estados em guerra, para lhes julgar os actos, e lhes reprovar os excessos. A neutralidade inerte e surdamuda cedeu a vez á neutralidade vigilante a judicativa. Renunciando a essas funcções, tão benignas, tão salutares, tão conciliadoras, a neutralidade actual commetteria o mais lamentavel dos erros: immolaria ao egoismo de uma commodidade passageira, de uma tranquillidade momentanea e apparente, o futuro de toda a especie humana, os interesses permanentes de todos os Estados. Desmoralizando a obra das cortes da civilização celebrada em Haya, inutilisaria, de agora para sempre, todos os tentamens ulteriores de organização da legalidade internacional; e deixando triumphar sem sancção alguma, todas as enormidades, todas as absurdidades, todas as monstruosidades concebiveis contra a lei consagrada, incorreria em uma cumplicidade excepcionalmente grave, se não em verdadeira coau- 110 PROBLEMAS DE DIREITO toria com os réos dessa anarchia estupenda nas relações entre os Estados. Porque, senhores, é immensuravel, é incalculavel, é inestimavel a somma de poder, que esse consenso das nações neutras representa, a intensidade e a efficacia de pressão, com que esse poder actuaria no procedimento dos belligerantes. Se. logo ás primeiras explosões de revolta insana contra o direito constituído nas convenções de Haya, os signatarios dessas convenções levantessem o clamor publico da censura universal contra o arrojo das paixões de-sembridadas e embriagadas no delirio do orgulho, a torrente da desordem ter-se-hia moderado, si não recuasse, e não continúaríamos a ver submergir-se a civilização de um continente inteiro nesse diluvio da soberba, cujas cataractas alagam a Europa como vagalhões de pampeiro em praia rasa. Ainda não passou de todo a occasião, ainda não seria de todo tarde para esse movimento reconciliatorio da neutralidade com a justiça. Se as nações christãs, as nações humanas que a guerra não enlaçou INTERNACIONAL 111 no seu redomoinho, não espertarem do abstencionismo, a que os seus escrupulos as condemnaram, estou por saber quem afinal de contas, mais terá peccado contra Deus, e maior mal terá causado: se os que immergiram o presente nos horrores da mais medonha das guerras, se os que, deixando apagar-se na consciencia dos povos as ultimas esperanças no direito, houverem mergulhado o porvir na mais escura das noites. . A imparcialidade na justiça, a solidariedade no direito, a communhão na mantença das leis escriptas da communhão : eis a nova neutralidade que, se deriva positivamente das conferencias de Haya, não decorre menos imperativamente das condições sociaes do mundo moderno. A neutralidade recebeu nova missão, e tem agora uma definição nova. Não é a expressão glacial do egoimo. E' a reivindicação moral da lei escripta. Será, pois, a neutralidade armada ? Não: deve ser a neutralidade organizada. Organizada, não com a espada, para usar da força, mas com a lei, 112 PROBLEMAS DE DIREITO para impôr o direito. O direito não se compõe sómente com o peso dos exercitos. Tambem se impõe, e melhor, com a pressão dos povos. Indubitavelmente, forças capazes de organização ha maiores e mais certas no seu resultado que as forças militares. São as forças economicas e as forças sociaes, com que as forças de força não podem lutar. E' o que se sente nos proprios actos dos belligerantes, nessa anciedade, com que todos cortejam a opinião dos Estados Unidos, e, ainda, a das outras nações americanas, de muito menos importancia militar que a grande Republica do Norte. Porque todo esse empenho em conciliar a boa vontade e as sympathias do Novo Mundo? Simplesmente para não magoar sentimentos, atráz dos quaes não se ergue a imminencia da guerra. Os Estados em guerra temem o mau juizo do universo, porque a sua reprovação poderia traduzir-se em elementos de resistencia desastrosos aos intuitos que operaram a declaração deste conflicto : a expansão commercial e a INTERNACIONAL. 113 infiltração economica, a immigração ultramarina e a conquista dos mercados. Quando se pretende que a civilização assenta, em ultima alçada, na força, policial ou militar, não se adverte em que o exercito e policia, eliminada a lei que os mantem, não existiriam, ou teriam ajuntamentos informes, anarchicos e ingovernaveis. Quem sujeita as fileiras á docilidade? Quem adscreve a oficialidade á jerarchia? Quem assegura a obediencia das massas armadas ao mando supremo de um homem ? Qual, em summa, o elemento compulsivo, a que se move o poder das armas? A fé jurada, os textos escriptos, a certeza de um regimen commum a todos, o contracto de associação, de organização, de sujeição a que todos se consideram vinculados. Remova-se esta base, diz um americano, '' e não haverá differença entre os Estados Unidos e o Mexico ou o Haiti." Não porque os norte-americanos sejam mais militares que se preservam de certos defeitos da civilização sul-americana. E' justamente por serem menos militares. 114 PROBLEMAS DE DIREITO Já se disse que a força é quem reivindica os direitos da Belgica. Mas quem poz a força em movimento? Quem deliberou á Inglaterra a correr em soccorro dos belgas ? Um influxo do espirito, uma cousa moral, uma idéa: a tradição da santidade dos tratados, a theoria das obrigações interna-cionaes, o senso de um contracto existente. A noção de contractualidade, mais ou menos juridica, mais ou menos moral, está nos fundamentos de todas as associações humanas. Sem ella, nem mesmo no crime pode haver sociabilidade. Contestado sempre como inexequivel entre Estados soberanos, o principio de mutua dependencia social, que o liga, vae, todavia, demonstrando, cada vez mais, a sua realidade e o seu desenvolvimento. O commer-cio não é, como irreflectidamente se acredita, uma origem de rivalidades aggressivas entre as nações. A lei predominante na existencia delias é, presentemente, a cooperação, dia a dia, mais intensa, cooperação que nas relações commerciaes tem o maior dos seus factores; e INTERNACIONAL. 115 esse factor conduz sensivelmente o mundo para uma sociedade internacional. A guerra actual evidenciou que, seja qual fôr o poder e grandeza de um Estado, circumscripto elle aos seus proprios recursos, não poderá nem ter uma posição de autoridade no mundo, nem contar com a propria segurança. Cada um dos paizes alliados, entregue exclusivamente ás suas forças, estaria perdido. Nenhum delles resistiria á portentosa concentração de energias organizadas, que a Europa central accumulára contra a Europa saxonia, a Europa latina e a Europa slava. A coassociação desses tres elementos europeus foi a salvação de cada um delles e de todos, no choque gigantesco a que, ha dois annos, vacilla o antigo continente. Tambem, do outro lado, nenhuma das potencias do grupo austrogermanico, limitada aos seus meios, arrastaria o conflicto, a despeito das maravilhas de organização militar accumuladas em quasi meio seculo de absorpção de toda a vitalidade nacional na cultura da guerra. Essas vantagens amontoadas pelos titães 116 PROBLEMAS DE DIREITO da força durante quarenta e cinco annos de aguerração ininterrupta, não levaram em conta um elemento moral, com que, em taes calculos, se não costumam contar: a opinião do mundo, isto é, a consciencia da humanidade, que nunoa, em toda a historia do homem, se pronunciou com tamanha grandeza, com tamanha intensidade, com tamanha soberania. A confiança absoluta na certeza da vic-toria pela excellencia dos armamentos, pela incubação da guerra na paz, não surtiu o exito esperado; e do meio das batalhas, das entranhas do sólo revolvido pelos canhões, dos estupendos morticínios em que se alastra a safra da morte, desses abysmos de miseria e horrores, de luto e pranto; de gemidos e torturas; de assolação e ruínas, o olhar do crente, do philosopho, do homem de Estado sente vir surgindo uma força ignorada, o principio de um mundo novo, a regeneração da terra pela intelligencia do ideal christão. A imagem ainda mal definida assume fórmas diversas mais ou menos bellas, mais INTERNACIONAL 117 ou menos consoladoras, mais ou menos precisas; mais ou menos praticas, segundo a luz a que os olhos de cada observador attentam no phenomeno singular. Para uns seria a união das nações democratizadas, no seio de uma vasta federação, onde as soberanias convivam, renunciando unicamente os elementos essenciaes á harmonia internacional. Para outros é a constituição desse tribunal das potencias, que o Sr. Roosevelt esboçava, ha dous annos, com a base assentada no convenio commum de lhe sustentarem executivamente os julgados. Alguns, ainda, anteveem a inauguração de um systema, no qual os Estados soberanos se obriguem, por convenções praticamente garantidas, a não entregar os seus litígios de qualquer natureza á decisão das armas, antes de os haver submettido ao exame de uma junta internacional. Outros, enfim, menos adeantados no vôo das conjecturas, enxergam a barreira ás inundações da violencia militar na opposição dos neutros ás exorbitancias dos poderes belligerantes. No meio dessas divergencias, porém, um 118 PROBLEMAS DE DIREITO elemento ha commum a todas as opiniões : o sentimento de que as sociedades civilizadas não podem continúar á mercê dos interesses immoraes e desorganizadores da força. Não são os governos democratizados os que turbam a paz do mundo. Os povos amam o trabalho, estremecem pela justiça, confiam na palavra, teem no mais alto gráo o instincto da moralidade, aborrecem as instituições oppressivas, sympathizam com o direito dos fracos. A democracia e a liberdade são pacificas e conservadoras. As castas, as ambições dynasticas, os regimens arbitrarios é que promovem a zizania, a malevolencia e a desharmonia entre os Estados. A guerra actual seria impossível, se os povos, e não o direito divino das corôas, dominassem a politica internacional. Mas esse poder, inconsciente e inerme como as grandes forças da natureza, entra agora em scena com toda a energia da lei irresistível que elle representa. Se as instituições livres, as instituições parlamentares e as instituições representativas não forem esmagadas nesta campanha, a INTERNACIONAL. 119 Europa ha de ser restituída ao domínio do seu direito, os pequenos Estados recuperarão a sua integridade, as nacionalidades captivas resurgirão emancipadas, o movimento dos povos libertos levantará muralhas insuperaveis ao espirito de conquista. Os povos já se não illudem com os famosos qualificativos de "resultado necessario," "imperativo historico," ou "intervenção da Providencia," com que se entrajam no manto de santidade as infernaes hecatombes humanas, em cuja orgia de sangue se apascentam as guerras diabolicas de hoje, guerras onde a sciencia, servindo aos appe-tites da furia militar, multiplica ao rancor e á cobiça, nas mãos do homem, a potencia homicida. Os povos sabem que as guerras, em nossos dias, nem sempre são resultados espontaneos de causas sociaes. Ordinariamente são actos de vontade, resoluções individuaes, amadurecidas no arbítrio dos potentados, encaminhadas pela diplomacia secreta, e rebuçadas pela mentira politica na linguagem dos grandes sentimentos de 120 PROBLEMAS DE DIREITO honra, direito e salvação nacional. A catastrophe actual, ha quasi dous annos lhes agita aos olhos o facho dessa evidencia, accelerando com ella a democratização dos governos, o advento das nações á posse dos seus destinos e a comprehensão dos vínculos sociaes que entrelaçam uns com os outros os varios ramos da civilização christã. A facilidade e a brutalidade com que se metteram debaixo dos pés da politica de conquista os compromissos de Haya, parecendo aniquillar em uma catastrophe irremediável o principio de um regimen juridico entre os Estados, não vieram senão ensinar os povos a reforçar as garantias da sua tranquilidade, buscando novas sancções á moralidade internacional. Esta pavorosa e phantastica subversão das leis estabelecidas na magna carta da paz e da guerra, descobriu em toda a sua hediondez a natureza das influencias, á sombra das quaes se conspiram estes crimes contra a humanidade, e ha de levantar, no espirito dos povos escarmentados, uma reacção irre- INTERNACIONAL. 121 sistivel contra o predomínio dessas forças malfazejas. Os amigos do direito das gentes não temos, pois, que desanimar da sua utilidade : o que nos cumpre é cavar-lhe os alicerces mais fundo. "Not to despair but to dig deeper for its foundations." E' uma realidade obvia que as nações, no sentido economico já constituem uma sociedade. Para que de uma sociedade pelos interesses mercantis, pelos interesses industriaes, pelos interesses agrícolas, pelos interesses financeiros, passe ella a ser uma sociedade constituída moral e politicamente, para esse auspicioso resultado as circumstancias deste cataclismo estão concorrendo com um poder incontrastavel. Essas circumstancias ergueram a opinião publica, nos dous continentes, daquelles interesses para os interesses ainda mais altos da justiça universal, em que os outros assentam, e que se não podem consignar seguros, emquanto se não criar uma legalidade internacional com as suas sancções indispensaveis. Romperam-se tratados, arvoraram-se 122 PROBLEMAS DE DIREITO doutrinas funestas á existencia dos contractos entre Estados, escogitaram-se requintes de malignidade nos meios de guerra prohibidos, nivelaram-se as populações não combatentes com os exercitos em armas, para autorizar essa caçada ímpia, desencadeada contra a propriedade, a honra e a vida humana. Dirieis que o mal tragou de uma vez o bem. Dirieis que no vortice dessa tormenta desappareceu, expirou o direito das gentes. E comtudo, esse direito não pereceu. E pur si muove. Caiu nos campos de batalha, para se reerguer na consciencia humana, de onde ha de vir, restaurado, a reinar e reconstruir o mundo. E' elle quem está qualificando, nos factos desta guerra, as acções dos belliger-antes e as inacções dos neutros; elle quem já impoz aos attentados inconcebíveis desta guerra, os seus nefandos nomes; elle quem, depois desta guerra, ha de vir a julgar os vivos e os mortos, separando os martyres dos perversos, os heróes dos malfeitores; elle quem, ao alvorecer da paz almejada, presidirá aos congressos onde se ha de INTERNACIONAL 123 resolver sobre a causa do mundo; elle quem, nas convenções dessa liquidação final, definirá e garantirá o fóral da civilização moderna; elle quem sepultará em uma condemnação irrevogavel as heresias do imperialismo e do militarismo; elle quem reintegrará, nas relações entre as potencias e as leis da fidelidade, a palavra empenhada da lealdade aos meios de hostilizar o inimigo, da protecção aos fracos, do respeito aos inermes, da igualdade jurídica dos Estados: A esse desideratum salvador e necessario, a liga dos preconceitos e interesses oppõe a exaggeração actual das idéas de independencia e soberania. Mas essas noções, como a noção de neutralidade, teem de passar pela modificação irrecusavel que o bom senso lhes dicta. Os povos não são menos independentes, nem os Estados menos soberanos, porque renunciem ao direito insensato de se odiarem e destruírem, de se acom-metterem e devorarem, submettendo os seus litígios a uma justiça constituída pela sua escolha, do mesmo modo como os indivíduos 124 PROBLEMAS DE DIREITO não são menos livres e sui juris, por se não lhes reconhecer o direito bestial de se aggredirem e trucidarem, de se pilharem e assassinarem, sem responder aos tribunaes estabelecidos pelas leis de cada paiz. Pelo contrario, essas apparentes limitações da liberdade e da soberania, são as condições essenciaes e as garantias impreteriveis da soberania e da liberdade; porquanto, sem ellas, a liberdade se perde nas convulsões da desordem, e a soberania se condemna aos azares da guerra. A America, senhores, não pode encolher os hombros de desdem ao curso destas questões, embora o theatro onde ellas presentemente se agitam seja o do outro continente. Os oceanos que nos circumdam não nos insulam moral, jurídica e politicamente do resto do globo. Da cordilheira em que a natureza deu a sua columna vertebral a este corpo gigantesco, desde as montanhas Rochosas até aos Andes, desde a California até á Patagonia o egoismo dos homens não lograria extrahir massas bastante vastas de granito para cercar de uma impenetravel INTERNACIONAL. 125 muralha chineza o Novo Mundo. Correntes mysteriosas, profundas e indestructiveis como essas que atravessam continúamente os mares, transportando nas suas aguas o calor de um ao outro hemispherio, entretem nas relações intellectuaes, economicas e politicas dos Estados a communhão dos interesses, tendencias e sentimentos. Nunca essa identidade intima entre os destinos das duas metades do genero humano se demonstrou com circumstancias mais concludentes do que no correr desta guerra. Cada pulsação que entumece as arterias européas vem latejar immediata-mente nas nossas. Si fosse possível que a Europa se extinguisse pelo extermínio das suas raças, ou pelo sossobro definitivo da sua civilisação, os membros, conservados aqui, desse immenso organismo, que hoje abrange todas as regiões da esphera terrestre, se reduziriam, durante seculos e seculos, a um mallogrado troço paraplegico e decadente da especie humana, como esses decepados, cujo corpo a mutilação desmedra e cujo cerebro se atrophia pela insufficien- 126 PROBLEMAS DE DIREITO cia de uma circulação prejudicada com a eliminação de orgãos necessarios a uma actividade normal. Semelhantemente a Europa receberia um golpe mortal no seu desenvolvimento, si a America fosse dormir debaixo das ondas ao lado da Atlantide sumida, ou os seus habitantes voltassem á existencia selvagem dos aborígenes que receberam os seus descobridores. A bandeira do nacionalismo, do chauvinismo, do jingoismo, desfraldada por certos patriotas, alguns, aliás, muito illus-tres, muito dignos e muito eloquentes, é uma bandeira de egoísmo, desconfiança e retrocesso, que não resolve nada e nada garante. A America tem nas veias o sangue, a intelligencia e a riqueza dos seus antepassados, que não são os apaches, os Guaranys ou os africanos, mas inglezes, e os iberos, os saxonios e os latinos cuja substancia vivente, cujas tradições, cujas idéas, cujos capitaes nos geraram, nos criaram, nos educaram, nos opulentaram, até sermos o que hoje somos. Ao jingoismo guerreador se oppõem, nos Estados Unidos, INTERNACIONAL. 127 duzentos e cíncoenta annos de puritanismo, e, no resto da America, um seculo inteiro de experiencia do flagello militar sob as variadas fórmas do caudilhismo e da anarchia. O direito e a liberdade fizeram a America do Norte. De liberdade e direito são os bons exemplos com os quaes ella affirma a sua superioridade. No seu direito e sua liberdade é que a America do Sul póde encontrar modelos. Com essa liberdade e esse direito é que ao grande exemplar da politica americana se offerece agora a missão de actuar na politica européa, levando, sob a influencia da sua attracção jurídica e moral, em torno de si as nações latino-americanas, como astros gravitantes ao redor de um grande ideal, para as regiões da paz e da justiça. A vocação, pois, que para este continente se está delineando, não é nem a de se retrahir na pendencia travada além entre a civilização e a militarização do mundo, nem grandes armamentos nas ruínas de uma guerra por elles imposta. Onde essa vocação está é em procurar assumir a 128 PROBLEMAS DE DIREITO iniciativa e contribuir influentemente para a constituição do novo systema de vida internacional, pela associação ou approximação das nações, mediante um regimen que substitua a lei da guerra pela da justiça. Não se evita a guerra preparando a guerra. Não se obtem a paz, sinão apparelhando a paz. Si vis pacem, para pacem. O symbolo do militarismo sequestra os povos, para os supplantar. Divide et impera. Os mandamentos do christianismo unem as nações, para as dirigir. Entzwei und gebiet! Tiichtig Wort. Verein und leit! Besser Hort. Quem tem razão não é Machiavel, é Goethe, que Nietsche repudia. Se a distancia e a differença de meio nos alongam da Europa, abrigando-nos das paixões e agonia da guerra, seria absurdo; que seja para nos contaminarmos das idéas a que a guerra se deve, em vez de assumirmos o papel que as circumstancias nos reservam, de elemento activo na creação de um mundo internacional mais bem organizado. INTERNACIONAL. 129 A America, senhores, já tem no rumo deste oriente os títulos de precursora. Antes das conferencias de Haya, em 1899 e 1907, antes da Declaração de Bruxellas, em 1901, antes da Declaração de S. Peters-burgo, em 1868, antes da Convenção de Genebra, em 1864, já o Governo dos Estados Unidos da America, nas suas Instrucções para o serviço dos Exercitos em campanha, articulava as leis fundamentaes da guerra moderna. Sujeitar a guerra á disciplina do direito e da humanidade é crear uma situação, em ultima analyse, fatal á guerra, porque a guerra é, de seu natural, deshumana, rebelde, indisciplinavel. O pendor natural da guerra é sacudir as leis da guerra. Desde que, portanto, se começou a trabalhar por submetter a guerra a leis, começou-se a trabalhar "pela paz do genero humano." E' o que o Presidente Roosevelt reconhecia, em 1904, na circular onde esboçava os intuitos da conferencia, que se realisou cinco annos mais tarde. 130 PROBLEMAB DE DIREITO Dessa direcção não permitta Deus que regressemos. A guerra actual vae acabar por uma reorganisação, que assentará o direito internacional mais amplamente do que nunca em principios de solidariedade entre as nações, sinão todas, pelo menos as de um grupo, onde avultarão as mais cultas, as mais poderosas e as mais interessadas na liberdade. Buscarmos alargar o mais possivel esse nucleo, contribuindo para lhe augmentar, até onde se possa, o numero dos Estados que o compuzessem, seria obedecer á indole das nossas instituições, ao genio dos nossos povos, á tradição da nossa historia, aos interesses da nossa segurança, aos deveres da nossa honra, desde que o objecto dessa revolução pacifica, nas relações internacionaes, seja difficultar a guerra e organisar a paz, solidarisando as nações em um regimen onde ellas se associem, para se oppôr ás violações do direito das gentes. Grande fortuna, senhores, a que me proporcionastes, de falar esta linguagem de paz e justiça em uma das mais brilhantes capitaes do mundo, sob o tecto hospitaleiro INTERNACIONAL. 131 de uma congregação de sociologos e juristas, a um dos mais cultos auditorios deste continente. Commigo reconhecereis, creio eu, que "todos somos interessados '' (as palavras são de um publicista norte-americano), ''que todos somos interessados, repito, nos problemas da reconstrucção subsequente á guerra, e devemos envidar toda a influencia, de que disponhamos (e é immensa), para assegurar que essa reconstrucção observe o legitimo rumo." Parecerá, talvez, excesso de optimismo discorrer destas opiniões de reconstituição do mundo pelas idéas generosas de volta ao direito e reconciliação com a moral christã, quando a mais febril actividade multiplica as fabricas de armas, o metal candente rutila nas forjas em laminas esbraseadas, ou rechina em catadupas de aço na fusão dos canhões, quando todas as industrias se substituem pela dos instrumentos de carniça, quando o sangne escorre das asas tenebrosas da guerra sobre os continentes desde o Baltico e o Mar do Norte até ao Mediterraneo e o Mar Negro, desde a Grã- 132 PROBLEMAS DE DIREITO Bretanha e a Belgica até á Grecia, á Palestina e ao Egypto, desde as stepes moscovitas até ás extremas plagas africanas, desde a França até á Persia, desde a península dos Balkans até os desertos da Arabia, desde os fundos do oceano até os vertices dos Alpes, desde o mundo antigo, onde a morte estende o sudario das suas batalhas, até o novo, arrastado a collaborar com suas offi-cinas e os seus estaleiros na faina tremenda. Mas é justamente do excesso do mal que me parece vir surgindo a esperança de cura. Assim como ha as visitas da saude, que precedem a ultima agonia, agonias ha que se resolvem na volta da saude. A mais terrivel das enfermidades moraes de que tem soffrido, nos ultimos seculos, a nossa especie, é a militarização do mundo civilizado, a hypertrophia dos armamentos. Dessa doença mortal não se podia sair senão por uma crise quasi mortal. Mas, felizmente, a consciencia christa não entrou em coma, Pelo contrario, as energias do bem se vão reanimando, os symptomas de uma grande reacção crescem a olhos INTERNACIONAL. 133 vistos e do coração da humanidade, traspassado pelas sete espadas da dôr, brota a vontade, a confiança, o alvoroço do triumpho, com o sentimento, o consolo, a certeza da regeneração. Os horizontes estão ainda singularmente carregados. Formidaveis agglomerações caliginosas ainda pejam o céo. As scentelhas riscam a atmosphera baixa e torva. Um ambiente pesado e electrizado comprime e inquieta. Mas já se sentem os primeiros indícios do cansaço na lucta dos elementos enfurecidos, e uma corrente de ar rijo e puro como os grandes sopros destas planuras começa a descondensar as trevas, limpando as regiões superiores do firmamento. E' o instincto da conservação humana que desperta, o tino intimo das cousas, que acorda no animo dos povos, e os restitue ao senso da vida. Ou pôr freios á guerra, ou renunciar á civilização. E' o que quasi todos sentem. Antes desta guerra, o mundo contemporaneo ainda não conhecia a guerra. Comparadas com esta, até as campanhas napoleonicas se despem dessa grandeza épica 134 PROBLEMAS DE DIREITO em que a imaginação LOl-as contemplava assombrada. Seria mister recuar até ás invasões dos barbaros, para ver a furia das armas chammejar em áreas tão vastas, e o genio da ferocidade rugir com violencia tâo horrenda. Agora, porém, depois que se viu o alude ensanguentado rolar por sobre o velho continente em massas immen-suraveis, sumirem-se no vortice das batalhas, em menos de dous annos, mais de doze milhões de almas, e atirar-se á face dos céos a proclamação ostentosa do culto da força absoluta, depois que se experimentou assim até onde pode chegar o inferno das paixões militares vasado e espalhado entre os homens, a família humana, entrada indi-zivelmente de espanto e terror, sentiu que era a sua propria existencia a que estava em questão, viu que a eliminação dessa maldade organizada já não podia ser unicamente um anhelo do pacifismo, convenceu-se de que o mundo não supportaria outro accesso desta loucura desapoderada e vertiginosa. Mas desde que a impressão entrou a calar INTERNACIONAL. 135 nos animos, um movimento espontaneo e instinctivo, entre os proprios combatentes, volveu os olhos de todos para os longes deste hemispherio, onde tremula ao Norte a bandeira astrigera dos Estados Unidos, ao Sul o pendão ceruleo da Republica Argentina, onde, no caminho dos Andes, ás portas do Chile, se levanta a imagem colossal do Christo, e ás margens do Atlantico, no estandarte brasileiro, se desfraldam as insígnias de ordem e progresso. Outros fizeram as suas bandeiras das cores da terra. Vós compuzestes a vossa das côres do céo. Os matizes do céo não podem mentir á sua origem celeste. As estrellas do céo não podem transigir com os interesses do inferno. O progresso e a ordem não podem servir á desordem e á força. A evocação do Crucificado não póde cobrir a ferocidade, a barbaria. O Mundo Antigo, pois, não se enganou, deixae-me crer, em voltar os olhos para o Novo Mundo, em esperar que, erguendo-se do seio destas democracias, a opinião christã dos povos e governos tome o lugar, que lhe cabe, na resistencia 136 PROBLEMAS DE DIREITO á dominação da terra pela violencia, no trabalho para a renovação da vida internacional pelo direito. Mais uma vez se joga a sorte do Universo entre os falsos rumos e o culto verdadeiro, entre os ídolos dos barbaros e o symbolo dos christãos, entre o paganismo dos conquistadores que dividiu os homens em senhores e captivos, e o espiritualismo dos martyres que irmanou os homens na caridade, entre o verbo da força e o Verbo de Deus. Por elle clama aos céos o sangue vertido no martyrologio destes dois annos, por elle, senhores, pelo espirito que se liberava, no principio dos tempos, sobre a desordem chaotica dos elementos, e agora baixará sobre a desordem chaotica dos interesses, para extrahir desta anarchia um mundo regido pelas leis da consciencia, como daquella suscitou um mundo ordenado pelas leis da materia. Na ordem material, como na ordem moral, SÓ o espirito organiza, só o espirito regenera, só o espirito cria. Nas Mensagens d Nação Allemã, que INTERNACIONAL. 137 escrevia, em 1808, entre as dolorosas provações de sua patria, Fichte appellava do poder da força para o poder do espirito. E' da força para o espirito que nós appellamos tambem; e não o poderíamos fazer em expressões mais sentidas ou verdadeiras. "Não luteis," dizia elle, "por conquistar com armas corporeas; mas tendo-vos firmes e erectos na dignidade do espirito ante os vossos antagonistas. Vosso é o destino superior de fundar o imperio do espirito e da razão, destruindo aos rudes poderes da materia o seu domínio de regedores do mundo. . . . Sim: em todas as nações ha intelligencias, nas quaes não calará jamais a crença de que as grandes promessas, feitas, á especie humana, de um reino do Direito, da Razão e da Verdade, sejam illusões vãs. Essas intelligencias nutrem a convicção de que este regimen de ferro é apenas uma transição para ura Estado mais bem constituído. Em vós confiam esses e, com elles, as raças mais novas da humanidade. Em sossobrando vós, comvosco sossobraria na 138 PROBLEMAS DE DIREITO humanidade a esperança de uma regeneração futura." Estas palavras, reiteradas agora, cento e cinco annos depois, não teem senão que variar de endereço. O philosopho tinha razão. O patriota não tinha. As raças mais novas confiam em si mesmas. E' em si propria que a humanidade espera. A ella é que nos dirigimos. E quando o reino do espirito vier, será pelo enlace da liberdade européa com a liberdade americana, em uma communhão hostil á guerra e armada contra ella, de garantias inquebrantaveis. — 62 — á acquisição de direitos; ao passo que Lassalle (1) a applaudiu não pensando do mesmo modo. 52. Lassalle refuta a Savigny dizendo que a sua distincção repousa apenas em abstractas categorias intellectuaes, que não servem de segura base, e accrescenta que as leis, con-forme sejam consideradas sob o ponto de vista do individuo ou do objecto, podem classificar-se como leis sobre acquisição de direitos, no primeiro caso, e no segundo, como leis sobre existencia de direitos. Realmente se nota, na obra de Savigny, um certo arbítrio no classificar as leis em uma ou em outra categoria. (2) 53. Quanto á não retroactividade das leis que se referem á acquisição de direitos, é doutrina perigosa e falsa, porque essas leis têm por objecto relações jurídicas entre pessoas de terminadas, e, como já longamente demonstrámos ao expôr a verdadeira theoria, é certo que nem todas as relações de direito produzem direito adquirido, e quando não ha um direito adquirido, sabemos que as leis novas retrotrahem o seu effeito. 54. Entretanto, se não é possível accei-tar como um principio fundamental da theoria da retroactividade a distincção a que acabamos de alludir, devemos, todavia, reconhecer a grande (1) Lassalle, cit. p. 289. (2) Windscheid.—Dirit delle Pandette (trad ital.) v. I § 32 nota 6. — 63 — Importancia da doutrina savigniana, já pelas vastas idéas com que ella enriqueceu o assumpto, já porque aprofundou a noção do direito adqui-rido, distinguindo-o das simples faculdades e das meras espectativas. Releva notar, porém, que Savigny, ad-Imittindo ao seu principio, para justificar a am-pliaçào ou a restricção da efficacia da lei nova, certas excepções que, segundo elle, devem ser determinadas expressamente pelo legislador, (1) deixa vacillantes as bases da sua doutrina, che gando mesmo ás vezes a perdel-as de vista. E é digno de nota, que, nos resultados praticos da applicação das leis novas, e nas consequencias finaes de suas minuciosas lucubrações, Savigny, em regra geral, põe-se de accordo com a verdadeira theoria do respeito ao direito adquirido. Isto nos permitte observar com Gabba que, attendendo mais aos factos que ás pala- vras, pode-se dizer que a verdadeira doutrina de Savigny não é aquella que parece contida nas formulas por elle inventadas; é, porém, uma doutrina muito mais simples, e que todospodem comprehender, isto é, que, em regra geral, todas as leis se podem applicar a consequencias de factos e relações juridicas anteriores, desde que com isso não se offendam direitos adquiridos. (2) (l) Savigny, cit. 397. (2) Gabba, cit. p. 170.