A INICIAÇÃO À DOCÊNCIA: O QUE VIVEM E SENTEM OS
PROFESSORES PRINCIPIANTES DE UMA REDE MUNICIPAL DE
ENSINO NO RIO DE JANEIRO
Jéssica Valentim Santos1 - UFRJ
Grupo de Trabalho - Formação de Professores e Profissionalização Docente
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O presente texto discute dados de uma pesquisa que buscou compreender como os professores
principiantes dos anos iniciais do ensino fundamental vivem o trabalho docente e o processo
de socialização profissional. No contexto deste texto exploramos apenas as percepções e
experiências desses professores quanto à aprendizagem da docência no contexto social e
institucional de trabalho docente. No que diz respeito à construção do aporte teórico que
orientou a pesquisa, apoiamo-nos principalmente nos estudos de Huberman (2000), Marcelo
(2009) e Nóvoa (2000; 2006), que nos permitem compreender o ciclo de vida profissional
docente, a transição entre a vida estudantil para a vida profissional e o trabalho docente
imerso no contexto da contemporaneidade. Quanto aos procedimentos metodológicos,
recorremos à conjugação de três instrumentos, utilizados sequencialmente em três etapas: (1)
a primeira etapa consistiu em entrevista com representante da Secretaria Municipal de Ensino
para acordar as regras de entrada no campo e conhecer as estratégias da rede para acolher os
iniciantes; (2) a segunda de aplicação de questionário online, formulado com 97 questões e;
(3) a terceira da realização de quatro grupos de discussões com professores ingressantes entre
os anos de 2010 a 2012. Os resultados da pesquisa apontaram os primeiros anos da docência
como o período do ciclo de vida profissional que muito contribui para a aprendizagem da
docência e para o processo de socialização docente. Os dados também evidenciaram que os
primeiros anos na carreira, embora sejam repletos de dificuldades, têm sido vividos de modo
positivo por parte dos participantes, que utilizam, em sua maioria, de estratégias individuais
para superá-las.
Palavras-chave: Trabalho docente. Inserção Profissional. Professores iniciantes.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Licenciada em Pedagogia: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do GEPROD
(UFRJ/FE), coordenado pela Profª. Drª. Maria das Graças Chagas de Arruda Nascimento, e colaboradora do
GEPED (UFRJ/FE), coordenado pela Profª. Drª Giseli Barreto da Cruz. E-mail: [email protected].
ISSN 2176-1396
17185
Introdução
Os primeiros contatos que os jovens professores têm com a escola representam um
momento importante em suas trajetórias profissionais e são vividos de modos distintos dadas
as realidades dos sistemas de ensino, das escolas e também do contexto organizacional e
educativo onde se insere o trabalho docente. Em alguns casos, as atividades burocráticas e
formais são reduzidas. Em outros, há diversas propostas de programas de formação que
objetivam estreitar o contato desses professores com o ensino e com seus pares (MARCELO,
2009). Por vezes, há também os professores que não passam por um processo de formação
pré-serviço que os conectem com a realidade do sistema de ensino no qual agora atuam.
Gatti e Barreto (2009) apontam para a complexidade de generalizar e projetar políticas
e ações de inserção em razão das inúmeras demandas nos diferentes níveis e etapas de ensino,
o que não significa lançar mão de propostas de acolhimento desses professores.
Consideramos, então, que os desafios da inserção profissional seriam melhor
superados se os sistemas educativos e os contextos institucionais se organizassem
colaborativamente, e de modo mais adequado, para acolherem os iniciantes.
Um exemplo recorrente do que acontece nesse período inicial da carreira é a execução
de tarefas pelos professores iniciantes, atribuídas, em grande medida, com o mesmo grau de
exigência dos professores mais experientes, que, muitas vezes, são cumpridas sem o apoio de
um coletivo que ampare as dificuldades encontradas e vividas por eles, fortalecendo, assim,
estratégias de sobrevivências solitárias. Nas palavras de Marcelo (2009, p. 6):
Las principales tareas con que se enfrentan los profesores principiantes son:
adquirir conocimientos sobre los estudiantes, el currículo y el contexto escolar;
diseñar adecuadamente el currículo y la enseñanza; comenzar a desarrollar un
repertorio docente que les permita sobrevivir como profesor; crear una comunidad
de aprendizaje en el aula, y continuar desarrollando una identidad profesional. Y el
problema es que esto deben hacerlo en general cargados con las mismas
responsabilidades que los profesores más experimentados.
Nóvoa (2006) e Gatti e Barreto (2009) ainda sinalizam as condições de trabalho, as
quais os iniciantes normalmente são submetidos, como um fator complexificador das
experiências vividas no ingresso na carreira. Para Nóvoa (2006, p. 14), o cuidado com os
jovens professores são os piores possíveis e em condições de trabalho precárias que
dificultam uma aprendizagem significativa da profissão. Isto é, os iniciantes “vão para as
piores escolas, têm os piores horários, vão para as piores turmas, não há qualquer tipo de
apoio. [...] Lançados “às feras”, [eles são] totalmente desprotegidos”. Gatti e Barreto (2009)
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também evidenciam as condições de trabalho como elementos fundamentais para o
desenvolvimento profissional. Para elas, torna-se indispensável um elo entre a formação préserviço e a formação continuada como apoio aos que iniciam a docência.
Diante desses aspectos e de tantos outros apontados pela literatura a respeito desse
temário, este artigo pretende anunciar algumas percepções e experiências de professores
iniciantes a respeito da aprendizagem da docência no contexto social e institucional no qual o
trabalho docente se insere. Para tanto, tomamos como informações dados de um survey
realizado numa pesquisa que buscou compreender como professores recém-ingressos nos
anos iniciais do ensino fundamental vivem o trabalho docente e o processo de socialização
profissional2.
Caminhos teórico-metodológicos percorridos
A respeito dos procedimentos metodológicos, os dados foram coletados no contexto de
uma rede pública de ensino no Rio de Janeiro e contou com a participação de 81 professores
que, na altura do trabalho de campo (2012-2013), estavam nos seus três primeiros anos de
docência.
Optamos pelo uso sequencial de três instrumentos, a saber, entrevista, questionário e
grupo de discussão. Eles se mostraram necessários, pois corresponderam adequadamente à
intenção do estudo investido.
Assim, como primeiro instrumento, foi realizada entrevista com representante do nível
central dessa rede de ensino, cuja finalidade foi de conhecer as estratégias de acolhimento dos
ingressantes na rede e também acordar os procedimentos de entrada no campo.
O segundo instrumento, um questionário online com 97 questões, buscou informações
sobre (1) perfil socioeconômico, (2) práticas culturais, (3) trajetória escolar, (4) trajetória
profissional e (5) experiência e condições de trabalho. Para respondê-lo, cada professor
recebeu um link exclusivo e personalizado, do qual somente ele tinha acesso às suas
respostas, dadas a qualquer momento dentro de um prazo estabelecido pelos pesquisadores. O
uso do meio eletrônico permitiu que o instrumento enviado fosse respondido a qualquer
momento, bastando para isso o acesso à internet, visto que, na maioria das vezes, os
professores encontravam-se assoberbados com as inúmeras demandas do próprio trabalho.
2
A produção deste texto foi orientada pela Profª Drª Maria das Graças Chagas de Arruda Nascimento,
coordenadora do projeto de pesquisa desenvolvido.
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Por fim, a última etapa foi composta por três grupos de discussão que aprofundaram
questões pouco, ou não, contempladas no questionário. Os GDs permitiram captar as opiniões
coletivas desses professores que viveram as suas primeiras experiências profissionais. Assim,
partilhavam de aspectos comuns do ingresso na carreira, vividos de modo particulares em
razão das diferentes trajetórias de formação e do contexto social e institucional em que
atuavam.
Para a interpretação e análise das informações colhidas a respeito da inserção
profissional docente, os estudos desenvolvidos, principalmente, por Huberman (2000),
Marcelo (2009) e Nóvoa (2000; 2006) sustentaram a construção do referencial teórico da
pesquisa e do presente texto. Tais produções nos permitem compreender o ciclo de vida
profissional, a transição entre a vida estudantil para a vida profissional e o trabalho docente
imerso no contexto da contemporaneidade.
A entrada na carreira
A formação do professor, para além de possibilitar uma base de conhecimento
profissional, é um movimento que abrange desde o momento de formação inicial, realizado
em espaços escolares e acadêmicos, até o final da carreira. Esse continnum de aprendizagens,
conhecido como desenvolvimento profissional, evidencia o ingresso na profissão como uma
etapa de grande importância na carreira docente, pois deixa as suas marcas e define o curso da
trajetória profissional desse professor.
Marcelo (2009) compreende a inserção profissional na carreira como o período de
tempo no qual os professores realizarão a transição entre a vida estudantil para a vida
profissional. É, portanto, um período caracterizado por tensões, contradições, dilemas do
ponto de vista relacional e que exige do professor iniciante escolhas diárias que geram
consequências, muitas vezes, diferentes das intenções iniciais. Em outras palavras:
iniciación a la enseñanza representa el ritual que ha de permitir transmitir la
cultura docente al profesor principiante (los conocimientos, modelos, valores y
símbolos de la profesión), la integración de la cultura en la personalidad del propio
profesor, así como la adaptación de éste al entorno social en que lleva a cabo su
actividad docente (MARCELO, 2009, p. 7).
Huberman (2000) demarca esse período no ciclo de vida profissional como os três
primeiros anos da carreira. Sendo assim, possui características peculiares vividas pelo
professor em um contexto no qual ele deverá refinar suas destrezas, atitudes, comportamentos
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e valores próprios de sua ocupação profissional que possibilitarão a aprendizagem das
maneiras de ser e estar na profissão, ou seja, como o professor se sente e se diz professor.
Logo, isto implica situações conflituosas, inesperadas, difíceis e até constrangedoras que,
muitas vezes, não foram experienciadas por quem inicia as suas atividades profissionais. Tais
vivências não ocorrem como eventos pontuais no exercício da docência, mas requerem um
processo de exigências, (re)significações diárias que marcam profundamente a maneira que se
pratica e aprende a profissão e confrontam os estereótipos construídos ao longo da vida acerca
dela. (VALLE, 2006; FANFANI e TEDESCO, 2004; TARDIF e LESSARD, 2005; NÓVOA,
1999 e 2000; DUBAR, 1997).
Gabardo e Hobold (2011), também compreendem o início da carreira como um
período complexo, pois essa fase determina o futuro profissional do professor no que diz
respeito à autoconfiança, experiência e identidade profissional. Por ser uma etapa bastante
intensa, a entrada na profissão possibilita de modo bem específico acontecimentos que
marcam essa fase de modo a adquirir relevância indispensável em todo o processo de
aprendizagem profissional. Desse modo, ingressar no magistério e desfrutar desse momento
inédito tanto pode propiciar experiências que contribuam para a consolidação da profissão
quanto para o seu abandono. Como assinala Valle (2006, p. 384):
O início da carreira representa uma fase crítica em relação às experiências anteriores
e aos ajustes a serem feitos em função da realidade do trabalho e do confronto inicial
com a dura e complexa realidade do exercício da profissão. Os primeiros anos são
decisivos na estruturação da prática profissional e podem estabelecer rotinas e
certezas cristalizadas no que diz respeito às atividades de ensino que acompanharão
o professor no decorrer de sua carreira.
Na perspectiva de Veenman (1988), essa experiência que descreve as dificuldades e os
desafios vividos é conceituada como choque do real ou choque com a realidade e diz respeito
exatamente à diferença entre o imaginário construído sobre a docência e a sua realidade, que
deve ser assimilada e constantemente dominada, sobretudo, no momento em que o docente
está começando a assumir suas tarefas de ensino. Ao perceber que, muitas vezes, a prática real
do seu trabalho não corresponde às ideias que traz acerca da profissão, construídas ao longo
da vida, o professor coloca em questão se os conhecimentos e experiências que possui têm
legitimidade para fazê-lo “encarar” o que a realidade apresenta. Assim, a insegurança e a
ansiedade parecem prevalecer na sua condição profissional de atuar em tal realidade.
Para alguns autores, como Tardif e Raymond (2000), Dubar (1997) e Huberman
(2000), o choque do real também mobiliza um sentimento de intensa “sobrevivência”. Logo, o
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confronto com a realidade força os professores iniciantes a questionar a visão, muitas vezes,
romantizada e idealizada que possuem a respeito da profissão. Distanciados do contexto da
formação pré-serviço e inseridos no cotidiano escolar, ele tendem a reajustar as expectativas e
percepções que têm sobre o trabalho docente. Com isso, junto às dificuldades encontradas no
início da carreira, os professores manifestam alguns sentimentos que permitem o desencanto e
a desilusão, vividos simultaneamente com os sentimentos de sobrevivência e descoberta.
A sobrevivência refere-se às estratégias desenvolvidas, individual ou coletivamente,
para dar conta das exigências do trabalho e superar o choque com a realidade. Já a descoberta
diz respeito ao entusiasmo inicial de experimentar a profissão, o sentimento de
responsabilidade de ser professor, possuir uma turma, executar tarefas e pertencer a um corpo
profissional. Assim, tais sentimentos são experimentados de modo interdependente,
possibilitando que a descoberta amenize as dificuldades e contribua para que o professor
sobreviva diante delas. Esse movimento da experiência inicial da profissão cristaliza
progressivamente certezas a respeito do trabalho e possibilita ao professor uma capacidade de
auto-integração no ambiente profissional (HUBERMAN, 2000; TARDIF e RAYMOND,
2000).
Ambrosetti e Almeida (2009, p. 602) também destacam que a incorporação das rotinas
e práticas escolares pelos sujeitos é importante na aprendizagem da docência, pois “do ponto
de vista profissional e da carreira, saber como viver numa escola é tão importante quanto
saber ensinar na sala de aula”. Essas duas dimensões, relacionar-se no espaço escolar e saber
ensinar, são aspectos centrais de configuração da profissionalização e socialização do
professor.
Os resultados encontrados
Como já apontado neste texto, os primeiros contatos profissionais com a realidade
escolar são de extrema importância, pois neles são iniciadas as experiências profissionais. Ao
estrearem, os professores confrontam os estereótipos que possuem acerca da profissão,
formulados ao longo de suas vidas, com a realidade que agora estão vivenciando. A respeito
disso, indagamos quais os principais sentimentos estiveram presentes no momento de ingresso
na carreira docente e quais estratégias foram mobilizadas para lidar com eles e superar os
desafios dessa fase.
De acordo com os dados obtidos no questionário, identificamos que os professores
possuíam boas expectativas e vivenciavam sentimentos positivos no início da carreira. Ao
17190
serem indagados sobre os seus sentimentos no período de ingresso, a maioria dos
respondentes destacou, com maior frequência, a satisfação por contribuir com uma educação
melhor (87,5%), o entusiasmo por estar à frente de uma turma e ter os próprios alunos
(86,1%), a felicidade por estar desenvolvendo um bom trabalho (85,9%), a sensação de estar
vivendo uma intensa aprendizagem do trabalho (83,4%) e a satisfação por fazer parte de um
corpo profissional (80,2%). Contudo, não deixaram de ser mencionados, de forma
significativa, o stress pela sobrecarga de trabalho (77,8%) e a sensação de choque diante da
realidade encontrada (77,7%).
Os dados, ainda, indicaram que os professores viviam simultaneamente os sentimentos
positivos em maior escala e negativos com menor frequência, o que caracterizou esse
momento como uma fase de descobertas e de sobrevivência profissional. Uma possível
interpretação para a predominância de sentimentos positivos pode residir no fato de que o
sentimento de descoberta, ou seja, de experimentar a profissão, ter uma turma, pertencer a um
corpo profissional, ameniza as dificuldades no início da carreira e contribui para que o
professor sobreviva, como destaca Huberman (2000). Esses dados corroboram a compreensão
de que a iniciação à docência se dá em um contexto de inúmeros sentimentos, situações
conflituosas, intensas, complexas e põe os professores a experimentarem positivamente e
negativamente a entrada no magistério. Isso foi evidenciado também nos grupos de discussão,
como se observa nas falas que seguem:
O meu (início) foi tenebroso. [...] A situação assim terrível! Então, quer dizer, o
início foi traumático. Realmente, porque assim, eu tava com vontade até de desistir,
mas eu falei: “Bom, algum propósito tem”.
No primeiro dia de aula com eles, ela (direção) foi tipo me jogou: Tá aqui a sua
turma. Abriu a porta, “tá aqui a sua turma” e pronto. E eu fiquei. O que eu vou dar
para eles? O que eu vou fazer? E a turma conversando, um caos enorme, uma
bagunça, aquilo tudo. E eu fiquei realmente muito preocupada com aquilo tudo, me
sentia muito mal e aí depois de vários dias e vários dias eu fui começando a criar
mais intimidade com a turma, com a escola, com aquele contexto todo.
As falas acima também evidenciam o que a literatura caracteriza como choque do real,
momento de confronto do professor com a complexidade da situação profissional. A respeito
disso, Tardif e Raymond (2000, p. 226) consideram o choque do real como um momento
“crucial que leva uma porcentagem importante de iniciantes a abandonar a profissão ou
simplesmente a se questionar sobre a escolha da profissão e sobre a continuidade da carreira”.
No que referia aos sentimentos dos professores sobre o cotidiano do seu trabalho nesse
início de carreira, verificamos que quase a totalidade dos respondentes assinalaram que ao
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final de um dia de trabalho, eles sentiam que os alunos aprendiam alguma coisa. No que
refere-se à forma como viam o papel que desempenhavam, o questionário apontou que a
maioria dos professores o percebe como muito importante para o futuro dos alunos, o que
demonstra o sentido positivo atribuído ao trabalho que estavam realizando.
Quanto à relação professor-aluno e à gestão da sala de aula, a maioria destacou que
tem uma relação carinhosa (95%) e que os alunos respeitam a sua autoridade (87%). Contudo,
a maioria também apontou que tem dificuldades em atender às variadas necessidades de seus
alunos (95%) e que se sente trabalhando numa rotina incessante (90%). Tais dados podem ser
interpretados pela literatura como elementos bem característicos do início da carreira, isto é,
ora o iniciante sente positivamente as suas experiências, ora negativamente.
Quanto às principais dificuldades enfrentadas pelos professores no trabalho
desenvolvido na escola como um todo, percebemos ênfase nas relações interpessoais. Para
Tardif e Lessard (2005, p. 235), a interação é parte constitutiva do trabalho docente e
caracteriza-se como “o principal objeto do trabalho do professor”. No que referem-se às
relações interpessoais, os dados mostraram que a principal dificuldade reside na relação com a
família do aluno (47,8%). Outras dificuldades também foram apontadas, embora por um
número menor de professores, tais como: relacionar-se com a direção (11,6%), delimitar seu
papel no conjunto de agentes que atuam na comunidade escolar (7,2%), relacionar-se com os
pares (4,3%) e relacionar-se com a equipe pedagógica (4,3%).
A respeito desses resultados, percebem-se nas falas abaixo algumas situações que
confirmam essas dificuldades.
E ano que vem eu vou fazer tipo um diário de ocorrência, tudo que acontece na sala
eu vou botar… Fulano, isso… Porque não dá para ter memória o ano inteiro e já
tive um problema esse ano com uma mãe que foi lá, eu falei o que aconteceu com o
filho, sorte que ela respeitou. Ela olhou para mim e eu senti ódio dela… Ele (aluno)
apanhou muito em casa, eu ai meu Deus… Eu fiquei com esse peso na consciência.
Eu tentei conversar, mas era difícil com os professores… Eu ficava assim… Tive
que falar com a coordenação e vi que era com outros professores também e isso era
uma coisa que eu não gostava da coordenação. [...] Então eu tive muita dificuldade
em lidar com os outros professores que eram da minha turma. [...] Isso foi uma
grande dificuldade assim…
[...] e a gente falava com a direção e a direção sentada fazendo matrícula (risos).
Sentada fazendo matrícula, a escola pegando fogo, entendeu? [...] A gente fez um
documento, nós professores fizemos um documento colocando no papel todos os
problemas e fomos numa reunião com a G., que é a coordenadora da CRE. [...] Foi
quando trocou a direção. Que aí eles tomaram a decisão, exoneraram essa atual,
antiga diretora.
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Outras dificuldades mostraram-se bastante recorrentes nas experiências desses
professores. Lidar com a indisciplina dos alunos foi assinalada como um desafio vivenciado
pela maioria dos participantes. A respeito disso, 73,6% dos professores sinalizaram
dificuldades nas relações interpessoais estabelecidas com seus alunos, sobretudo, na
manutenção da disciplina. Esse dado vai de encontro às respostas dadas sobre a relação
professor-aluno e gestão da sala de aula, quando 87% dos professores assinalaram que
sentiam segurança em relação à autoridade exercida sobre seus alunos. Uma possível
interpretação para a incongruência encontrada se dá em razão dessa fase abarcar
simultaneamente sentimentos de segurança e insegurança quanto ao trabalho desenvolvido.
Com a intenção de identificar quais estratégias de sobrevivência os professores
mobilizaram para superar os desafios e dificuldades em início de carreira, evidenciamos que o
apoio dos pares e da comunidade escolar parece ser o elemento essencial bem como a
principal dificuldade.
De acordo com as respostas dadas ao questionário, os fatores que mais ajudaram os
professores a enfrentarem as dificuldades encontradas para a realização do trabalho em suas
escolas foi o apoio institucional. De modo majoritário, 77,5% dos respondentes indicaram a
troca com os pares. Em seguida, 54,9% apontaram a conversa com a coordenação como
recurso para esse enfrentamento e 46,5% sinalizaram a atuação da gestão da escola como
importante. Também nos grupos de discussão essa constatação se confirmou, como se pode
ler nos seguintes trechos:
Agora, à tarde a coordenadora e a diretora me davam muito apoio. Não tinha
também aquele tempo todo do mundo... Mas davam bastante apoio, elas eram muito
amigas, mas elas estavam abertas para qualquer momento que eu chegava, tô
precisando daquilo, daquilo outro, poxa, alguém pode vir aqui me ajudar, porque
eu tinha um aluno que era muito nervoso e aí em alguns dias ele meio que ficava em
crise né? E a coordenadora vinha ou a diretora, quem estivesse disponível ali para
ajudar, vinha.
Aí no primeiro dia que fiquei com eles, eu sentei e chorei, e falei com a diretora “eu
vou embora”. Eu chorava, eu soluçava, a diretora falava “a gente vai resolver”.
[...] Aí realmente, ela ficou comigo, ela chamava os casos de maior agressividade.
E no dia a dia, cada um, cada professor ia me falando uma coisa e eu ia pegando e
assim eu fui aprendendo. Aí fui pegando, fui planejando melhor, fui me organizando
melhor [...].
O cuidado com o jovem professor é importante para a superação dessas dificuldades
que se colocam em início de carreira. Como verificamos no questionário, o apoio institucional
no momento da inserção profissional é apontado pelos professores como fator indispensável
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na aprendizagem da profissão. Em contrapartida, Nóvoa (2006) e Marcelo (2009) assinalam
que o acolhimento dos iniciantes normalmente se dá em condições de trabalho desfavoráveis,
com turmas cheias, falta de horário para planejamento, anos de escolarizações mais difíceis
(como é do bloco de alfabetização), alunos com comportamentos agressivos e, sobretudo, sem
um coletivo como suporte. Essas condições desfavoráveis também foram apontadas
fortemente nas falas dos entrevistados:
Quando eu voltei tinha uma professora na sala de recurso que estava numa turma
de primeiro ano e uma outra que era emprestada da creche que estava em uma de
segundo ano. As duas quando ficaram sabendo que chegariam duas professoras,
elas se recusaram a voltar. Que a gente que tinha entrado agora não ia ficar com
moleza, ligaram pra CRE e falaram que a diretora queria colocar a gente na
educação infantil e não podia, porque a prioridade é o primeiro e o segundo ano e
como que elas ia continuar no primeiro e no segundo ano?
E assim, eles eram muito carentes e muito agressivos, coisa de cadeira voar mesmo
na sala. [...] cadeiras voando, um aluno socando o outro, tinha uma que trazia a
faca, aluno com lápis, um querendo furar o olho do outro, tesoura, e você
chamando o pai, “olha não chama o pai dessa não porque é traficante, vai criar
problemas com você”, mas eu não consigo entrar na sala de aula é mais uma
questão de entrar na sala de aula para tomar conta de que um não mate o outro e
não me mate também.
Mas este é um erro da própria escola colocar quarenta e poucos alunos. Tinha que
dividir essa turma em dois no mínimo.
—Tinha quantos alunos na sua turma?
— Tinha 30 e poucos.
— Caramba! Eu achava que tinha muitos. Tinha 27.
— Eu tinha 38.
—Ai, ganhei! 45! (risos).
A coordenadora se envolvia muito na parte burocrática, administrativa da escola,
ela não ajudava praticamente em nada na parte pedagógica. [...] Não via como era
meu trabalho, ela não se preocupava com essa parte. A diretora tão pouco, a
preocupação da diretora só era: “você tem que dominar a turma”. Aí depois eu
passei a me virar, dar o meu jeito para não ficar mandando aluno para a secretaria.
As falas acima expressam tanto a necessidade como a ausência de um trabalho
desenvolvido coletivamente na maioria das escolas. O apoio institucional, para além de tornar
o acolhimento mais agradável, deve constituir-se num espaço/tempo de planejamento,
reflexão e avaliação do ensino e possibilitar a aprendizagem de uma cultura profissional, ou
seja, a incorporação de princípios, valores e atitudes próprios da ocupação. No contexto das
escolas dessa rede de ensino, esse espaço coletivo, de modo geral, era constituído pelos
centros de estudos que, longe de alcançarem tal pretensão, se tornavam, com frequência, em
17194
momentos de lamentos pela realidade escolar vivida por esses professores e/ou de informes e
repasses de determinações.
Mas o centro de estudos seria com todo mundo junto, todos os professores juntos,
coordenação, direção, só que acaba que vira uma reunião administrativa e aquela
choração de pitanga também né? E aí você não resolve o que você precisa resolver
e não existe a troca, o momento que seria para isso acaba sendo deturpado.
Como consequência, o ingresso sob essas circunstâncias força o iniciante a questionar
a visão que possui sobre a carreira e se os estudos realizados na formação pré-serviço são
suficientes para fazê-lo ter condições de superar a árdua tarefa que é estar no cotidiano da
profissão. A respeito disso, percebem-se com os dados incessantes tentativas e erros que
parecem ser vividos de modo solitário, já que os espaços de trocas se mostram não utilizados
para tal função.
Para Nóvoa (2006), o nível de profissionalidade de um grupo profissional pode ser
julgado pelo modo como esse grupo cuida dos que nele ingressam. O autor ainda assinala que
no magistério essa avaliação é a pior possível, visto que os que ingressam na profissão
costumam encarar as condições de trabalho mais complexas tendo que realizá-las com a
mesma destreza que os professores mais experientes. Para ele, urge a necessidade de
construção de novas, ou já conhecidas, formas de integração desses professores, cuja intenção
deve residir em diminuir, nesses primeiros anos de profissão, dinâmicas de sobrevivências
individuais que conduzem a um fechamento individualista do trabalho dos principiantes.
Considerações finais
Buscamos neste texto discutir a aprendizagem da docência através das percepções e
vivências dos professores iniciantes no seu processo de inserção profissional. A análise dos
dados, bem como o que propõe a literatura que trata da temática, nos permitiram depreender
que a aprendizagem da profissão está diretamente, e principalmente, atrelada às relações
situadas no contexto social e institucional no qual o trabalho docente se insere. Contexto em
que os indivíduos significam as regras, os modelos, as estruturas do sistema educacional e
atribuem valores às suas experiências e práticas diárias, a escola deve garantir um
espaço/tempo de desenvolvimento das estratégias de inserção, sejam elas originadas em
contextos mais amplos ou na própria instituição.
O cuidado com aqueles que estreiam na profissão também pressupõe um arranjo de
elementos que contribua para que esses professores desenvolvam a autonomia e
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responsabilidade necessárias no sentido de auto-dirigirem o desenvolvimento de seus
processos de formação, sendo capazes de responder às complexas e inúmeras exigências
educativas com que, certamente, se defrontam, não só no início da carreira como na
continuidade do exercício da profissão. O espaço escolar constitui-se, então, como o cenário
principal de desenvolvimento profissional, cuja finalidade será de integrar o iniciante à
realidade que ali está posta.
Ainda que essas ações sejam claramente entendidas como necessárias, Nóvoa (2006)
sinaliza que o professor iniciante ainda carece de direcionamento nas suas primeiras
experiências no ambiente de trabalho onde é inserido. Assim como a literatura, a pesquisa que
realizamos endossa essa dificuldade de acolhimento dos iniciantes e permite ressaltar a
urgente necessidade de mudança desse quadro de trabalho desenvolvido em contextos, muitas
vezes, solitários. Em vista disso, a principal contribuição que a pesquisa nos propiciou foi a
percepção de que durante o processo de inserção profissional a instituição escolar tem um
papel primordial na socialização desses professores. Junto com políticas de inserção que
atendam às demandas dos sistemas educativos, ambientes de trabalho colaborativos,
professores/gestores/coordenadores que acolham os seus pares, condições de trabalho
adequadas, ela pode contribuir para uma aprendizagem significativa da docência.
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