Introdução Hip-Hop Japonês kakumei datta. nimai no rekôdo o hikkaite hitotsu no ongaku o tsukuridasu. ... sono kakki wa buronkusu, tsumari hippu hoppu ga saisho ni hakken sareta basho, soko kara umi o koe nihon ni mo tobihi shita no de aru. sô, densetsu no hajimari da. Foi uma revolução. Arranhar dois discos e criar uma só música. . . . Essa energia veio do Bronx, o lugar onde o hip-hop foi descoberto pela primeira vez, de lá, cruzando o oceano, até o Japão lançou uma centelha e incendiou. Sim, é o início da história. — ECD1 São 3 horas da manhã no subsolo úmido de um clube noturno chamado Family, em Tóquio. A “FG Night”, um evento mensal de hip-hop japonês, começou às 23:00h. Após três apresentações ao vivo, o show está terminando com uma sessão aberta de estilo livre enquanto dois microfones circulam entre 15 ou mais pessoas andando em uma plataforma baixa que serve como palco. Um após o outro, os aspirantes a rappers pegam o microfone e gritam seus versos durante um minuto ou dois, antes que outra pessoa suba e comece sua apresentação. A maioria dos rappers, em idades entre 12 e 25 anos, é de homens, mas algumas mulheres também tentam. É uma competição aberta a todos, comandada pela capacidade de se manter no palco através de frases e estilos sugestivos. Fazem uma pausa, enquanto um dos rappers mais conhecidos toma a frente. O DJ arranhando os discos marca o compasso, enquanto o MC Gaku pega o microfone: “Moriagatten no ka?” (“Vocês estão se divertindo?”) Gaku tenta agitar a multidão gritando “Aí!”, mas já fomos incentivados a gritar várias vezes “Aí!” pelos 15 MCs anteriores. Gaku tem a profissão certa para ele. “Vocês sabem o que significa FG?”, ele grita. “Funky Grammar!”, grita de volta a multidão. Este é o nome do grupo de hip-hop que organizou o evento. “Hein?”, diz Gaku. A multidão grita mais alto: “Funky Grammar!!” Não satisfeito, Gaku exige outra resposta. Em seguida, ele faz sinal ao DJ Yoggy, que já se encontra a postos, para abrir com o refrão da música “ABC” dos Jackson Five, repetindo-a várias vezes, arranhando para frente e para trás cada um dos dois discos que se encontram no toca-discos paralelos. Gaku começa seu estilo livre, modificando seus versos em função da faixa, se referindo ao clube, ao calor e às roupas encharcadas de suor. A cadência de suas letras nos anima, no momento em que ele diz “mostre que você é homem!”, fazendo trocadilhos em relação a “suor”, relacionando-o a sexo e ameaçando tirar suas roupas, e em seguida dizendo: “se você se sente assim, vamos unir nossas vozes e gritar!” Agora, todos 1 “ECD, “Intro” de seu álbum Big Youth (1997, Cutting Edge, CTCR-14075). Embora o álbum seja falado pelo ECD, as letras foram escritas por Egaitsu Hiroshi, um compositor e DJ. Introdução — 2 estão se mexendo e gritando aos berros, arremessando as mãos para frente. Gaku diz, “Aí... paz... tô fora!” e ele deixa o palco. O público sorri e balança a cabeça concordando. É para isso que viemos. Apesar de explorarmos a história do hip-hop no Japão com mais detalhes, à medida que o livro vai avançando, vale a pena observar as mudanças importantes ocorridas no estilo. Inspirado neste filme e reforçado por imagens de breakdance do filme Flashdance, alguns jovens de Tóquio começaram a se reunir todo domingo no Yoyogi Park, onde músicos e outras pessoas se apresentam nas ruas a cada semana. Durante os anos 1980, um número crescente de clubes e algumas estações de rádio começaram a dar atenção ao hiphop, e no final desses anos alguns álbuns de rap em japonês apareceram nas prateleiras das lojas de discos. Mas naquela época, muitos japoneses questionavam se o hip-hop criaria raízes na terra do sol nascente. Quando eu iniciei esta pesquisa, durante uma viagem de verão para Tóquio em 1994, entrevistei alguns editores de revista, representantes de gravadoras e músicos, muitos dos quais tinham dúvidas se o hip-hop iria se popularizar no Japão. De acordo com os céticos, o idioma japonês não se adaptava bem ao rap, não havia nenhuma cultura de rua, os músicos estavam apenas tentando ser um pouco nova-iorquinos e sua percepção dos ambientes sócio-culturais urbanos dos afro-americanos, de onde surgiu o hip-hop, era superficial e por que não dizer completamente equivocado. O hip-hop no Japão era simplesmente consumismo da moda – diziam eles – e, como qualquer moda passageira, desapareceria como os jeans boca-de-sino. Eles estavam errados. Em 2003, o hip-hop foi um dos gêneros musicais que mais cresceram no Japão, gerando um amplo compromisso com artistas e fãs de hip-hop dos Estados Unidos, Ásia e de todo o mundo. Alguns músicos de hip-hop, que passaram uma década ou mais trabalhando em empregos formais enquanto insistiam em suas carreiras musicais, agora podem se sustentar como músicos, se apresentando em shows de TV, comerciais e, por fim, conseguindo importantes contratos e promoções com as gravadoras. No início dos anos 1990, os rappers e DJs lutavam para educar seu público em relação ao significado do hip-hop, explicando em revistas e shows os “quatro elementos” da breakdance, do grafite, do rap e da profissão de DJ, sua origem nos anos 1970 em Nova York, as características do ritmo e das rimas do rap e o estilo de produção musical baseada em sampling e mixagem. Mas no fim dos anos 1990, como um DJ me disse: “Até as vovós têm noção do que é um DJ.” Em 2003, alguns rappers japoneses ostentavam Cadillacs SUV e usavam correntes de platina, enquanto outros condenavam os “ídolos pop” à desonra na música. No início do século 21, houve uma explosão de diversos estilos. O surgimento de diferentes interpretações regionais sobre a música e um panorama underground desabrochando oferecia uma nova perspectiva ao Japão, enquanto os rappers criticavam o status quo e imaginavam um futuro melhor. Ao longo do tempo, o hip-hop se tornou o fenômeno central do panorama da cultura popular japonesa, estudado por aproximadamente 10 anos. Eu afirmaria que ele nos diz algo sobre o movimento emergente das culturas internacionais e sugere políticas culturais que podem ser progressivamente importantes para a compreensão do funcionamento do poder na economia, no governo e na sociedade atual. Introdução — 3 Embora possa parecer estranho para algumas pessoas que existem músicos de hiphop no Japão, dificilmente é raro. Em cidades do mundo inteiro, os jovens estão adotando a forma e o estilo musical como se fossem seus. Agora eles podem ouvir rap em diversos idiomas, inclusive francês, italiano, alemão, coreano e japonês. Existem separatistas bascos, membros da tribo Maori, aborígines australianos, jovens tanzanianos e nativos americanos produzindo suas próprias músicas em rap2. Embora as características inconfundíveis do estilo de cada grupo, na verdade de cada artista, possam ser identificadas é difícil ignorar a predominância visível da cultura pop americana. Afinal de contas, estes músicos se qualificam como MCs e DJs e se identificam como parte de uma cultura global de hip-hop originada nos Estados Unidos. De alguma forma, as apropriações estrangeiras do hip-hop parecem provar que a indústria do entretenimento americana tem o poder de determinar outros estilos de expressão, senão em termos do que ela opina, pelo menos em termos de como ela se mostra e como avalia os outros. No Japão, os rappers locais adotam nitidamente o vestuário, a linguagem corporal e algumas vezes até as pesadas jóias dos rappers americanos que eles assistem na MTV. Se algum tipo de “cultura mundial” está se desenvolvendo, não parece ser mostrada nas roupas, gêneros de música e tipos de lazer entre os ricos jovens urbanos em todo o globo. Mesmo assim, a insistência da predominância americana foge de uma pergunta: Até que ponto o hip-hop é nipo-americano? Enquanto um número crescente de pessoas no Japão e em outros lugares acreditam que fazem parte de um movimento global de hip-hop, existem formas em que a americanidade do hip-hop está se tornando cada vez mais enfraquecida, em parte porque os hip-hoppers de toda parte expressam a importância de fundamentar sua música na realidade de um único idioma, um único grupo. Além disso, para os japoneses que se adaptaram à música, o hip-hop é visto como “cultura negra” e não como “cultura americana”, que destaca muito mais as dimensões raciais e étnicas da música do que sua origem nacional. A América ainda é o principal ponto de referência, com a cidade de Nova York no fim dos anos 1970 reconhecida como a origem (genten) do hiphop. Atualmente, o mercado americano permanece como o maior centro comercialmente produtivo do gênero. Mas com o passar do tempo, a geração mais jovem de ouvintes japoneses está ouvindo cada vez mais hip-hop na língua japonesa, falando sobre as questões e temas de suas próprias vidas e aumentando a possibilidade de um dia o hip-hop ser tão japonês quanto o karaokê. Esta tensão entre o hip-hop afro-americano e o hip-hop transracial e transnacional destaca a dimensão de sua importância, ou seja, ela funciona como uma janela sobre a natureza do diálogo cultural no mundo de hoje. Para algumas pessoas, este diálogo é um pouco mais do que furto em lojas. Um escritor da revista Vibe, baseado nos Estados Unidos, discute reggae e hip-hop japonês com um olhar preconceituoso, perguntando: “Onde está o limite entre apropriação cultural e roubo cultural?” (Dreisinger 2002: 134). Igualmente no Japão, alguns comentaristas observam a tentativa de tornar o hip-hop mais japonês para promover um nacionalismo arriscado que nega a base da música carregada de preconceitos raciais (Asahi-Shimbun 1999). Este tipo de atitude aponta para a importância de se observar a cultura popular não 2 Veja Mitchell (2001). O rap Tanzaniano é discutido em Weiss (2002). Introdução — 4 apenas como um exemplo de força dos meios de comunicação, mas como uma janela sobre algumas das coisas mais significativas do dia-a-dia dos japoneses. À medida que o hip-hop cresce em visibilidade e popularidade no Japão, podemos usar este estudo de casos para avaliar as ramificações sociais e culturais da música. Uma série de perguntas sugere algumas formas deste debate relacionar-se às raças, línguas, nacionalismo e globalização na tentativa de avaliar a força da cultura popular internacional. O hip-hop japonês é uma produção cultural inovadora ou é simplesmente uma imitação? É uma oposição ou cumplicidade com o capitalismo da indústria do entretenimento? É o surgimento de uma “cultura hip-hop global” ou simplesmente o novo estilo cultural estrangeiro a ser perfeitamente integrado na “cultura japonesa”? É uma propagação do “consumismo ao estilo ocidental” ou um processo de “americanização”? É o sinal de um novo e emergente “Império” internacional em extensão, porém não centralizado em nenhum país em particular? Que tipos de impacto social e cultural estão associados com a propagação dos estilos de música? O que impulsiona esta propagação de estilos e até que ponto ela se move “de cima para baixo” ou “de baixo para cima”? (Na verdade, o que significa “em cima”? América? Conglomerados dos meios de comunicação? Dr. Dre?) Se ela for “de baixo para cima”, emergindo de forma sistemática a partir dos artistas locais, dos estilos de vida e da política, isto significa que não há nada a temer em relação à consolidação das empresas de comunicação e à propagação internacional da cultura popular? Uma condição básica deste livro é que não podemos julgar estas questões somente através do raciocínio abstrato. O significado do hip-hop japonês surge das práticas existentes dos produtores e consumidores, do que a música transmite e por meio de sua circulação comercial e cultural. Era de se esperar que o uso da cultura popular na sociedade talvez fosse mais bem definido por uma profunda ambivalência, um questionamento de base das relações entre identidades e expressões, entre histórias incompatíveis e futuros imaginados e entre arenas heterogêneas de debate envolvidas nas correntes das marés globais. Este estudo de casos do hip-hop japonês, através de uma abordagem baseada em trabalho de campo e etnografia, pode nos ajudar a responder estas e outras questões-chave sobre os estudos culturais adequados ao mundo de hoje. Se o século 21 demonstrasse a força do estado-nação como ideologia e organização com potenciais destrutivos e criativos, este novo século exigiria que nós lutássemos corpo a corpo com as interconexões que atravessam as fronteiras nacionais, como a propagação das redes terroristas e dos complexos militares, corporações multinacionais, organizações internacionais nãogovernamentais, conglomerados internacionais dos meios de comunicação ou os movimentos sociais e culturais internacionais. É evidente que as conexões culturais não terminam nas fronteiras internacionais, embora compreender o que estes novos meios de conexões significam exija a extensão da nossa compreensão de cultura em novas direções. Estudar o Japão através das vozes da música hip-hop possibilita um cenário para desvendar as posturas em relação ao diálogo que cria novas pontes e define novas fronteiras. O Japão oferece a situação-chave para o estudo destes problemas, em parte porque é o principal ponto de conexão entre o consumo e produção de estilos da cultura popular, e também por causa de sua posição central na economia política internacional. Ele é a segunda maior economia e o segundo maior mercado de música, no mundo, ainda que Introdução — 5 esteja enfrentando uma crise no capitalismo e desafios à sua democracia que revelam os problemas que pessoas no mundo inteiro enfrentam. O Japão provoca debates, em parte por causa de sua natureza contraditória como um país de capitalismo não-ocidental, pósindustrial – a cobiça da Ásia durante o rápido crescimento econômico do pós-guerra – mas que há uma década sofre de uma debilitante recessão. Apesar de possuir uma população de pessoas idosas, afetada por baixos índices de natalidade e com expectativa de vida longa, o Japão ostenta uma cultura jovem vibrante que muitas vezes é o foco dos debates sobre como o país está mudando. Até certo ponto, a questão da posição do consumismo entre os jovens tem se tornado um pára-raios das ansiedades em relação ao Japão como a terra do sol nascente. Embora hoje os jovens de vinte e poucos anos tivessem crescido no auge econômico da “economia efervescente” dos anos 1980, eles foram testemunhas da decadência consistente das fortunas econômicas do Japão nos anos 1990 e agora estão enfrentando a possibilidade de empregos preocupantes. Os jovens são paradoxalmente vistos como a causa e o produto dos tempos de dificuldade econômica e o símbolo de algumas relações penosas em relação ao capitalismo. Uma categoria social relativamente nova, os “freeter” (furiitaa), que se refere aos jovens trabalhadores em regime de meio expediente em setores de serviços sem perspectivas de progresso, é considerada nos meios de comunicação e relatórios do governo como um símbolo da “falta de comprometimento” com o trabalho, embora estas pessoas também manifestassem uma dedicação submissa ao consumismo estúpido. Embora o público de hip-hop japonês esteja rapidamente se expandindo na cultura predominante, a maioria dos fãs nos shows ao vivo é de estudantes universitários ou de freeters. As adolescentes nos anos 1990 também eram o foco de um pânico moral, enquanto a prostituição nas escolas de segundo grau ecoava, as “companhias pagas” das adolescentes com homens mais velhos (não necessariamente incluindo sexo) e o ousado consumismo de marcas famosas eram as principais notícias. Juventude, consumismo e a inconveniência do espírito empresarial entre as meninas que, em seus uniformes escolares, se consideravam um artigo de “marca famosa”, todas elas formam o símbolo de uma crise no âmbito econômico que era vista tanto como a popularização da vitalidade e sexualidade dos jovens como os empréstimos bancários não conseguidos. Enquanto os meios de comunicação se concentravam no fracasso dos pais e na moral duvidosa dessas jovens mulheres, a juventude em todo o Japão enfrentava a decadência das chances de emprego, do futuro incerto e da promessa não-cumprida que anos de árduo estudo resultaria em uma maturidade confortável. Neste ambiente, os hip-hoppers japoneses procuraram examinar um espaço de apresentação de onde tirariam inspiração do status de observadores e do espírito antagônico do hip-hop, numa tentativa de falar ao público que eles cresceram desiludidos dos ícones pop que influenciavam os grandes meios de comunicação. De alguma forma, eles procuravam recuperar sua identidade declarando que não é o que eles vendem nem o que eles consomem que define quem eles são; ao contrário, é o que eles têm a dizer. O que eu aprendi com estes músicos é que sua abordagem criativa para se expressar pode nos ajudar a desenvolver novas formas de raciocínio sobre as relações entre cultura e local, cultura e economia e cultura e poder. São estas três dimensões da análise cultural que reaviva o argumento a seguir: O hip-hop japonês mostra que estas preocupações não são Introdução — 6 simplesmente especialidade dos teóricos acadêmicos da cultura, são também ativamente discutidas na construção de identidades que buscam se basear nas sociedades em transformação, enquanto recorrem a um amplo conjunto de recursos culturais para imaginar um futuro diferente. A minha estratégia é trabalhar visivelmente com base nas práticas e percepções individuais que motivam os rappers japoneses. Espero que este projeto possa nos despertar para os tipos de política cultural internacional que oferecem novas possibilidades em um mundo que, bem ou mal, está se tornando cada vez mais interconectado. SITUAÇÃO “The Power from the Sky” (King Giddra, 1996) Quando os rappers Zeebra e K Dub Shine, junto com o DJ Oásis, pensaram em um nome para seu grupo, eles queriam algo com um toque internacional de sabor japonês, e também com um olhar atento em relação à sociedade japonesa predominante. Zeebra descreve em uma entrevista a uma revista de música porque o grupo se decidiu por King Giddra, um monstro espacial com três cabeças que luta com Godzilla em um dos muitos filmes da série. Primeiro, percebemos que Godzilla era um personagem internacional que representaria (repurezento) um Japão internacional. Mas Godzilla podia ser encontrado em muitos lugares, então decidimos por King Giddra. Era exatamente como nós: um grupo de três pessoas. Além disso, no filme King Giddra é um cara mau, mas como inimigo público (paburikku enamii) ele está fazendo algo extremamente positivo, certo? Ou seja, como inimigo do público, somos inimigos do sistema que nos oprime. Vemos o sistema como inimigo e, para nós, Godzilla é o sistema. Somos como “tropas da defesa planetária” (risos). Para os que não entendem, contaremos a verdade. (Kido 1996: 42) Para eles, King Giddra expressava tanto um símbolo internacional quanto japonês. É transformando a verdade em expressão que as categorias locais e globais não são exclusivas, mas atuam em uma relação dialética, uma passando informação à outra. Jennifer Robertson (1997) descobre em sua análise as relações interativas entre os esforços do Japão para se internacionalizar e, ao mesmo tempo, revitalizar as cidades rurais como furusato ou as nostálgicas câmaras mortuárias dos nativos japoneses. Ela menciona um sociólogo japonês, Kurita Isamu, que fez a seguinte associação: “a internacionalização do estilo de vida faz com que as artes tradicionais japonesas pareçam totalmente estranhas e exóticas. Analisamos a nossa tradição da mesma forma que um estrangeiro e estamos começando a gostar disso” (Robertson 1997: 97). Outros estudiosos analisaram as diferentes percepções da mudança cultural do Japão em termos da expectativa e da “racionalização e nostalgia” (Kelly 1986), ou como um discurso do desaparecimento das formas culturais (Ivy 1988). Mas King Giddra reconhece que a fronteira entre o “estrangeiro” e o “japonês” é precisamente o que está sendo discutido sobre o trabalho dos rappers japoneses, bem como em relação à forma de produzir músicas que contam com trechos de gravações de outras pessoas. Introdução — 7 Zeebra: A idéia não é observarmos o mundo como se estivéssemos no planeta, mas como se não fizéssemos parte dele e pudéssemos olhar do alto. Por causa deste significado, escolhemos o título “power from the sky” (“o poder dos céus”). . . . K Dub Shine: Aconteceu também um imprevisto na hora de escolher o título e o nome King Giddra. Foi quando estávamos “arranhando” alguns trechos de uma canção do Public Enemy: “Black Stell in the Hour of Chaos”. Extraímos a parte “Power from the sky / From the tower shots rang out.” (Entrevista com o compositor, abril de 1996) O costume de utilizar trechos de músicas existentes como um novo modelo de criatividade cultural e a compreensão de que o Japão não é a única origem desta identidade, nem o único alvo de suas expressões, ilustra dois aspectos ao repensar nas relações entre identidade e situação do hip-hop japonês. George Marcus sugere o termo “o ativista imaginário” para descrever como grupos indígenas podem usar os meios de comunicação em parte como resultado de “projetos emancipatórios . . . levantando novas questões sobre cidadania e o formato dos setores públicos” (Marcus 1996) mencionado em (Ginsburg, et al. 2002a: 8). Ainda que a libertação copiada e imaginada por King Giddra seja completamente diferente. A canção do Public Enemy detalha uma fuga do corredor da morte e “power of the sky” se refere aos tiros vindos das vigilâncias das torres. Para King Giddra, eles são o poder dos céus, celebrando seu movimento além das fronteiras do país da maneira como eles imaginam e enunciam um novo Japão, e talvez algum dia falar para seus fãs além de suas fronteiras. O que significa “o sistema” a que eles se opõem? Em seu álbum de 1995, as palavras para a “sociedade de credenciais” são afiadas, dando ênfase ao aprendizado por memorização dos exames de admissão nas escolas. Ao dizer: “crushes the dreams of children” (“reprima os sonhos das crianças”), eles criticam tanto as “mães-educação” que forçam seus filhos a estudar quanto os próprios estudantes que aceitam a idéia de que a perseverança educacional os fará conquistar ótimos empregos após a universidade. Recentes estatísticas do governo mostram que um entre quatro graduados em universidades encontra-se desempregado, e Zeebra compõe raps sobre o tema. Em um show ao ar livre em 1996, K Dub Shine intimou o público a gritar para o Ministro da Saúde, que se encontrava visível nas galerias, para protestar sobre o escândalo que envolvia sangue contaminado com HIV e que ele tentou encobrir. Os temas, e às vezes a atitude intimidante por parte do público que este álbum recebeu, sugerem algumas das formas que o estilo hiphop internacional é usado para combater problemas locais. Mas concluir que esta é uma outra forma de dizer que a globalização não leva à homogeneização é simplificar demais o diálogo que gera o rap no Japão. Um dos desafios mais recentes relativo às pesquisas culturais foi reconceber a relação entre cultura e local, à medida que os processos de globalização intensificam os contatos e os choques entre hábitos culturais. Vale a pena notar que o movimento das formas culturais através das fronteiras geográficas possui uma longa história, tão longa, sem dúvida, quanto a história da humanidade. Já o surgimento do estado-nação e o vínculo entre comunidades idealizadas e instituições do governo do estado solidificaram as formas Introdução — 8 de pensamento sobre cultura como delimitação geográfica e como parte do instrumento que proporciona coerência ao sistema mundial (Anderson 1991; Wallerstein 1976). A freqüentemente citada homogeneidade do Japão, que carrega implicações raciais preocupantes e tem problemas em atenuar a diversidade dentro da sociedade, ainda é usada como explicação para as políticas internas e posturas perante outras nações, como por exemplo, em relação às políticas de imigração e comerciais. Este vínculo entre o local e a natureza patriótica também é promovido pelos japoneses através de um amplo organismo de produção literária conhecido como nihonjinron (“sabedoria do povo japonês”) (Befu 2001). De acordo com esta linha de literatura, o Japão é caracterizado pela homogeneidade de raças e da natureza patriótica, e que é mais bem compreendida através de seus contrastes com o ocidente. Ironicamente, os rappers japoneses que se esforçam para ressaltar as injustiças sociais disfarçadas por essas afirmações de homogeneidade são criticados pelos estudiosos por não terem nenhuma base onde se apoiar, porque eles são apenas jovens de classe média, como qualquer outra pessoa no Japão, e o uso do hip-hop é tão simples quanto uma afirmação de estilo. “Com relação aos jovens que estão se concentrando na cultura hip-hop unicamente como um estilo, em Shibuya e Harajuku, eu sinto esta sensação de incompatibilidade. E mesmo quando alguém levanta o dedo médio em um grande ‘fodase’, dá apenas um arrepio.” (Tachikawa 2002). Quando os jovens japoneses expressam sua afiliação à cultura hip-hop e seu encantamento pelo expressivo estilo negro nos filmes, vídeos musicais e na TV, fica claro que o imaginário transnacional e transracial rompem o vínculo da nossa cultura com o local e com determinadas pessoas. Apesar disso, alguém reflete sobre a proporção com que esta afiliação idealizada é concretizada na mudança dos padrões sociais e culturais da organização? Um dos elementos de debate sobre deterritorialização das formas de cultura se relaciona à questão de algum tipo de homogeneização cultural que está a caminho. Por um lado, é como se lugares diferentes se tornassem cada vez mais parecidos. É bastante assustador viajar de Nova York para Tóquio e ver os adolescentes em ambas cidades vestindo os mesmos tipos de roupa dos fãs de rap: calças folgadas com cuecas ou calcinhas aparecendo, toucas ou bonés e tênis imaculados. Em Shibuya, o badalado centro de compras dos jovens de Tóquio, o rap é a música ambiente recomendada. O grafite foi criado após artistas do aerossol revestir inúmeras paredes, posters e interiores de lojas. É comum ver dançarinos de break praticando à tarde ou à noite em parques públicos. Durante toda a noite, nos clubes de dança de Tóquio, os rappers japoneses e os DJs sobem ao palco e dizem que eles têm “uma boa merda” (geki yaba shitto) — que significa “boa música” — para compartilhar com o público. Nas revistas de música, no rádio e mais recentemente na TV, os rappers japoneses discutem como a “cultura hip-hop” pode interagir com a identidade japonesa, recorrendo ao passado para criar algo novo em um cenário transcultural. Para muitos jovens urbanos, o hip-hop é o estilo característico da época. Nos anos 1970, o paradigma do segundo grau era cabelos longos e o solo alterado de uma guitarra. Hoje, os modelos estão mais propensos aos cabelos de trancinhas (tipo Rastafari) e a exibir suas técnicas em dois toca-discos e um aparelho de mixagem. Mas ao mesmo tempo, existem motivos para se pensar que essas superfícies aparentes de uniformidade ocultam diferenças em níveis mais profundos. Introdução — 9 Na verdade, existe um grupo crescente de estudiosos já demonstrando preocupações em relação à perda do imperialismo cultural. Até mesmo os principais ícones da americanização – McDonald’s e Disneylândia – são reinterpretados ao serem transferidos para os ambientes asiáticos (Brannen 1992; Raz 1999; Watson 1997). Em Taiwan, os estudantes adotaram o McDonald’s como ponto de encontro dos jovens, destruindo aos poucos a imagem de “fast food”. Em Pequim, o McDonald’s é um restaurante luxuoso que deixa muito a desejar, e no Japão as crianças que cresceram com o Makudonarudo, como ele é chamado, raramente identificam sua origem americana. Existe até um verbo em japonês para dizer “ir ao McDonald’s”: makudoru. Os visitantes da Disneylândia de Tóquio encontram uma enorme área de compras comparada à Disneylândia nos Estados Unidos, em parte porque os japoneses são culturalmente forçados a dar mais presentes à família e aos amigos do que os visitantes americanos. Além disso, a narrativa que domina o layout da Disneylândia nos Estados Unidos é transformada com sutileza na versão de Tóquio. As pessoas podem pensar que um determinado fenômeno que representa “homogeneização global” ou “heterogeneização local” é basicamente uma questão de parâmetro. Mas enquanto for verdade que qualquer fenômeno supostamente global irá revelar as características locais se alguém simplesmente o “ampliar” para uma perspectiva mais detalhada, também se tornará visível que algo “global” ou “local” ignora a questão importante da natureza e das conseqüências da mistura ocorridas. Em outras palavras, torna-se claro que a importação dos produtos culturais americanos não leva à americanização absoluta, mas então como podemos compreender a influência? Retornando ao exemplo do primeiro álbum de King Giddra, seus temas sugerem uma perspectiva “local” adequada ao hip-hop japonês, e ao mesmo tempo as músicas e as letras também foram mixadas com elementos estrangeiros. A faixa de fundo apresenta trechos do Public Enemy (“the power from the sky”) e do Beastie Boys (“Get ready, ‘cause this ain’t funny”), bem como outras músicas ocidentais, tornando explícita a conexão a um mundo hip-hop maior. As letras de King Giddra retratam a descoberta do hip-hop americano nas lojas de discos underground de Tóquio e o desejo de difundir a cultura no Japão, que eles vêem como o envolvimento da “defesa planetária” através do uso da “bala da verdade que redireciona as células cerebrais”. Ao contrário de muitas músicas populares japonesas que freqüentemente incorporam palavras da língua inglesa em seus refrões, o uso apenas da língua japonesa por esses rappers sugere uma orientação patriótica muito forte, e o japonês que eles usam é diferente do japonês clássico, adicionando uma intensidade rítmica que o idioma normalmente não possui. O estilo denso dos versos, comum a quase todos os rappers japoneses, é uma característica da ausência da arte poética japonesa. Nem totalmente global nem inteiramente local, a música representa um certo tipo de compromisso com o idioma japonês e com a política cultural que ganha força a partir das referências globais e locais. Portanto, seria um erro visualizar todas as práticas locais como “resistência” à homogeneização global, porque o que importa é como as dinâmicas locais e globais se entrelaçam. Além disso, estes contextos locais e globais se modificam à medida que o interesse no hip-hop se expande em outros países e a fecundação cruzada entre diferentes cenários se torna mais difundida. Até mesmo os rappers americanos estão cada Introdução — 10 vez mais adicionando palavras japonesas em seus raps, após anos de passeio no Japão que geraram uma certa familiaridade com o idioma. Jonathan Friedman afirma que uma “antropologia global” adequada tem obrigação de manter a perspectiva onde “os processos culturais são interpretados como incorporados ao mundo, ao espaço e às experiências sociais suscetíveis à análise” (1994: vii). A questão é que mesmo que nos impressionemos com a espetacular hibridez das formas e identidades culturais internacionais, elas não apareceram do nada, são apenas produzidas por determinadas pessoas que vivem nas encruzilhadas das forças globais e locais. Fica evidente que as culturas e os lugares ainda se relacionam, mas a relação não pode ser caracterizada simplesmente pelo traçado de novas fronteiras geográficas. Na verdade, o que é particularmente impressionante sobre a nação hip-hop global é que ela se sobrepõe (ou cava um túnel) a outros grupos culturais de uma certa maneira que a desafia a distinguir “local” de “japonês”, como quando K Dub Shine representa o habitat de seu Shibuya, ou Zeebra, de acordo com as recentes tentativas solos, se designando como o “Jonan, o punguista”, referindo-se particularmente a uma área sofisticada de Tóquio. Essas referências localizadas – o local dentro do país e dentro do contexto internacional – apontam para a importância de se desenvolver interpretações da cultura que se transportam para além do método de “estudos de áreas”, no sentido de que existem orientações culturais sobrepostas dentro e ao longo das áreas. Esta é uma das questões mais urgentes da análise cultural, não apenas para aprofundarmos nossa compreensão da cultura, como também para nos fornecer as ferramentas analíticas de aproximação de um mundo comprimido, sempre com interesses crescentes no contato cultural, no intercâmbio e no conflito. Se a cultura não está mais limitada a determinadas localidades geográficas ou mesmo a grupos específicos de pessoas, então como concebemos a cultura? Está se tornando cada vez mais aceitável que a cultura não é algo continuamente herdado dos ancestrais de um indivíduo, mas construído através de processos de reprodução e transformação. Em vez de conceber a cultura como uma totalidade restrita e coesa, compartilhada quase que igualmente por todos os membros de um grupo, faz mais sentido concebê-la como um campo de significados viáveis. Esses significados são compartilhados apenas até certo ponto e recheados de contradições e ambigüidades. Em vez de enumerar as várias críticas ao “conceito de cultura”, eu simplesmente gostaria de chamar a atenção para o fato de que a cultura não pode ser definida de uma forma que agrade a todos, e isso também deve ficar claro para os fãs do hip-hop que constantemente discutem sobre o verdadeiro significado da cultura hip-hop. O importante é que a concentração na cultura nos permite vislumbrar uma certa dimensão da existência humana, a que dá pouca atenção aos campos da economia e política, especialmente em uma época onde o capitalismo dos meios de comunicação e do entretenimento se concentra cada vez mais no significado cultural. Jean e John Comaroff oferecem uma definição de cultura como: o espaço de práticas significativas, o terreno semântico onde seres humanos procuram construir e representar eles mesmos e os outros – e, por conseguinte, a sociedade e a história. . . Ele possui forma, bem como conteúdo; nasce na ação, assim como no pensamento; é um produto da criatividade humana, ao mesmo tempo Introdução — 11 em que é imitação; e, sobretudo, possui o poder de decisão. Mas não possui todo este poder da mesma forma ou o tempo todo (Comaroff e Comaroff 1991: 21) Assim, se considerarmos as formas pelas quais a cultura chama nossa atenção para os significados que norteiam as ações dos indivíduos e as formas com que as práticas e as experiências reforçam (ou contradizem) estes significados, podemos observar como os estudos culturais possibilitam a análise de certos contextos. O que fica claro é que de alguma forma este espaço de práticas significativas é cada vez menos restrito aos limites da geografia, e neste sentido, a deterritorialização da cultura é um fenômeno bastante real. Os músicos japoneses podem ouvir as músicas mais recentes nos Estados Unidos em apenas algumas semanas após o lançamento em Nova York e Los Angeles. Eles acompanham de perto os estilos de diferentes produtores, se comparam ao DJ Premier, Swizz Beats, Timbaland e RZA. Existe uma conectividade global neste mundo sônico, mediada pelo vinil, inspirada pelo potencial recombinatório dos equipamentos de remixagem digital. O desafio é encontrar formas de caracterizar a cultura sem depender exclusivamente da tautologia que a cultura de um lugar (ex.: Japão) é o que acontece naquele lugar (ex.: as ilhas japonesas). Vale a pena ressaltar também que as formas em que a cultura detém poder são uma das preocupações mais urgentes da teoria cultural. Isto ajuda a explicar a importância na conceitualização de Arjun Appadurai sobre a análise dos fluxos culturais internacionais. Ao transitar além da análise da globalização “política, econômica e cultural”, ele se concentra, ao contrário, nos meios de comunicação e migração como dois recursos globalizados da modernidade. Conforme Louisa Schein (1999) escreveu: a sua ênfase está na mobilidade – de pessoas, de sinais – provocada por estes estilos contemporâneos. . . Seu ponto principal não é que as pessoas vivem cada vez mais vidas semelhantes sob a modernidade, mas ao contrário, elas podem imaginar – e algumas vezes colocar em prática – vidas cada vez mais diferentes através dos potenciais de consumo dos meios de comunicação e da mobilidade geográfica. (Schein 1999: 362-363) Eu gostaria de chamar atenção para o termo “colocar em prática”, porque esta me parece ser a questão central. Para Schein, a minoria rural de Miao, na China, coloca em prática a modernidade através de atuações contraditórias, como o casamento, por exemplo, que mostra como a identidade deles determinada como “tradicional” pela maioria dos chineses é negociada e transformada para incorporar os símbolos da modernidade. A novidade de Schein é chamar nossa atenção para o enfoque sobre a modernidade como algo apresentado que pode nos ajudar a entender como as pessoas colocam em prática suas identidades através da utilização específica e contextualizada dos estilos e práticas globais. Primeiramente, talvez, ela prova que a compreensão destes sinais de modernidade exige a determinação de seu uso na vida diária de Miao. Appadurai mapeia a mobilidade, através dos meios de comunicação e migração, introduzindo a idéia de uma desconexão entre diferentes “evasões” dos fluxos globais, que Introdução — 12 ele divide em pessoas, meios de comunicação, tecnologia, finanças e ideologia. O modelo dele enfatiza as desconexões entre “evasões”, discutindo que elas são “não-isomórficas”. Em outras palavras, o escoamento de dinheiro (evasões financeiras) não necessariamente envolve o fluxo de idéias (evasão de idéias). O objetivo de Appadurai era levantar a hipótese de que locais e assuntos diferentes conferem uma mistura diferente na importância de cada uma dessas “evasões”. Ele salientou, por exemplo, que os japoneses são muito receptivos aos fluxos de idéias, mas bastante inflexíveis em relação à imigração. Infelizmente, poucas pessoas seguiram esta observação e em vez da utilidade principal de Appadurai ter sido a escolha de uma simples “evasão” e se concentrar nela, ou, por outro lado, inventar novas evasões, tais como a “evasão religiosa” de Diásporas religiosas (Waters 1995), “evasões de esportes” de esportes profissionais, “evasões de alimentos” e assim por diante. A idéia que estes fenômenos difundem, para além das fronteiras nacionais e do desejável para mapear estas formações emergentes, é boa intrinsecamente, mas a proliferação dessas evasões levanta a questão: Existe alguma maneira de conectar essas diferentes dimensões de fluxo? Reagir a este desafio exige a transferência de foco em nosso interesse na deterritorialização das formas culturais para longe da identificação das características “globais” e “locais” dos estilos internacionais e voltar nossa atenção para a análise dos hábitos onde esses estilos estão incorporados em certos contextos sociais. A compreensão dessa incorporação não deveria depender somente da revelação dos elementos “locais”, mas poderia servir para a nossa compreensão do poder da cultura inquirindo as maneiras das políticas de mercantilismo e cultural do hip-hop japonês se empenharem em uma mudança social, política e econômica mais abrangente dentro do Japão, e até mesmo além das fronteiras do Japão. Em outras palavras, embora todos as tentativas em mostrar o quanto é importante que a globalização cultural não leve simplesmente à homogeneização da cultura, a questão mais urgente da análise cultural de hoje se concentra na questão de como novos movimentos culturais articulam com o capitalismo e a política em um mundo internacionalmente interligado. ECONOMIA “Protect Him (from what he wants)”—Scha Dara Parr (1993) Para melhorar a nossa compreensão do vínculo entre cultura e capitalismo, eu destaco duas questões essenciais. A primeira se preocupa com a acusação de que os jovens japoneses transformaram a cultura hip-hop simplesmente em uma afirmação de moda. De acordo com as declarações de críticos como Yvonne Bynoe (2002), “cair na real” sobre o hip-hop global significa reconhecer que os japoneses transformaram-no em um objeto de consumo. A segunda questão pertinente é como podemos entender melhor o ciclo de feedback entre produção cultural e consumo. Se for verdade que os consumidores cada vez mais conduzem as atuais indústrias de entretenimento, como esse poder é exercido e que tipo de poder é esse? Introdução — 13 Uma das perspectivas em relação ao vínculo entre cultura e capitalismo na cultura jovem do hiperconsumismo do Japão vem de um grupo de três pessoas fora de Tóquio. Scha Dara Parr é um dos grupos de hip-hop japonês mais bem-sucedidos, formando um poderoso grupo de adeptos através de seu estilo inconfundível de jogo de palavras e de canções divertidas. Até mesmo o nome do grupo é formado por sons basicamente sem sentido, mas que sugerem uma pessoa de cabeça vazia, perdendo tempo. Composto por dois irmãos, Ani (MC) e Shinco (DJ) e o líder MC Bose, o SDP tentava alcançar seus objetivos de continuar produzindo álbuns e tours com sucesso durante os anos 1990, enquanto outros rappers japoneses lutavam para viver em empregos que os sustentassem. Durante meados dos anos 1990, Bose era um dos apresentadores de um show popular de TV para crianças chamado “Ponkiki Kids”, e até mesmo os atos explícitos dos japoneses que discordavam do estilo humorístico do SDP deram crédito ao grupo para trazer o estilo rap a um público muito jovem. O nome do grupo é composto por sons sem sentido. O SDP, como o grupo também é conhecido, expressa uma aparência mais divertida para a cultura jovem, se comparado à descrição medonha do King Giddra, mas o seu bom humor não impede que se questione sobre a obsessão do consumo de seu jovem companheiro. Em uma canção chamada “Protect Him (From What He Wants)” (título em inglês), o protagonista não consegue deixar de comprar discos, um sampler de músicas, CDs e camisetas nos shows e “even more than he can carry” (“muito mais do que ele consegue carregar”). Eles compuseram um rap, “his basic principle: just buy it!” (toriaezu katchau, sore ga kihon) (“a regra básica dele: compre!”) Que os membros do SDP criticam o consumismo cego pode parecer hipócrita, já que eles estão bastante atentos à tendência da moda, mas o que é importante é o modo que eles, através da música, inventam um mundo em que comprar coisas pode ser importante, mas só até o ponto de poder revigorar as amizades com seus companheiros. Este é o tema que oferece um dos pontos de entrada mais importante para uma compreensão mais profunda da música rap japonesa, ou seja, a questão da definição de valores alternativos em um mundo em que o intercâmbio capitalista é cada vez mais visto como o principal intermediário do valor. O mercantilismo é um tema importante para analisar o hip-hop japonês, em parte porque estes B-Boys e B-Girls japoneses são freqüentemente ignorados por observadores externos por tornar a cultura hip-hop, primeiramente, em objeto de consumo. Com lojas de discos de vinil a preços altos, salões de beleza cobrando acima de $400 para criar um “dread hair” (trancinhas rastafaris), clubes noturnos que custam $30 para entrar e CDs gravados no Japão que custam quase o dobro dos CDs nos Estados Unidos, é fácil dizer que os jovens de classe média e classe média alta que são atraídos para o hip-hop não passam no teste de se “manter autêntico”, precisamente porque todo o dinheiro que muda de mãos revela a espinha dorsal do movimento. Até o ponto em que o hip-hop nos Estados Unidos tem a ver com “todos os Benjamins” da era do materialismo, como na ostensiva exibição de acessórios de platina e diamantes, existe uma ética de compromisso de apresentação e estilo de vida que despreza o gasto de dinheiro como principal indicador de um comprometimento com o hip-hop. Porém, mesmo que este exemplo único do SDP ilustre, os japoneses também estão preocupados com o perigoso consumismo na cultura jovem. De alguma forma, a rapidez com que os observadores americanos do hip-hop japonês Introdução — 14 desprezam seu trabalho como um “simples consumismo” é mais bem relacionado ao estereótipo da juventude japonesa. As preocupações sobre a situação das relações econômicas que substituem as relações sociais mais completas, mais significantes, não são exclusivas do Japão, mas a juventude japonesa é envolvida nestes debates de forma instrutiva. Atualmente, a juventude japonesa nos meios de comunicação norte-americanos é de certa forma representada paradoxalmente como consumidores obsessivos e como trabalhadores preguiçosos, talvez representando uma grande mudança em nossa compreensão sobre o capitalismo contemporâneo guiado cada vez mais pelo consumo em lugar da produção. No Japão, um termo que representa o caráter dual da juventude e da economia é “freeter” (furiitaa), que se origina da palavra arubaito, que significa trabalho de meio expediente e derivado de arbeit em alemão e de “livre” em inglês. Assistindo aos eventos dos clubes hip-hop, achei que a maioria dos clubbers era de estudantes universitários e alguns estudantes de segundo grau, mas uma grande parte do restante se refere a eles como “freeter”. Embora os clubbers pudessem expressar algum orgulho sendo um freeter, afinal de contas eles estavam livres do rígido monitoramento das grandes corporações, esta autoconfiança se evaporou quando eu perguntei o que eles realmente faziam. Era comum para estes fãs hesitar, ou parecer embaraçados, ao explicar que não havia nenhum trabalho em vista como garçonete, balconista de lojas de conveniência, trabalhadores de esgoto, trabalhadores de construção, recepcionistas em lojas de departamentos, e assim por diante. Estava claro que freeter, com toda a sua ênfase na liberdade, era um atrativo para distrair a atenção de seus trabalhos servis e desinteressantes, ao contrário do ponto de vista dos jovens. A juventude japonesa tende a estar insatisfeita com seus cargos no emprego, mas eles também são representados como consumidores de nível internacional, entre os poucos que podem competir com a juventude da América em suas exigências. Leve em consideração este trecho de um artigo do New York Times sobre as iniciativas de marketing de uma empresa internacional de bebidas no Japão, porque ele capta uma imagem da nova era de desenvolvimento do consumidor transnacional: Acima de tudo, os consumidores mundiais estão se tornando seletivos. Isso é verdadeiro nos países mais ricos do que nos pobres, mas quase em todos os lugares os consumidores estão ficando mais exigentes. Precisamos de mais opções. Precisamos de água engarrafada. Precisamos de bebidas saudáveis. Queremos algo novo, nunca visto antes, e três meses depois queremos outra coisa. Queremos opções infinitas, em dúzias de categorias, e não faria mal algum se você nos deixasse comprar bebidas através de nossos telefones. Em suma, estamos todos nos transformando em adolescentes japoneses. (Stevenson 2002) Este desejo de “algo novo” é abastecido, obviamente, por várias “indústrias de estilo de vida” e sua constante motivação por novos mercados e estilos, mas é interessante que a consciência ética japonesa seja cada vez mais definida por esta sensibilidade do consumidor. Em cada edição da revista Wired existe uma página com um “relógio para alunas japonesas”, onde eles informam a mais recente novidade destas J-Girls (como por exemplo, diversas faixas para telefone celular como acessório de moda, Agosto de 2002 ). Introdução — 15 Esta caracterização do Japão também realça a tensão entre o hip-hop como artigo de consumo e o hip-hop como produção cultural que representa uma variedade de formas. No entanto, a questão que ela levanta é de como as idéias da juventude estão incorporadas a estas visões do capitalismo cultural. Ou seja, à medida que o consumismo, contra-produção em massa, é cada vez mais visto como o eixo da economia global, isso não muda a dinâmica de avaliação da “moda” e “lazer” como foco, enquanto as questões da produção passam para o estado secundário de “corresponder às exigências”? Portanto, as adolescentes japonesas abrem um precedente para avaliar estas mudanças duais na economia pós-industrial, ou seja, uma mão-de-obra cada vez mais flexível. Fredric Jameson é um dos principais teóricos que pensa no cruzamento da cultura e do capitalismo. Ele pergunta se “em nosso tempo, a relação entre cultura e economia foi fundamentalmente alterada. De qualquer modo, me parece que a estimulante produção e a inovação cultural – e isto significa a área da cultura consumida pela massa – é o índice crucial da centralização de uma determinada área e não sua riqueza ou poder produtivo” (Jameson 1999: 67). Esta idéia de “produção cultural estimulante” que ele esclarece como “nova e original, novas formas ainda melhores” (comunicação pessoal), é útil para chamar atenção da produção de cultura, mas apresenta outro enigma: Estimulante de que maneira? E para quem? Para as gravadoras, “estimulante” significa um amplo mercado, quem sabe até criar um novo gênero de música. Uma venda milionária de sucessos contribui muito para a mudança na posição das grandes gravadoras ansiosas por pegar a onda da próxima mania em ascensão. E “estimulante” para os fãs do hip-hop nos Estados Unidos, como freqüentemente é falado pelas pessoas que fazem perguntas nos meus bate-papos, parece exigir que o japonês seja mais explicitamente japonês, incorporando talvez os instrumentos tradicionais. Mas “estimulante” para os artistas e fãs no Japão significa uma grande variedade de coisas – letras sugestivas, temas apontados pela sociedade, um ritmo diferenciado e uma ótima batida – que pode ou não ser as mesmas coisas que atraem os executivos das gravadoras japonesas ou os ouvintes estrangeiros. Jameson usa o exemplo das empresas japonesas que compraram as empresas de entretenimento norte-americanas nos anos 1990, quando Matsushita comprou a MCA e a Sony comprou a Columbia Pictures. Esta “invasão” de Hollywood, na ocasião, foi vista como a abertura de um precedente para avaliar a criatividade das empresas norteamericanas e japonesas. Durante vários anos, o erro da Sony em produzir um grande sucesso em Hollywood sugeria que “mesmo apesar de ter o próprio controle acionário e a propriedade privada, os japoneses não estavam aptos a controlar a produtividade essencialmente cultural exigida para assegurar o processo de globalização de qualquer concorrente” (Jameson 1999: 67). Mas em 2002, a Columbia Pictures da Sony produziu o filme do ano em quantidade de tíquetes de bilheteria: O Homem Aranha. Não pelo sucesso comercial do filme, mas a qualidade cinematográfica duvidosa (em minha humilde opinião) me parece exigir uma reconsideração deste debate. Embora possamos concordar que a “produção cultural estimulante” é o principal indicador da centralização de uma nação, deveríamos ser cautelosos ao comparar sucesso comercial com originalidade. O papel das gravadoras é importante, neste aspecto, mas como veremos no Capítulo 3, embora estas empresas de entretenimento mostrem um extraordinário controle em termos de arrecadação Introdução — 16 de bilheteria, ou seja, decidindo quais artistas e quais canções terão apoio, o conteúdo criativo da música é freqüentemente gerado pelos próprios artistas. Entender este processo exige a observação do mundo do rap japonês a partir de uma variedade de perspectivas, como os diferentes capítulos do livro tentarão fazer. A pergunta fundamental é: como avaliamos a comercialização da cultura hip-hop? Ou, colocando de outra forma, como desenredamos a atração da comercialização e o impulso de criatividade cultural na fabricação de produtos que criam uma diferença significativa? Por exemplo, uma parte do debate se preocupa se os produtores ou consumidores são os agentes centrais que constroem o significado dos textos de cultura de massa. Elizabeth Traube (1996) chama atenção para algumas desvantagens do trabalho que se concentra na produção ou no consumo da cultura popular. Todavia, o método de produção e consumo da cultura popular produzida em massa tendia a representar sua influência ideológica em termos de homogeneização, diferenciando-se apenas em suas avaliações de como a indústria da cultura é bemsucedida moldando-se à consciência social. Enquanto o método mais antigo de produção centralizada enfatizava a eficiência ideológica da cultura de massa, estudos de audiência descobriam públicos “resistentes” que usam as formas de cultura de massa para se definir em relação às normas e valores dominantes. Nem a visão é suficientemente responsável pela operação da indústria da cultura. Por um lado, a hipótese recepcionista de que as diferenças culturais expressadas possuem valores políticos oposicionistas precisa ser reconsiderada, levando em conta o interesse intensificado das indústrias da cultura na comercialização de diversas formas de excelência. . . Por outro, a produção industrial da cultura nunca foi um processo contínuo, e pode ser discutida sob condições, contestações e contradições estruturais vigentes que passaram a fazer parte da rotina. (Traube 1996: xiv) Esta mudança nos estudos culturais para desenvolver compreensões mais variadas da produção e recepção nos leva a considerar diferentes ambientes nacionais para entender este processo. Embora a popularização da cultura por parte das indústrias de entretenimento seja revertida em culturalização dos artigos de primeira necessidade pelos consumidores, o que ainda está faltando em nossa análise é uma compreensão mais profunda das condições dos consumidores e dos produtores. No mundo do hip-hop, isto inclui uma pesquisa mais profunda dos processos envolvidos na popularização da cultura, como: a tecnologia digital, as leis de direito autoral, as práticas artísticas de sampling (trechos extraídos de músicas) e remixagem, que cada vez mais induz à questão das práticas tradicionais dos meios de comunicação. Mas também significa que os fãs possuem um conjunto um pouco diferente de recursos para explorar o sentido da música, particularmente em suas letras compactadas e em sua intertextualidade, conforme ela aparece no sampling e na remixagem. A principal pergunta que se relaciona à popularização do hip-hop japonês é esta: Como podemos captar as práticas empresariais, as atuações que se transformaram em artigos de primeira necessidade e os prazeres experienciais que juntos criam o caráter emergente do hip-hop japonês? Em vez de buscar algum espaço underground que seja retirado do dinheiro que Introdução — 17 passa de mão em mão, temos que examinar as formas como a popularização conta apenas uma parte da história. É isto que nos leva à política cultural do hip-hop no Japão como um modo de concentrar novamente nossos esforços, de forma a determinar o valor da música nos ambientes onde ela faz a diferença. POLÍTICA “It’s true, we lost the war / But don’t dis us on scene today” -- Zeebra (1999) Os eixos global versus local e da economia versus cultura nos levam a avaliar o hiphop japonês em termos de um conjunto mais diverso de políticas culturais. Não existe apenas uma única abordagem “japonesa” para o hip-hop, e em vez de encontrarmos uma grande variedade de estilos, mais incisivamente políticos, as pessoas se voltavam aos prazeres da música polimórfica em geral. O “estímulo” dos estilos japoneses não deveria ser avaliado simplesmente por ser suficientemente japonês, o que exigiria que determinássemos o quê exatamente poderia ser “japonês”, além de usar o idioma: usar instrumentos tradicionais ou conversar sobre samurais, gueixas e sushis? Em termos de mercantilismo, também não faz nenhum sentido transformar em fetiche o som “underground” nem se opor aos grandes lançamentos. Em outras palavras, começar com o que freqüentemente se considera mais “real” versus mais “comercial”, porque como veremos, a produção de ambos os tipos de música pode diferenciar um pouco e a natureza das canções não as associam de forma organizada nem a uma nem a outra categoria. O que isto sugere é que embora consideremos a nacionalidade japonesa da música, e as formas em que a música e as identidades são popularizadas, precisamos trabalhar externamente para esclarecer sobre as formas através das quais a música ressuscita um conjunto de subjetividades políticas. Os dois exemplos que uso nesta seção mostram que o hip-hop no Japão não leva à adoração cega de coisas americanas nem a um simples fetiche de coisas japonesas. Novamente, é o caráter inconstante do território do meio, que circula novamente pelo mundo do hip-hop, que pode nos ajudar a compreender o significado da ampla variação dos contatos da cultura popular global. Uma das hipóteses que vale a pena examinar a cultura popular americana no estrangeiro é o quanto ela faz as pessoas “quererem ser como nós”. King Giddra cantava sobre os perigos de se acreditar na fantasia da vida de uma celebridade, “só de poder cantar em frente às pessoas” e a imagem do mundo do hip-hop na MTV também contém um certo tipo de apelo. Mas este apelo que os rappers descrevem como “um sentimento maravilhoso vindo das ruas”, pode não necessariamente envolver o amor por todas as coisas americanas. Um filme recente de Kitano Takeshi chamado “Brother” explora a idéia de parentesco entre asiáticos e afro-americanos, com Kitano no papel principal como um criminoso japonês (yakuza) exilado de sua organização, ele vai visitar seu irmão que está vivendo em L.A. com um afro-americano interpretado por Omar Epps. A história segue com Takeshi, seu irmão e Epps que assumem violentamente o tráfico de drogas de L.A., atirando em todo o mundo que se colocar em seu caminho. O criminoso quase não fala inglês, e este é um dos Introdução — 18 orgulhos do filme, enquanto Takeshi se precipita na violência radical em vez de falar. Infelizmente, talvez a língua mundial não seja o inglês, mas a violência. Os três empresários matam todos acima deles, acertando todos “os mexicanos” que antigamente exerciam o comércio da droga na área. Em uma das principais cenas do filme, Takeshi e o irmão dele se encontram com os superiores, aparentemente para fazer um acordo para assumir o lugar dos mexicanos. A cena tem como fundo uma canção sampleada (e levemente editada) de Zeebra, inspirada no filme. Esta cena abre com um dos criminosos desafiando Takeshi e o irmão dele aos novos assassinatos. Criminoso Americano 1: “Então você pensava que iria escapar impune do que fez?” Criminoso Chefe: “Relaxe, está bem?” Vamos discutir isso como dois cavalheiros. [Falando para Takeshi e seu irmão] De agora em diante, você estará no comando, como sempre esteve”. [No filme, o irmão de Takeshi deixa o quarto, e os criminosos conversam na frente de Takeshi, supondo que ele não entende inglês.] Criminoso 1, desafiando o chefe: “Você está dizendo que deixará eles dominarem o território? Agora me diz, porque você faria isso para esses malditos japoneses?” Takeshi se senta, sorrindo como se estivesse distraído. O irmão de Takeshi volta ao quarto, e sentando-se, ele e Takeshi puxam as armas escondidas anteriormente debaixo da mesa, e começam a atirar em todos os criminosos. Examinando a carnificina, Takeshi dá a última palavra: “Eu sei o que é ‘maldito japonês’, seu imbecil”.3 Esta história de um criminoso japonês que vai para L.A. e ganha a batalha lá com muitas armas ressoa como uma história do pós-guerra de relacionamento entre a América e Japão, tal que o papel esperado do Japão é o de ser grato por toda a ajuda que a América ofereceu. Mas no fim dos anos 1980 esses dias estavam contados, com o político da ala direitista, Ishihara Shintarô, e o presidente da Sony, Morita Akio, escrevendo uma crítica pungente: The Japan that Can Say No (O Japão que Pode Dizer Não) (Ishihara 1991). Zeebra, em sua canção inspirada no filme Brother, faz o mesmo tipo de afirmação: tashika ni maketa ze, sensô jya da kedo DISrarenee, ima no genjô wa orera tafu de, haado na kokusaiha masa ni erabinukareta toppu faitaa é verdade que perdemos a guerra mas não nos perdemos internacionalistas obstinados e esforçados que lutaram até o fim -- “Neva Enuff”(Zeebra apresentando Aktion) 1999 É importante reconhecer que Zeebra está compondo este rap a partir da perspectiva do criminoso japonês, e esta não é necessariamente a opinião de Zeebra, mas mesmo assim ele está procurando ver como a “cultura popular americana” pode ser usada para minar a 3 No filme, bakayarô é traduzido como “asshole” (imbecil), embora em japonês a palavra seja traduzida mais literalmente como “idiota estúpido”. Introdução — 19 atratividade da americanidade. Ainda nesta canção, o rapper Aktion ri: “Eu não consigo nem mesmo entender seu inglês - ha ha!” A situação política dos hábitos culturais americanos no Japão passa por ondas de transformações. A historiadora Carol Gluck enfatiza que o Japão do século 20 testemunhou duas fases concentradas de americanização, uma nos anos 1920 e a outra na década seguinte à Segunda Grande Guerra Mundial. Em suas palavras: A influência dos Estados Unidos tomou diversas formas nos anos 1920, inclusive o Fordismo e o Taylorismo na indústria, nas melindrosas, no jazz e na cultura popular dos filmes de Hollywood, e a racionalização da administração doméstica e a criação de uma nova cultura para as mulheres. As classes médias urbanas deram as boasvindas à influência americana como veloz e eficiente, outras como detentora de poder e emancipatória. Mas em face ao seu entusiasmo aos hábitos americanos, ao contrário, a maior parte do discurso público se concentrava no impacto negativo de uma cultura que seus críticos consideravam superficial, materialista e uma ameaça aos valores nacionais e à ordem social. (Gluck 1997: 578-79) Já nos anos 1930, esta americanização estava sendo substituída pela elevação da maré da ideologia nativista, apoiada pela violência e coerção, tanto no país quanto no estrangeiro. No período imediatamente após a guerra, o Japão abraçou a América novamente como um modelo de riqueza e democracia que tiraria o Japão do “vale sombrio” da guerra (Dower 1999). Mas este caso de amor com as coisas americanas começou a assumir o caráter de uma relação de amor e ódio, com os pólos opostos se movendo mais separadamente. No mundo do entretenimento, o desejo da música ocidental foi sendo substituído gradualmente por artistas nativos, e de 1968 em diante as vendas de artistas japoneses ultrapassavam gradualmente a desses músicos ocidentais. À medida que os anos 1980 e 1990 avançavam, uma série de opções de mídia e uma perspectiva mais cosmopolita parecem ter introduzido uma distância maior entre o povo americano e o japonês, e que está sendo dolorosamente testada na hora de compor em oposição às forças americanas em Okinawa e questionar a política da administração Bush para a Coréia do Norte. Neste cenário, o hip-hop pode ser usado até mesmo para questionar o domínio militar, de acordo com o rap que K Dub Shine compôs sobre o comércio internacional de armas “feitas nos malditos EUA” (meedo in fuzaketa U.S.A.) em uma canção chamada “Organized Crime”. Discute-se amplamente que o pós-modernismo e a globalização estão provocando uma mudança na relação entre as sociedades do mundo, e esta nova fluidez e formas emergentes de organização política e cidadania transnacional são ilustradas em uma variedade de hábitos através do hip-hop japonês. Alguém poderia pensar que com este antiamericanismo haveria uma ênfase paralela na beleza e originalidade da cultura japonesa, mas aqui também as lições estão misturadas. Pegue o caso do rapper Kohei Japan. Na superfície, ele se apropria de aspectos clichês da cultura japonesa, parodiando os japoneses e o hip-hop ativamente. Na capa de seu recente CD, ele aparece como uma impressão em bloco de madeira, mostrando o “símbolo funk” com as mãos. O símbolo funk também está impresso em seu quimono. Introdução — 20 Figura 1: Adaptação Criativa? Capa do CD de Kohei Japan (2000) Kohei é o irmão mais novo de um rapper consagrado. Ambos cresceram em Yokohama e Kohei morou com seus pais até seus vinte e poucos anos. Enquanto ele procura uma carreira na música com um grupo de rap chamado Mellow Yellow, trabalha como chefe de cozinha em Yokohama. O trecho de uma canção de Kohei do álbum de estréia “The Adventures of Kohei Japan” (2000, File Records) exemplifica a atitude dos rappers japoneses nas letras divertidas que contrastam o Japão com o ocidente: tudo sempre natural, completamente Yoga sem pão, mas com arroz; sem ramen, mas com soba sem carne, mas com peixe não cozido, crú sem flores, mas dango; meu gorro é de Kangol usando meu gorro de caça, é o meu momento K-O-H-E-I, a camélia japonesa Estas letras mostram como o hip-hop “global” é usado para enfatizar um tipo de identidade nacional japonesa. Ele gosta de comida crua; soba (macarrão japonês), mas não com ramen (macarrão chinês), e assim por diante. Aqui novamente podemos ver que “global” e “local” não são vistos melhor como dicotomias, mas comprometidos mutuamente criando-se um ao outro. Mas esta atitude não é, na realidade, o reflexo do espelho da afronta aos Estados Unidos elogiando o Japão, porque uma faceta importante da atitude de Kohei é o uso da paródia que oferece um contraste ao estilo direto de Zeebra4. A paródia, neste exemplo, também ilustra a desvantagem de interpretar este tipo de canção como uma reafirmação do 4 Agradeço Bret De Bary por sugerir esta associação. Introdução — 21 local. Kohei está claramente utilizando imagens da nacionalidade japonesa, as preferências culinárias, o quimono que ele usa na impressão em bloco de madeira da capa de seu CD, até mesmo a decisão de acrescentar “Japão” ao nome dele. Como antropólogo, minha reação inicial era ver isto como uma ilustração das formas que um estilo estrangeiro, o hiphop, pode ser usado para reforçar elementos tradicionais da cultura japonesa, e em um nível superficial, como é o caso. Kohei está dizendo em parte que ser japonês é legal. Mas se considerarmos o ponto de vista de seu público, o que fica claro é que ele não está contradizendo as afirmações de uma cultura mundial homogeneizada emergente, tanto quanto um estilo irônico de contrastar com a positividade do sujeito sincero, durão bem ao estilo de Zeebra. Aqui, começamos a ver a utilidade de situar textos culturais no contexto do público que está interpretando a música. Uma fã de Kohei disse que ela gosta do estilo dele porque ele era “divertido” e, ao contrário do estilo mais explícito de Zeebra, ele não está apenas assumindo uma postura obstinada (kakkô tsukete). Colocar a canção no contexto de seu público nos dá uma nova percepção do uso que ele faz do termo “faminto”, que tem um duplo significado interessante. Kohei tem fome de certas coisas (um desejo de consumir), mas “faminto” também é uma forma comum de descrever os músicos que realmente querem se dar bem no mundo da música. Esta é uma fome a ser reconhecida, ser um artista bem-sucedido e se tornar um “fenômeno” (genshô) no meio de um grande grupo de fãs. Um das coisas que eu quero sugerir é que o poder da cultura popular vem em parte da bilateralidade desta fome: consumir seletivamente e produzir algo notável. Estes exemplos de Zeebra e Kohei Japan, portanto, começam a nos dar um senso da dinâmica da política cultural do hip-hop japonês. Isto sugere que analisar a cultura não depende de identificar os padrões que caracterizam todos os japoneses, mas as linhas de debate que produzem noções alteradas do que significa ser japonês. Enquanto que nihonjinron (teoria do povo japonês) incentiva o foco na dicotomia estrangeira/nacional, o hip-hop japonês nos força a desenvolver uma análise mais variada da dinâmica que o Japão produtor contemporâneo emerge. Ao longo destas linhas, podemos ganhar o reconhecimento mais profundo da relação entre cultura e local vendo como o global, o nacional e o local propiciam certos eixos de identidade. Isto nos leva a uma visão de um transnacionalismo que está emergindo em determinados espaços interconectados, em vez de ser caracterizado como “forças” externas afetando as “situações internas” (Tsing 2000). Nos seus primórdios, os estudos culturais estiveram preocupados com as atividades dos grupos marginalizados, muitas vezes em um esforço para traçar as formas com que os grupos de estudo subalternos conseguem desmascarar as injustiças das culturas predominantes e hegemônicas. Uma estratégia importante nos estudos culturais é mostrar as formas com que os grupos marginais conseguem negar autoridade às autoridades. Mas este foco na resistência é complicado pelo fato de que resistências podem muitas vezes levar a diversos tipos de cumplicidade. Da mesma maneira que o “hip-hop local” desenvolve interesse em formas estrangeiras, o empenho das comunidades em se tornar “autosuficiente” também pode levar a integração crescente na dependência da economia global. Isto sem mencionar que todo objetivo voltado para o futuro está perdido, mas que nós precisamos desenvolver formas mais sutis de compreensão da política cultural. Introdução — 22 Meu objetivo é trabalhar para desenvolver um modelo de compromisso que possa acompanhar as dimensões entrecruzadas da interação que produz formas mutáveis de cumplicidade e resistência, e desenvolver formas apropriadas de caracterizar esta nova desordem mundial. Lawrence Grossberg (1996: 88) discute que os estudos culturais precisam dar um passo à frente dos modelos de opressão, “tanto o ‘modelo colonial’ de opressor e oprimido quanto ‘modelo de transgressão’ de opressão e resistência”. Ao contrário, ele argumenta que precisamos mudar o conceito de identidade para “um modelo de articulação como ‘prática transformativa’, como a evolução singular de uma comunidade”. Esta noção de “prática transformativa” é importante porque chama atenção para as formas onde a identidade não é simplesmente algo herdado nos genes de um indivíduo ou algo completamente definido através das elites, mas algo que emerge com o passar do tempo através das atividades do dia-a-dia que requerem compromisso com uma variedade de projetos morais. Esta visão sugere que a identidade seja mutável e contextual, construída no passado, mas construída ativamente com uma visão em relação ao futuro. Assim, nós poderíamos conceber a identidade das formas análogas às sessões de estilo livre que se expandem de acordo com certas convenções de gênero, mas que também dependem de seu sucesso na descoberta inesperada que, com o passar do tempo, pode se tornar transformativa. Além disso, é a participação na resolução de problemas, como também são chamadas as sessões de estilo livre, que, pelo menos por um breve período, caracteriza esta noção de “evolução singular de uma comunidade”. Mas como devemos proceder? Como podemos captar a dinâmica global/local, prestar atenção aos processos de popularização e poder trabalhar de fora do hip-hop no Japão para avaliar a política cultural do Japão contemporâneo que faz diferença? O PODER DO GENBA Etnografia e Trabalho de Campo na Cultura Popular Global Curiosamente, a questão de como fazer isto é semelhante ao problema que eu enfrentei ao começar a estudar o hip-hop japonês. Como candidato a Ph.D. em antropologia cultural, comecei a descobrir um local adequado como trabalho de campo onde eu poderia me envolver como protagonista na observação, monitorando os estilos de vida e as perspectivas dos nativos que eu havia escolhido para estudar, ou seja, os B-Boys e B-Girls (os partidários do hip-hop) de Tóquio. No outono de 1995, comecei um intensivo trabalho de campo em Tóquio que durou um ano e meio. Eu quis entender os vários aspectos do hiphop japonês, mas a quantidade de locais com potencial desencorajava. Havia locais onde a música era produzida: gravadoras, estúdios de gravação, estúdios caseiros e até mesmo em trens com sintetizadores portáteis. Havia locais onde a música era promovida: revistas de música, revistas de moda, shows de TV e rádio, clubes noturnos e lojas de discos. Havia interação entre músicos e fãs nos shows ao vivo ou em formas de mídia, como: fitas cassete, CDs e LPs de 12”. Para complicar ainda mais as coisas, a música rap faz parte da grande categoria de “hip-hop”, que também inclui breakdance, DJ, grafites, bem como Introdução — 23 moda. Um das doutrinas do trabalho de campo antropológico é que você não consegue entender uma pessoa sem estar lá, mas no caso de um gênero de música aonde é este “lá”? Quando comecei a entrevistar rappers, redatores de revistas e funcionários de gravadoras, descobri um tema recorrente que fornecia uma resposta parcial. Todos concordaram que você não consegue compreender a música rap japonesa sem ir regularmente a clubes. Os clubes eram chamados de “o verdadeiro lugar” (genba) do cenário de rap japonês. Era lá que os rappers se apresentavam, os DJs aprendiam quais canções provocavam excitação na multidão e onde os breakdancers praticavam e competiam pela atenção. Ir aos clubes é uma combinação estranha de excitação e tranqüilidade, atenção concentrada no palco e mobilidade entre a multidão. Era surpreendente aprender o quanto os contatos e os planejamentos empresariais continuavam nos clubes. Os redatores de revistas cobriam os eventos e muitas vezes realizavam entrevistas antes e depois dos shows. Ir aos clubes também revelava como, com o passar do tempo, a música e os contatos sociais se desenvolviam juntos, com “famílias” bastante diferentes dos grupos de rap japoneses que se apresentavam juntos durante anos e que desenvolviam um estilo característico, assim como um bando de artistas e fãs. Em suma, todos esses clubes noturnos ofereciam uma porta de entrada para a tentativa de captar os prazeres da experiência dos protagonistas dentro de uma variedade de práticas empresariais. Espetáculos ao vivo são fundamentais para se compreender os caminhos que o hiphop japonês tomou, e a vida de muitos músicos gira em torno desses eventos, pelo menos, em relação à parte musical dela. Ao mesmo tempo, ficou claro que os artistas, revistas e, é claro, as gravadoras avaliavam o crescimento em termos de lançamento dos CDs. Depois de assistir a vários eventos de artistas durante vários meses, e como eles perceberam meus interesses, tive a chance de observar as sessões de gravação. Os estúdios de gravação não só ofereciam um genba diferente, mas também um genba revelador das interações musicais, culturais e empresariais. Esta é a representação material e a popularização do espetáculo. Além da criação das gravações, porque ela é a transformação dos espetáculos em registros e CDs que, pelo menos até agora, tem sido o caminho para o sucesso difundido, tanto em termos de lucro financeiro como de reconhecimento público. Então, eu uso o estúdio de gravação como um segundo “verdadeiro lugar” para compreender o caráter do hip-hop no Japão. Esta noção do genba (pronunciado com um “g” acentuado, como em gueixa) sugere que o poder da cultura popular pode ser entendido, até certo ponto, observando-se as relações que se cruzam nos clubes noturnos e nos estúdios de gravação. Tal abordagem faz parte de um movimento maior dentro da antropologia que se afasta da observação do campo de trabalho, situado em localidades delimitadas geograficamente. Akhil Gupta e James Ferguson (1997) discutem que é importante ver a marca registrada inconfundível da antropologia não como um compromisso com o “lugar” (como com as pessoas de alguma comunidade local), mas como uma ênfase da “atenção da antropologia epistemológica e das questões políticas do lugar” (pág. 39). Nas palavras deles: “A grande vantagem da etnografia sempre foi o significado explícito e bem-desenvolvido de localização, a ser estabelecido aqui e não em outro lugar. Esta vantagem se torna uma responsabilidade Introdução — 24 quando se presume que as noções de ‘aqui’ e ‘ali’ sejam características da geografia, em vez de lugares construídos em áreas de relações desiguais de poder” (pág. 35). Para este fim, Gupta e Ferguson acentuam a importância das questões em primeiro plano sobre “local, interferência e construção de dados estabelecidos” e de se concentrar nos “locais mutáveis”, em vez das “áreas delimitadas” (Gupta e Ferguson 1997: 5, 39). É esta abordagem que para mim oferece uma forma de reconsiderar os estudos culturais de uma época na qual os estudos locais são transformados pelas conexões transnacionais. Ao nos concentrarmos nos clubes noturnos e gravadoras como genba, ou nos verdadeiros lugares, somos capazes de desenvolver formas de migrar do conflito entre as perspectivas de consumo e de produção para uma leitura mais cuidadosa dos tipos diferentes de poder que os protagonistas possuem. Conforme discutido integralmente no Capítulo 3, eu proporia a reflexão sobre o poder na indústria de cultura da música em relação a quatro grupos: artistas, empresários, gravadoras, pontos de venda de mídias (varejo e publicações) e fãs (ou consumidores e público). Cada um destes protagonistas possui um tipo diferente de poder, ainda que o poder de cada um dependa em parte do poder dos outros, semelhante ao jogo Rock-Paper-Scissors, socialmente difundido. O poder de uma pessoa depende da localização dela, das reações dos outros participantes e da amplitude da circulação que os produtos culturais atingem. E principalmente, a noção de localização ajuda a captarmos como as formas global e local – no sentido comercial e cultural – estão entrelaçadas. Além disso, um número crescente de pessoas está traçando diversas abordagens para um “cosmopolitanismo ético” que pode oferecer algumas possibilidades de novos tipos de políticas culturais vindouras (Ginsburg, al de et. 2002b; Tomlinson 1999). O que este livro mostra e o que não mostra O objetivo deste livro é desenvolver uma compreensão das políticas culturais variadas do hip-hop japonês. Levaremos em conta como as idéias de globalidade cruzam com as idéias de nação, região e localidade, mas o que descobrimos é que é impossível definir de forma diferente a compreensão “japonesa” de hip-hop. No entanto, o que surge é uma variedade bastante característica de debates sobre o papel da economia na vida cultural, sobre a força da expressão e sobre os problemas que a sociedade japonesa e o mundo de uma forma geral estão enfrentando. Cada capítulo discute um aspecto diferente dessas políticas culturais, inclusive raça, idioma, história, cenário dos clubes, gravadoras, tecnologia digital e direitos autorais das gravadoras e contextos sociais dos grupos de fãs de rap. [Esta seção será ampliada para incluir descrições um pouco mais detalhadas de cada capítulo.] Em suma, este livro tem como propósito oferecer um amplo panorama das políticas culturais que estimulam a cena do hip-hop japonês e usá-lo como um estudo de caso para repensar as principais questões dos estudos culturais de hoje. Meus métodos de pesquisa são baseados nos trabalhos de campo entre músicos e fãs, concentrados principalmente em clubes noturnos e estúdios de gravação em Tóquio. Depois da minha primeira viagem de pesquisa ao Japão, durante o verão de 1994, comecei Introdução — 25 o trabalho de campo entre setembro de 1995 e fevereiro de 1997. Desde então, tenho feito curtas viagens de retorno quase todo ano, recentemente em janeiro de 2003. Assisti a mais de 120 eventos em clubes, principalmente em Tóquio, mas alguns em subúrbios distantes. Eu também assisti a mais de 50 sessões de gravação, de pequenos estúdios caseiros a estúdios multimilionários. Nos eventos, entrevistava muitos músicos, fãs, organizadores de evento e donos de clubes ou marcava uma hora para nos encontrarmos em um local mais tranqüilo. Complementei este trabalho de campo com entrevistas com representantes de gravadoras, donos de lojas de disco e editores de revistas de música. Durante meu trabalho de campo, também comparecia mensalmente às reuniões editoriais da revista Remix, que aborda uma gama extensiva de músicas club. Eu preferi me concentrar nos músicos de hip-hop japonês, com ênfase especial nos rappers, e o que eles dizem em suas canções. Minha inspiração inicial para estudar o hiphop japonês foi ouvindo alguns dos últimos CDs de Rhymester and Scha Dara Parr, por exemplo, que me convenceu que apresentar ao público americano a sua visão de Japão seria um objetivo digno e em grande parte esta continua a ser uma das metas deste livro. Sem dúvida, poderia haver livros sobre os cenários de breakdance, turntablism (a arte de manejar os toca-discos) e competições de DJ, e sobre a arte do grafite. Embora eu fale um pouco sobre cada um destes assuntos, meu foco está na música e particularmente nas palavras dos MCs, porque para mim é aqui que a interseção de idéias, mídia e cultura se revelam mais fortemente. Com isso, há muitos outros lados do hip-hop japonês que terá atenção reduzida. Por exemplo, eu não faço uma comparação exata do cenário do Japão e dos Estados Unidos. Poderia ser um projeto muito interessante, mas eu acredito que o primeiro passo mais importante para a compreensão do hip-hop japonês é ouvi-lo em suas próprias condições. Freqüentemente, um grupo japonês é comparado a um grupo americano ou o cenário é comparado a alguma época (sempre no passado) nos Estados Unidos e isto tende a reforçar uma leitura etnocêntrica do cenário japonês, como sempre um pouco inferior a “nós” e um pouco ultrapassado. Embora eu tivesse assistido uma dúzia de espetáculos de artistas americanos no Japão (EPMD, Snoop Dogg, Das EFX e Nas, só para nomear alguns), também deixo este lado do mundo do hip-hop japonês para um estudo posterior. Em suma, espero apresentar o mundo do hip-hop japonês aos leitores, enquanto exploramos suas implicações na compreensão das formações culturais emergentes do presente, seu cruzamento com as práticas empresariais e seu potencial para uma gama diversa de políticas. De várias formas, vejo o exemplo de Gaku-MC, descrito no começo deste capítulo, tentando fortalecer, com sucesso, a energia no Family Club, semelhante às formas com que os movimentos da cultura jovem são produzidos através de uma excitação coletiva que, quando eles trabalham, criam algo novo e potencialmente maior que a soma das partes originais. Isto pode fazer com que repensemos sobre os limites implicados na divisão de pessoas heterogêneas e compreender as conexões que estão reconstituindo o mundo de hoje. E também pode nos levar mais próximo da promessa ainda não cumprida de globalização, ou seja, um diálogo mais rico baseado em respeito mútuo e solidariedade entre os povos. Introdução — 26 REFERÊNCIAS Anderson, Benedict 1991 Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. London: Verso. Asahi-Shimbun 1999 Risupekuto rappu de kataru kuukyo no rinri (Respeito, a moral inútil cantada no rap). Em Asahi-Shimbun, Evening Edition. Tokyo. Befu, Harumi 2001 Hegemony of homogeneity: an anthropological analysis of Nihonjinron. Melbourne Portland, OR: Trans Pacific Press; dist. in North America by International Specialized Book Services. Brannen, Mary Yoko 1992 “Bwana Mickey”: Constructing Cultural Consumption at Tokyo Disneyland. Em ReMade in Japan: Everyday Life and Consumer Taste in a Changing Society. Ed. J.J. Tobin. Págs. 216-234. New Haven: Yale University Press. Bynoe, Yvonne 2002 Getting Real about Global Hip-Hop. Georgetown Journal of International Affairs Winter/Spring: 77-84. Comaroff, Jean e John Comaroff 1991 Of Revelation and Revolution: Christianity, Colonialism, and Consciousness in South Africa. Volume 1. Chicago: University of Chicago Press. Dower, John W. 1999 Embracing defeat: Japan in the wake of World War II. Nova York: W.W. Norton & Co./New Press. Dreisinger, Baz 2002 Tokyo After Dark. Em Vibe. Págs. 130-138. Ginsburg, Faye D., Lila Abu-Lughod e Brian Larkin 2002a Introduction. Em Media Worlds: Anthropology on New Terrain. F.D. Ginsburg, L. Abu-Lughod e B. Larkin, eds. Págs. 1-36. Berkeley: University of California Press. Ginsburg, Faye D., Lila Abu-Lughod e Brian Larkin 2002b Media worlds: anthropology on new terrain. Berkeley: University of California Press. Gluck, Carol 1997 Japan’s Modernities: 1850s - 1990s. Em Asia in Western and World History. A. Embree e C. Gluck, eds. Armonk, NY: M. E. Sharpe. Grossberg, Lawrence Introdução — 27 1996 Identity and Cultural Studies—Is That All There Is? Em Questions of Cultural Identity. S. Hall e P.d. Gay, eds. Págs. 87-107. Londres: Sage Publications. Gupta, Akhil e James Ferguson 1997 Discipline and Practice: “The Field” as Site, Method, and Location in Anthropology. Em Anthropological Locations: Boundaries and Grounds of a Field Science. A. Gupta e J. Ferguson, eds. Págs. 1-46. Berkeley: University of California Press. Iida, Yumiko 2000 Between the Technique of Living an Endless Routine and the Madness of Absolute Degree Zero: Japanese Identity and the Crisis of Modernity in the 1990s. Positions 8(2): 423-464. Ishihara, Shintar o 1991 The Japan that can say no. Nova York: Simon & Schuster. Ivy, Marilyn 1988 Discourses of the vanishing in contemporary Japan. Ph.D., Cornell University. Jameson, Frederic 1999 Notes on Globalization as a Philosophical Issue. Em The Cultures of Globalization. F. Jameson e M. Miyoshi, eds. Págs. 54-77. Chapel Hill, NC: Duke University Press. Kelly, William W. 1986 Rationalization and nostalgia: cultural dynamics of new middle-class Japan. American Ethnologist 13(4): 603-618. Marcus, George 1996 Introduction. Em Connected: Engagements with Media. G. Marcus, ed. Págs. 1-18. Chicago: University of Chicago Press. Mitchell, Tony, ed. 2001 Global Noise: Rap and Hip-Hop Outside the U.S. Middletown, CT: Wesleyan University Press. Miyadai, Shinji 1994 Seifuku shoojo tachi no sentaku (A opção das garotas em uniforme escolar). Tokyo: Koodansha. Raz, Aviad E. 1999 Riding the black ship: Japan and Tokyo Disneyland. Cambridge, Mass.: Harvard University Asia Center: Distributed by Harvard University Press. Robertson, Jennifer 1997 Empire of Nostalgia: Rethinking “Internationalization” in Japan Today. Theory, Culture, and Society 14(4):97-122. Introdução — 28 Schein, Louisa 1999 Performing Modernity. Cultural Anthropology 14(3): 361-395. Stevenson, Seth 2002 I’d Like to Buy the World a Shelf-Stable Children’s Lactic Drink. Em New York Times Magazine. Págs. 38-43. Tachikawa, Yousuke 2002 I Love Hip-Hop? Em Saizou. Págs. 101-103. Tomlinson, John 1999 Globalization and Culture. Chicago: University of Chicago Press. Traube, Elizabeth G. 1996 Introduction. Em Making and Selling Culture. R. Ohmann, ed. Págs. xi-xxiii. Hanover, NH: Wesleyan University Press/University Press of New England. Tsing, Anna 2000 The Global Situation. Cultural Anthropology 15(3): 327-360. Wallerstein, Immanuel 1976 The Modern World System: Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. Nova York: Academic Press. Waters, Malcolm 1995 Globalization. Londres: Routledge. Watson, James, ed. 1997 Golden Arches East: McDonald’s in East Asia. Stanford: Stanford University Press. Weiss, Brad 2002 Thug Realism: Inhabiting Fantasy in Urban Tanzania. Cultural Anthropology 17(1): 93-124.