AS TERRAS DEVOLUTAS E O NOVO CÓDIGO CIVIL
Denis Domingues Hermida
Advogado, especialista em Direito da Economia e da Empresa pela
Fundação Getúlio Vargas/SP, especialista em Direito Tributário pelo
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e Mestre em Direito
Constitucional pela PUC/SP e Doutorando em Direito do Trabalho
pela PUC/SP
Sumário : 1. Introdução. 2. Conceito e classificação de bem público. 2.1.Conceito
de bem público. 2.2. Classificação dos bens públicos (de uso comum, de uso
especial e dominiais). 2.2.1. Os bens públicos de uso comum. 2.2.2. Os bens
públicos de uso especial. 2.2.3. Os bens públicos dominicais 3. Conceito de terras
devolutas. 4. Terras devolutas como bem público 5. Terras devolutas e o usucapião
5.1. O usucapião de bens públicos na Constituição Federal de 1988 5.2. O
usucapião de bens públicos no novo código civil 6. Conclusão
1 - Introdução
O presente estudo tem como objetivo analisar a situação jurídica das terras
devolutas frente às alterações trazidas pelo novo código civil. Isso se faz em razão da
nova codificação ter, em seus artigos 98 a 103, emitido normas a respeito dos bens
públicos, sendo necessária uma nova leitura não só do conceito de bem público, como
também do conteúdo de suas modalidades.
No sentido de cumprir com os seus objetivos, este trabalho abordará temas sobre
o conceito de bem público e as suas modalidades, o conceito de terras devolutas e o seu
enquadramento na classe dos bens públicos e a atual situação jurídica das terras
devolutas no que se refere às suas destinação, forma de alienação e relevância na
realização da política agrária e no plano nacional de reforma agrária.
Sob o pano de fundo de análise das terras devolutas, o presente trabalho pretende
fazer uma nova leitura da situação jurídica do bem público no Brasil.
1
2- Conceito e classificação de bem público
É importante para esse nosso estudo posicionarmos as terras devolutas frente ao
direito de propriedade pública. Assim, abordaremos na presente parte o conceito de bem
público e a sua classificação para, após, fixando o conceito de “terras públicas”,
verificarmos serem ou não estas espécie de bem público.
2.1 – Conceito de bem público
O conceito de ‘domínio público’ é de crucial importância no estudo dos bens
públicos, isto porque, se é verdade que o Estado exerce, em decorrência de sua
soberania, poder sobre tudo aquilo que se encontre em seu território, não menos
verdadeiro é que existe diferença no conteúdo e no exercício desses poderes quando se
trata de bem particular e quando se trata de bem público.
Desde já esclarecemos que o sentido que adotamos nesse trabalho para a
expressão ‘domínio público’ é diferente daquele apontado por Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, para quem a denominação ‘domínio público’ é utilizada para designar os bens
afetados a um fim público, que compreendem os bens de uso comum e os de uso
especial1.
Utilizamos ‘domínio público’ no sentido adotado por Hely Lopes Meirelles, para
quem “o Estado, como Nação politicamente organizada, exerce poderes de Soberania
sobre todas as coisas que se encontram em seu território. Alguns bens pertencem ao
próprio Estado; outros, embora pertencentes a particulares, ficam sujeitos às
limitações administrativas impostas pelo Estado; outros, finalmente, não pertencem a
ninguém, por inapropriáveis, mas sua utilização subordina-se às normas estabelecidas
pelo Estado. Este conjunto de bens sujeitos ou pertencentes ao Estado constitui o
domínio publico, em seus vários desdobramentos(...)”2
1
DI PIETRO, MariA Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo : Editora Atlas, 8a edição, 1997,
p. 427
2
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo : Malheiros Editora, 22a
edição, 1997, p. 432
2
O ‘domínio público’ possui duas acepções, o domínio público eminente e o
domínio público patrimonial, sendo que o primeiro se refere ao poder estatal de
regulamentar todas as coisas de interesse público, inclusive os bens do patrimônio
privado, tendo como fonte o exercício dos poderes de Soberania, e o segundo é
entendido como o poder de dominação do Estado sobre os bens do patrimônio público,
exteriorizando-se em efetivo direito de propriedade.
Partimos, agora, para o conceito de bens públicos, que são aqueles submetidos
ao domínio público patrimonial, sobre o qual o Estado exerce efetivo direito de
propriedade.
Washington de Barros Monteiro, após afirmar que “juridicamente falando, bens
são valores materiais ou imateriais, que podem ser objeto de uma relação de direito. O
vocábulo, que é amplo no seu significado, abrange coisas corpóreas e incorpóreas,
coisas materiais ou imponderáveis, fatos e abstenções humanas”3, aponta para a
existência de numerosas categorias de bens, quais sejam : dos bens considerados em si
mesmos, dos bens reciprocamente considerados, das coisas que estão fora do comércio,
do bem de família e, finalmente, dos bens públicos e particulares. Quanto a essa última
categoria, Barros Monteiro aponta que, para a distinção entre bens públicos e bens
privados, as coisas são consideradas em relação aos respectivos proprietários, sendo
“públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados, ou aos
Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que
pertencerem”4.
Os administrativistas, a seu turno, não se afastam do conceito apontado por
Barros Monteiro, dando, entretanto, em seus conceitos, especial atenção às entidades
publicas detentoras dos bens públicos, bem como o regime especial a que são
subordinados tais bens.
José Cretella Júnior conceitua bem público como “o conjunto das coisas móveis
e imóveis de que é detentora a Administração, afetados quer a seu próprio uso, quer ao
uso direto ou indireto da coletividade, submetidos a regime jurídico de direito público
derrogatório e exorbitante do direito comum”5.
Hely Lopes Meirelles, a seu turno, ensina que “bens públicos, em sentido
amplo, são todas as coisas, corpóreas ou incorpóreas, imóveis, móveis e semoventes,
3
BARROS MONTEIRO, Washington de. Curso de Direito Civil. 1o Volume. São Paulo : Editora
Saraiva, 1995, p. 135
4
Op. Cit. p. 152
5
CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado do domínio público. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1984, p. 29
3
créditos, direitos e ações, que pertençam, a qualquer título, às entidades estatais,
autárquicas, fundacionais e paraestatais”6.
Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “bens públicos são todos os bens
que pertencem as pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito
Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público(estas
últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem),
bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação
de um serviço público”7 e, complementa que “a noção de bem público, tal como
qualquer outra noção de direito, só interessa se for correlata a um dado regime jurídico.
Assim, todos os bens que estiverem sujeitos ao mesmo regime público deverão ser
havidos como bens públicos”8
A Constituição Federal de 1988 não conceitua ‘bem público”, mas tão somente
elenca nos seus artigos 20 e 26 quais seriam os bens da União e dos Estados Federados,
sendo certo que, no que tange aos bens dos Estados, o conteúdo do artigo 26 da Lei
Maior não é taxativo, é o que se conclui da leitura do referido artigo que consta do seu
caput que “Incluem-se entre os bens dos Estados...”, não afastando, assim, a existência
de outros bens do Estado. Quanto aos municípios, não há especificação constitucional
quanto ao elenco de seus bens, parecendo-nos que o Constituinte adotou a técnica de,
delimitando os bens da União e dos Estados Federados, deixar ao campo residual o
conjunto de bens municipais.
O Novo Código Civil, conforme seu artigo 98, conceitua bens públicos como
“os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público
interno” e, ainda, apresenta no seu artigo 99 os “”bens públicos’ como um gênero
compostos por três espécies, quais sejam : os bens públicos de uso comum, os bens
públicos de uso especial e os bens públicos dominicais. Em realidade, o artigo 99 do
Código Civil de 2002 manteve a mesma estrutura contida no artigo 66 da Codificação
de 1916, inovando, entretanto, com a inclusão das Autarquias no inciso II do artigo 99 e
as entidades paraestatais9 no parágrafo único do mesmo artigo.
6
Op. Cit. p. 435
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo : Malheiros
Editores, 15a edição refundida, ampliada e atualizada atté a Emenda Constitucional 39, de 19.12.2002, p.
779
8
Op. Cit. p. 780
9
Quanto ao significado do termo ‘paraestatais” existe divergência na doutrina quanto ao seu conteúdo,
sendo que adotamos o conceito de Hely Lopes Meirelles (Op.cit. p. 321), para quem “Entidades
paraestatais são pessoas jurídicas de Direito Privado cuja criação é autorizada por lei específica (CF, art.
37, XIX e XX), com o patrimônio público ou misto, para a realização das atividades, obras ou serviços de
7
4
Especificamente no que tange às paraestatais, o parágrafo único do artigo 99 do
Novo Código Civil (“ Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais bens
pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de
direito privado”), há que se analisar o conteúdo do mesmo de acordo o inciso I do
parágrafo 1o do artigo 173 da Constituição Federal de 1988 (acrescido pela Emenda
Constitucional no. 19, de 4-6-1998), in verbis :
“ Art. 173, § 1º . A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa
pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que
explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens
ou de prestação de serviços, dispondo sobre :
II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas,
inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e
tributários;”
Ora, se, conforme expõe BANDEIRA DE MELLO, “a noção de bem público, tal
como qualquer outra noção de direito, só interessa se for correlata a um dado regime
jurídico. Assim, todos os bens que estiverem sujeitos ao mesmo regime público deverão
ser havidos como bens públicos”10, o conteúdo do parágrafo único do artigo 99 do
Código Civil, ao impor tratamento de “bem público” aos bens pertencentes a pessoa
jurídica de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado, parece-nos
inconstitucional. Se o que caracteriza o bem público é a sua sujeição ao regime jurídico
especial (público) e a Lei Fundamental impõe que empresas públicas e sociedades de
economia mista que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de
bens ou de prestação de serviços terão, na forma de lei regulamentadora, sujeição a
regime jurídico privado, não pode o Código Civil, legislação de natureza
infraconstitucional, impor que os bens de tais entidades públicas sejam considerados
públicos e, por decorrência, estejam sujeitos ao regime jurídico público.
Nesse compasso de pensamento, é interessante apontarmos a juridicidade das
normas jurídicas programáticas (classe em que se enquadra o parágrafo 1o do artigo 173
da Constituição Federal) e a sua capacidade de levar à inconstitucionalidade de norma
jurídica infraconstitucional que se oponha ao seu conteúdo (hipótese em que, como
entendemos, enquadra-se o parágrafo único do artigo 99 do Código Civil), sendo que
interesse coletivo, sob normas e controle do Estado, incluindo-se entre elas as empresas públicas, as
sociedades de economia mista e os serviços sociais autônomos.
10
Op. Cit. p. 780
5
para isso nos utilizamos do magistério de José Afonso da Silva que, citando Vezio
Crisafulli, afirma que :
“Crisafulli, que dissecou sucessivamente a temática das normas programáticas,
sustentou-lhes a juridicidade (e a eficácia, ainda que reduzida), argumentando que
enunciam verdadeiras normas jurídicas e, por isso, são tão preceptivas como as
outras; regulam comportamentos públicos destinados, por sua vez, a incidir sobre as
matérias que lhes são objeto, sendo, nesse limite, vinculantes, como conseqüência
da eficácia formal prevalecente da fonte (a Constituição), no que respeita às leis
ordinárias, pelo que estas, se anteriores e contrárias, ficam invalidadas, se
posteriores e conflitantes, são inconstitucionais”11
E continua DA SILVA a respeito do caráter imperativo das normas
programáticas :
“ Ora, se elas impõem certos limites à autonomia de determinados sujeitos,
privados ou públicos, se ditam comportamentos públicos em razão dos interesses a
serem regulados, nisso claramente se encontra seu caráter imperativo;
imperatividade que se afere nos limites de sua eficácia reduzida, mas sempre
imperatividade.”12
Por fim, o constitucionalista paulista avalia o tema “normas programáticas e
constitucionalidade das leis, ensinando que :
“ Assim, descortina-se a eficácia das normas programáticas em relação à
legislação futura, devendando, aí, sua função de condicionamento da atividade
do legislador ordinário, mas também da administração e da jurisdição, cujos atos
hão de respeitar os princípios nela consagrados (...) Qualquer lei, que atente
contra algum desses princípios, deve ser declarada inconstitucional.”13
Sobre o parágrafo único do artigo em discussão, o mesmo BANDEIRA DE
MELLO entende que “ a redação do dispositivo é outra, e grosseiramente errada, visto
que, de acordo com ela : “Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os
bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura
de direito privado”. Ora, não há, nem pode haver, pessoa de direito público que tenha
estrutura de direito privado, pois a estrutura destas entidades auxiliares é um dos
elementos para sua categorização como de direito público ou de direito privado”14.
11
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo : Editora Revista dos
Tribunais, 1982, 2a edição, revista e atualizada, pp. 136/137
12
Op. Cit. p. 137
13
Op. Cit. pp. 141-143
14
Op. Cit. p. 780
6
Respeitamos o posicionamento supracitado, entretanto, entendemos que,
tratando-se de empresas públicas e de sociedades de economia mista, é logicamente
possível a existência de estrutura de direito privado, como inclusive consta do inciso II
do parágrafo 1o do artigo 173 da Lei Maior, havendo, na verdade, inconstitucionalidade
do texto do código civil em comentário.
Do todo o exposto, parece-nos pertinente uma conceituação final de ‘bens
públicos’ como sendo o conjunto de bens - entendidos como valores materiais ou
imateriais que podem ser objeto de uma relação jurídica, incluindo-se nesses valores as
coisas corpóreas ou incorpóreas, materiais ou imateriais – que fazem parte do domínio
público patrimonial, isto é, do patrimônio dos Entes Públicos, nesses se incluindo os
Entes Públicos da Administração Pública Direta (União, os Estados Federados, os
Municípios e o Distrito Federal) e da administração pública indireta (Autarquias,
Fundações Públicas, Empresas Públicas, os Serviços Autônomos, as Sociedades de
Economia Mista e as Empresas Públicas, sendo que as duas últimas desde que não se
enquadrem na hipótese do parágrafo 1o do artigo 173 da Constituição Federal, isto é,
desde que não explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens
ou de prestação de serviços).
2.2 – Classificação dos bens públicos (de uso comum, de uso especial e dominiais)
Apresentado o conceito de bens públicos, partimos agora para a classificação
dos mesmos. As doutrinas civilista e administrativista classicamente classificam os bens
públicos em : bens de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais .
Verdadeiro é que muitos administrativistas, sem afastar a pertinência da
classificação clássica, também agregam outras classificações, como, por exemplo,
Maria Sylvia Zanella Di Pietro15 que classifica os bens públicos em bens de domínio
público do Estado e bens de domínio privado do Estado e José Cretella Júnior16 em bens
do patrimônio disponível e bens do patrimônio indisponível.
A despeito da existência das demais classificações, muitas, inclusive, decorrendo
de reorganização da classificação clássica, fixaremos a nossa atenção para os conceitos
de bens de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais, entendendo ser ela a
15
Op. Cit. pp. 425-430
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro : Editora Forense, 13a
edição, 1995, p. 556
16
7
mais interessante para o objeto de nosso estudo, vez que é a classificação utilizada pelo
novo código civil no seu artigo 99, in verbis :
“Art. 99. São bens públicos :
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e
praças;
II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a
serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual,
territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas
de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma
dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se
dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a
que se tenha dado estrutura de direito privado
Aliás, essa classificação já foi a utilizada pelo Código Civil de 1916 no seu
artigo 66, sendo, pois, uma tradição da codificação civil brasileira a sua adoção. Feita
essa introdução, avancemos para a investigação quanto ao conceito de cada uma dessas
espécies de bens públicos.
2.2.1 – Os bens públicos de uso comum
O código civil, no inciso I de seu artigo 99, no objetivo de conceituar os bens de
uso comum do povo, afirma serem “os de uso comum do povo, tais como rios, mares,
estradas, ruas e praças”, elencando alguns desses bens com objetivo exemplificativo, e
não taxativo, para que, a partir dessa amostra exemplificativa, os juristas pudessem
construir o conceito de tal modalidade de bem público obedecendo aos limites fixados
pela exemplificação legal.
Aliás, sobre o papel do cientista do Direito frente ao direito positivo, pertinente é
a transcrição do magistério de Paulo de Barros Carvalho, para quem “ o objeto da
Ciência do Direito há de ser precisamente o estudo desse feixe de proposições, vale
dizer, o contexto normativo que tem por escopo ordenar o procedimento dos seres
humanos, na vida comunitária. O cientista do Direito vai debruçar-se sobre o universo
das normas jurídicas, observando-as, investigando-as, interpretando-as e descrevendoas segundo determinada metodologia. Como ciência que é, o produto de seu trabalho
terá caráter descritivo, utilizando uma linguagem apta para transmitir conhecimento,
comunicar informações, dando conta de como são as normas, de que modo se
8
relacionam, que tipo de estrutura constróem e, sobretudo, como regulam a conduta
intersubjetiva”17 e, ainda afirma Barros Carvalho, “enquanto é lícito afirmar-se que o
legislador se exprime numa linguagem livre, natural, pontilhada, aqui e ali, de
símbolos científicos, o mesmo já não se passa com o discurso do cientista do Direito.
Sua linguagem, sobre ser técnica, é científica, na medida em que as proposições
descritivas que emite vêm carregadas da harmonia dos sistemas presididos pela lógica
clássica, com as unidades do conjunto arrumadas e escalonadas segundo critérios que
observam, estritamente, o princípios da identidade, da não contradição e do meio
excluído, que são as três imposições formais do pensamento, no que concerne
proposições apofânticas”18.
Sobre a enumeração contida na descrição feita pelo Código Civil, Washington
de Barros Monteiro afirma que não se deve perder de vista que “a enumeração é
meramente exemplificativa, tanto que são também do domínio público todos os animais
e vegetais que se encontrem em águas dominiais (Dec-Lei no. 221, de 28-2-1967, art.
4o, com redação determinada pela Lei 5.438, de 20-5-1968)”19.
Somando-se ao inciso II do seu artigo 99, a moderna codificação civil brasileira
impôs, no seu artigo 103, que “o uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou
retribuído, conforme estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração
pertencerem”, razão pela qual não podemos vincular a modalidade de bem público em
estudo ao caráter “gratuito” do seu uso.
Hely Lopes Meirelles no trabalho de os conceituar os bens de uso comum, a
quem também denomina “bens de domínio público”, afirma que “os locais abertos à
utilização pública adquirem esse caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição
própria do povo” e complementa, citando Rui Cirne Lima, que sob esse aspecto “pode o
domínio público definir-se como a forma mais completa da participação de um bem na
atividade de administração pública. São os bens de uso comum, ou do domínio público,
o serviço mesmo prestado ao público pela Administração, assim como as estradas, ruas
e praças”20
José Cretella Júnior, após remontar a origem romana de tal espécie de bens
públicos, apresenta conceito que realça as características dos usuários de tais bens :
“bens de uso comum são todas as coisas imóveis ou móveis sobre as quais o público,
17
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo : Saraiva, 1995, pp. 2
Op. Cit. p. 3
19
Op. Cit. p. 153
20
Op. Cit. P. 437
18
9
anonimamente, coletivamente, exerce direitos de uso e gozo, como, por exemplo, os que
recaem sobre estradas ruas, rios, costa do mar. Qualquer pessoa, nacional ou
estrangeira, quisque de populo, sem identificação, sem título, anonimamente, pode
utilizar-se das ruas e estradas, usufruindo-as, sem que possa ser impedido,
legitimamente, por outro particular ou pelo poder público”21. Celso Antônio Bandeira
de Mello, seguindo a mesma esteira, entende que os bens de uso comum são aqueles
qualificados pela destinação “ao uso indistinto de todos”22.
Sem embargo do que aponta a doutrina, interessante é destacarmos dois
pontos que também nos parecem essenciais na fixação do conceito de bem público de
uso comum, que são :
-
a possibilidade de exigência de retribuição pela utilização dos bens públicos de uso
comum, prevista pelo artigo 103 do Código Civil, e
-
a possibilidade de fixação de requisitos, além do patrimonial, para a utilização de
tais bens, como, por exemplo, a proibição de trânsito de determinados tipos de
veículos por determinada estrada, a restrição de acesso a determinados setores de
parques públicos, entre outros.
A imposição de tais requisitos é fundada no domínio público eminente que,
como já analisamos, é poder estatal de regulamentar todas as coisas de interesse
público, inclusive os bens do patrimônio privado, tendo como fonte o exercício dos
poderes de Soberania, não se fundando em direito de propriedade, mas em efetivo poder
de polícia que, como dispõe o artigo 78 da Lei 5.172 de 25.10.1966 (Código Tributário
Nacional), é “a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando
direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de
interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício das atividades econômicas
dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou
ao respeito à propriedade e aos direitos individuais e coletivos”.
Feitas essas observações, conceituamos bem de uso comum como todas as
coisas móveis ou imóveis que, sendo públicas, servem-se ao uso indistinto por todos, de
21
22
Op.cit. p. 557
Op. Cit. p. 780
10
forma gratuita ou mediante retribuição, com a possibilidade de restrição de uso em
razão do poder de polícia exercidos nos estritos termos do artigo 78 da Lei 5.172/66.
2.2.2 – Os bens públicos de uso especial
O código civil, no item II de seu artigo 99 – “ os de uso especial, tais como
edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal,
estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias” -, tal como acontece
com os bens de uso comum, entendeu por bem apresentar o bem público de uso especial
elencando alguns exemplos, para que, a partir daí, a doutrina pudesse descrever o
conceito de tal espécie do gênero “bem público”.
Estudando os bens de uso especial, Lopes Meirelles, que também denomina tal
categoria de bens públicos como “patrimônio administrativo” ou “bens patrimoniais
indisponíveis”, esta última denominação em razão de possuirem uma finalidade pública
permanente, enuncia que são eles “os que se destinam especialmente à execução dos
serviços públicos e, por isso mesmo, são considerados instrumentos desses serviços; não
integram
propriamente
a
Administração,
mas
constituem
o
aparelhamento
administrativo, tais como edifícios das repartições públicas, os terrenos aplicados aos
serviços públicos, os veículos da Administração, os matadouros, os mercados e outras
serventias que o Estado põe à disposição do público, mas com destinação especial” 23.
Criticando a expressão “uso especial” “porque se confunde com outro sentido
em que é utilizada para indicar o uso privativo de bem público por particular e também
para abranger determinada modalidade de uso comum sujeito a maiores restrições,
como pagamento de pedágio e autorização para circulação de veículos especiais”24, Di
Pietro, dando especial atenção ao necessário enfoque da expressão serviço
da
administração, ensina que quando se fala que o bem de uso especial está afetado à
realização de um serviço público, “tem-se que entender a expressão “serviço público”
em sentido amplo, para abranger toda atividade de interesse geral exercida sob a
autoridade ou sob fiscalização do poder público”; nem sempre se destina ao uso direto
23
24
Op. Cit. p. 437
Op. Cit. p. 427
11
da Administração, podendo ter por objeto o uso por particular, como ocorre com o
mercado municipal, o cemitério, o aeroporto, a terra dos silvícolas etc.”25.
José Cretella Júnior entende bens de uso especial como sendo “todas as coisas
imóveis (casas, terrenos) ou móveis (máquinas, mobiliário) sobre as quais o estado
exerce direitos de uso e gozo, normalmente, podendo, entretanto, outorgar-lhes a
utilização ao particular, privativamente, mediante os institutos da admissão,
autorização, permissão ou concessão”26. Constata-se da leitura dos ensinamentos de
Cretella Júnior que não houve uma preocupação em centrar o conceito de bens de uso
especial na sua destinação a serviço público, afastando-se do constante do inciso II do
artigo 99 do novo código civil (e do inciso I do artigo 66 do código civil de 1916, que
foi copiado literalmente pelo legislador civil de 2002).
Entendemos que, ante a redação do código civil relativa aos bens públicos de
uso especial, não há como se afastar a sua afetação a serviço púbico como elemento
essencial à sua conceituação, motivo pelo qual entendemos que bem público de uso
especial é a classe formada pelo conjunto de bens que é utilizado como instrumento para
o exercício de um serviço público, seja pela administração pública direta, seja pela
administração pública indireta, incluindo-se aqueles que tem por objeto o uso por
particular, como ocorre, na exemplificação de Di Pietro27, com o mercado municipal, o
cemitério, o aeroporto e a terra dos silvícolas.
2.2.3 – Os bens públicos dominicais
O código civil de 2002, no inciso III do seu artigo 99, praticamente repetiu os
termos do inciso III do artigo 66 do Código Bevilácqua, substituindo a expressão “ que
constituem o patrimônio da União dos estados, ou dos Municípios” pela “que
constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público”. Tal modificação se
deve à evolução da administração pública, especialmente no que tange à expansão dos
órgãos tanto da administração pública direta, onde se integraram as autarquias e as
fundações públicas, como da administração pública indireta, como se verifica do
próprio conteúdo do parágrafo único do artigo 99 do novo código.
25
Op. Cit. p. 428
Op. Cit. p.557
27
Op. Cit. p. 428
26
12
A comparação entre os textos do novo código e do código de 1916 é relevante,
principalmente tendo em vista que, como informa Miguel Reale28, a “Comissão
Revisora e Elaboradora do Código Civil, criada em 1969, fixou, entre as diretrizes na
elaboração do anteprojeto do novo código civil, a “preservação do Código vigente
sempre que possível, não só pelos seus méritos intrínsecos, mas também pelo acervo de
doutrina e de jurisprudência que em razão dele se constitui” e a “orientação de somente
inserir no Código matéria já consolidada ou com relevante grau de experiência crítica”,
motivo pelo qual há que se considerar as modificações acima citadas no trabalho
interpretativo do inciso II do artigo 99 do Novo Código Civil, especialmente no que
tange ao rol de pessoas jurídicas de direito público cujos bens se enquadram no conceito
de bens públicos dominicais.
Celso Antônio Bandeira de Mello, tratando dos bens dominicais, também
denominados dominiais, afirma que “são os próprios do Estado como objeto de direito
real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especiais, tais os terrenos ou terras
em geral, sobre os quais tem senhoria, à moda de qualquer proprietário, ou que, do
mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal. O parágrafo único do citado
artigo pretendeu dizer que são considerados dominicais os bens das pessoas da
Administração indireta que tenham estrutura de direito privado, salvo se a lei dispuser
em contrário”29
Maria Sylvia Zanella Di Pietro aponta as características principais dos bens
públicos dominiais, que serão relevantes na procura do conceito de tais bens, a que
denomina como bens de “domínio privado do Estado”. Transcrevamos a lição da
Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo :
“Tradicionalmente, apontam-se as seguintes características para os bens
dominiais :
1- comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a
assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são
afetados a uma destinação de interesse social; a conseqüência disso é que a
gestão dos bens dominicais não era considerada serviço público, mas uma
atividade privada da Administração;”
28
REALE, Miguel. Visão geral do novo código civil. Jus navegandi, Teresina, a.6, n.54, fev. 2002.
Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2718. Acesso em : 15 mar. 2004
29
Op. Cit. p. 780
13
2submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a
Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário
privado.”30
Entende que, hoje, a natureza dos bens dominiais não é
exclusivamente patrimonial, já que a sua administração pode visar,
paralelamente, a objetivos de interesse geral. sendo que tais bens são
freqüentemente utilizados como sede de obras públicas e também cedidos a
particulares para fins de utilidade pública.”31
Hely Lopes Meirelles ensina que bens dominiais “são aqueles que, embora
integrando o domínio público como os demais, deles diferem pela possibilidade sempre
presente de serem utilizados em qualquer fim ou, mesmo, alienados pela Administração,
se assim o desejar” e, continua o Saudoso Mestre, além dos bens originariamente
integrantes do patrimônio disponível da Administração, ”por não terem uma destinação
pública determinada, nem um fim administrativo específico, outros poderão ser
transferidos, por lei, para esta categoria, ficando desafetados de sua primitiva finalidade
pública, para subseqüente alienação” 32.
O caráter de exclusão dos bens dominiais também é realçado por Lopes
Meirelles, para quem “todas as entidades públicas podem ter bens patrimoniais
disponíveis, isto é, bens não destinados ao povo em geral, nem empregados no serviço
público, os quais permanecem à disposição da Administração para qualquer uso ou
alienação, na forma que a lei autorizar”33.
A partir da doutrina transcrita, já podemos afirmar que a principal característica
do bem público denominado como “dominial” é a sua não destinação pública
determinada, entendendo-se como “destinação pública” o uso indistinto típico dos bens
de uso comum ou o uso específico para serviço público característico dos bens de uso
especial. Isto é, para efeito de caracterização dos bens dominiais, entendemos que
devem inexistir as destinações públicas típicas de bens de uso comum ou de bens de uso
especial, nada impedindo que o direito positivo pátrio determine uma destinação aos
bens dominiais, como acontece com as terras públicas no caput do artigo 188 da
Constituição Federal - “a destinação de terras públicas e devolutas será
compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” -
30
Op. Cit. pp. 430/431
Op. Cit. pp. 430/431
32
Op. Cit. pp. 437/438
33
Op. Cit. p. 438
31
14
ou impondo requisitos para a sua alienação para determinados fins, como acontece no
parágrafo 1o do mesmo artigo 188 da Lei Maior - “a alienação ou a concessão, a
qualquer título, de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares a
pessoa física ou jurídica, ainda que por interposta pessoa, dependerá de prévia
aprovação do Congresso Nacional”-.
Existem duas espécies de bens dominicais, os que são tipicamente dominicais
por não possuirem uma destinação pública específicas de bens de uso comum ou de uso
especial, e aqueles que são desafetados, sendo transferidos de outra categoria para a
dominical.
Não concordamos com a afirmação de que os bens dominiais não possam ter
finalidade social. Tais bens não possuem as destinações públicas dos bens de uso
comum e de uso especial, mas nada impede que se fixe um fim social para tais bens,
como acontece no já transcrito caput do artigo 188 da Carta de 1988.
Por outro lado, é patente o caráter de exceção dos bens dominiais. Melhor
esclarecendo, uma vez enquadrado o bem no conceito de bem público, se não se
compatibiliza com as destinações típicas dos bens de uso comum e de uso especial,
então é certa a sua característica de bem dominial.
Finalmente, enquanto o código civil de 1916 fixava a regra de inalienabilidade a
todos os bens públicos, inclusive os dominicais, especificando no seu artigo 67 que os
bens públicos somente “perderão a inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e
forma que a lei prescrever”, o Novel Código Civil, no artigo 101, prevê que “os bens
públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei” e que os
“bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto
conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar”, isto é a regra da
alienabilidade dos bens dominicais.
3 – Conceito de terras devolutas
Dentro de nossa meta, que é analisar a situação jurídica das terras devolutas
frente às alterações trazidas pelo novo código civil, é necessário encontrarmos o
conceito de terras devolutas para que, após, possamos verificar o seu enquadramento no
conceito de bem público e a sua sujeição ao conteúdo do artigo 102 do novo código
civil que impõe a não sujeição dos bens públicos a usucapião.
15
Uma
investigação
mais
efetiva
sobre
terras
devolutas
deve
partir
necessariamente do conceito de terras públicas. Dirley da Cunha Júnior em sua
monografia intitulada “Terras devolutas nas constituições republicanas” ensina que
“isoladamente tomada, a expressão terras públicas é gênero. É o que se pode chamar de
terras públicas lato sensu. Nesse sentido amplo, são terras públicas todas aquelas
pertencentes ao poder público, ou seja, são bens públicos determinados ou
determináveis que integram o patrimônio público”34. Ainda quanto ao significado lato
da expressão terras públicas, citamos De Plácido e Silva, para quem “ao contrário das
terras particulares, as terras públicas são aquelas que ainda pertencem ao domínio
público, sejam ou não destinadas a fins ou uso público”35.
Quanto às espécies do gênero terras públicas, existem duas espécies do gênero
“terras públicas lato sensu”, que são: as terras públicas stricto sensu e as terras
devolutas. Enquanto as terras públicas stricto sensu são os bens determinados que
compõem o patrimônio público como bem de uso especial ou patrimonial, as terras
devolutas caracterizam-se pela não determinação (apesar de serem determináveis) e pela
ausência de uma destinação pública típica dos bens de uso especial ou dos bens de uso
comum e, como veremos mais a frente, pela sua natureza histórica. Assim, na busca de
um conceito de terras devolutas devemos sempre ter em mente serem estas uma espécie
do gênero terras públicas.
A busca do conceito de terras devolutas sempre foi missão trabalhosa para a
doutrina, como se verifica das palavras de Adroaldo Furtado Fabrício : “É praticamente
impossível fixar-se uma conceituação jurídica positiva de terras devolutas, a partir da
legislação existente: a definição só se pode fazer por exclusão, e a sua característica é a
da inexistência de titulação." 36
Muitos, na busca insaciável para uma resposta rápida e prática, apresentaram
conceitos por demais vagos, baseados em características que não são capazes de
individualizar as devolutas frente aos demais bens e, em especial, bens públicos, como
se vê em Afonso Borges, para quem, “deixando de lado digressões doutrinárias, pode-se
34
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Terras devolutas nas Constituições Republicanas. Home page do Poder
Judiciário
Federal
do
Estado
do
Sergipe.
Aracaju.
Disponível
em
http://www.jfse.gov.br/obras%20mag/artigoterrasdevdirley.html . Acesso em : 18. maio. 2004
35
DE PlÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro : Editora Forense, 4a edição, 1975, p.
1542
36
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII. Tomo III. Rio de
Janeiro : Forense, 1981, p. 649.
16
conceituar como terras devolutas as do domínio privado do que não têm divisas certas,
não são determinadas na quantidade, nem jamais foram medidas e demarcadas”37.
Pinto Ferreira, em seus comentários à Constituição, constata que “duas correntes
doutrinárias e jurisprudenciais contradizem a matéria do domínio da União sobre as
terras devolutas. Uma corrente jurisprudencial minoritária considera como devoluta toda
a terra sobre a qual não recai título devidamente registrado da União (...). A Segunda
orientação é defendida por Pontes de Miranda, em seu Tratado de direito privado, bem
como por mais ampla jurisprudência (...). Ela pretende que o fato de o bem imóvel não
se encontrar registrado em nome do particular não signifique a terra seja devoluta. A
falta de registro imobiliário não significa a caracterização do domínio público, não é o
suficiente para caracterizá-lo. É necessário que o Poder Público prove ser o de sua
propriedade (...).”38
Celso Antônio Bandeira de Mello entende “as terras devolutas como sendo as
que, dada a origem pública da propriedade fundiária no Brasil, pertencem ao Estado –
sem estarem aplicadas a qualquer uso público – porque nem foram trespassadas do
Poder Público aos particulares, ou, se o foram, caíram em comisso, nem se integraram
no domínio privado por algum título reconhecido como legítimo”39, em opinião
semelhante, Hely Lopes Meirelles afirma que “terras devolutas são todas aquelas que,
pertencentes ao domínio público de qualquer das atividades, não se acham utilizadas
pelo Poder Público, nem destinadas a fins administrativos específicos.”40
Entendemos que o conceito de terras devolutas deve ser buscado dentro de um
contexto histórico ou, melhor dizendo, a partir da origem história e do tratamento que
vem se dando a essa espécie de bens no decorrer dos tempos.
A história das terras devolutas confunde-se com a própria história da ocupação
das terras brasileiras. Quando da descoberta do Brasil por Portugal todo o território
brasileiro passou a ser do domínio da Coroa Portuguesa, cabendo a esta nortear as
formas de ocupação e de distribuição do território. A partir daí, Portugal começou a
conceder partes da terra do Brasil-Colônia através do regime das capitanias hereditárias,
que restou por fracassar, quando, então Dom João III criou, em 1548, o Governo-Geral.
37
BORGES, José Afonso. Terras devolutas e sua proteção jurídica. Goiânia : Oriente, 1976. P. 15
PINTO FERREIRA. Comentários à Constituição Brasileira, 1o volume. São Paulo : Editora Saraiva,
1989, p. 465
39
Op. Cit. P. 787
38
40
Op. Cit. P. 464
17
Tinham o poder de conceder sesmarias não só o Governador-Geral, mas também
os donatários e o Capitão-mor Martim Afonso de Souza, a quem fora concedido tal
poder pela Coroa Lusitana numa das três cartas régias trazidas por Martim Afonso para
o Brasil quando de sua expedição de 1530.
Pelo regime de sesmarias, ao sesmeiro era entregue uma porção de terra, a que
precisava ocupar e, em contraprestação, pagar o tributo do dízimo à Ordem de Cristo.
Em 1549 o regime de concessão de sesmarias sofreu alterações com a imposição do
pagamento de um “foro”, além do dízimo, e em 1795, com o Alvará de 05 de Outubro
daquele ano, passaram a ser exigidas medições e demarcações, além de restrições ao
tamanho das sesmarias concedidas. O não cumprimento das exigências para a
manutenção das sesmarias, levava a perda das mesmas pelo Sesmeiro. Finalmente, em
1822 o regime de concessão de sesmarias foi encerrado e, em 18 de setembro de 1850
foi promulgada a Lei número 601, que foi um verdadeiro divisor de águas na legislação
agrária brasileira, vez que com o encerramento do regime de sesmarias, surgiu um
“vácuo” na legislação que acabou por tornar confusa a situação fundiária no Brasil.
Esclareça-se que, com a independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, o
domínio das terras brasileiras passou a pertencer à nação brasileira.
A dita Lei 601 de 1850, denominada “Lei de Terras” é por demais importante,
vez que conceituou, à época, em seu artigo 3o, as terras jurídicas da seguinte forma :
“ Art. 3o. São terras devolutas :
§ 1o As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou
municipal
§2o As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo,
nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou
Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de
medição, confirmação e cultura.
§3o As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do
Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei
§4o As que não se acharem ocupadas por posses, que, apear de não se fundarem
em título legal, forem legitimadas por esta lei.”
Comentando a influência dessa legislação no conceito de terras devolutas, Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, afirma que, “pelo conceito legal, terras devolutas eram terras
vagas, abandonadas, não utilizadas quer pelo poder público quer por particulares. Essa
18
concepção corresponde ao sentido etimológico do vocábulo “devoluto” : devolvido,
vazio, desocupado “ e que “excluíam-se do conceito de terras devolutas : as utilizadas
pelo poder público, as que fossem objeto de sesmarias legítimas ou mesmo de sesmarias
ilegítimas, porém revalidáveis, e as que fossem objeto de posse (moradia e cultivo). As
demais eram consideradas devolutas” e, enfatiza, “não se pode dizer que fossem terras
sem dono, porque pertenciam ao patrimônio público, que poderia vende-las ou doá-las
(art. 1o)”41
Prosseguindo na análise histórica da regulação jurídica das terras devolutas, a
Constituição de 1891, a primeira da República, não se preocupou em conceituar as
terras devolutas, mas, sim, em afirmar a que entes federativos caberia o domínio sobre
tais bens, impondo a regra do domínio dos Estados sobre essas terras, cabendo à União
somente “a porção de território que for indispensável para a defesa das fronteira,
fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”, é o que se conclui da
leitura do artigo 64 da referida Carta Constitucional.
A Constituição de 1934 manteve o mesmo direcionamento da carta anterior,
determinado no inciso I de seu artigo 20 que são do domínio da União “os bens que a
esta pertencem, nos termos das leis atualmente em vigor, e o mesmo procedimento foi
adotado para os Estados que, na forma do inciso I do artigo 21, tinham o domínio sobre
“os bens da propriedade destes pela legislação atualmente em vigor, com as restrições
do artigo antecedente”. O mesmo tratamento foi mantido pela Constituição de 1937
que, em seus artigos 36 e 37, manteve a mesma redação dos artigos 20 e 21 da Carta de
1934.
Em 05 de setembro de 1946, foi editado o Decreto-Lei no. 9.760, que
aproveitando o conteúdo do artigo 3o da Lei 601 de 1850, elasteceu, em seu artigo 5o, o
conceito de terras devolutas. Eis o que disse o Decreto-Lei 9760 :
“Art. 5o – São terras devolutas, na faixa de fronteiras, nos Territórios
Federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem
aplicadas a algum uso público federal, estadual, territorial ou municipal,
não se incorporam ao domínio privado :
a) por força da Lei 601, de 18 de setembro de 1850, Decreto no. 1.318, de
30 de janeiro de 1854, e outras leis e decretos gerais, federais e
estaduais;
41
Op. Cit. p.466
19
b) em virtude de alienação, concessão ou reconhecimento por parte da
União ou dos Estados;
c) em virtude de lei ou concessão emanada do governo estrangeiro e
ratificada ou reconhecida, expressa ou implicitamente, pelo Brasil, em
tratado ou convenção de limites;
d) em virtude de sentença judicial com força de coisa julgada;
e) por se acharem em posse contínua e incontestada, por justo título e boa
fé, por termo superior a 20 (vinte) anos;
f) por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30(trinta) anos,
independentemente de justo título e boa fé;
g) por força de sentença declaratória proferida nos termos do artigo 148,
da Constituição Federal, de 10 de novembro de 1937.”
O Decreto-Lei 9.760, em realidade, repetiu o conteúdo da Lei 601, alterando os
requisitos da posse para ser considerada forma de incorporação ao domínio privado,
impondo, na existência de justo título, posse contínua e incontestada por tempo superior
a vinte anos e, inexistindo justo título, por mais de trinta anos. Também acresceu ao rol
dos bens incorporado pelo domínio privado aqueles bens cuja propriedade tinha sido
adquirida por sentença judicial transitada em julgado, as terras transmitidas ao particular
em virtude de lei ou de concessão feita por governo estrangeiro ratificada ou
reconhecida pelo Brasil e aquelas obtidas através do artigo 148 da Constituição de 1937,
que determinava que “todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano,
ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio,
um trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo com o seu trabalho e tendo
nele a sua morada, adquirirá o domínio, mediante sentença declaratória devidamente
transcrita”.
Acrescente-se que nessa transição entre a Lei 601 e o Decreto-lei 9.760 deve-se
levar em consideração também as terras que o Brasil adquiriu por compra ou permuta,
como aquelas referentes ao Estado do Acre, que, por óbvio, não estavam circunscritas
na regulamentação da lei de 1850.
As duas legislações que objetivaram conceituar as terras devolutas foram a Lei
601 e o Decreto-Lei 9.760, sendo que a legislação posterior normatizou as terras
devolutas sob um conceito já dado, já existente, sobre o qual não haveria mais o que se
acrescentar. Nesse compasso, a Constituição de 1946 limitou-se a determinar no seu
artigo 34 que “Incluem-se entre os bens da União : II – a porção de terras devolutas
indispensáveis à defesa das fronteiras, às fortificações, construções militares e estradas
de ferro”, o mesmo acontecendo na Constituição de 1967 que atribuiu à União,
conforme artigo 4o, inciso I, “a porção de terras devolutas indispensáveis à defesa
20
nacional ou essencial ao seu desenvolvimento econômico”, repetindo, a Emenda no. 01
de 1969 essa mesma redação.
A Constituição Federal de 1988, da mesma forma, dedicou-se somente à
distribuição do domínio das terras devolutas entre os entes federados, estatuindo no seu
artigo 20, inciso II, que “as terras devolutas indispensáveis à defesa das frontes, das
fortificações militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental”
cabem ao domínio da União e aos Estados cabem, na forma do artigo 6, inciso IV, “as
terras devolutas não compreendidas entre as da União”.
Assim, quando procuramos o conceito de terras devolutas, queremos encontrar
uma fórmula, uma regra, um conjunto de elementos que, analisados conjuntamente,
sejam capazes de individualizar o “ser” das terras devolutas, diferenciando-as dos
demais bens juridicamente tutelados, entendendo-se, após toda essa explanação, que o
conceito de terras devolutas deve ser extraído da análise conjunta da Lei 601 de 1850 e
do Decreto-Lei 9.760 de 1946, sendo a classe de bens formada pela terras adquiridas
pelo Brasil, seja em decorrência da sua independência de Portugal, seja pela compra ou
troca com outras nações, que não se encontram determinadas e não foram adquiridas
pelo domínio privado por nenhuma das formas especificadas nos parágrafos 2o, 3o e 4o
da Lei 601 e nas alíneas “a” a “g” do artigo 5o do Decreto-Lei 9.760 ou por usucapião,
nem sequer estão sendo destinadas ao uso público típico dos bens de uso comum ou de
uso especial.
4- Terras devolutas como bem público
Do conceito apontado, não temos dúvida de que as terras devolutas se
enquadram perfeitamente na classe dos bens públicos, cujas características foram
exaustivamente exploradas no item “2.1” deste estudo, e, mais especificamente, na
modalidade “dominical” conceituada no item “2.3.3”.
Nesse sentido, vale citar o magistério de Marcello Caetano : “Alguns autores
invocam aqui a distinção entre domínio natural e domínio artificial; ou formulam outra
distinção entre domínio necessário e domínio acidental. Na verdade, certos elementos
do domínio público pertencem-lhe por imposição da própria natureza : é o caso dos
espaços, - o espaço aéreo, o espaço das águas marítimas territoriais, as terras vagas dos
paises de colonização... Embora já não com o mesmo carácter de necessidade, estão em
21
análogas condições os rios, as praia, os portos, os lagos..., de tal modo que a lei se limita
a reconhecer uma realidade preexistente”42. Portanto, podemos dizer que o domínio
público patrimonial a que se sujeitam as terras devolutas é um domínio natural.
Ademais, a própria Constituição Federal de 1988 explicita a condição de bem
público das terras devolutas ao impor, nos seus artigos 20, inciso II, e 21, inciso IV, o
domínio dessas terras em regra aos Estados e, em caráter de exceção, à União quando
“indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e das construções militares, das
vias federais de comunicação e à preservação ambiental”, sendo que pela leitura do
texto constitucional, temos que tal domínio, não é somente um domínio eminente, de
mera regulação, mas um efetivo domínio patrimonial, vez que o Constituinte, na
distribuição desse domínio utilizou-se das expressões “São bens da União” (art.20) e
“Incluem-se entre os bens dos Estados” (art.26).
O Constituinte de 1988 não especificou a destinação da terras devolutas (não as
enquadrando, pois, como bens de uso comum do povo ou de uso especial), mas exigiu,
no caput do artigo 188 que “a destinação de terras públicas e devolutas será
compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”.
Quanto ao código civil de 2002, o mesmo ao elencar os “bens públicos” no seu
artigo 99, não poderia excluir desse rol as terras devolutas, sob pena de afrontar o texto
constitucional, em especial os artigos 20, II, e 26, IV, da Constituição de 1988. É
verdadeiro, também, que o código civil não especificou cada um dos bens públicos, mas
os distribui em categorias, que são os bens de uso comum, os de uso especial e os
dominicais, estando as terras devolutas incluídas nessa última.
A doutrina é pacífica no sentido de fixar as terras devolutas como bens públicos
dominicais. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Júnior afirmam que “as terras
devolutas não são destinadas ao uso comum ou especial, podendo, assim, ser incluídas
na classe dos bens dominicais, e que pertencem à União, exclusivamente as terras
devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções
militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, remanescendo as
demais dentro da órbita patrimonial”43. Da mesma opinião comunga Maria Sylvia
Zanella Di Pietro no sentido de que “elas integram a categoria de bens dominicais,
42
CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. Coimbra : Coimbra Editora, 5a edição
atualizada e novamente revista, 1960, p. 558/559
43
ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. São
Paulo : Saraiva, 7a edição revista e atualizada, 2003, p. 243
22
precisamente pelo fato de não terem qualquer destinação pública”44 e Celso Antônio
Bandeira de Mello para quem “as terras devolutas são bens públicos dominicais”45.
E, sendo as terras devolutas bens públicos, várias conseqüências acabam por
surgir em razão da necessária sujeição ao regime jurídico de direito público que, como
afirma Cretella Júnior, é “derrogatório e exorbitante do direito comum”46. Daí decorre a
regra da imprescritibilidade, da impenhorabilidade e não oneração dos bens públicos, a
que se encontram sujeitas as devolutas.
Tratando da imprescritibilidade dos bens públicos, Hely Lopes Meirelles ensina
que a “imprescritibilidade dos bens públicos decorre como conseqüência lógica de sua
inalienabilidade” originária. E é fácil demonstrar a assertiva : se os bens públicos são
originariamente inalienáveis, segue-se que ninguém os pode adquirir enquanto
guardarem essa condição”47. Ainda quanto à inalienabilidade, importante destacar o
conteúdo do artigo 101 do novo código civil no sentido de que “os bens públicos
dominiais podem ser alienados, observadas as exigências legais.
Sobre a impenhorabilidade e a não oneração, Bandeira de Mello diz serem “uma
conseqüência do disposto no art. 100 da Constituição. Com efeito, de acordo com ele,
há uma forma específica para satisfação de créditos contra o Poder Público
inadimplente. Os bens públicos não podem ser praceados para que o credor neles se
sacie. Assim, bem se vê que não podem também ser gravados com direitos reais de
garantia, pois seria inconseqüente qualquer oneração com tal fim”48.
5 – Terras devolutas e o usucapião
O conceito de usucapião é uníssono na doutrina no sentido de que é uma
forma de aquisição de propriedade e de outros direitos reais tendo como fundamento a
posse sobre o bem, de acordo com os requisitos impostos pela lei. Sérgio Ferraz escreve
que o “usucapião constitui modalidade originária de aquisição. É dizer, não se adquire,
por usucapião, de um titular. A aquisição é direta, não intermediada, não sucedida,
44
Op.cit. p. 468
Op.cit. p. 788
46
CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado do domínio público. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1984, p. 29
47
Op. Cit. P. 456
48
Op. Cit. P. 783
45
23
produzindo-se pelo simples fato da posse prolongada, como disposto na lei”49. Para
Maria Helena Diniz, “a usucapião é um modo de aquisição de propriedade e de outros
direitos reais (usufruto, uso, habitação, enfiteuse ...,servidões prediais...) pela posse
prolongada da coisa com a observância dos requisitos legais, como prefere dizer Clóvis
Bevilácqua)”50.
Importante desde já destacarmos que, se de um lado o usucapião tem
como fundamento uma situação de fato - com repercussões jurídicas -, que é a posse, de
outro lado, trata-se de um instituto necessariamente limitado pela lei, inclusive em razão
do disposto no inciso XXII do artigo 5o da Constituição Federal - “é garantido o direito
de propriedade “ -, visto que a aquisição da propriedade por uma pessoa, através do
usucapião, repercute na perda da propriedade por outrem. Assim, só há que se falar em
aquisição de propriedade por usucapião nos casos e circunstâncias em que legislação
assim o autorizar.
Existem, no direito brasileiro, quatro espécies de usucapião de bem imóvel, o
extraordinário, o ordinário, o urbano e o especial (também denominado pro labore).
O usucapião extraordinário é previsto no artigo 1.238 do código civil e tem
como fato gerador a posse pacífica como se próprio lhe fosse o bem, independente de
título e boa-fé, por 15 (quinze) anos, sem interrupção nem oposição, reduzindo-se tal
prazo para 10 (dez) anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel sua moradia
habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
O usucapião ordinário é aquele previsto pelo artigo 1.242 do código civil e que
se fundamenta na posse contínua e incontestável, com justo título e boa-fé, pelo período
de 10 (dez) anos.
Já o usucapião urbano, também denominado pro habitatione, é o previsto pelo
artigo 183 da Constituição Federal e pelos artigos 1.240 do código civil e 9o a 14 do
estatuto da cidade (Lei 10.257, de 10.7.2001), e tem como fundamento a posse como
moradia própria ou da família, daquele que não é prioprietário de outro imóvel urbano
ou rural, de área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos
ininterruptos e sem oposição.
49
DALLARI, Adilson Abreu e FERRAZ, Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei
Federal 10.257/2001). São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 139
50
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 4o volume. São Paulo : Saraiva, 18a edição
aumentada e atualizada de acordo com o novo Código Civil (Lei no. 10.406, de 10-1-2002), 2002, p. 144
24
Por fim, o usucapião especial ou pro labore consta do artigo 191 da Constituição
Federal e se funda na posse como se sua a coisa fosse, por quem não é proprietário de
imóvel rural ou urbano, por 5 (cinco) anos ininterruptos e sem oposição, de área de terra
em zona rural não superior a 50 (cinqüenta) hectares, tornando-a produtiva por seu
trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia.
Feitas essas necessárias notas sobre o usucapião, vamos agora à análise da
possibilidade ou não de usucapião de bens públicos, classe em que se enquadram as
terras devolutas.
5.1 – O usucapião de bens públicos na Constituição Federal de 1988
Maria Sylvia Zanella Di Pietro apresenta histórico do tema do usucapião de bens
públicos, que merece transcrição : “.depois de larga divergência doutrinária e
jurisprudencial, o Decreto no. 22.785, de 31-5-33, veio expressamente proibi-lo,
seguindo-se norma semelhante no Decreto-lei no. 710, de 17-9-38 e, depois, no
Decreto-lei no. 9.760, de 5-9-46 (este último apenas aos bens imóveis da União)” e,
continua, “no entanto, tem havido exceções, como a prevista nas Constituições de 1934,
1937 e 1946, que previam o chamado usucapião pro labore, cujo objetivo era assegurar
o direito de propriedade àquele que cultivasse a terra com o próprio trabalho e o de sua
família; a Constituição de 1967 mão mais contemplou essa modalidade de usucapião,
porém valorizava o trabalho produtivo do homem do campo, permitindo que lei federal
estabecesse as condições de legitimação de posse e de preferência para aquisição, até
10 há, de terras públicas por aqueles que as tornassem produtivas com seu trabalho e o
de sua família (art. 171).”51
Até a Constituição Federal de 1988, vigia a Lei 6.969, de 10 de dezembro
de 1981, que previa, no seu artigo 1o o usucapião especial aquele que possuísse área
rural contínua não excedente de 25(vinte e cinco) hectares e no seu artigo 2o previa
especificamente a possibilidade de usucapião especial de terras devolutas. Vale
transcrição desse artigo : “A usucapião especial, a que se refere esta Lei, abrange as
terras particulares e as terras devolutas, em geral, sem prejuízo de outros direitos
51
Op.cit. p. 432
25
conferidos ao posseiro, pelo Estatuto da Terra ou pelas leis que dispõem sobre processo
discriminatório de terras devolutas”.
É certo, entretanto, que a Constituição de 1988, no parágrafo único do artigo 191
e no parágrafo 3o do artigo 183, foi certeira ao determinar que “os imóveis públicos não
serão adquiridos por usucapião”.
Num primeiro olhar, poderia se cogitar que tal determinação fosse destinada tão
somente ao usucapião urbano (previsto no artigo 183) e ao usucapião especial (previsto
no artigo 191a), sendo certo que, numa análise sistemática da Constituição, essa
primeira impressão não poderia prosperar. Primeiramente, porque a proibição de
usucapião de bens públicos somente foi apontada nesses artigos em razão de serem eles
os únicos que, na Constituição, se referem à aquisição de propriedade por usucapião,
não havendo, pois, razão para repetição de tal disposição em outros artigos
constitucionais. Segundo, as modalidades de usucapião previstas na Constituição
(usucapião urbano do artigo 183 e usucapião espacial do artigo 191) são aquelas que
mais relevância social têm, sendo efetivo instrumento da função social propriedade
prevista no inciso XXIII do artigo 5o da Lei Maior, não haveria, assim, razão lógica para
a proibição de usucapião de bens públicos para essas modalidades e não estende-la às
demais modalidades de usucapião, com menor relevância social. Terceiro, a repetição
da expressão “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” no parágrafo 3o
do artigo 183 e no parágrafo único do artigo 191 teve por função sedimentar que a
proibição se estende não só ao usucapião de bem público urbano, como também ao
rural. Reforçando ainda mais a nossa conclusão, temos que o artigo 188 impõe que as
terras públicas e as devolutas tenham destinação compatível com a política agrícola e
com o plano nacional de reforma agrária, isto é, as devolutas devem estar à disposição
estatal para o cumprimento de seus programas agrícola e agrário, não se cogitando a
possibilidade de transferência, por usucapião, ao particular.
Portanto, clara é a norma constitucional que impossibilita o usucapião de bem
público, em qualquer de suas espécies e em qualquer modalidade de usucapião. Sobre a
matéria, Bandeira de Mello afirma que “... a Constituição vigente é expressa, em seus
artigos 183, §3o, e 191, parágrafo único, ao dispor que “os imóveis públicos não serão
adquiridos por usucapião”. Assim, as normas sobre a usucapião pro labore, previstas no
artigo 191, caput, não podem ser invocadas em relação a bens públicos. No passado,
26
podiam. É que os textos constitucionais anteriores que previam tal modalidade de
usucapião não mencionavam a imprescritibilidade dos imóveis públicos. Era cabível,
entender que prevaleciam sobre a proteção que lhes era dada pela legislação ordinária.
Hoje isto não é mais possível, ante a clareza do precitado parágrafo único do art. 191.”52
5.2 – O usucapião de bens públicos no novo código civil
Sob a égide do Código Civil de 1916 já havia sido construída doutrina no
sentido da impossibilidade de aquisição, por particular, de imóvel público por
usucapião. Isso se dava em razão da interpretação dada ao artigo 67 do antigo Código
Civil cujo texto era : “Os bens de que trata o artigo antecedente (que se referia aos bens
públicos) só perderão a inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e forma que a lei
prescrever”.
A “inalienabilidade” como característica dos bens públicos fora fonte da
afirmação doutrinária da impossibilidade de alienação, penhora ou prescrição aquisitiva
de usucapião de tais bens. A jurisprudência fundada nessa interpretação do antigo
Código Civil se tornou pacificada através da Súmula 340 do STF, in verbis : “Desde a
vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não
podem ser adquiridos por usucapião”.
O novo Código Civil, a seu turno, não modificou tal panorama, vez que no seu
artigo 99 manteve o conteúdo do conceito de “bem público”, onde se incluem os bens
de uso comum do povo, os de uso especial e os dominicais e, a despeito de no seu artigo
101 ter afastado os bens dominicais da regra de inalienabilidade, apontou expressamente
que “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”.
Por fim, enquadrando-se as terras devolutas na classe dos bens públicos, não há
como se afastar que lhe incida o artigo 101 do novo código civil, impossibilitando a sua
aquisição por usucapião.
6 - Conclusão
Do todo exposto neste estudo, pudemos concluir que as terras devolutas são
verdadeiros bens públicos dominicais, não possuindo destinação típica de bens de uso
comum ou de uso especial, e podendo, na forma do artigo 101 do novo código civil, ser
52
Op. Cit. pp. 783/784
27
alienadas, “observadas as exigências da lei”, desde que respeitada a compatibilidade da
alienação com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária, como
determina o caput do artigo 188 da Constituição Federal.
Também, sendo bens públicos, não são as terras devolutas sujeitas ao usucapião,
por expressa disposição do artigo 102 da codificação civil e dos parágrafos 3o e único,
respectivamente dos artigos 183 e 191 da Constituição, devendo, inclusive, ser mantido
o conteúdo da súmula 340 do STF.
No que se refere ao tratamento dado pelo novo código civil aos bens públicos,
verificamos que a nova legislação serve como instrumento das disposições
constitucionais sobre a matéria, cumprindo o seu papel dentro de uma visão de direito
civil constitucionalizado, merecendo, entretanto, especial atenção pela doutrina a análise
da compatibilidade do parágrafo único do artigo 99 do novel código civil, que
entendemos – como exposto no item 2.1 deste trabalho - ser inconstitucional, com os
termos do inciso II do parágrafo 1o do artigo 173 da Constituição Federal.
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AS TERRAS DEVOLUTAS E O NOVO CÓDIGO CIVIL