Comentário das obras da UEMSENHORA – José de Alencar- Profª Sônia Targa Análise da obraSenhora foi publicado em 1875. O romance pode ser considerado um a das obras-prim as de seu autor e uma das principais da literatura brasileira. Uma vez que trata do tema do casamento burguês, ou seja, baseado no interesse financeiro, pode ser considerada precursora do Realismo ou pré-realista. Alencar classifica a obra dentro de seus “perfis de mulher”, já que concentra na mulher o papel mais importante dentro da sociedade de seu tempo. Aurélia é a protagonista do rom ance, uma jovem mulher dividida entre o amor e o ódio, o desejo e o desprezo pelo hom em que ama. Essa personalidade dividida apresenta um desvio psíquico ocasionado a partir do rompimento do noivo, Fernando Seixas, e que causou um certo caso de esquizofrenia na personagem. A personagem Aurélia Camargo é idealizada como uma rainha, como uma heroína romântica, pelo narrador. De "régia fronte, coroada de diadema de cabelos castanhos, de formosas espáduas", essa personagem, no entanto, é ao mesmo tempo "fada encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra". Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica, o narrador acrescenta, assim, um elemento demoníaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo o frêmito que lembrava silvo de serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo". Tal maneira de caracterizar a personagem - pelos elementos exteriores - é típica do narrador observador. Tal caracterização, por sua vez, humaniza a personagem, afastando-a do maniqueísmo romântico e acrescentando-lhe traços realistas. O conflito entre os protagonistas gera momentos de grande emoção e sofrimento. É desse embate entre o desejo de vingança e o desejo de am ar em plenitude que nasce a ação psíquica que se transforma em enredo. Se a temática e o psiquismo da obra representam antecipações realistas, ambos fortemente consolidados pela evidente critica de uma sociedade que valoriza mais a aparência e o dinheiro que os sentimentos humanos, a idealização das personagens reflete o universo romântico presente na obra. O desenlace configura, por si só, a vitória do Rom antismo em Alencar sobre a possibilidade realista. Para melhor entendermos a obra, devemos perceber as interações do artista que a criou. Alencar acreditava sinceramente na vitória do homem na reforma de si mesmo e da sociedade. Não havia nele ainda o traço de pessimismo profundo e de ceticismo que tantas páginas maravilhosas fizeram nascer em Machado de Assis. É dessa crença nos sentimentos humanitários que bruta o Romantismo alencariano, do qual bruta a força vital de suas personagens. Divididos entre o ódio e o perdão, a necessidade financeira e os apelos do coração, vencem sempre os segundos. O mesmo caso pode ser observado na construção do romance Lucíola, mas com um final trágico. Em ambos os romances a premente necessidade do dinheiro, veículo central de uma sociedade aristocrática e burguesa, obriga personagens a trocarem seus sentimentos por dinheiro. O grande vilão, o antagonista, é sempre a sociedade e seus hábitos doentios e seus costumes imorais. Se é essa a pretensão do autor, o seu recado para a sociedade de seu tempo, devemos classificar Senhora com um romance de costumes. Se o cenário das personagens é o Rio de Janeiro da segunda m etade do século XIX, podemos também considerá-lo como um romance urbano com traços de psicologismo e critica social. Estrutura da obra Senhora é um romance dividido em quatro partes e não obedece uma ordem cronológica, isto é, a primeira parte (O Preço), narra os episódios atuais, enquanto que a segunda parte (Quitação), fala-nos do passado de Aurélia, seguem os capítulos: Posse e Resgate. A narrativa é feita por um narrador que parece penetrar na alma de Aurélia Camargo para transmitir suas confidências mais intimas. Esses títulos contrariam ostensivamente o espírito de uma história de amor, como efetivamente é o romance Senhora. Mas, como se trata de um amor contrariado pelos hábitos sociais, fica clara a idéia de que os títulos foram assim escolhidos para hipertrofiar a metáfora contida no livro. Eles explicitam, em tom caricatural e hiperbólico, a idéia de que a compra efetuada por Aurélia é uma metáfora do casamento por interesse, muito corrente na época, mas sempre disfarçado por elegantes e frágeis encenações sociais. Enredo Na primeira parte, O Preço, Aurélia Cam argo dá a conhecer para o leitor: jovem de 18 anos, linda e debutando nos bailes. A principal ação desta primeira parte do romance começa quando Aurélia pede ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas, recémchegado na corte após uma longa viagem ao Nordeste, a sua mão em casamento. Entretanto, uma aura de mistério cobre o pedido, pois Fernando não deve saber a identidade da pretendente e além disso a quantia do dote proposto deve ser irrecusável: cem contos de réis ou mais, se necessário. A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser caricata, e a péssima situação financeira de Fernando - moço elegante mas pobre, que gastou o espólio deixado pelo pai e que precisava restituí-lo à família para a compra do enxoval da irmã - fazem com que dêem certo os planos de Aurélia. Na noite de núpcias, Fernando se surpreende ao ver nas mãos de Aurélia, um recibo assinado por ele aceitando um adiantamento do dote. Aurélia se enfurece, acusa-o de mercenário e venal. E ela começa a contar a vida e os motivos que a levaram a comprá-lo. Na segunda parte, Quitação, conhecemos a vida de ambos os protagonistas. Aqui há um retorno aos acontecimentos em suas vidas, o que explica ao leitor o procedimento cruel de Aurélia em relação a Fernando. Na terceira parte, Posse, a história retorna ao quarto do casal. Vemos Fernando arrasado de vergonha, mas Aurélia toma o seu silêncio como cinismo. É o início da fase de hipocrisia conjugal. Na quarta parte, Resgate, temos o desenrolar da trama. Intensificam-se os caprichos e as contradições do comportamento de Aurélia, ora ferina, mordaz, insaciável na sua sede de vingança, ora ciumenta, doce, apaixonada. Intensifica-se também a transformação de Fernando, que não usufrui da riqueza de Aurélia, tornando-se m odesto nos trajes, assíduo na repartição onde trabalhava, e assim adquirindo, sem perder a elegância, uma dignidade de caráter que nunca tivera. No final, Fernando, um ano após o casam ento, negocia com Aurélia o seu resgate. Devolve-lhe os vinte contos de réis, que correspondiam ao adiantam ento do montante total do dote com o qual possibilitava o casamento da irmã, e mais o cheque que Aurélia lhe dera, de oitenta contos de réis, na noite de núpcias. Separam-se, então, a esposa traída e o marido comprado, para se reencontrarem os amantes, a última recusa de Seixas sendo debelada quando Aurélia lhe mostra o testamento que fizera, quando casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe toda a sua fortuna. O enredo deste romance mostra claramente a mistura de elem entos romanescos e da realidade. Foco narrativo - O romance é narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente, ou seja, que tudo sabe sobre as personagens, penetrando em seus pensam entos e em sua alma. Esse narrador é também intruso, já que interfere em vários momentos, apresentando-se ao leitor. A técnica narrativa empregada por Alencar em Senhora é sem dúvida bem moderna, se tomarmos como base suas obras anteriores, já que o autor utiliza digressões. Tempo - O tempo é cronológico, tomando como base o século XIX, durante o Segundo Império. Entretanto, não há linearidade, já que a história é contada a partir de flash-back. Espaço O espaço central da narrativa é Rio de Janeiro. 1. Fernando Seixas: Jovem estudante de Direito, bem vestido e apreciador da vida em sociedade. A falta de dinheiro o conduz a acreditar que a única maneira de evitar a ruína final é casando-se com um bom dote. Envolvido pelo amor de Aurélia, chega a pensar em abandonar os hábitos caros, mas acaba percebendo que não consegue viver longe da sociedade. Depois do casamento por interesse, é humilhado, arrepende-se e consegue resgatar o dinheiro que recebeu a Aurélia. 2. Aurélia Camargo: Moça pobre. Aurélia é decente e apaixonada por Fernando Seixas. A decepção amorosa transforma-a num mulher vingativa e fria, mas que não consegue disfarçar seu verdadeiro sentimento por Seixas. Seu comportamento é típico de uma esquizofrênica, já que se vê dividida entre sentimentos contraditórios até o final do romance. O amor parece ser sua salvação, redimindo-a de perder o hom em que ama por causa de seu orgulho. 3. Dona Emília: Viúva, mãe de Aurélia. Mulher honesta e séria, que amargou imenso sofrimento por causa de seu amor por Pedro Camargo. 4. Pedro Camargo: Pai de Aurélia, filho natural de um rico fazendeiro do interior de São Paulo, de quem nutria grande medo. Morre à mingua por não conseguir confessar seu casamento contra a vontade do pai. 5. Lourenço Camargo: Avô de Aurélia. Pai de Pedro. Homem duro e rústico, mas que procura ser justo depois que descobre a existência do casamento do filho. 6. D. Firmina: Parente distante de Aurélia e que lhe serve de companhia quando fica rica. 7. Lemos: Tio de Aurélia. “Velho de pequena estatura, não muito gordo, mas rolho e bojudo como um vaso chinês. Apesar de seu corpo rechonchudo tinha certa vivacidade buliçosa e saltitante que lhe dava petulância de rapaz, e casava perfeitamente com seus olhinhos de azougue.” Foi escolhido por Aurélia como tutor porque a moça podia dominá-lo facilmente. Estilo de época e individual Alencar não destoa do Romantismo em voga. A sua visão de mundo é baseada na emoção, e o mundo urbano, com seus problem as políticos e econômicos, o aborrece, por isso foge para o passado; escapa para os lugares selvagens. Suas obras procuram retratar um Brasil e personagens mais ideais do que reais, mais como ele gostaria que moralmente fossem (românticos e moralistas) do que objetivamente eram (realistas). Senhora é um romance de características definidas de forma romântica, mas que já traduz uma temática realista: a crítica ao casamento burguês. Personagens Problemática e principais temas As personagens são bem construídas e já apresentam certa profundidade psicológica. Ao contrário de várias personagens românticas, não constituem meros tipos sociais, já que são capazes de atitudes inesperadas. O conflito amoroso entre os protagonistas nasce desse choque entre os sentimentos e o interesse econômico. Aurélia Camargo é uma mulher de personalidade forte, carregada de sentimentalismo romântico. Daí sua contradição, sua personalidade marcada por extremos psíquicos: dá maior valor aos sentimentos, mas vale-se do dinheiro para atingir seu objetivo de obter o grande amor de sua vida, Fernando Seixas. Dessa forma, o dinheiro acaba impondo o valor burguês que lhe era atribuído na sociedade do século XIX. A realização amorosa só se cumpre depois de Aurélia vencer a aparente esquizofrenia que parece conduzi-la á dúvida quanto às intenções de Fernando Seixas. O comportamento esquizóide manifesta-se nas atitudes antitéticas de desejar o amor do marido com todas as suas forças, mas lutar contra o mesmo até suas últimas reservas. Explicação com alguns trechos do romance: Ao contrário de outros romances românticos, Alencar coloca a heroína Aurélia como mulher que vence (pelo menos durante parte do romance) o domínio do coração para racionalmente articular e executar uma vingança contra aquele que a traíra na mocidade. Aurélia torna-se rica quando já não tinha o amor de Fernando Seixas, que a trocara por dinheiro. Aceita-o como uma arma de combate para vingar os sentimentos mais nobres, criticar o que existe de corrompido na sociedade, principalmente a agiotagem que cerca o amor e o casamento. Seixas, por sua vez, representa aquele que, embora tenha bom caráter, boa índole, é fraco e se deixa levar pelo mundo de convenções e de frivolidade que o cerca. A vida que ele almejara, acaba por estragar o seu caráter. Torna-se um artificial, capaz de mentir, capaz de fazer sofrer aqueles que mais o amam. O autor o redime, fazendo-o reencontrar a simplicidade, a bondade dos seres, a leveza da vida longe dos artificialismos da sociedade. Há só uma fonte em que se podem embeber tais purezas – o amor. Enquanto técnica de composição, a obra dividese em partes, ou seja: o preço, quitação, posse e resgate, desenrolando-se em diferentes graus de intensidade, não em um crescendo, mas dosando a dramaticidade com flash no passado da protagonista. Neste sentido, temos uma elaboração dinâmica, pois Alencar manuseia habilmente o tempo, flexionando-o ao sabor das necessidades. Assim vamos ver nas diferentes partes da obra o seguinte: O Preço: a apresentação da protagonista se dá no ambiente requintado da Corte, como se fosse a autor, do presente, contemplando o passado. “Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cedro; foi proclamada a rainha dos salões. Tornou-se a deusa dos bailes, a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade. Era rica e formosa”. Na apresentação, o autor antecipa as duas maiores forças de Aurélia, utilizando os adjetivos rica e formosa. Alguns momentos adiante coloca a chave do romance: a critica ao casamento por interesse. “Uma noite, no cassino, a Lísia Soares, que faziase íntima com ela, e desejava ardente vê-la casada, dirigiulhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira, rapaz elegante que chegara recentemente da Europa. - è um moço distinto, respondeu Aurélia sorrindo; vale bem como noivo cem contos de réis; mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de maior preço, Lísia; não me contento com esse.” Mas é o drama íntimo dessa mulher que Alencar se propõe a desafiar para o leitor. Nesta parte, o Autor apresenta os principais personagens que envolvem a vida de Aurélia convivendo na melhor sociedade do Rio de Janeiro. São, pela ordem, referida: Dona Firmina Mascarenhas, espécie de “guardamoça”, parenta longínqua de Aurélia; Amaralzinha, Adelaide Amaral, moça bonita, boa pianista, graciosa, elegante e educada; Lemos, tutor, velho que terá participação no contrato de casamento de Aurélia com Seixas, este último recém chegado do Norte. Seixas havia contratado casamento com Adelaide Amaral que lhe daria a quantia de trinta contos de réis (bom começo) como dote. Lemos a mando de Aurélia é encarregado de desmanchar este casamento, articulando dois novos casais, Adelaide com Dr. Torquato Ribeiro (de quem a moça gosta), mas “Ele é pobre; e por isso o pai tem rejeitado; mas se o senhor assegurasse ao Amaral que esse moço de ser uns cinquenta contos de réis, acha que ele recusaria?” E o homem, escolhido para marido da protagonista, era Seixas. Todas as articulações deveriam ser feitas sem a identidade da milionária. A moça acredita que assim estaria comprando sua felicidade. “– Desejo como é natural obter o que pretendo o mais barato possível; mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo, não faço questão do preço. É a minha felicidade que vou comprar. Estas últimas palavras, a moça proferiu-as com uma indefinível expressão. - Não será cara? - Oh! Exclamou Aurélia, eu daria por ela toda a minha riqueza. Outros a têm de graça, que lhes vem diretamente do céu. Mas não me posso queixar, pois me negando esse bem, Deus compadeceu-se de mim, e enviou-me quando menos esperava tamanha herança para que eu possa realizar a aspiração de minha vida. Não dizem que o dinheiro traz todas as venturas?”. Seixas nos é apresentado no capítulo V da primeira parte, convivendo com a mãe Dona Camila, e duas irmãs – Mariquinhas e Nicota – é filho de um funcionário público e ficou órfão aos dezoito anos, obrigado a abandonar o curso de direito em São Paulo por dificuldades financeiras. “Já estava no terceiro ano, se a natureza que o ornava de excelentes qualidades lhes desse alguma energia e força de vontade, conseguiria ele vencendo pequenas dificuldades, tanto mais quanto um colega e amigo, o Torquato Ribeiro, lhe oferecia hospitalidade até que a viúva pudesse liquidar o espólio. Mas Seixas era desses espíritos que preferem a trilha batida, e só impelida por alguma forte paixão rompem com a rotina. Ora, a carta bacharel não tinha grande sedução para sua bela inteligência mais propensa a literatura e ao jornalismo. Cedeu, pois a instância dos amigos de seu pai que obtiveram encartá-lo em uma secretária como praticante. Assim, começou ele essa vegetação social...” A mãe e as irmãs viram-se obrigadas a completar o orçamento doméstico com costuras, enquanto o rapaz vive gastando exageradamente, na ânsia de acompanhar a vida social. Acresce que as dívidas foram aumentando e o rapaz, depois de insistentes recusas, acaba aceitando o dote de cem contos de réis. Procura desmanchar o contrato (informal) com os Amaral, e fecha, nos modelos comerciais, novo contrato com Lemos. Por essa ocasião necessitou de vinte contos de réis para o dote de sua irmã Nicota. Embora Seixas fosse honesto, gastou o dote destinado à irmã e agora se via em uma situação terrível: “estava arruinado. Pobre, desacreditado, reduzido a vida de expedientes, com a sua carreira cortada, que futuro era o seu? Não lhe restava senão resignar-se a vegetação de emprego público com a ridícula esperança de alforria para os cinqüenta anos, sob a forma da mesquinha aposentadoria. Essa perspectiva o horrorizava. Entretanto sua posição nada tinha de assustadora. Com um pouco de resolução para confessar à mãe suas faltas, e algumas perseveranças em repará-las, podia ao cabo de dois anos de uma vida modesta e poupada restabelecer a antiga abastança. Mas essa coragem é que não tinha Seixas. Deixar de frequentar a sociedade; não fazer figura entre a gente do tom; não ter mais por alfaiate o Raunier, por sapateiro o Campas, por camiseira a Cretten, por perfumista o Bernardo? Não ser de todo o divertimento? Não andar no rigor da moda? Eis o que ele não concebia. Sentia-se com ânimo para matar-se, mas para tal degradação reconhecia-se pusilânime. Este pânico da pobreza apoderou-se de Seixas, e depois de trabalhá-lo o dia inteiro, levou-o na manhã seguinte à casa de Lemos, onde se efetuou a transação, que ele próprio havia qualificado, não pensando que tão cedo havia de tornar-se réu dessa indignidade. A uma justiça, porém, tem ele direito. Se previsse os transes por que ia passar durante a realização do mercado, e especialmente no ato de assinar o recibo, talvez se arrependesse. Mas arrastado de concessão em concessão, a dignidade abatida já não podia reagir. Três dias depois daquele em que recebera os vinte contos de réis, achou Seixas ao recolher-se um recado do tal Ramos nestes termos: “Prepare-se, que amanhã às 7 da noite vou buscá-lo para a apresentação.” Entre o namoro e o casamento consumiu-se pouco tempo. No dia do casamento, já no quarto nupcial, Aurélia joga seu desprezo pelo marido comprado: “Depois que assim repassou-se das reminiscências que lhe acordavam esses objetos, foi reverse no espelho, e enviou à sua feiticeira imagem reproduzida no cristal, um sorriso de indefinível expressão. Dirigiu-se então à porta, onde pouco antes escutara; deu volta a chave, e afastou uma das bandas. Pouco depois, Seixas roçagou a cortina, e cingindo o talhe de sua mulher, foi senáa-la em uma das cadeiras. - Como tardaste, Aurélia! Disse ele queixoso. - Tinha um voto a cumprir. Quis emancipar-me logo de uma vez por pertencer toda a meu único senhor, respondeu a moça galanteando. - Não me mates de felicidade, Aurélia! Que posso eu mais desejar neste mundo do que viver a teus pés, adorando-te, pois que és a minha divindade na terra. Seixas ajoelhou aos pés da noiva, tomou-lhe as mãos que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode sublime do coração, que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o balbuciar do filho. A moça com o talhe languidamente recostado no espaldar da cadeira, a fronte reclinada, os olhos coalhados em uma ternura maviosa, escutava as falas de seu marido; toda ela se embebia dos eflúvios de amor, de que ele a repassava com a palavra ardente, o olhar rendido, e o gesto apaixonado. - É então verdade que me ama? - Pois duvida, Aurélia? - E amou-me sempre, desde o primeiro dia que nos vimos? - Não lhe disse já? - Então nunca amou outra? - Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios nunca tocaram a face de outra mulher, que não fosse minha mãe. O meu primeiro beijo de amor, guardei-o para minha esposa, para ti... Soerguendo-se para alcançar-lhe a face, não viu Seixas a súbita mutação que se havia operado na fisionomia de sua noiva. Aurélia estava lívida, e a sua beleza, radiante a pouco, se marmorizava. - Ou de outra mais rica!... disse ela retraindo-se para fugir ao beijo do marido, e afastando-o com a ponta dos dedos. A voz da moça tomara o timbre cristalino, eco da rispidez e aspereza do sentimento que lhe sublevava o seio, e que parecia ringir-lhe nos lábios como aço. - Aurélia! Que significa isso? - Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter esse orgulho, que nos melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de por termo a esta cruel mistificação, em que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entretemos na realidade por mais triste que ela seja, e resignem-se cada um ao que é eu uma mulher traída; e o senhor, um homem vendido. - Vendido! Exclamou Seixas ferido dentro d’alma. - Vendido sim; não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de uma marido, traste indispensável ás mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o, custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento. Aurélia proferiu estas palavras desdobrando um papel no qual Seixas reconheceu a obrigação por ele passada ao Lemos. Não se pode exprimir o sarcasmo que salpicava dos lábios da moça, nem a indignação que vazava dessa alma profundamente revolta, no olhar implacável com que ela flagelava o semblante do marido. Seixas, transpassado pelo cruel insulto, arremessado do êxtase da felicidade a esse abismo de humilhação, a princípio ficara atônito. Depois quando os assomos a irritação vinham sublevando-lhe a alma, recalcou-se esse poderoso sentimento de respeito à mulher, que raro abandonava o homem de fina educação. Penetrado da impossibilidade de retribuir o ultraje à senhora a quem havia amado, escutava imóvel, cogitando no que lhe cumpria fazer; se matá-la a ela, matar-se a si, ou matar a ambos. Aurélia como se lhe adivinhasse o pensamento, esteve por algum tempo afrontando-o com inexorável desprezo. - Agora , meu marido, se quer saber a razão por que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la, e peço que não me interrompa. Deixa-me vazar o que tenho dentro desta alma, e que há um ano a está amargurando e consumindo. A moça apontou a Seixas uma cadeira próxima. - Sente-se, meu marido. Com que tom acerbo e excruciante lançou a moça esta frase meu marido, que nos seus lábios ríspidos acerava-se como um dardo ervado de caustica ironia! Seixas sentou-se. “Dominava-o a estranha fascinação dessa mulher, e ainda mais a situação incrível a que fora arrastado.” Quitação: é a volta ao passado. Temporalmente, Alencar apresenta Aurélia dois anos antes do casamento e carrega a narrativa até a primeira parte do volume. Moça pobre, residente á Rua Santa Tereza, filha de Dona Emília, senhora enferma e tristonha. Ambas sozinhas no mundo. Dona Emília casou-se às escondidas com um estudante de Medicina (Pedro de Souza Camargo), filha natural de rico fazendeiro. Com ele teve dois filhos; Aurélia e Emilio. Morre-lhe o marido e, e algum tempo depois, também o filho. Pressentindo seu fim próximo, não podendo Emilia contar com o ânimo nem de sua família, escreve ao sogro, que lhe enviou uma quantia em dinheiro, mas sem qualquer palavra de afeição. Agrava-se mais a situação da viúva ao ver que poderia morrer e deixar desamparo para a filha. Por isso, insiste para que Aurélia arranje casamento. Embora a contragosto, Aurélia põe-se à janela e cedo a beleza da menina corre a Corte. Entre aqueles que cortejavam a jovem esta o velho Lemos. Mas é a Seixas que Aurélia dará seu coração. Contratam casamento. No entanto, “Seixas pertencia a essa classe de homens criados pela sociedade moderna, e para os quais o amo deixou de ser um sentimento e tornou-se uma fineza obrigada entre os cavalheiros e as damas de bom-tom” e troca o amor de Aurélia pelo dote (trinta contos) de Adelaide Amaral. Quando Aurélia soube disso jurou vingarse. Veio a calhar a fortuna que recebeu de seu avô que, antes de morrer, reatou laços com a nora e reconheceu a neta. Após a morte da mãe, Aurélia, já rica, passa a viver na Corte, tendo como tutor Lemos e como dama de companhia Dona Firmina. Volta ao momento em que havia parado no capitulo IX da segunda parte, findando ai o flash-back. Inicia o capitulo com “tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo.” “-Não, senhora, não se enganou, disse afinal com o mesmo tom frio e inflexível. Vendi-me; pertenço-lhe. A senhora teve mau gosto de comprar um marido aviltado; ei-lo como o desejou. Podia ter feito de um caráter, talvez gasto pela educação, um homem de bem que se enobrecesse com sua afeição; preferiu um escravo branco; estava em seu direito, pagava com seu dinheiro, e pagava generosamente. Este escravo aqui o tem; é seu marido, porém nada mais do que seu marido! O rubor afogueou as faces de Aurélia, ouvindo essa palavra acentuada pelo sarcasmo de Seixas. - Ajustei-me por cem contos de réis, continuou Fernando; foi pouco, mas o mercado está concluído. Recebi como sinal da compra vinte contos; falta-me arrecadar o resto do preço, que a senhora acaba de pagar-me. O moço curvou-se para apanhar o cheque. Leu com atenção o algarismo e dobrando lentamente o papel, guardou-o no bolso do rico chambre de gorgorão azul. - Quer que lhe passe um recibo?...Não; confia na minha palavra. Não é seguro. Enfim estou pago. O escravo entra em serviço. Soltando estas palavras com pasmosa volubilidade, que parecia indicar o requinte da impudência, Fernando sentou-se outra vez defronte da mulher. Espero suas ordens.” Posse: a terceira parte começa com a consciência de Seixas que passa a aceitar sua condição de escravo de uma Senhora, pejorativamente apresentando O fechado. Ao mesmo tempo, ressurge o orgulho: embora conviva com Aurélia não aceita nada que é dela. Começam a viver num clima de profunda tensão. Aparentemente forma um casal feliz, mas são contínuos seus atritos. Fernando continua trabalhando na repartição, começa a juntar dinheiro, enquanto se anuncia a disputa entre os dois. Tinha uma pretensão ousada. Queria poder pagar Aurélia e dessa maneira comprar a sua liberdade. Resgate: a disputa continua com trocas de injúrias de maneira refinada: “ – Há que tempo o procuro! Disse Aurélia sentando-se ao seu lado, e olhando-o inquieta. Está incomodado? - Não, senhora: tive a pouco o prazer de vê-la dançar com o Abreu. Aurélia lançou um olhar rápido e penetrante ao marido. - É verdade; dancei com ele; é um de meus pares habituais, tornou com volubilidade. E o senhor, por que não dançou também? - Porque a senhora não me ordenou. - É esta a razão? Pois vou dar-lhe um par...Quer oferecer-me seu braço? Replicou Aurélia sorrindo. - Seria ridículo oferecer-lhe o que lhe pertence. A senhora manda, e é obedecida. Aurélia tomou o braço do marido, e afastou-se lentamente ao longo da alameda. - Por que me chama de senhora? Perguntou ela fazendo soar o ó com a voz cheia. - Defeito de pronúncia!.” No entanto, a convivência impassível tornara-se um martírio. Em um baile, realizado na casa de Aurélia, a jovem desmaiou nos braços do marido enquanto valsavam. Ao tornar a si, percebeu o quanto amava aquele homem. Impossível viver sem ele e, portanto, era constrangedora a situação. Importante notar que o inverso também ocorria, Aurélia chegou a perceber que o marido também a amava, fazendo-a dizer para si mesma: “E por que não podemos ser felizes desde esse momento? Ele está ali, pensando em mim; talvez me espere! Basta-me abrir aquela porta. Virá suplicar-me seu perdão, eu o receberei em meus braços; e estaremos para sempre unidos1(...) Quando sua mão tocou o aço, a impressão fria do metal produziu-lhe um arrepio. Rejeitou a chave e fechou a gaveta, dizendo ser cedo e “ é preciso que ele me ame bastante para vencer-me a mim, e não só para ele deixar vencer”. Seixas fizera um negócio com minas de cobre havia três anos e surtiu inesperado lucro, cerca de quinze contos de réis. Foi correndo buscar uns papéis em casa e, ao entrar no escritório, encontra a mulher com o Doutor Eduardo Abreu; fabulando alguma ligação entre eles, enciumado, procurou arrecadar todo o dinheiro que tinha para liquidar um assunto importante, a quitação de uma dívida. Em diálogo com Aurélia, Fernando explica-se: “ – Ouça-me, desejo que um dia remoto, quando refletir sobre este acontecimento, me restitua uma parte da sua estima,; nada mais. A sociedade no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem a sua feição; o luxo dourava-me os vícios, e eu não via através da fascinação o materialismo que eles arrastavam. Habituei-me a considerar a riqueza como a primeira força viva da existência, e os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio tão legitimo de adquiri-la, como a herança e qualquer honesta especulação. Entretanto , ainda assim, a senhora me teria achado inacessível à tentação, se logo depois que seu tutor procurou-me , não surgisse uma situação que aterrou-me. Não somente vi-me ameaçado da pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividado, como achei-me o causador, embora involuntário, da infelicidade da minha irmã cujas economias havia consumido, e que ia perder o casamento por falta de enxoval. Ao mesmo tempo minha mãe, privada dos módicos recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu tinha disposto imprevidentemente pensando que os poderia refazer mais tarde!... Tudo isso me abateu. Não me defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica a abdicação da dignidade. Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser homem; naquele tempo não era mais do que um ator de sala; sucumbi. Mas a senhora regenerou-me e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.” Ao devolver-lhe o dinheiro, Fernando diz que pretende uma separação, mas Aurélia o chama, dizendo-lhe que os onze meses de casamento foram vividos por outros pares e, ajoelhando-se aos pés do marido, suplica-lhe amor. E assim vai-se dar a cena final: “Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniram já em fervido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.” - Não ,.Aurélia! Tua riqueza nos separou para sempre. A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu no toucador, e trouxe um papel lacrado que entregou a Seixas. - O que é isso, Aurélia? - Meu testamento. Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal herdeiro. - Eu escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse naquela noite, disse Aurélia com gesto sublime. Seixas contemplava-a com olhos rasos de lágrimas. - Esta riqueza causa-te horror? Pois me faz viver, meu Fernando. È o meio de a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei. “As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.”