ENTRE V ISTA ESPECI A L Stuart Hart Por Poliana Abreu A era da inovação disruptiva Divulgação Esse tempo chegou e as respostas podem estar na base da pirâmide, afirma Stuart Hart, uma das maiores autoridades mundiais sobre implicações do ambiente e da pobreza para a estratégia de negócios 66 Ideia Sustentável DEZEMBRO 2013 U ma das maneiras mais concretas de tangibilizar a sustentabilidade corporativa, no sentido amplo do termo, talvez esteja na concepção de produtos e mercados inclusivos, que incorporam, como parte de seus processos, tecn ologias limpas, inovadoras e momentos de cria ção coletiva entre os mais diversos grupos de stakeholders. Pode parecer uma análise óbvia, mas, na prática, trata-se de um desafio complexo e que exige muito esforço, preparo e tempo para coorde nar todas as variáveis. Essa reflexão e seus desdobramentos são foco da conversa com o economista e professor da Escola de Administração de Cornell (EUA ) Stuart Hart, uma das maiores referên cias mundiais em estratégias empresariais para as populações de baixa renda. No ano 2000, Hart criou a Rede Global de Laboratórios de Aprendizagem da Base da Pirâmide (BoP Learning Lab), que envolve acadêmicos, empresários e lideranças da sociedade civil para gerar e difundir conhecimentos empresariais sobre teoria e prática de negócios sustentáveis nesse segmento da economia. Hoje, a iniciativa está presente em 18 países — inclusive no Brasil, onde o primeiro Laboratório de BoP funciona no Centro de Excelência em Varejo da Fundação Getúlio Vargas (FGV -EAESP), na capital paulista. O país, a liás, foi justamente o escolhido para sediar, no início de novembro, o primeiro Fórum Inter nacional da Rede Global de Laboratórios de Base da Pirâmide, no qual estiveram presentes representantes de 16 países, entre eles Dinamarca, Finlândia, Japão, China, Índia, Colômbia, Filipinas, Itália, Alemanha e África do Sul. Em entrevista exclusiva à Ideia Sustentável, Hart analisa a evolução do conceito de negócios para a base da pirâmide, desde a concepção do aclamado artigo publicado em 2009 na Harvard Business Review, em parceria com o também acadêmico C.K. Prahalad (falecido em 2010). Na avaliação dele, mesmo que a prática ainda esteja aquém das possibilidades, a era da inovação disruptiva nesse mercado está aqui e agora. Ideia Sustentável – Desde a publicação do artigo com Prahalad, sobre a riqueza na base da pirâmide, como esse conceito evoluiu? Stuart Hart – Nos últimos dez anos, houve um aumento significativo de ini ciativ as lançadas ao redor do mundo pelas corporações e áreas de investimento de impacto e empreendedorismo social. Muitos alegam que essas inicia tivas não significam, necessariamente, negócios para a base da pirâmide. Mas é inegável que vimos, nesta última década, uma proliferação de buzz words, ou seja, palavras que, apesar de terem nuances Na última década, vimos o desabrochar de duas revoluções: a da base da pirâmide e a das tecnologias limpas. Esses dois movimentos, igualmente cruciais para a busca da sustentabilidade, precisam se conectar. diferentes, carregam na sua essência a mesma ideia. São exemplos de buzz words expressões como inovação so cial, negócios inclusivos, investimento de impacto, oportunidades para a maioria, negócios para redução da pobreza, dentre outras. Na essência, todas elas compartilham da ideia de que, em vez de tratar a pobreza como um problema para ser lidado via doação ou filantropia, deve-se incorporá-lo e direcioná-lo por meio dos negócios. Acho que um dos resultados dos últimos dez anos foi um tremendo crescimento de iniciati vas empresariais, numa variedad e de perspectivas, que carregam a ideia de desenvolver negócios e produtos para a base da pirâmide. Uma outra dimensão que se tornou mais clara foi em relação ao retorno financeiro esperado dessas iniciativas. Isso diferencia claramente os negócios sociais tradicionais (que não levavam em conta o retorno financeiro) da ideia daqueles que, assim como eu, acreditam que negócio so cial só é possível se baseado na perspectiva de retorno financeiro. Ou seja, atingir objetivos sociais e ambientais e, ao mesmo tempo, fazer dinheiro com isso. Apesar de uma maturidade do conceito, após dez anos ainda temos poucos exemplos baseados nessa nossa proposta, e a maior parte não teve sucesso. Se definirmos sucesso como a capacidade dos negócios crescerem e prosperarem, poderíamos dizer que os casos de sucesso ainda estão restritos a dois setores: microfinanças e telefonia. Temos alguns outros casos isolados que foram bem-sucedidos. Mas, de modo geral, as empresas ainda estão lutando para internalizar e escalar essa proposta. Alguns dizem que isso é um sinal de fracasso, mas vejo como aprendizado. IS – O senhor não acha que uma década ainda é um tempo curto para uma mudança cultural na forma de encaramos os negócios? Quais foram os principais aprendizados desse processo? SH – Absolutamente! De fato, não é razoá vel esperarmos uma maturidade da base da pirâmide em apenas dez anos. Se pensarmos em outras revoluções empresariais, percebemos que levaram mais de 40 ou 50 anos para se consolidarem. Então, por que esperaríamos que com os negócios para a base da pirâmide fosse diferente? Aprendemos bastante nesta última década e um desses aprendizados foi a distinção entre o que eu classifico hoje como “base da pirâmide 1.0” e “base da pirâmide 2.0”. A maioria das iniciati vas nas empresas ainda está no modo 1.0, que envolve a adaptação de produtos e a abertura de canais de distribuição e parceiros na ponta de entrega. A versão 2.0 exige desenvolver novas habilidades para a criação conjunta, abrindo DEZEMBRO 2013 Ideia Sustentável 67 portas para modelos de negócios ainda a desenvolver. Na última década, vimos o desabrochar de duas revoluções: a da base da pirâmide e a das tecnologias limpas. Esses dois movimentos, igualmente cruciais para a busca da sustentabilidade, caminharam até agora de maneira isolada. O desafio da versão 2.0 é justamente conectar essas duas revoluções. Divulgação IS – Quais são as características comuns às empresas que não atingiram o sucesso na base da pirâmide? SH – É fácil identificar essas características. A maior parte das empresas que fracassaram ao tentar desenvolver estratégias para a base da pirâmide seguiu o mesmo caminho e são este reótipos da versão 1.0 que citei anterior mente. Essas empresas têm as seguintes 68 Ideia Sustentável DEZEMBRO 2013 É necessário que a liderança crie espaços na empresa para incentivar as pessoas a se engajar e participar desse tipo de inovação para construir mercados completamente diferentes. características: tipicamente focam produtos já existentes e tentam fazê-lo mais barato e acessível usando técnicas de marketing tradicional, que chamo de “mentalidade do tiro de espingarda” — ou seja, visam a um único alvo (os usuá rios de baixa renda) e uma única estratégia (a do baixo custo). Essa estratégia funciona relativamente bem para o topo da pirâmide, mas não para a base. Desse comportamento, tiramos dois aprendizados: fazer algo mais barato não quer dizer que as pessoas vão comprá-lo; e, para se obter sucesso no longo prazo, a estratégia de base da pirâmide deve ter uma abrangência maior. A proposta de valor do empreendimento deve passar por um processo de criação conjunta, indo além do preço baixo e dos mecanismos de mercado tradicionais. IS – Como o senhor vê o Brasil nesse contexto? SH – O Brasil é um ator muito relevante. Mas vale ressaltar que esse movimento está acontecendo em todo o mundo. A Índia, por exemplo, vem despontando como uma referência nessa área. Ainda acho que, no Brasil, várias iniciativas são rotuladas como de base da pirâmide, mas na realidade ainda estão no estágio da responsabilidade social. Isso não é ruim, mas não devemos confundir os conceitos. IS – Quais seriam, então, as principais habilidades necessárias ao lançamento de negócios ou produtos para a base da pirâmide? SH – As corporações ainda enfrentam o desafio de como fazer isso na prática, de como engajar as comunidades. De fato, ainda há alguns conhecimentos que as empresas não têm. Mas existem no mercado muitas consultorias, facilitadores, ONG s e outros players que podem ajudá- las a solucionar esses desaf ios. Portanto, essa já não é a maior dificuldade. Por isso, vejo que o principal entrave para Divulgação IS – Permita-me aprofundar um pouco mais. Temos algumas pesquisas no Brasil que demonstram que, mais do que os negócios inclusivos, os países precisam incentivar os mercados inclusivos. Ou seja, criar mecanismos, estruturas legais, ambiente e demanda para que se fomente a criação desse tipo de negócio. Em sua opinião, como os negó cios inclusivos podem ser valorizados pelo mercado? SH – Acho que esse pensamento é a chave central para evoluirmos na proposta de atingir a base da pirâmide por meio dos negócios. Acredito que o pensamento de mercados inclusivos está muito conectado com a ideia da versão 2.0 da base da pirâmide. Para se criar mercados que suportem essa ideia, é necessário o envolvimento das instituições privadas, governamentais, não governamentais e da sociedade civil na elaboração de propostas de valor que sejam fruto de processos de cocriação e façam sentido para a população de baixa renda. as empresas, hoje, ainda está âmbito interno. A primeira questão é não ter pessoas com conhecimentos suf icien tes direcionados à base da pirâmide. Mas isso pode ser aprendido e a empresa pode engajar parceiros externos. O principal problema está nos famosos “7S”, identificados pela consultoria empre sar ial McKinsey: Strategy (Estratégia), Structure (Estrutura), Systems (Sistemas), Skills (Habilidades), Staff (Pessoas), Style (Estilos) e Shared Values (Valores Compartilhados). Ou seja, os processos formais e informais, a cultura e como as questões são tratadas dentro da empresa. Esse movimento necessita de líderes que permitam o que chamamos de white space, que é o espaço em branco, que possibilita a inovação. Sabemos que, na realidade, esse tipo de negócio demora mais tempo para sair do papel. Todas as metas corporativas foram desenhadas para os modelos tradicionais e as estratégias de “tiro de espingarda”. Por isso, é necessário que a liderança crie espaços na empresa para incentivar as pessoas a se engajar e participar desse tipo de inovação para construir mercados completamente diferentes. IS – Como as escolas de negócios estão preparando os novos líderes para esse contexto? SH – Não estão preparando bem, definitivamente. Eu não acho que as escolas mudaram tanto quanto o mercado, nos últimos anos. Por exemplo, o modelo das escolas de negócios americanas ainda está baseado nos anos 80 e 90, o que é completamente insustentável. Vemos alguns seminários sobre o tema acontecendo, mas não notamos grandes mudanças. E isso é geral, em todas as grandes escolas de negócios do mundo. Então, eu não acredito que as instituições de ensino já tenham dado o grande salto para esse processo. Sem dúvida, nos próximos 10 a 15 anos vamos ver grandes inovações disruptivas. As empresas serão completamente reinventadas, e o DEZEMBRO 2013 Ideia Sustentável 69 típico MBA não prepara para isso. A pressão dos rankings e a preocupação com os empregos nas empresas tradicionais inverteram o que é de fato relevante na educação executiva. Divulgação IS – No artigo escrito em parceria com Clayton M. Christensen, em 2002, The Great Leap, vocês afirmavam que a inovação disruptiva poderia pavimentar o caminho de bilhões de pessoas, trazendo os pobres para a economia mundial. Desde então, passaram-se 11 anos. O senhor acha que agora estamos vivendo uma era disruptiva? Como o senhor vê o papel das empresas nesse processo? SH – Essa era de fato chegou! O artigo que escrevemos juntos baseou-se no livro de Christensen sobre o dilema da inovação e dizia muito sobre como inovar para a base da pirâmide. Na época, falávamos sobre os computadores pessoais (PC s), que eram completamente disruptivos. O que foi importante nesse artigo é que lançávamos a ideia de se 70 Ideia Sustentável DEZEMBRO 2013 É necessário que a liderança crie espaços na empresa para incentivar as pessoas a se engajar e participar desse tipo de inovação para construir mercados completamente diferentes. poder pensar em mercados fora dos tradicionais. Inovar para atingir a base da pirâmide é extremamente disruptivo. Ninguém duvida de que essa parcela da população seja completamente heterogênea. As diferenças entre as demandas de moradores das favelas brasileiras, de comunidades africanas ou de subúrbios americanos são imensas. Como não existe uma estratégia única, esse desafio exige que as empresas trabalhem mais o seu lado empreendedor, de reestruturação ou mesmo em algo completamente novo, o que reforça a lógica da inovação disruptiva. Atual mente, estamos começando a ver florescer essa semente. O mais interessante é que esse processo tem sido acelerado pelas tecnologias, que permitem uma evolução mais rápida e efetiva. Cada vez mais, fica perceptível que todo setor tem tecnologias que podem ser incorporadas localmente em comunidades para apoiar a base da pirâmide e com preços mais acessíveis. É interessante ver que a forma como pensávamos, na época do artigo, agora está se tornando mainstream. IS – O senhor criou o conceito de valor sustentável, que introduz duas maneiras de traduzir a sustentabilidade no Divulgação mundo corporativo: o greening (verde) e o beyond greening (além do verde). Poderia nos dar exemplos de empresas em cada um desses níveis? SH – Esse conceito pressupõe duas mentalidades diferentes para introduzir a sustentabilidade no centro da estratégia das empresas. Primeiro, o “verde”, para a redução do impacto negativo dos produtos e processos. Depois, o “além do verde”, para produzir impacto positivo na comercialização das tecnologias limpas revolucionárias e inovadoras de amanhã, criando os mercados do futuro. Como na economia da base da pirâmide 1.0, o “verde” se aproveita da mentalidade de melhoria contínua e inovação incremental, já existentes nas corporações. Não estou falando que isso seja ruim, mas o “além do verde” exige a mentalidade de romper barreiras e criar mercados. Trata-se de uma mudança de foco. Em vez de colocar a atenção em melho rias do mercado a tual e seus processos, a empresa deve focar a criação do mercado “de amanhã”. As estratégias de greening ainda predominam (90% contra 10% do beyond greening). A agenda verde já está completamente institu cionalizada, todas as grandes empresas já têm esse conceito incorporado. Por exemplo, programas para ecoef iciência, gestão de resíduos, projetos de responsabilidade social, dentre outros. Já está claro que as empresas que não fizerem isso não vão sobreviver. Mas as demandas do mundo empresarial dos próximos 20 anos estão, sem dúvida, nas oportunidades do “além do verde” e na versão 2.0 da base da pirâmide. Nesse sentido, posso citar o exemplo de uma empresa que, de certa forma, construiu toda a sua estratégia pensando em necessidades diferentes das que existiam antes, que é a Novelis. É parte da estratégia da empresa ser a primeira a produzir alumínio sem mineração. Parece impossível, mas ela já está criando toda uma cadeia para suportar essa estratégia. A bauxita, minério de onde se extrai o alumínio, é uma fonte não renovável; nada mais lógico do que se pensar em como produzir o alumínio por meio de outras fontes. E a Novelis está indo além das tradicionais latinhas de refrigerante e buscando o alumínio em todos os lugares. O que movimenta uma cadeia enorme! Toda essa nova infraestrutura cria novos empregos, novas formas de se relacionar com fornecedores e diminui consideravelmente o uso de energia. Isso requer um investimento enorme e será um longo caminho até se atingir todos os objetivos. Mas o desafio já está posto, e a empresa já se posiciona para a tuar como protagonista no mercado além do verde. IS – Atualmente, o seu esforço se concentra em apoiar iniciativas para a base da pirâmide que estão sendo desenvolvidas em laboratórios sob sua coordenação em diversas partes do mundo, a Rede de Laboratórios de Aprendizagem Global da Base da Pirâmide. Conte-nos um pouco mais sobre essa iniciativa. SH – Atualmente, concentro minha energia para ver as mudanças acontecendo na prática. Hoje temos 18 laboratórios ou serviços de inovação na Ásia, América Latina, Europa e nos Estados Unidos, que surgiram espontaneamente e agora fazem parte de uma rede global para compartilhar os aprendizados e práticas uns com os outros. Nossa ideia é reunir esforços e buscar aprender mais sobre esses novos consumidores, além de trocar experiências. Já estamos conseguindo consolidar dados preciosos sobre a base da pirâmide — setor da sociedade que certamente terá um papel decisivo sobre a economia mund ial nos próximos anos. ❧ PA R A SA BER M A IS Sobre os Laboratórios de Aprendizagem da Base da Pirâmide L eia também a entrevista com Stuart Hart publicada na edição de dezembro de 2012 de Ideia Sustentável (IS 30) ou pelo site: http://www.ideiasustentavel.com. br/2013/02/entrevista-stuart-hart/. Para conhecer mais sobre as experiên cias da rede global de laboratórios BoP, aces se o relatório Raising the Base of the Pyra mid, disponível em: http://www.bopglobal‑ network.org/labnetwork_web.pdf. A versão em português será disponibilizada em breve. DEZEMBRO 2013 Ideia Sustentável 71