A INICIAÇÃO À DOCÊNCIA: O QUE VIVEM E SENTEM OS PROFESSORES PRINCIPIANTES DE UMA REDE MUNICIPAL DE ENSINO NO RIO DE JANEIRO Jéssica Valentim Santos1 - UFRJ Grupo de Trabalho - Formação de Professores e Profissionalização Docente Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O presente texto discute dados de uma pesquisa que buscou compreender como os professores principiantes dos anos iniciais do ensino fundamental vivem o trabalho docente e o processo de socialização profissional. No contexto deste texto exploramos apenas as percepções e experiências desses professores quanto à aprendizagem da docência no contexto social e institucional de trabalho docente. No que diz respeito à construção do aporte teórico que orientou a pesquisa, apoiamo-nos principalmente nos estudos de Huberman (2000), Marcelo (2009) e Nóvoa (2000; 2006), que nos permitem compreender o ciclo de vida profissional docente, a transição entre a vida estudantil para a vida profissional e o trabalho docente imerso no contexto da contemporaneidade. Quanto aos procedimentos metodológicos, recorremos à conjugação de três instrumentos, utilizados sequencialmente em três etapas: (1) a primeira etapa consistiu em entrevista com representante da Secretaria Municipal de Ensino para acordar as regras de entrada no campo e conhecer as estratégias da rede para acolher os iniciantes; (2) a segunda de aplicação de questionário online, formulado com 97 questões e; (3) a terceira da realização de quatro grupos de discussões com professores ingressantes entre os anos de 2010 a 2012. Os resultados da pesquisa apontaram os primeiros anos da docência como o período do ciclo de vida profissional que muito contribui para a aprendizagem da docência e para o processo de socialização docente. Os dados também evidenciaram que os primeiros anos na carreira, embora sejam repletos de dificuldades, têm sido vividos de modo positivo por parte dos participantes, que utilizam, em sua maioria, de estratégias individuais para superá-las. Palavras-chave: Trabalho docente. Inserção Profissional. Professores iniciantes. 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Licenciada em Pedagogia: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do GEPROD (UFRJ/FE), coordenado pela Profª. Drª. Maria das Graças Chagas de Arruda Nascimento, e colaboradora do GEPED (UFRJ/FE), coordenado pela Profª. Drª Giseli Barreto da Cruz. E-mail: [email protected]. ISSN 2176-1396 17185 Introdução Os primeiros contatos que os jovens professores têm com a escola representam um momento importante em suas trajetórias profissionais e são vividos de modos distintos dadas as realidades dos sistemas de ensino, das escolas e também do contexto organizacional e educativo onde se insere o trabalho docente. Em alguns casos, as atividades burocráticas e formais são reduzidas. Em outros, há diversas propostas de programas de formação que objetivam estreitar o contato desses professores com o ensino e com seus pares (MARCELO, 2009). Por vezes, há também os professores que não passam por um processo de formação pré-serviço que os conectem com a realidade do sistema de ensino no qual agora atuam. Gatti e Barreto (2009) apontam para a complexidade de generalizar e projetar políticas e ações de inserção em razão das inúmeras demandas nos diferentes níveis e etapas de ensino, o que não significa lançar mão de propostas de acolhimento desses professores. Consideramos, então, que os desafios da inserção profissional seriam melhor superados se os sistemas educativos e os contextos institucionais se organizassem colaborativamente, e de modo mais adequado, para acolherem os iniciantes. Um exemplo recorrente do que acontece nesse período inicial da carreira é a execução de tarefas pelos professores iniciantes, atribuídas, em grande medida, com o mesmo grau de exigência dos professores mais experientes, que, muitas vezes, são cumpridas sem o apoio de um coletivo que ampare as dificuldades encontradas e vividas por eles, fortalecendo, assim, estratégias de sobrevivências solitárias. Nas palavras de Marcelo (2009, p. 6): Las principales tareas con que se enfrentan los profesores principiantes son: adquirir conocimientos sobre los estudiantes, el currículo y el contexto escolar; diseñar adecuadamente el currículo y la enseñanza; comenzar a desarrollar un repertorio docente que les permita sobrevivir como profesor; crear una comunidad de aprendizaje en el aula, y continuar desarrollando una identidad profesional. Y el problema es que esto deben hacerlo en general cargados con las mismas responsabilidades que los profesores más experimentados. Nóvoa (2006) e Gatti e Barreto (2009) ainda sinalizam as condições de trabalho, as quais os iniciantes normalmente são submetidos, como um fator complexificador das experiências vividas no ingresso na carreira. Para Nóvoa (2006, p. 14), o cuidado com os jovens professores são os piores possíveis e em condições de trabalho precárias que dificultam uma aprendizagem significativa da profissão. Isto é, os iniciantes “vão para as piores escolas, têm os piores horários, vão para as piores turmas, não há qualquer tipo de apoio. [...] Lançados “às feras”, [eles são] totalmente desprotegidos”. Gatti e Barreto (2009) 17186 também evidenciam as condições de trabalho como elementos fundamentais para o desenvolvimento profissional. Para elas, torna-se indispensável um elo entre a formação préserviço e a formação continuada como apoio aos que iniciam a docência. Diante desses aspectos e de tantos outros apontados pela literatura a respeito desse temário, este artigo pretende anunciar algumas percepções e experiências de professores iniciantes a respeito da aprendizagem da docência no contexto social e institucional no qual o trabalho docente se insere. Para tanto, tomamos como informações dados de um survey realizado numa pesquisa que buscou compreender como professores recém-ingressos nos anos iniciais do ensino fundamental vivem o trabalho docente e o processo de socialização profissional2. Caminhos teórico-metodológicos percorridos A respeito dos procedimentos metodológicos, os dados foram coletados no contexto de uma rede pública de ensino no Rio de Janeiro e contou com a participação de 81 professores que, na altura do trabalho de campo (2012-2013), estavam nos seus três primeiros anos de docência. Optamos pelo uso sequencial de três instrumentos, a saber, entrevista, questionário e grupo de discussão. Eles se mostraram necessários, pois corresponderam adequadamente à intenção do estudo investido. Assim, como primeiro instrumento, foi realizada entrevista com representante do nível central dessa rede de ensino, cuja finalidade foi de conhecer as estratégias de acolhimento dos ingressantes na rede e também acordar os procedimentos de entrada no campo. O segundo instrumento, um questionário online com 97 questões, buscou informações sobre (1) perfil socioeconômico, (2) práticas culturais, (3) trajetória escolar, (4) trajetória profissional e (5) experiência e condições de trabalho. Para respondê-lo, cada professor recebeu um link exclusivo e personalizado, do qual somente ele tinha acesso às suas respostas, dadas a qualquer momento dentro de um prazo estabelecido pelos pesquisadores. O uso do meio eletrônico permitiu que o instrumento enviado fosse respondido a qualquer momento, bastando para isso o acesso à internet, visto que, na maioria das vezes, os professores encontravam-se assoberbados com as inúmeras demandas do próprio trabalho. 2 A produção deste texto foi orientada pela Profª Drª Maria das Graças Chagas de Arruda Nascimento, coordenadora do projeto de pesquisa desenvolvido. 17187 Por fim, a última etapa foi composta por três grupos de discussão que aprofundaram questões pouco, ou não, contempladas no questionário. Os GDs permitiram captar as opiniões coletivas desses professores que viveram as suas primeiras experiências profissionais. Assim, partilhavam de aspectos comuns do ingresso na carreira, vividos de modo particulares em razão das diferentes trajetórias de formação e do contexto social e institucional em que atuavam. Para a interpretação e análise das informações colhidas a respeito da inserção profissional docente, os estudos desenvolvidos, principalmente, por Huberman (2000), Marcelo (2009) e Nóvoa (2000; 2006) sustentaram a construção do referencial teórico da pesquisa e do presente texto. Tais produções nos permitem compreender o ciclo de vida profissional, a transição entre a vida estudantil para a vida profissional e o trabalho docente imerso no contexto da contemporaneidade. A entrada na carreira A formação do professor, para além de possibilitar uma base de conhecimento profissional, é um movimento que abrange desde o momento de formação inicial, realizado em espaços escolares e acadêmicos, até o final da carreira. Esse continnum de aprendizagens, conhecido como desenvolvimento profissional, evidencia o ingresso na profissão como uma etapa de grande importância na carreira docente, pois deixa as suas marcas e define o curso da trajetória profissional desse professor. Marcelo (2009) compreende a inserção profissional na carreira como o período de tempo no qual os professores realizarão a transição entre a vida estudantil para a vida profissional. É, portanto, um período caracterizado por tensões, contradições, dilemas do ponto de vista relacional e que exige do professor iniciante escolhas diárias que geram consequências, muitas vezes, diferentes das intenções iniciais. Em outras palavras: iniciación a la enseñanza representa el ritual que ha de permitir transmitir la cultura docente al profesor principiante (los conocimientos, modelos, valores y símbolos de la profesión), la integración de la cultura en la personalidad del propio profesor, así como la adaptación de éste al entorno social en que lleva a cabo su actividad docente (MARCELO, 2009, p. 7). Huberman (2000) demarca esse período no ciclo de vida profissional como os três primeiros anos da carreira. Sendo assim, possui características peculiares vividas pelo professor em um contexto no qual ele deverá refinar suas destrezas, atitudes, comportamentos 17188 e valores próprios de sua ocupação profissional que possibilitarão a aprendizagem das maneiras de ser e estar na profissão, ou seja, como o professor se sente e se diz professor. Logo, isto implica situações conflituosas, inesperadas, difíceis e até constrangedoras que, muitas vezes, não foram experienciadas por quem inicia as suas atividades profissionais. Tais vivências não ocorrem como eventos pontuais no exercício da docência, mas requerem um processo de exigências, (re)significações diárias que marcam profundamente a maneira que se pratica e aprende a profissão e confrontam os estereótipos construídos ao longo da vida acerca dela. (VALLE, 2006; FANFANI e TEDESCO, 2004; TARDIF e LESSARD, 2005; NÓVOA, 1999 e 2000; DUBAR, 1997). Gabardo e Hobold (2011), também compreendem o início da carreira como um período complexo, pois essa fase determina o futuro profissional do professor no que diz respeito à autoconfiança, experiência e identidade profissional. Por ser uma etapa bastante intensa, a entrada na profissão possibilita de modo bem específico acontecimentos que marcam essa fase de modo a adquirir relevância indispensável em todo o processo de aprendizagem profissional. Desse modo, ingressar no magistério e desfrutar desse momento inédito tanto pode propiciar experiências que contribuam para a consolidação da profissão quanto para o seu abandono. Como assinala Valle (2006, p. 384): O início da carreira representa uma fase crítica em relação às experiências anteriores e aos ajustes a serem feitos em função da realidade do trabalho e do confronto inicial com a dura e complexa realidade do exercício da profissão. Os primeiros anos são decisivos na estruturação da prática profissional e podem estabelecer rotinas e certezas cristalizadas no que diz respeito às atividades de ensino que acompanharão o professor no decorrer de sua carreira. Na perspectiva de Veenman (1988), essa experiência que descreve as dificuldades e os desafios vividos é conceituada como choque do real ou choque com a realidade e diz respeito exatamente à diferença entre o imaginário construído sobre a docência e a sua realidade, que deve ser assimilada e constantemente dominada, sobretudo, no momento em que o docente está começando a assumir suas tarefas de ensino. Ao perceber que, muitas vezes, a prática real do seu trabalho não corresponde às ideias que traz acerca da profissão, construídas ao longo da vida, o professor coloca em questão se os conhecimentos e experiências que possui têm legitimidade para fazê-lo “encarar” o que a realidade apresenta. Assim, a insegurança e a ansiedade parecem prevalecer na sua condição profissional de atuar em tal realidade. Para alguns autores, como Tardif e Raymond (2000), Dubar (1997) e Huberman (2000), o choque do real também mobiliza um sentimento de intensa “sobrevivência”. Logo, o 17189 confronto com a realidade força os professores iniciantes a questionar a visão, muitas vezes, romantizada e idealizada que possuem a respeito da profissão. Distanciados do contexto da formação pré-serviço e inseridos no cotidiano escolar, ele tendem a reajustar as expectativas e percepções que têm sobre o trabalho docente. Com isso, junto às dificuldades encontradas no início da carreira, os professores manifestam alguns sentimentos que permitem o desencanto e a desilusão, vividos simultaneamente com os sentimentos de sobrevivência e descoberta. A sobrevivência refere-se às estratégias desenvolvidas, individual ou coletivamente, para dar conta das exigências do trabalho e superar o choque com a realidade. Já a descoberta diz respeito ao entusiasmo inicial de experimentar a profissão, o sentimento de responsabilidade de ser professor, possuir uma turma, executar tarefas e pertencer a um corpo profissional. Assim, tais sentimentos são experimentados de modo interdependente, possibilitando que a descoberta amenize as dificuldades e contribua para que o professor sobreviva diante delas. Esse movimento da experiência inicial da profissão cristaliza progressivamente certezas a respeito do trabalho e possibilita ao professor uma capacidade de auto-integração no ambiente profissional (HUBERMAN, 2000; TARDIF e RAYMOND, 2000). Ambrosetti e Almeida (2009, p. 602) também destacam que a incorporação das rotinas e práticas escolares pelos sujeitos é importante na aprendizagem da docência, pois “do ponto de vista profissional e da carreira, saber como viver numa escola é tão importante quanto saber ensinar na sala de aula”. Essas duas dimensões, relacionar-se no espaço escolar e saber ensinar, são aspectos centrais de configuração da profissionalização e socialização do professor. Os resultados encontrados Como já apontado neste texto, os primeiros contatos profissionais com a realidade escolar são de extrema importância, pois neles são iniciadas as experiências profissionais. Ao estrearem, os professores confrontam os estereótipos que possuem acerca da profissão, formulados ao longo de suas vidas, com a realidade que agora estão vivenciando. A respeito disso, indagamos quais os principais sentimentos estiveram presentes no momento de ingresso na carreira docente e quais estratégias foram mobilizadas para lidar com eles e superar os desafios dessa fase. De acordo com os dados obtidos no questionário, identificamos que os professores possuíam boas expectativas e vivenciavam sentimentos positivos no início da carreira. Ao 17190 serem indagados sobre os seus sentimentos no período de ingresso, a maioria dos respondentes destacou, com maior frequência, a satisfação por contribuir com uma educação melhor (87,5%), o entusiasmo por estar à frente de uma turma e ter os próprios alunos (86,1%), a felicidade por estar desenvolvendo um bom trabalho (85,9%), a sensação de estar vivendo uma intensa aprendizagem do trabalho (83,4%) e a satisfação por fazer parte de um corpo profissional (80,2%). Contudo, não deixaram de ser mencionados, de forma significativa, o stress pela sobrecarga de trabalho (77,8%) e a sensação de choque diante da realidade encontrada (77,7%). Os dados, ainda, indicaram que os professores viviam simultaneamente os sentimentos positivos em maior escala e negativos com menor frequência, o que caracterizou esse momento como uma fase de descobertas e de sobrevivência profissional. Uma possível interpretação para a predominância de sentimentos positivos pode residir no fato de que o sentimento de descoberta, ou seja, de experimentar a profissão, ter uma turma, pertencer a um corpo profissional, ameniza as dificuldades no início da carreira e contribui para que o professor sobreviva, como destaca Huberman (2000). Esses dados corroboram a compreensão de que a iniciação à docência se dá em um contexto de inúmeros sentimentos, situações conflituosas, intensas, complexas e põe os professores a experimentarem positivamente e negativamente a entrada no magistério. Isso foi evidenciado também nos grupos de discussão, como se observa nas falas que seguem: O meu (início) foi tenebroso. [...] A situação assim terrível! Então, quer dizer, o início foi traumático. Realmente, porque assim, eu tava com vontade até de desistir, mas eu falei: “Bom, algum propósito tem”. No primeiro dia de aula com eles, ela (direção) foi tipo me jogou: Tá aqui a sua turma. Abriu a porta, “tá aqui a sua turma” e pronto. E eu fiquei. O que eu vou dar para eles? O que eu vou fazer? E a turma conversando, um caos enorme, uma bagunça, aquilo tudo. E eu fiquei realmente muito preocupada com aquilo tudo, me sentia muito mal e aí depois de vários dias e vários dias eu fui começando a criar mais intimidade com a turma, com a escola, com aquele contexto todo. As falas acima também evidenciam o que a literatura caracteriza como choque do real, momento de confronto do professor com a complexidade da situação profissional. A respeito disso, Tardif e Raymond (2000, p. 226) consideram o choque do real como um momento “crucial que leva uma porcentagem importante de iniciantes a abandonar a profissão ou simplesmente a se questionar sobre a escolha da profissão e sobre a continuidade da carreira”. No que referia aos sentimentos dos professores sobre o cotidiano do seu trabalho nesse início de carreira, verificamos que quase a totalidade dos respondentes assinalaram que ao 17191 final de um dia de trabalho, eles sentiam que os alunos aprendiam alguma coisa. No que refere-se à forma como viam o papel que desempenhavam, o questionário apontou que a maioria dos professores o percebe como muito importante para o futuro dos alunos, o que demonstra o sentido positivo atribuído ao trabalho que estavam realizando. Quanto à relação professor-aluno e à gestão da sala de aula, a maioria destacou que tem uma relação carinhosa (95%) e que os alunos respeitam a sua autoridade (87%). Contudo, a maioria também apontou que tem dificuldades em atender às variadas necessidades de seus alunos (95%) e que se sente trabalhando numa rotina incessante (90%). Tais dados podem ser interpretados pela literatura como elementos bem característicos do início da carreira, isto é, ora o iniciante sente positivamente as suas experiências, ora negativamente. Quanto às principais dificuldades enfrentadas pelos professores no trabalho desenvolvido na escola como um todo, percebemos ênfase nas relações interpessoais. Para Tardif e Lessard (2005, p. 235), a interação é parte constitutiva do trabalho docente e caracteriza-se como “o principal objeto do trabalho do professor”. No que referem-se às relações interpessoais, os dados mostraram que a principal dificuldade reside na relação com a família do aluno (47,8%). Outras dificuldades também foram apontadas, embora por um número menor de professores, tais como: relacionar-se com a direção (11,6%), delimitar seu papel no conjunto de agentes que atuam na comunidade escolar (7,2%), relacionar-se com os pares (4,3%) e relacionar-se com a equipe pedagógica (4,3%). A respeito desses resultados, percebem-se nas falas abaixo algumas situações que confirmam essas dificuldades. E ano que vem eu vou fazer tipo um diário de ocorrência, tudo que acontece na sala eu vou botar… Fulano, isso… Porque não dá para ter memória o ano inteiro e já tive um problema esse ano com uma mãe que foi lá, eu falei o que aconteceu com o filho, sorte que ela respeitou. Ela olhou para mim e eu senti ódio dela… Ele (aluno) apanhou muito em casa, eu ai meu Deus… Eu fiquei com esse peso na consciência. Eu tentei conversar, mas era difícil com os professores… Eu ficava assim… Tive que falar com a coordenação e vi que era com outros professores também e isso era uma coisa que eu não gostava da coordenação. [...] Então eu tive muita dificuldade em lidar com os outros professores que eram da minha turma. [...] Isso foi uma grande dificuldade assim… [...] e a gente falava com a direção e a direção sentada fazendo matrícula (risos). Sentada fazendo matrícula, a escola pegando fogo, entendeu? [...] A gente fez um documento, nós professores fizemos um documento colocando no papel todos os problemas e fomos numa reunião com a G., que é a coordenadora da CRE. [...] Foi quando trocou a direção. Que aí eles tomaram a decisão, exoneraram essa atual, antiga diretora. 17192 Outras dificuldades mostraram-se bastante recorrentes nas experiências desses professores. Lidar com a indisciplina dos alunos foi assinalada como um desafio vivenciado pela maioria dos participantes. A respeito disso, 73,6% dos professores sinalizaram dificuldades nas relações interpessoais estabelecidas com seus alunos, sobretudo, na manutenção da disciplina. Esse dado vai de encontro às respostas dadas sobre a relação professor-aluno e gestão da sala de aula, quando 87% dos professores assinalaram que sentiam segurança em relação à autoridade exercida sobre seus alunos. Uma possível interpretação para a incongruência encontrada se dá em razão dessa fase abarcar simultaneamente sentimentos de segurança e insegurança quanto ao trabalho desenvolvido. Com a intenção de identificar quais estratégias de sobrevivência os professores mobilizaram para superar os desafios e dificuldades em início de carreira, evidenciamos que o apoio dos pares e da comunidade escolar parece ser o elemento essencial bem como a principal dificuldade. De acordo com as respostas dadas ao questionário, os fatores que mais ajudaram os professores a enfrentarem as dificuldades encontradas para a realização do trabalho em suas escolas foi o apoio institucional. De modo majoritário, 77,5% dos respondentes indicaram a troca com os pares. Em seguida, 54,9% apontaram a conversa com a coordenação como recurso para esse enfrentamento e 46,5% sinalizaram a atuação da gestão da escola como importante. Também nos grupos de discussão essa constatação se confirmou, como se pode ler nos seguintes trechos: Agora, à tarde a coordenadora e a diretora me davam muito apoio. Não tinha também aquele tempo todo do mundo... Mas davam bastante apoio, elas eram muito amigas, mas elas estavam abertas para qualquer momento que eu chegava, tô precisando daquilo, daquilo outro, poxa, alguém pode vir aqui me ajudar, porque eu tinha um aluno que era muito nervoso e aí em alguns dias ele meio que ficava em crise né? E a coordenadora vinha ou a diretora, quem estivesse disponível ali para ajudar, vinha. Aí no primeiro dia que fiquei com eles, eu sentei e chorei, e falei com a diretora “eu vou embora”. Eu chorava, eu soluçava, a diretora falava “a gente vai resolver”. [...] Aí realmente, ela ficou comigo, ela chamava os casos de maior agressividade. E no dia a dia, cada um, cada professor ia me falando uma coisa e eu ia pegando e assim eu fui aprendendo. Aí fui pegando, fui planejando melhor, fui me organizando melhor [...]. O cuidado com o jovem professor é importante para a superação dessas dificuldades que se colocam em início de carreira. Como verificamos no questionário, o apoio institucional no momento da inserção profissional é apontado pelos professores como fator indispensável 17193 na aprendizagem da profissão. Em contrapartida, Nóvoa (2006) e Marcelo (2009) assinalam que o acolhimento dos iniciantes normalmente se dá em condições de trabalho desfavoráveis, com turmas cheias, falta de horário para planejamento, anos de escolarizações mais difíceis (como é do bloco de alfabetização), alunos com comportamentos agressivos e, sobretudo, sem um coletivo como suporte. Essas condições desfavoráveis também foram apontadas fortemente nas falas dos entrevistados: Quando eu voltei tinha uma professora na sala de recurso que estava numa turma de primeiro ano e uma outra que era emprestada da creche que estava em uma de segundo ano. As duas quando ficaram sabendo que chegariam duas professoras, elas se recusaram a voltar. Que a gente que tinha entrado agora não ia ficar com moleza, ligaram pra CRE e falaram que a diretora queria colocar a gente na educação infantil e não podia, porque a prioridade é o primeiro e o segundo ano e como que elas ia continuar no primeiro e no segundo ano? E assim, eles eram muito carentes e muito agressivos, coisa de cadeira voar mesmo na sala. [...] cadeiras voando, um aluno socando o outro, tinha uma que trazia a faca, aluno com lápis, um querendo furar o olho do outro, tesoura, e você chamando o pai, “olha não chama o pai dessa não porque é traficante, vai criar problemas com você”, mas eu não consigo entrar na sala de aula é mais uma questão de entrar na sala de aula para tomar conta de que um não mate o outro e não me mate também. Mas este é um erro da própria escola colocar quarenta e poucos alunos. Tinha que dividir essa turma em dois no mínimo. —Tinha quantos alunos na sua turma? — Tinha 30 e poucos. — Caramba! Eu achava que tinha muitos. Tinha 27. — Eu tinha 38. —Ai, ganhei! 45! (risos). A coordenadora se envolvia muito na parte burocrática, administrativa da escola, ela não ajudava praticamente em nada na parte pedagógica. [...] Não via como era meu trabalho, ela não se preocupava com essa parte. A diretora tão pouco, a preocupação da diretora só era: “você tem que dominar a turma”. Aí depois eu passei a me virar, dar o meu jeito para não ficar mandando aluno para a secretaria. As falas acima expressam tanto a necessidade como a ausência de um trabalho desenvolvido coletivamente na maioria das escolas. O apoio institucional, para além de tornar o acolhimento mais agradável, deve constituir-se num espaço/tempo de planejamento, reflexão e avaliação do ensino e possibilitar a aprendizagem de uma cultura profissional, ou seja, a incorporação de princípios, valores e atitudes próprios da ocupação. No contexto das escolas dessa rede de ensino, esse espaço coletivo, de modo geral, era constituído pelos centros de estudos que, longe de alcançarem tal pretensão, se tornavam, com frequência, em 17194 momentos de lamentos pela realidade escolar vivida por esses professores e/ou de informes e repasses de determinações. Mas o centro de estudos seria com todo mundo junto, todos os professores juntos, coordenação, direção, só que acaba que vira uma reunião administrativa e aquela choração de pitanga também né? E aí você não resolve o que você precisa resolver e não existe a troca, o momento que seria para isso acaba sendo deturpado. Como consequência, o ingresso sob essas circunstâncias força o iniciante a questionar a visão que possui sobre a carreira e se os estudos realizados na formação pré-serviço são suficientes para fazê-lo ter condições de superar a árdua tarefa que é estar no cotidiano da profissão. A respeito disso, percebem-se com os dados incessantes tentativas e erros que parecem ser vividos de modo solitário, já que os espaços de trocas se mostram não utilizados para tal função. Para Nóvoa (2006), o nível de profissionalidade de um grupo profissional pode ser julgado pelo modo como esse grupo cuida dos que nele ingressam. O autor ainda assinala que no magistério essa avaliação é a pior possível, visto que os que ingressam na profissão costumam encarar as condições de trabalho mais complexas tendo que realizá-las com a mesma destreza que os professores mais experientes. Para ele, urge a necessidade de construção de novas, ou já conhecidas, formas de integração desses professores, cuja intenção deve residir em diminuir, nesses primeiros anos de profissão, dinâmicas de sobrevivências individuais que conduzem a um fechamento individualista do trabalho dos principiantes. Considerações finais Buscamos neste texto discutir a aprendizagem da docência através das percepções e vivências dos professores iniciantes no seu processo de inserção profissional. A análise dos dados, bem como o que propõe a literatura que trata da temática, nos permitiram depreender que a aprendizagem da profissão está diretamente, e principalmente, atrelada às relações situadas no contexto social e institucional no qual o trabalho docente se insere. Contexto em que os indivíduos significam as regras, os modelos, as estruturas do sistema educacional e atribuem valores às suas experiências e práticas diárias, a escola deve garantir um espaço/tempo de desenvolvimento das estratégias de inserção, sejam elas originadas em contextos mais amplos ou na própria instituição. O cuidado com aqueles que estreiam na profissão também pressupõe um arranjo de elementos que contribua para que esses professores desenvolvam a autonomia e 17195 responsabilidade necessárias no sentido de auto-dirigirem o desenvolvimento de seus processos de formação, sendo capazes de responder às complexas e inúmeras exigências educativas com que, certamente, se defrontam, não só no início da carreira como na continuidade do exercício da profissão. O espaço escolar constitui-se, então, como o cenário principal de desenvolvimento profissional, cuja finalidade será de integrar o iniciante à realidade que ali está posta. Ainda que essas ações sejam claramente entendidas como necessárias, Nóvoa (2006) sinaliza que o professor iniciante ainda carece de direcionamento nas suas primeiras experiências no ambiente de trabalho onde é inserido. Assim como a literatura, a pesquisa que realizamos endossa essa dificuldade de acolhimento dos iniciantes e permite ressaltar a urgente necessidade de mudança desse quadro de trabalho desenvolvido em contextos, muitas vezes, solitários. Em vista disso, a principal contribuição que a pesquisa nos propiciou foi a percepção de que durante o processo de inserção profissional a instituição escolar tem um papel primordial na socialização desses professores. Junto com políticas de inserção que atendam às demandas dos sistemas educativos, ambientes de trabalho colaborativos, professores/gestores/coordenadores que acolham os seus pares, condições de trabalho adequadas, ela pode contribuir para uma aprendizagem significativa da docência. REFERÊNCIAS AMBROSETTI, N. 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