DOS MALES QUE VÊM DA COR E DA RAÇA: A ARBORIFICAÇÃO, AS TEORIAS RACIAIS E A REDENÇÃO DE CAN – A REDE DE PODER DO RACISMO CIENTÍFICO NO BRASIL (1870-1911) Autor: Jader Santos Chaves Aluno Especial do Mestrado em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros/ UNIMONTES E-mail: [email protected] Grupo de trabalho – Congresso: Eugenia e Ciência (cultura) Raça e (Des)igualdades: elementos biopolíticos do desenvolvimento social Introdução Certamente, o centralizado não se opõe ao segmentário, e os círculos permanecem distintos. Mas eles se tornam concêntricos, definitivamente arborificados. Gilles Deleuze e Félix Guattari De meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX sedimentou-se a diferenciação racial entre os povos. O racismo científico, explicitado a partir das teorias raciais, alicerçara acentuadas disparidades entre as raças, no que tange seu grau de ascendência e decadência humana. Destarte, a “nova chave da historia”, reivindicando as palavras de Hannah Arendt, a raça passava, agora, a ser defendida como a força mestra que regia os homens, distintos pelo conceito de raça entre os homens brancos, civilizados, capazes de sacrifício e barbárie, lugarcomum em que foram postos todos os povos inferiores.1 O endosso vulgar que a ciência apresentou em meados do século XIX e inicio do XX, em larga medida, contribuiu para distanciar ainda mais os povos, uma vez que, a heterogeneidade racial e as misturas entre as raças passaram a ser sinônimos ora de superioridade e inferioridade, ora de degenerescência humana. Sendo assim, cor e raça são premissas que se encontraram intrinsecamente ligadas, e reivindicadas – sempre que necessário – como forma de legitimação de poder, em um mundo que se respira a pseudociência das raças. O respaldo cientifico dado às diversas doutrinas raciais européias vigentes na passagem do século oitocentista, remete ao auto-grau do sucesso 1 ARENDT. Origens do Totalitarismo. p. 201 e assimilação social que as mesmas provocaram, sendo, inclusive sentidas em solo brasileiro, e que inclusive nortearam as discussões da presente pesquisa. Como aparato teórico recorreu-se a tese da “segmentaridade arborificada” – esposada por Gilles Deleuze e Félix Guattari – como princípio metodológico, buscando explicitar a árvore, ou mesmo a rede de poder do racismo científico e suas segmentaridades. Para esse fim, deu-se ênfase no discurso de poder do racismo sedimentado a partir das teorias raciais. Por essa linha de pensamento, sempre que se remete ao sentido molar do racismo utilizou-se também o conceito de rede-árvore, e para identificar as segmetaridades (o molecular) desse racismo, recorreram-se as teorias raciais do século XIX, o darwinismo social, o evolucionismo, a eugenia e o branqueamento racial (“A Redenção de Can”). 2 Sendo assim, a perspectiva teórica proposta pelos autores, se propõe a pensar a origem do poder do racismo – o centralizado –, repousado e explicitado a partir do das ideologias raciais – a multiplicidade, o segmentário – e exemplificado na idéia de rede-árvore de poder. “Aqueles a quem foi negada a cor do dia”: o mundo da ciência e da biologização das diferenças Apontado por David Knight como sendo o “século da ciência”,3 o período compreendido entre os anos de 1789 e 1914, foi palco de inúmeros acontecimentos, época marcada por conquistas e transformações expressivas. Nessa perspectiva, Eric Hobsbawm define o mesmo o período como sendo o “longo século XIX” 4 – repousado sob a luz da ciência, cujas idéias eram sustentadas a partir da Revolução Francesa, que outrora se encontravam intrinsecamente ligadas aos pensamentos do Iluminismo. Neste período, pode ser notado o abandono das velhas formas dedutivas e sistemáticas dos séculos anteriores, e a expansão da “necessidade” da racionalidade que por meio da qual se chegaria ao progresso. Essa logo foi associada à pesquisa empírica valorizando os fenômenos, a observação e também as relações de idéias e as questões de fato. Lógica expressada no método analítico ou o experimentalismo, as “luzes” expressariam um paradigma universal das coisas e dos seres. 2 DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. p. 83-115. KNIGHT apud SCHWARCZ. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-1930). p. 29 4 HOBSBAWM. A Era dos Impérios. p. 19 3 A conceituação do racialismo – o estudo das raças humanas – surge repousada no paradigma das luzes, uma vez que as questões levantadas pelos iluministas em larga medida se propagaram em toda a Europa. Como postula Tzvetan Todorov, citado por Gislene dos Santos, os ilustrados filósofos foram os primeiros a desenvolver as teorias do racialismo. Segundo o autor a doutrina racialista possui um número coerente de preposições, que podem ser resumidas em: a existência de raças – consiste na existência de agrupamentos humanos de membros possuidores de características fisiológicas em comum; a comunidade entre o físico e o moral – a conceituação estabelece que a raça não seja apenas definida fisicamente, ou mesmo, as divisões do mundo em raças, necessariamente correspondem a uma divisão de culturas, nessas condições encontram-se pensadores que atribuem diferenças culturais aos fatores físicos, estabelecendo uma ordem causal entre eles; a ação do grupo sobre o individuo – quesito relacionado ao comportamento do individuo alinhado e dependente do grupo sócio-cultural a qual pertence; hierarquia única de valores – o racialista usa uma hierarquia única de valores para elaborar juízos universais, qualificando como superiores ou inferiores os povos.5 Para Todorov, a partir desta escala de valores originou-se o etnocentrismo. Destarte, estabelecidos os fatos, o racialista tira deles um julgamento moral e um ideal político (submissão e eliminação das raças inferiores). No momento em que as teorias políticas ganham prática, o racialismo encontra o racismo6. Convêm ressaltar, que alguns elementos da filosofia natural elaborada pelos iluministas serão posteriormente resgatados e transplantados como atributo de poder de por determinado grupo social, adquirindo novas roupagens e associados a conceituações emergentes no século vindouro: Para os ilustrados, o grande problema era encontrar uma forma de, a partir das desigualdades observadas entre os povos, estabelecer uma norma igualitária. Por isso, as diferenças não eram tomadas como definitivas e nem, ao menos, eternas (mesmo que por vezes se assemelhassem a isso). No século XIX, período em que a idéia de evolução torna-se o paradigma incontestável para toda investigação científica, já não se aceitam tolerantemente as diferenças entre os homens. (...) Se, para os iluministas, 5 TODOROV apud SANTOS. A Invenção do ser Negro. p. 46 Sobre isso Gomes aponta que, o racismo é, por um lado, uma ação resultante da aversão, sedimentada às vezes pelo ódio, com respeito a pessoas que possuem um pertencimento racial observável através de sinais diacríticos tais como: cor da pele, tipo de cabelo, entre outros, e por outro lado, é uma ideologia, uma doutrina referente às raças humanas, repousada na crença de raças superiores e raças inferiores. Ao que tudo indica, o racismo foi inaugurado no século XIX, porém algumas de suas estruturas foram lançadas ao longo dos séculos antecedentes. GOMES. A mulher negra que vi de perto. p. 54-55 6 as desigualdades sociais apoiavam-se na diversidade humana ressaltando-a para os evolucionistas e racistas do século XIX esta desigualdade social, de fato, inexiste, pois o evidente são as diferenças raciais expostas em distintas sociedades. Nesse momento, a idéia de raça passa a funcionar como catalisador e solução para todos os problemas.7 Segundo Michael Banton, a palavra raça começa a mudar de significação em meados de 1800, perdendo assim seu sentido anterior (dotada de caráter histórico e mutável), atendendo a concepções e tendências do momento, surge uma nova acepção repousada na definição e separação em tipologias humanas, sustentada na idéia do caráter biológico e imutável.8 Observa-se que a partir do mundo dividido por raças, cabe destacar a tentativa, – sob o respaldo da ciência – de buscar entender o porquê das diferenças raciais e compreensão de cada raça distintamente. Dessa forma, estabeleceu no mundo do oitocentos a conotação do termo raça, superando inclusive qualquer teoria do direito. Sendo assim, a cada raça cabe um lugar no mundo e seus direitos são definidos pelo grau de importância que detém na ordem evolutiva, ou mesmo, cada raça teria um direito determinado por sua natureza.9 Nota-se assim, uma gama de formulações científicas no âmbito europeu, no intuito de procurar evidenciar e entender a questão sobre a diferenciação das raças que se assentava na biologização das diferenças. Nesse jogo, entre biologia e raça, alguns cientistas configuraram os tipos caucasóides como sendo a raça eleita para ordenação e contribuidora-mor para guiar o mundo, assim “os povos do dia” carregam consigo mais pureza (atingida na região do Cáucaso) perfeição, espírito de dominância, seriam provenientes de um núcleo especial e demonstram sempre e energia especial desse núcleo original. Assim constituiria dever dos “povos do dia” o guiar e ajudar os outros menos favorecidos, os “povos da escuridão”, ou mesmo, os negros.10 Contudo, foi com a deturpação das postulações de Charles Darwin, que essa questão se generalizou, ganhando um enfoque mais extremado, canalizado no discurso dos impérios (1875-1914). As idéias de Darwin se viram posteriormente extrapoladas do campo biológico e associadas ao comportamento das sociedades humanas. Desse modo, a vulgarização do conhecimento científico, associado às conveniências do momento, permitiu a pseudocientistas, se apropriarem dos avanços especialmente produzidos pela biologia 7 SANTOS. A Invenção do ser Negro. p. 47-48 BANTON apud SANTOS. A Invenção do ser Negro. p. 48 9 SANTOS. A Invenção do ser Negro. p. 49 10 SANTOS. A Invenção do ser Negro. p. 50 8 darwinista, e a colocarem a serviço do imperialismo e da burguesia em ascensão, mecanismos ideológicos de superioridade e inferioridade entre os povos. Ao vulgarizar as teorias e informações complexas, decorrentes de análises não necessariamente voltadas a esses fins, alguns cientistas aguçaram e justificaram as diferenças também no âmbito social. Desse modo conceitos como competição, seleção do mais forte, evolução, hereditariedade, passaram a ser aplicados nos variados campos do conhecimento (antropologia, sociologia, história, psicologia, teoria política e econômica, literatura, entre outros), atendendo a diferentes interesses, cuja finalidade se baseia na legitimação de poder sobre determinados agrupamentos humanos.11 A rede-árvore de poder do racismo científico: o mundo respira a ciência das raças – o darwinismo social, o evolucionismo e a eugenia. Ao recorrer à análise de Delueze e Guattari no que tange a segmentaridade, é importante frisar que a mesma é o ponto central para se pensar a origem do poder. Segundo os postulados dos autores, a compreensão do poder no processo social não se estabelece a partir do paradigma binário, mas sim na multiplicidade estabelecida, cabendo a especificação de uma rede-árvore de poder. Assim, a rede-árvore de poder funciona em mostrar a multiplicidade de idéias e dimensões do racismo, sem sub supervalorizar nenhuma das ideologias. Estabelecido sob essa lógica, o racismo passa a ser entendido como princípio de um aparelho centralizado, e as ideologias raciais como suas segmentaridades, sendo, pois, no processo do poder ambas funcionam de maneira conjunta e não-contraditória, caso esse explicitado por Deleuze e Guattari ao afirmarem: Mas não há contradição alguma entre as partes segmentárias e o aparelho centralizado. Por um lado, a mais dura segmentaridade não impede a centralização; é que o ponto central comum não age como um ponto onde os outros pontos se confundiriam, mas como um ponto de ressonância no horizonte atrás de todos os outros pontos. (...) Nesse sentido, a centralização é sempre hierárquica, mas a hierarquia é sempre segmentária.12 Partindo dessa premissa, a rede-árvore de poder do racismo funcionou de forma ramificada, contendo mecanismos micropolíticos e moleculares, cristalizados em crenças 11 SCHWARCZ. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-1930). p. 5556 12 DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. p.105 suficientes e diversificadas, para legitimar dominação e superioridade de um determinado grupo em relação a outro. Como atesta os autores ao afirmarem que, “A árvore é nó de arborescência... ela é eixo de rotação que assegura a concentricidade; ela é estrutura ou rede esquadrinhando o possível.(...)”.13 Ao comungar dessa análise, entende-se à rede-árvore de poder como um fundamento específico para a dominação e ao alcance de toda sociedade (dos pontos às tessituras e linhas de uma rede, ou mesmo, da raiz às folhas de uma árvore). Nesse sentido, as concepções, facetas nela produzida se sustenta como uma poderosa arma política e ideológica. Dentro desse contexto, o racismo e as ideologias raciais agem no sentido de inverter a realidade social e transformá-la em ideais particulares de mundo: a imagem da classe hegemônica (seja ela política ou civil). Arendt em sua obra postula as condições que levaram as ideologias a penetrarem na sociedade contemporânea. A autora aponta que as ideologias raciais foram um mecanismo de dominação e legitimação de força estabelecida no contexto do século XIX. O fator ideológico ganhou potencialidade para explicar as situações da vida moderna, assim se ideologias têm seu cerne baseado no sistema de única opinião, diretamente associada ao caráter forte e persuasivo, do mesmo modo as ideologias abraçariam um grupo de pessoas, direcionando as suas tendências e experiências sociais. A ideologia, em larga medida, configurou-se como sendo a detentora da “chave da história”, ou mesmo postulou a pretensão de realizar um papel de desvendar os enigmas do universo. Assim, as concepções, facetas por elas produzidas se sustentavam como uma poderosa arma política, e não somente como doutrina teórica, uma vez que resultam em proporcionar argumentos aparentemente coesos, assumindo dessa forma características reais e adquirindo capacidade de produção de “novas verdades”, fascinando desde cientistas e intelectuais às massas.14 As concepções e diretrizes de poder do pensamento racista cristalizaram-se nas dimensões do suporte ideológico. Os contornos dessas ideologias, pautadas sobre o solo da razão e ciência, ganham sustentação na obra clássica do Conde Arthur de Gobineau (18161882) - Essai sur I’inégalité dês races humaines (Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas). Em seu texto, Gobineau transformou uma elaborada doutrina histórica em opinião (diferenciação das classes e posteriormente das raças). O pensador afirmava ter descoberto a “lei secreta da queda das civilizações”, trançando um paralelo entre a história e o lócus da ciência natural.15 13 DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. p. 89-96 ARENDT. Origens do Totalitarismo. p. 189 15 ARENDT. Origens do Totalitarismo. p. 194-195. 14 As teorias raciais foram geradas nesse contexto ideológico propício. Uma das primeiras doutrinas a adentrarem no berço inglês foi o darwinismo social. Inspirado na obra de Charles Darwin “A Origem das Espécies” a analogia com as ciências biológicas permitiu o aparecimento da teoria intitulada como darwinismo social, a qual estabeleceu a idéia da sobrevivência dos mais capazes, ou mesmo que a afirmação da conceituação de raças superiores (branca) e aquelas tidas como inferiores (negros, mestiços, asiáticos). O esmagador sucesso do darwinismo resultou também do fato de ter fornecido, a partir da idéia de hereditariedade, as armas ideológicas para o domínio de uma raça sobre a outra. Entre os principais defensores dessa teoria se encontram os ingleses George Vacher Lapouge (18541936) e Hebert Spencer (1820-1903). Desse modo, a doutrina partiu do princípio da hereditariedade, acrescido do princípio político peculiar ao século XIX – o progresso. A grande repercussão da teoria de Spencer e Lapouge, a qual justificava as diferenças entre os seres humanos, em larga medida, contagiava a nível mundial, conduzindo a discussões das mais simplistas às mais refinadas do ponto de vista intelectual. Nota-se que a partir desses pressupostos estabelecidos, disciplinas que apontavam no ramo acadêmico, como a sociologia e antropologia, valiam-se necessariamente das doutrinas, uma vez que os intelectuais buscavam analisar a cultura, o desenvolvimento das civilizações, mesclando conceitos amplamente difundidos. Daí reforçou-se a idéia de hierarquia racial. Isso implicava em afirmar, que as qualidades fisiológicas e o grau de superioridade dos europeus, justificavam seu sucesso e desenvolvimento frente aos demais. Vista dessa forma, a sociedade foi dividida em escalas sociais e grau de evolução, esse estamento entre as raças compreendia de forma mecânica a evolução biológica, tendo como cume a civilização ocidental e caucasiana, mais especialmente, os países europeus, considerados superiores.16 A partir de tais fundamentos, concebia-se a escola evolucionista, repousada no desenvolvimento humano a partir de etapas fixas e predeterminadas e vinculava, de maneira mecânica, elementos culturais, tecnológicos e sociais. Neste âmbito, a sociedade era representada em forma piramidal, da etapa de selvageria a barbárie e desta última a civilização, teses sustentadas por Spencer, pai do evolucionismo social. Atrelada a crença do darwinismo social uma nova doutrina racial – a eugenia ou a ciência da melhoria da raça. O sentido da ideologia pautava-se na terminologia grega da palavra eugenia que vêm do termo “eu: boa”, “genus: geração”, desenvolvida sob a 16 SILVEIRA. A cura da raça: eugenia e higienismo no discurso médico sul rio-grandense nas primeiras décadas do século XX. p. 31-32 perspectiva do cotidiano social inglês e encabeçada pelo cientista Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin. A teoria eugênica concebida por Galton afirmava que da hereditariedade selecionada resultaria o “gênio hereditário”, e voltava-se a afirmar, que a aristocracia era o produto natural não da política, mas da seleção das raças puras. Sendo assim, o desejo eugênico se sustentava na condição de transformar toda a nação numa aristocracia natural, da qual exemplares seletos viriam a ser gênios e super-homens, verdadeiros “haras humano”, povoando o planeta de gente sã.17 A eugenia galtoniana visava à interferência na hereditariedade a partir dos estudos antropológicos, numa tentativa de melhorar os componentes e matrizes para a geração das “raças futuras”, estimulando casamentos entre os “bem dotados biologicamente” e desenvolvendo programas educacionais para a reprodução consciente de casais saudáveis, desencorajando casais com caracteres supostamente inferiores estabelecidos a partir das anormalidades humanas – casamentos inter-raciais, degenerações físicas, alcoolismo, epilepsia e perturbações mentais – que prejudicariam a hereditariedade das nações. Postulavase inclusive que as pessoas portadoras desses “problemas” deveriam ser esterilizadas e anuladas. Nesse sentido, a doutrina eugênica seria uma forte aliada para conter o avanço de grupos socialmente indesejáveis e elementos belicosos a nação.18 Portanto, uma vez alicerçadas, aceitas e cristalizadas as teorias raciais pelo mundo, o racismo pôde emergir de maneira mais intensa e amplamente potencializado. Destarte, conceituar o racismo na linha de pensamento do poder sob a perspectiva de Deleuze e Guattari, implica estabelecer que o mesmo tornou-se “potência cancerígena” a partir de um tecido micrológico, em que se estabelece enquanto difuso, disperso, desacelerado, miniaturizado, incessantemente deslocado, agindo por segmentações finas (encabeçada pelas teorias raciais), operando no detalhe e no detalhe do detalhe.19 Do veneno ao antídoto: O inimigo racial, a perspectiva da degeneração e a solução brasileira O poder das ideologias racistas aguçam-se no âmbito social a partir de meados do oitocentos, prefigurando-se como uma espécie de “racismo moderno”, baseadas no 17 ARENDT. Origens do Totalitarismo. p. 210 DIWAN. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. p. 50 19 DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. p. 105 18 cientificismo. Essas crenças teóricas em voga no mundo europeu, em larga medida, foram difundidas no Brasil, via de regra, com larga capacidade de adaptatividade. Caudatários, na sua cultura, imitativos no pensamento – e cônscios disso – na verdade, os brasileiros de meados do século XIX estavam muito melhor preparados para adaptar os pensamentos associados à civilização, desenvolvimento e modernização do que para discutir as doutrinas européias inclusive quanto às suas contradições.20 A perspectiva racial brasileira oitocentista denotava contornos pessimistas em relação às doutrinas raciais desenvolvidas em solo europeu. Desse modo, à medida que as postulações e posicionamentos negativos em relação ao típico país miscigenado despontavam, aguçavam o pessimismo e preocupação também das elites nacionais em relação ao futuro da nação. Nas palavras de Schwarcz: Observado com cuidado pelos viajantes estrangeiros, analisado com ceticismo por cientistas americanos e europeus interessados na questão racial, temido por boa parte das elites pensantes locais, o cruzamento de raças era entendido, com efeito, como uma questão central para a compreensão dos destinos desta nação.21 Esses pensamentos, como outros da mesma natureza, entre as décadas de 1870-1930 produziram no país uma ampla difusão, adoção e assimilação das ideologias racistas por parte dos intelectuais e elites políticas e mesmo econômicas, sobre o caso da nação miscigenada, fenômeno de cunho bastante complexo. Nessas discussões ou nas publicações delas decorrentes, a nação brasileira mestiça via-se condenada a permanecer como inferior devido à presença preponderante da raça negra, tendo na matriz africana seu maior elemento de inferioridade, reforçada nos produtos da miscigenação. Nesse âmbito, retomava-se ao discurso das doutrinas raciais européias, de que a mistura de raças heterogêneas era entendida como sendo sempre um erro que levava a degeneração não só do individuo como de toda coletividade. Dessa forma, o protótipo racial brasileiro via-se condenado ao atraso e no descompasso social frente aos países europeus, pois, tinha como obstáculo racial principalmente o elemento africano e suas facetas – herança dos produtos da miscigenação. 20 SKIDMORE. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 13 SCHWARCZ. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-1930). p.1314 21 Diante desse fato, a solução encontrada para o mal do Brasil mestiço e degenerado se estabeleceria na ideologia do branqueamento racial – genuinamente brasiliana – sendo aceita pela maior parte da elite brasileira entre os anos de 1889-1914.22 Para Skidmore, a idéia de se branquear a nação tornou-se uma das estratégias das elites e do pensamento nacional, após abolição. Sua principal preocupação relacionava-se a uma espécie de reformulação racial da população, que permitiria finalmente o acesso ao progresso e ao desenvolvimento nacional. A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade caucasiana, às vezes, pelo uso dos eufemismos como raças “mais adiantadas” ou “menos adiantadas” e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. Nesse postulado, se estabeleciam dois pressupostos fundamentais para no branquear da população brasileira. Pelo primeiro, a população negra diminuiria progressivamente em relação à branca, sendo a redução do contingente negro motivada pela vulnerabilidade social, doenças, suposta taxa de natalidade mais baixa, carência e miséria social. Pelo Segundo, a miscigenação produziria “naturalmente” uma população mais clara, em parte porque o gene branco seria dotado de caráter mais forte e em parte porque as pessoas procurariam parceiros mais claros do que elas.23 Percebe-se que o poder embutido da ideologia do branqueamento para as elites soava de forma otimista, uma vez que a realidade do branqueamento possibilitaria o Brasil enxergar outro futuro racial para sua população, um novo sentido para a miscigenação, não mais uma nação de degenerados, mas sim uma população capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural como fisicamente. Dessa forma, para os intelectuais e elite o “antídoto” para o “veneno” racial da miscigenação começaria a surtir o efeito desejado. As suposições racistas do ideal do branqueamento eram que a superioridade branca e o desaparecimento gradual dos negros resolveriam o problema racial brasileiro. Uma vez que a ideologia do branqueamento é aceita, o mulato representa um passo à frente na direção da “redenção” racial.24 Sob as bênçãos da ciência: a redenção de Can A teoria brasileira do branqueamento ganha contornos mais nítidos, agregando uma forte carga de poder ao assumir fórmula científica repousada na tese de João Batista de 22 SKIDMORE. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 81 SKIDMORE. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 81 24 HASENBALG. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. p. 247-248 23 Lacerda (1845-1915) Sur les Métis au Brèsil (Sobre os Mestiços do Brasil), apresentada no I Congresso Universal de Raças, em Londres de 1911. O trabalho de Lacerda afirmava que o Brasil era um país essencialmente viável por sua população estar a caminho de vir a construir uma raça branca (latina). Para tanto, havia de superar certos obstáculos, a começar pela extinção dos indígenas e negros, e destes últimos em particular, cujos vícios “foram inoculados na raça branca e nos mestiços”. Segundo Ricardo Santos, Lacerda defendia a questão que esses segmentos, por sua inerente inferioridade racial, estavam fadados ao desaparecimento progressivo pelo “processo de redução racial”. Outro obstáculo proposto pelo autor dizia respeito ao enorme contingente de mestiços. Contudo Lacerda dizia que o país estava caminhando para o possível branqueamento porque os mestiços, além de não formarem uma “raça fixamente constituída, tendiam por “seleção sexual”, a ter filhos com brancos, ainda mais no Brasil, onde os cruzamentos não obedecem a regras sociais precisas, onde os mestiços têm toda a liberdade de se unir com os brancos.25 Nas palavras do autor: O mulato, ele próprio esforça-se por meio de uniões matrimoniais para levar seus descendentes de volta ao tipo branco. Já foi visto que, após três gerações, filhos de mestiços apresentarem todos os caracteres físicos da raça branca, embora em alguns persistam alguns traços da raça negra, devido à influência do atavismo.26 Aliado ao dinamismo interno da transformação racial e seu franco otimismo em relação ao futuro do Brasil, Lacerda chamava a atenção ao papel da imigração no processo de branqueamento através da infusão de sangue europeu ariano. Sendo assim, com a imigração branca e outros determinismos sociais, em um período de 100 anos se estabeleceria o total branqueamento da população brasileira e paralelamente a extinção da raça negra, apontando a eugenia caucasiana como forte e mais apta contribuinte do fato.27 Lacerda em sua tese aderiu à moda científica da época, apontando o branqueamento como uma perspectiva, saída e solução para a degeneração racial estabelecida com a mestiçagem. Pode-se dizer que Sur les Métis au Brésil é um exercício de conciliação entre a realidade mestiça da sociedade brasileira e as teorias científicas que desqualificaram o 25 SANTOS. In: PENA. Homo Brasilis: aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo brasileiro. p. 117 26 LACERDA apud HOFBAUER. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. p. 209 27 SKIDMORE. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 82-84 mestiço. O autor termina seu texto com as seguintes palavras: “Um futuro brilhante é reservado ao Brasil.” 28 Necessariamente considerado um “Homem de Ciência”, Lacerda então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro e representante nacional no Congresso racial na Inglaterra, ilustrará seu pensamento com tela “A Redenção de Can” do pintor Modesto Brocos y Gómez29. Interessante perceber que a inspiração do autor para o possível branqueamento da nação brasileira, reviveu o discurso religioso (da maldição de Noé a seu filho Can e sua estirpe) e foi amparado pela história da escravidão africana cuja legitimação teve como sustentáculo a teologia católica do século XVI. Segundo a Bíblia, após Deus ter feito a aliança com Noé e sua posteridade pós-dilúvio, teria o patriarca Noé embriagado-se com vinho e aparecido nu fora da tenda. Can, um dos seus filhos, vendo a nudez do pai, saiu e foi até a presença dos seus irmãos Sem e Jafet comunicá-los o ocorrido. No entanto, Sem e Jafet, viraram-se para não olhar a nudez do seu pai, e tomaram uma capa sobre os ombros e o cobriram. Quando Noé despertou de sua 28 HOFBAUER. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. p. 210 Redenção de Can. Modesto Brocos y Gómez, 1895. Óleo sobre tela, 199 x 166 cm. MNBA, Rio de Janeiro. Pintura de Brocos y Gómez, artista espanhol e membro da Academia de Belas Artes Brasileira. Imagem bastante conhecida para os adeptos do estudo de raça, ciência e sociedade do século XIX, e reivindicada na perspectiva sociológica e histórica. 29 embriaguez, soube o que lhe tinha feito seu filho mais novo (Can) e logo amaldiçoou toda a sua geração, a começar por Canaã, sua primeira descendência. Conta o texto religioso: Maldito seja Canaã, disse ele, que ele seja o último dos escravos de seus irmãos! (...) Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja seu escravo! Que Deus dilate a Jafet; e este habite nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo!30 Segundo Robert Slenes, alguns pensadores querendo encontrar uma justificativa bíblica para argumentar que os negros deveriam ser escravos para sempre, defendiam que os brancos seriam descendentes dos outros filhos de Noé (Sem e Jafet), e os negros descenderiam da estirpe de Can.31 A partir desses postulados bíblicos, foi construída uma “origem da diferenciação” e justificação da escravidão negra pelo discurso religioso do século XVI. Nota-se, que nenhum momento o texto bíblico relaciona explicitamente as personagens bíblicas com características físicas de determinados indivíduos ou grupos humanos, portanto é possível concluir que houve conveniência nessa construção relacional. Desse modo, a obra “Redenção de Can” reviveu a argumentação religiosa do século XVI, uma vez que explicita o caráter da maldição da cor estabelecida por Noé, porém estabelecendo uma condição positiva de abrandar o condicionado do opróbrio e a possível remissão do jugo racial, ou seja, o branqueamento da raça e fuga do estigma da cor. Portanto, a lógica do branqueamento, estabelecida nesse paradigma, elucida tons necessariamente excludentes e elementos intrinsecamente intolerantes, pontos de dominação contidos e estabelecidos a partir da rede-árvore de poder do racismo. Assim sendo, com a segmentação-ramificação do racismo a partir do branqueamento se hierarquiza noções de desenvolvimento e progresso, criando padrões de superioridade e inferioridade entre os povos, e que acentuaram a linguagem do preconceito racial e do racismo brasileiro. Considerações Finais Percebendo a constituição da rede-árvore de poder a partir das postulações de Deleuze e Guattari pode-se concluir que, o centralizado (racismo) não se opõe ao segmentário (teorias raciais). Destarte, comungando do conceito dos autores, usar a conceituação rede-árvore é 30 BÍBLIA SAGRADA. Gênesis 9 -18,29. SLENES. As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na Viagem alegórica de Johann Moritz Rugendas. p. 294 31 obedecer a essa lógica: em que um movimento de poder pode ser centralizado e rotacional e ao mesmo tempo repleto de segmentaridades e “microracismos” . Valendo-se disso, esses dois conceitos, portanto, não são conflitantes, um faz parte do outro e ambos possibilitam a emergência do racismo por meio de pensamentos, conceitos e ideologias diversas que somados, caem num ponto de acumulação e dão respaldo ao poder doutrinal do racismo. Cabe mencionar ainda que a ideologia do racismo foi potencializada a partir das teorias raciais, na medida em que as últimas lançaram estruturas profundas que, em larga medida, excitaram a diferenciação entre as raças, repousados na biologização das diferenças ou na pseudociência. Portanto, toda a pujança do racismo se encontra em primeiro lugar nas micro-organizações de poder, nas segmentaridades-moleculares, ou mesmo, nas ideologias raciais que lhe dava um meio incomparável, insubstituível, de penetrar e banhar cada gênero de células da sociedade.32 Referências: ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Edições Paulinas, 1967. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007. GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Ed.Mazza, 1995. 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