RECURSO EXTRAORDINÁRIO 571.572-8 BAHIA VOTO O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Relator: I - A Telemar Norte Leste S/A sustenta, nas razões do recurso extraordinário, a necessidade da inclusão da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, na lide, o que resultaria no reconhecimento da competência da Justiça Federal para o seu processo e julgamento, nos termos do art. 109, I, da Constituição. Esta a questão constitucional posta. Afirma a concessionária recorrente que a decisão recorrida, ao declarar abusiva a cobrança de pulsos referentes a ligações locais além da franquia mensal, adentrou o mérito do contrato de concessão do serviço telefônico comutado local, celebrado entre ela e a Anatel, o que evidenciaria o interesse da Agência Reguladora nas conseqüências do presente feito, bem como a afronta aos arts. 21, XI, e 109, I, da CF/88. Eis os argumentos: “Assim sendo, ao declarar abusiva a forma de tarifação traçada e autorizada pela ANATEL, determinando a devolução dos valores pagos a títulos de pulsos além da franquia, ambos os Juízos ultrapassaram os limites da suas funções jurisdicionais, uma vez que tal competência caberia única e exclusivamente à Agência Reguladora, a qual tem indubitável interesse na questão em razão da natureza da relação jurídica travada tratando-se, portanto, de litisconsórcio passivo necessário (art. 47, CPC), quer seja por ser contratante na concessão do serviço público em tela, quer seja por ser a única a ter competência para regular, modificar ou extinguir a forma pela qual a prestação e a cobrança dos serviços telefônicos vem sendo praticados pela empresa recorrente.” (fl. 74) A decisão recorrida, ao afastar os argumentos da concessionária, está em consonância com a jurisprudência pacificada das Turmas desta Corte, no sentido de que a competência para apreciar demanda entre empresa concessionária e particular é da Justiça Estadual, caso não haja manifestação expressa de interesse para intervenção, pela agência reguladora que, dessa forma, atrairia, em tese, a competência da Justiça Federal. Nesse sentido, cito os seguintes precedentes: AIAgR 388.982/ES, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 25.10.2002; AI-AgR 607.035/PB, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 9.2.2007; AI-AgR 650.085/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 5.10.2007; RE 109.483/PR, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 1º.8.1986. No caso dos autos, não houve manifestação expressa de interesse jurídico ou sequer econômico pela ANATEL, de sorte que é competente a Justiça Estadual. Ao contrário do que pretende a recorrente, a situação dos autos não configura hipótese de litisconsórcio passivo necessário, a justificar a inclusão da ANATEL no pólo passivo. O litisconsórcio necessário estabelece-se pela natureza da relação jurídica ou por determinação legal, sendo insuficiente, para a sua caracterização, que a decisão a ser proferida no processo possa produzir efeitos sobre esfera jurídica de terceiro. A eficácia natural das sentenças, como regra, alcança terceiros, sem que esta circunstância obrigue à respectiva inclusão no processo. Assim ocorre, por exemplo, com a sentença que decreta a extinção de um contrato de locação. A decisão alcançará a esfera jurídica de eventual fiador ou sublocatário. Não há disposição expressa de lei a obrigar à formação de litisconsórcio, no caso em exame. Não exige a lei a participação da ANATEL nas ações em que sejam parte as operadoras de telefonia e os consumidores. Também não resulta a pretendida obrigatoriedade do litisconsórcio, da natureza da relação jurídica. Sobre o assunto, leciona MARINONI, ao tratar do litisconsórcio necessário determinado pela natureza da relação jurídica, e ao fazer a interpretação do art. 47 do CPC, que nestes casos “a relação jurídica material realizada possui, em pelo menos um de seus pólos, mais de um sujeito. E é precisamente essa pluralidade subjetiva em um dos pólos da relação jurídica material deduzida em juízo que determina, na forma do que prevê o art. 47 do CPC (“natureza da relação jurídica”), o litisconsórcio necessário.” (in Processo de Conhecimento, RT, 2007, pág. 172). Discute-se nos autos, conforme a lide delimitada na inicial, a relação entre o consumidor do serviço de telefonia e a concessionária, mais especificamente se há possibilidade da cobrança dos chamados “pulsos referentes a ligações locais além da franquia”. Não é a ANATEL parte na relação de consumo. Ainda que o acolhimento do pleito do autor, ora recorrido, possa repercutir, em tese, jurídica ou economicamente, na relação mantida entre a concessionária e a ANATEL - contrato de concessão, a exigir eventual ajuste nas bases da própria concessão, é certo que esta repercussão não decorre diretamente do resultado individual da presente lide e que o consumidor não mantém relação jurídica com a ANATEL. Também não é da natureza da relação de consumo a participação direta de um ente fiscalizatório e normatizador. A situação trazida poderá, isto sim, configurar hipótese de assistência simples ou de intervenção anômala (art. 5º, parágrafo único da Lei 9.469/97). Em qualquer dos casos, pela própria natureza dos institutos, a intervenção é espontânea. E, no caso dos autos, não houve manifestação de interesse, pela ANATEL em intervir, sob qualquer das formas referidas. Registre-se que esse entendimento não exclui a possibilidade de vir a ANATEL a se manifestar espontaneamente em casos semelhantes, demonstrando seu interesse jurídico no feito, caso em que a competência será deslocada para a Justiça Federal, sendo certo que, se a intervenção ocorrer com base em mero interesse econômico, nos termos do parágrafo único do art. 5º da Lei 9.469/97, a competência da Justiça Federal se estabelecerá apenas na hipótese de recurso deste ente federal. II – Alega, ainda, a concessionária recorrente, que a tramitação do processo em Juizado Especial Estadual implica violação ao art. 98, I, e ao art. 5º, II, LIV e LV, da Constituição Federal, já que a complexidade da demanda e a necessidade de dilação probatória firmariam a competência da Justiça Comum. Eis a afirmação: “(...) tratando-se a presente causa sobre a legalidade ou não da forma pela qual as chamadas locais vêm sendo cobradas pela empresa recorrente, inquestionável a necessidade da elaboração de uma profunda prova pericial a respeito, uma vez que somente desta forma, tanto o Juízo de primeiro grau, quanto o Órgão revisor poderiam se convencer se realmente a tecnologia específica utilizada para tal mister seria realmente falha.” (fl. 75). Quanto ao ponto, a decisão recorrida foi enfática ao afirmar que “(...) a complexidade da questão, vislumbrada pela requerida, não existe, pois é de fácil comprovação, através de documentos.“ (fl. 37) E foi complementada: “(...) a causa não se reveste de grande complexidade, não se fazendo necessário, nesse passo, a realização de perícia para a firmação do convencimento do juízo.”(fl. 62) De fato, verifica-se que a definição da lide não passa por dilação probatória complexa, nem pela produção de prova pericial, bastando a análise dos documentos e sua confrontação com as normas jurídicas aplicáveis. A verificação da possibilidade da cobrança de pulsos além da franquia, sem a devida discriminação das ligações realizadas, constitui matéria exclusivamente de direito e está, portanto, no âmbito de competência dos Juizados Especiais (art. 98, I, da CF), não se podendo falar, em conseqüência, na violação aos princípios do devido processo legal, ampla defesa, contraditório e legalidade, princípios cuja incidência, para o deslinde desta causa, ademais, seria apenas reflexa. III - Por fim, quanto à matéria de fundo, o recurso extraordinário não deve ser conhecido. Alegando violação do art. 37, XXI, da Constituição Federal, afirma a Recorrente que: “O Poder Judiciário não pode intervir na Administração Pública sem demonstrar ter os atos ou contratos administrativos por aquela praticados ou celebrados extrapolado o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, o que não ocorreu no caso em tela. Dúvida não há, portanto, quanto à violação do art. 37, XXI, CF/88, por parte do Poder Judiciário, ao extrapolar sua função jurisdicional, intervindo no contrato celebrado entre a recorrente e a União, alterando as bases iniciais do contrato administrativo em vigor, sem que as partes contratantes o provocassem a respeito.” (fl. 79) A decisão recorrida resolveu a questão posta à discussão nos presentes autos com fundamento no Direito do Consumidor, especialmente, no art. 6º, III, do CDC, que estabelece como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os produtos e serviços, bem como a especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço (fl. 38). Eis a ementa do julgado recorrido: “TELEFONIA. COBRANÇA DE PULSOS ALÉM DA FRANQUIA. PRELIMINARES REJEITADAS. COBRANÇA INDEVIDA. PRÁTICA ABUSIVA A TEOR DO ART. 39, V, DO CDC. GARANTIAS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO (ART. 5º, LV, DA CF). DEVER JURÍDICO QUE NÃO PODE CONDICIONAR-SE A REGULAMENTAÇÃO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS. RELAÇÃO DE CONSUMO. IMPROPRIEDADE DA ALEGAÇÃO DE VULNERAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. IMPROVIMENTO DO RECURSO. É dever da concessionária de Serviços Públicos, fornecer serviços adequados, eficientes e seguros (art. 22 do CDC) ao consumidor, eis que o controle dos vícios do serviço se perfaz através da informação do que lhe foi efetivamente prestado, não sendo lícita cobrança mensal e indeterminada de tarifa por parte da operadora, açambarcando poderes inerentes a entes estatais que por autorização legal podem cobrar tributos. Cuida-se, no caso, de direito subjetivo do consumidor, que não pode ser violado por eventual deficiência técnica da operadora. A esta competia comprovar a regularidade do serviço prestado, do que não se desincumbiu. A Constituição Federal atribui aos consumidores a condição de detentores de direito fundamental e aponta a defesa deste como princípio da ordem econômica (art. 5º, XXXII e art. 170, V, CF/88). Preliminares rejeitadas. Manutenção da Sentença pelos próprios fundamentos. Custas processuais, e honorários advocatícios, estes em 20% sobre o valor da condenação, pela recorrente.” (fl. 61) Ressalto que, como parece bastante claro, a questão discutida reveste-se de índole estritamente infraconstitucional. Destarte, qualquer tentativa de aprofundar a análise sobre o tema esbarrará na necessidade de exame minucioso do contrato de concessão. Assim, ainda que a causa tangencie aspectos quanto à aplicação do art. 37, XXI, da Constituição (manutenção das condições contratuais), ou mesmo direito fundamental do consumidor, de forma ampla ou indireta, a discussão pressupõe e está centrada no exame sobre o cumprimento de regras da Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Ressalte-se que o STJ, em decisão recente (26.5.2008), editou o enunciado da Súmula n° 357, que trata especificamente da matéria em discussão, com o seguinte teor: “A pedido do assinante, que responderá pelos custos, é obrigatória, a partir de 1º de janeiro de 2006, a discriminação de pulsos excedentes e ligações de telefone fixo para celular”. É bem verdade que a distinção entre constitucionalidade e legalidade é bastante tênue. Tenho ressaltado em estudos doutrinários que uma questão de legalidade também pode configurar uma típica questão constitucional. A própria idéia de supremacia da Constituição impõe que os órgãos aplicadores do direito não façam tabula rasa das normas constitucionais, ainda quando estiverem ocupados com a aplicação do direito ordinário. Daí porque se cogita, muitas vezes, sobre a necessidade de utilização da interpretação sistemática sob a modalidade da interpretação conforme a Constituição. É de se perguntar se, nesses casos, tem-se simples questão legal, insuscetível de ser apreciada na via excepcional do recurso extraordinário, ou se o tema pode ter contornos constitucionais e merece, por isso, ser examinado pelo Supremo Tribunal Federal. Não obstante, temos aqui, neste ponto do recurso extraordinário, a resolver uma questão de divisão de competências, especificamente a delimitação da jurisdição desta Corte em face da competência constitucional atribuída aos demais tribunais. E, nesse sentido, a própria Constituição impõe uma tomada de posição. O tema de fundo, a meu ver, é infraconstitucional. As normas legais de direito do consumidor é que orientam o resultado da demanda, e não estão estas tendo sua constitucionalidade impugnada. Não é razoável, em situações como a que aqui se examina, a supressão deste exame para fazer incidir diretamente os preceitos constitucionais. Quanto ao ponto, portanto, o recurso extraordinário não pode ser conhecido. Ante o exposto, conheço em parte do recurso extraordinário e, nesta extensão, nego-lhe provimento.