Comentário das obras da UEMSENHORA – José de Alencar- Profª Sônia
Targa
Análise da obraSenhora foi publicado em 1875. O romance pode ser
considerado um a das obras-prim as de seu autor e
uma das principais da literatura brasileira. Uma vez
que trata do tema do casamento burguês, ou seja,
baseado no interesse financeiro, pode ser considerada
precursora do Realismo ou pré-realista.
Alencar classifica a obra dentro de seus “perfis de
mulher”, já que concentra na mulher o papel mais
importante dentro da sociedade de seu tempo. Aurélia
é a protagonista do rom ance, uma jovem mulher
dividida entre o amor e o ódio, o desejo e o desprezo
pelo hom em que ama. Essa personalidade dividida
apresenta um desvio psíquico ocasionado a partir do
rompimento do noivo, Fernando Seixas, e que causou
um certo caso de esquizofrenia na personagem.
A personagem Aurélia Camargo é idealizada como
uma rainha, como uma heroína romântica, pelo
narrador. De "régia fronte, coroada de diadema de
cabelos castanhos, de formosas espáduas", essa
personagem, no entanto, é ao mesmo tempo "fada
encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra".
Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica, o narrador
acrescenta, assim, um elemento demoníaco, elemento
que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as
pregas do roupão de cambraia que a luz do sol não
ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto
sublime, escondendo o frêmito que lembrava silvo de
serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz
um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo".
Tal maneira de caracterizar a personagem - pelos
elementos exteriores - é típica do narrador
observador. Tal caracterização, por sua vez, humaniza
a personagem, afastando-a do maniqueísmo
romântico e acrescentando-lhe traços realistas.
O conflito entre os protagonistas gera momentos de
grande emoção e sofrimento. É desse embate entre o
desejo de vingança e o desejo de am ar em plenitude
que nasce a ação psíquica que se transforma em
enredo. Se a temática e o psiquismo da obra
representam antecipações realistas, ambos
fortemente consolidados pela evidente critica de uma
sociedade que valoriza mais a aparência e o dinheiro
que os sentimentos humanos, a idealização das
personagens reflete o universo romântico presente na
obra. O desenlace configura, por si só, a vitória do
Rom antismo em Alencar sobre a possibilidade
realista.
Para melhor entendermos a obra, devemos perceber
as interações do artista que a criou. Alencar
acreditava sinceramente na vitória do homem na
reforma de si mesmo e da sociedade. Não havia nele
ainda o traço de pessimismo profundo e de ceticismo
que tantas páginas maravilhosas fizeram nascer em
Machado de Assis. É dessa crença nos sentimentos
humanitários que bruta o Romantismo alencariano, do
qual bruta a força vital de suas personagens. Divididos
entre o ódio e o perdão, a necessidade financeira e os
apelos do coração, vencem sempre os segundos. O
mesmo caso pode ser observado na construção do
romance Lucíola, mas com um final trágico. Em
ambos os romances a premente necessidade do
dinheiro, veículo central de uma sociedade
aristocrática e burguesa, obriga personagens a
trocarem seus sentimentos por dinheiro. O grande
vilão, o antagonista, é sempre a sociedade e seus
hábitos doentios e seus costumes imorais. Se é essa
a pretensão do autor, o seu recado para a sociedade
de seu tempo, devemos classificar Senhora com um
romance de costumes. Se o cenário das personagens
é o Rio de Janeiro da segunda m etade do século XIX,
podemos também considerá-lo como um romance
urbano com traços de psicologismo e critica social.
Estrutura da obra
Senhora é um romance dividido em quatro partes e
não obedece uma ordem cronológica, isto é, a
primeira parte (O Preço), narra os episódios atuais,
enquanto que a segunda parte (Quitação), fala-nos do
passado de Aurélia, seguem os capítulos: Posse e
Resgate. A narrativa é feita por um narrador que
parece penetrar na alma de Aurélia Camargo para
transmitir suas confidências mais intimas.
Esses títulos contrariam ostensivamente o espírito de
uma história de amor, como efetivamente é o romance
Senhora. Mas, como se trata de um amor contrariado
pelos hábitos sociais, fica clara a idéia de que os
títulos foram assim escolhidos para hipertrofiar a
metáfora contida no livro. Eles explicitam, em tom
caricatural e hiperbólico, a idéia de que a compra
efetuada por Aurélia é uma metáfora do casamento
por interesse, muito corrente na época, mas sempre
disfarçado por elegantes e frágeis encenações sociais.
Enredo
Na primeira parte, O Preço, Aurélia Cam argo dá a
conhecer para o leitor: jovem de 18 anos, linda e
debutando nos bailes. A principal ação desta primeira
parte do romance começa quando Aurélia pede ao tio
que ofereça ao jovem Fernando Seixas, recémchegado na corte após uma longa viagem ao
Nordeste, a sua mão em casamento. Entretanto, uma
aura de mistério cobre o pedido, pois Fernando não
deve saber a identidade da pretendente e além disso
a quantia do dote proposto deve ser irrecusável: cem
contos de réis ou mais, se necessário.
A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser
caricata, e a péssima situação financeira de Fernando
- moço elegante mas pobre, que gastou o espólio
deixado pelo pai e que precisava restituí-lo à família
para a compra do enxoval da irmã - fazem com que
dêem certo os planos de Aurélia.
Na noite de núpcias, Fernando se surpreende ao ver
nas mãos de Aurélia, um recibo assinado por ele
aceitando um adiantamento do dote. Aurélia se
enfurece, acusa-o de mercenário e venal. E ela
começa a contar a vida e os motivos que a levaram a
comprá-lo.
Na segunda parte, Quitação, conhecemos a vida de
ambos os protagonistas. Aqui há um retorno aos
acontecimentos em suas vidas, o que explica ao leitor
o procedimento cruel de Aurélia em relação a
Fernando.
Na terceira parte, Posse, a história retorna ao quarto
do casal. Vemos Fernando arrasado de vergonha,
mas Aurélia toma o seu silêncio como cinismo. É o
início da fase de hipocrisia conjugal.
Na quarta parte, Resgate, temos o desenrolar da
trama. Intensificam-se os caprichos e as contradições
do comportamento de Aurélia, ora ferina, mordaz,
insaciável na sua sede de vingança, ora ciumenta,
doce, apaixonada. Intensifica-se também a
transformação de Fernando, que não usufrui da
riqueza de Aurélia, tornando-se m odesto nos trajes,
assíduo na repartição onde trabalhava, e assim
adquirindo, sem perder a elegância, uma dignidade de
caráter que nunca tivera.
No final, Fernando, um ano após o casam ento,
negocia com Aurélia o seu resgate. Devolve-lhe os
vinte contos de réis, que correspondiam ao
adiantam ento do montante total do dote com o qual
possibilitava o casamento da irmã, e mais o cheque
que Aurélia lhe dera, de oitenta contos de réis, na
noite de núpcias.
Separam-se, então, a esposa traída e o marido
comprado, para se reencontrarem os amantes, a
última recusa de Seixas sendo debelada quando
Aurélia lhe mostra o testamento que fizera, quando
casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe
toda a sua fortuna.
O enredo deste romance mostra claramente a mistura
de elem entos romanescos e da realidade. Foco
narrativo - O romance é narrado em terceira pessoa
por um narrador onisciente, ou seja, que tudo sabe
sobre as personagens, penetrando em seus
pensam entos e em sua alma. Esse narrador é
também intruso, já que interfere em vários momentos,
apresentando-se ao leitor. A técnica narrativa
empregada por Alencar em Senhora é sem dúvida
bem moderna, se tomarmos como base suas obras
anteriores, já que o autor utiliza digressões.
Tempo - O tempo é cronológico, tomando como base
o século XIX, durante o Segundo Império. Entretanto,
não há linearidade, já que a história é contada a partir
de flash-back.
Espaço
O espaço central da narrativa é Rio de Janeiro.
1. Fernando Seixas: Jovem estudante de Direito,
bem vestido e apreciador da vida em sociedade. A
falta de dinheiro o conduz a acreditar que a única
maneira de evitar a ruína final é casando-se com um
bom dote. Envolvido pelo amor de Aurélia, chega a
pensar em abandonar os hábitos caros, mas acaba
percebendo que não consegue viver longe da
sociedade. Depois do casamento por interesse, é
humilhado, arrepende-se e consegue resgatar o
dinheiro que recebeu a Aurélia.
2. Aurélia Camargo: Moça pobre. Aurélia é decente e
apaixonada por Fernando Seixas. A decepção
amorosa transforma-a num mulher vingativa e fria,
mas que não consegue disfarçar seu verdadeiro
sentimento por Seixas. Seu comportamento é típico de
uma esquizofrênica, já que se vê dividida entre
sentimentos contraditórios até o final do romance. O
amor parece ser sua salvação, redimindo-a de perder
o hom em que ama por causa de seu orgulho.
3. Dona Emília: Viúva, mãe de Aurélia. Mulher
honesta e séria, que amargou imenso sofrimento por
causa de seu amor por Pedro Camargo.
4. Pedro Camargo: Pai de Aurélia, filho natural de um
rico fazendeiro do interior de São Paulo, de quem
nutria grande medo. Morre à mingua por não
conseguir confessar seu casamento contra a vontade
do pai.
5. Lourenço Camargo: Avô de Aurélia. Pai de Pedro.
Homem duro e rústico, mas que procura ser justo
depois que descobre a existência do casamento do
filho.
6. D. Firmina: Parente distante de Aurélia e que lhe
serve de companhia quando fica rica.
7. Lemos: Tio de Aurélia. “Velho de pequena
estatura, não muito gordo, mas rolho e bojudo como
um vaso chinês. Apesar de seu corpo rechonchudo
tinha certa vivacidade buliçosa e saltitante que lhe
dava petulância de rapaz, e casava perfeitamente com
seus olhinhos de azougue.” Foi escolhido por Aurélia
como tutor porque a moça podia dominá-lo facilmente.
Estilo de época e individual
Alencar não destoa do Romantismo em voga. A sua
visão de mundo é baseada na emoção, e o mundo
urbano, com seus problem as políticos e econômicos,
o aborrece, por isso foge para o passado; escapa para
os lugares selvagens. Suas obras procuram retratar
um Brasil e personagens mais ideais do que reais,
mais como ele gostaria que moralmente fossem
(românticos e moralistas) do que objetivamente eram
(realistas). Senhora é um romance de características
definidas de forma romântica, mas que já traduz uma
temática realista: a crítica ao casamento burguês.
Personagens
Problemática e principais temas
As personagens são bem construídas e já apresentam
certa profundidade psicológica. Ao contrário de várias
personagens românticas, não constituem meros tipos
sociais, já que são capazes de atitudes inesperadas.
O conflito amoroso entre os protagonistas nasce
desse choque entre os sentimentos e o interesse
econômico. Aurélia Camargo é uma mulher de
personalidade forte, carregada de sentimentalismo
romântico. Daí sua contradição, sua personalidade
marcada por extremos psíquicos: dá maior valor aos
sentimentos, mas vale-se do dinheiro para atingir seu
objetivo de obter o grande amor de sua vida,
Fernando Seixas. Dessa forma, o dinheiro acaba
impondo o valor burguês que lhe era atribuído na
sociedade do século XIX. A realização amorosa só se
cumpre depois de Aurélia vencer a aparente
esquizofrenia que parece conduzi-la á dúvida quanto
às intenções de Fernando Seixas. O comportamento
esquizóide manifesta-se nas atitudes antitéticas de
desejar o amor do marido com todas as suas forças,
mas lutar contra o mesmo até suas últimas reservas.
Explicação com alguns trechos do romance:
Ao contrário de outros romances românticos,
Alencar coloca a heroína Aurélia como mulher que vence
(pelo menos durante parte do romance) o domínio do
coração para racionalmente articular e executar uma
vingança contra aquele que a traíra na mocidade. Aurélia
torna-se rica quando já não tinha o amor de Fernando
Seixas, que a trocara por dinheiro. Aceita-o como uma arma
de combate para vingar os sentimentos mais nobres, criticar
o que existe de corrompido na sociedade, principalmente a
agiotagem que cerca o amor e o casamento.
Seixas, por sua vez, representa aquele que,
embora tenha bom caráter, boa índole, é fraco e se deixa
levar pelo mundo de convenções e de frivolidade que o
cerca. A vida que ele almejara, acaba por estragar o seu
caráter. Torna-se um artificial, capaz de mentir, capaz de
fazer sofrer aqueles que mais o amam. O autor o redime,
fazendo-o reencontrar a simplicidade, a bondade dos seres,
a leveza da vida longe dos artificialismos da sociedade. Há
só uma fonte em que se podem embeber tais purezas – o
amor.
Enquanto técnica de composição, a obra dividese em partes, ou seja: o preço, quitação, posse e resgate,
desenrolando-se em diferentes graus de intensidade, não
em um crescendo, mas dosando a dramaticidade com flash
no passado da protagonista. Neste sentido, temos uma
elaboração dinâmica, pois Alencar manuseia habilmente o
tempo, flexionando-o ao sabor das necessidades. Assim
vamos ver nas diferentes partes da obra o seguinte:
O Preço: a apresentação da protagonista se dá
no ambiente requintado da Corte, como se fosse a autor,
do presente, contemplando o passado.
“Há anos raiou no céu fluminense uma nova
estrela.
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe
disputou o cedro; foi proclamada a rainha dos salões.
Tornou-se a deusa dos bailes, a musa dos poetas
e o ídolo dos noivos em disponibilidade.
Era rica e formosa”.
Na apresentação, o autor antecipa as duas
maiores forças de Aurélia, utilizando os adjetivos rica e
formosa. Alguns momentos adiante coloca a chave do
romance: a critica ao casamento por interesse.
“Uma noite, no cassino, a Lísia Soares, que faziase íntima com ela, e desejava ardente vê-la casada, dirigiulhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira, rapaz elegante
que chegara recentemente da Europa.
- è um moço distinto, respondeu Aurélia
sorrindo; vale bem como noivo cem contos de réis; mas eu
tenho dinheiro para pagar um marido de maior preço, Lísia;
não me contento com esse.”
Mas é o drama íntimo dessa mulher que Alencar
se propõe a desafiar para o leitor.
Nesta parte, o Autor apresenta os principais
personagens que envolvem a vida de Aurélia convivendo na
melhor sociedade do Rio de Janeiro. São, pela ordem,
referida: Dona Firmina Mascarenhas, espécie de “guardamoça”, parenta longínqua de Aurélia; Amaralzinha,
Adelaide Amaral, moça bonita, boa pianista, graciosa,
elegante e educada; Lemos, tutor, velho que terá
participação no contrato de casamento de Aurélia com
Seixas, este último recém chegado do Norte.
Seixas havia contratado casamento com Adelaide Amaral
que lhe daria a quantia de trinta contos de réis (bom
começo) como dote. Lemos a mando de Aurélia é
encarregado de desmanchar este casamento, articulando
dois novos casais, Adelaide com Dr. Torquato Ribeiro (de
quem a moça gosta), mas “Ele é pobre; e por isso o pai tem
rejeitado; mas se o senhor assegurasse ao Amaral que esse
moço de ser uns cinquenta contos de réis, acha que ele
recusaria?” E o homem, escolhido para marido da
protagonista, era Seixas. Todas as articulações deveriam
ser feitas sem a identidade da milionária. A moça acredita
que assim estaria comprando sua felicidade.
“– Desejo como é natural obter o que pretendo
o mais barato possível; mas o essencial é obter; e portanto
até metade do que possuo, não faço questão do preço. É a
minha felicidade que vou comprar.
Estas últimas palavras, a moça proferiu-as com
uma indefinível expressão.
- Não será cara?
- Oh! Exclamou Aurélia, eu daria por ela toda a minha
riqueza. Outros a têm de graça, que lhes vem diretamente
do céu. Mas não me posso queixar, pois me negando esse
bem, Deus compadeceu-se de mim, e enviou-me quando
menos esperava tamanha herança para que eu possa
realizar a aspiração de minha vida. Não dizem que o
dinheiro traz todas as venturas?”.
Seixas nos é apresentado no capítulo V da
primeira parte, convivendo com a mãe Dona Camila, e duas
irmãs – Mariquinhas e Nicota – é filho de um funcionário
público e ficou órfão aos dezoito anos, obrigado a
abandonar o curso de direito em São Paulo por dificuldades
financeiras.
“Já estava no terceiro ano, se a natureza que o
ornava de excelentes qualidades lhes desse alguma energia
e força de vontade, conseguiria ele vencendo pequenas
dificuldades, tanto mais quanto um colega e amigo, o
Torquato Ribeiro, lhe oferecia hospitalidade até que a viúva
pudesse liquidar o espólio.
Mas Seixas era desses espíritos que preferem a
trilha batida, e só impelida por alguma forte paixão
rompem com a rotina. Ora, a carta bacharel não tinha
grande sedução para sua bela inteligência mais propensa a
literatura e ao jornalismo.
Cedeu, pois a instância dos amigos de seu pai
que obtiveram encartá-lo em uma secretária como
praticante.
Assim, começou ele essa vegetação social...”
A mãe e as irmãs viram-se obrigadas a completar
o orçamento doméstico com costuras, enquanto o rapaz
vive gastando exageradamente, na ânsia de acompanhar a
vida social. Acresce que as dívidas foram aumentando e o
rapaz, depois de insistentes recusas, acaba aceitando o
dote de cem contos de réis. Procura desmanchar o contrato
(informal) com os Amaral, e fecha, nos modelos comerciais,
novo contrato com Lemos. Por essa ocasião necessitou de
vinte contos de réis para o dote de sua irmã Nicota. Embora
Seixas fosse honesto, gastou o dote destinado à irmã e
agora se via em uma situação terrível:
“estava arruinado. Pobre, desacreditado,
reduzido a vida de expedientes, com a sua carreira cortada,
que futuro era o seu? Não lhe restava senão resignar-se a
vegetação de emprego público com a ridícula esperança de
alforria para os cinqüenta anos, sob a forma da mesquinha
aposentadoria.
Essa perspectiva o horrorizava. Entretanto sua
posição nada tinha de assustadora. Com um pouco de
resolução para confessar à mãe suas faltas, e algumas
perseveranças em repará-las, podia ao cabo de dois anos
de uma vida modesta e poupada restabelecer a antiga
abastança.
Mas essa coragem é que não tinha Seixas. Deixar
de frequentar a sociedade; não fazer figura entre a gente
do tom; não ter mais por alfaiate o Raunier, por sapateiro o
Campas, por camiseira a Cretten, por perfumista o
Bernardo? Não ser de todo o divertimento? Não andar no
rigor da moda?
Eis o que ele não concebia. Sentia-se com ânimo
para matar-se, mas para tal degradação reconhecia-se
pusilânime.
Este pânico da pobreza apoderou-se de Seixas, e
depois de trabalhá-lo o dia inteiro, levou-o na manhã
seguinte à casa de Lemos, onde se efetuou a transação, que
ele próprio havia qualificado, não pensando que tão cedo
havia de tornar-se réu dessa indignidade.
A uma justiça, porém, tem ele direito. Se
previsse os transes por que ia passar durante a realização
do mercado, e especialmente no ato de assinar o recibo,
talvez se arrependesse. Mas arrastado de concessão em
concessão, a dignidade abatida já não podia reagir.
Três dias depois daquele em que recebera os
vinte contos de réis, achou Seixas ao recolher-se um recado
do tal Ramos nestes termos:
“Prepare-se, que amanhã às 7 da noite vou
buscá-lo para a apresentação.”
Entre o namoro e o casamento consumiu-se
pouco tempo. No dia do casamento, já no quarto nupcial,
Aurélia joga seu desprezo pelo marido comprado:
“Depois
que
assim
repassou-se
das
reminiscências que lhe acordavam esses objetos, foi reverse no espelho, e enviou à sua feiticeira imagem reproduzida
no cristal, um sorriso de indefinível expressão.
Dirigiu-se então à porta, onde pouco antes
escutara; deu volta a chave, e afastou uma das bandas.
Pouco depois, Seixas roçagou a cortina, e cingindo o talhe
de sua mulher, foi senáa-la em uma das cadeiras.
- Como tardaste, Aurélia! Disse ele queixoso.
- Tinha um voto a cumprir. Quis emancipar-me
logo de uma vez por
pertencer toda a meu único senhor, respondeu a moça
galanteando.
- Não me mates de felicidade, Aurélia! Que
posso eu mais desejar neste
mundo do que viver a teus pés, adorando-te, pois que és a
minha divindade na terra.
Seixas ajoelhou aos pés da noiva, tomou-lhe as mãos
que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa
ode sublime do coração, que só as mulheres entendem,
como somente as mães percebem o balbuciar do filho.
A moça com o talhe languidamente recostado
no espaldar da cadeira, a fronte reclinada, os olhos
coalhados em uma ternura maviosa, escutava as falas de
seu marido; toda ela se embebia dos eflúvios de amor, de
que ele a repassava com a palavra ardente, o olhar rendido,
e o gesto apaixonado.
- É então verdade que me ama?
- Pois duvida, Aurélia?
- E amou-me sempre, desde o primeiro dia que nos
vimos?
- Não lhe disse já?
- Então nunca amou outra?
- Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios nunca tocaram a
face de outra mulher, que não fosse minha mãe. O meu
primeiro beijo de amor, guardei-o para minha esposa, para
ti...
Soerguendo-se para alcançar-lhe a face, não viu
Seixas a súbita mutação
que se havia operado na fisionomia de sua noiva.
Aurélia estava lívida, e a sua beleza, radiante a
pouco, se marmorizava.
- Ou de outra mais rica!... disse ela retraindo-se
para fugir ao beijo do marido, e afastando-o com a ponta
dos dedos.
A voz da moça tomara o timbre cristalino, eco da
rispidez e aspereza do sentimento que lhe sublevava o seio,
e que parecia ringir-lhe nos lábios como aço.
- Aurélia! Que significa isso?
- Representamos uma comédia, na qual ambos
desempenhamos o nosso papel com perícia consumada.
Podemos ter esse orgulho, que nos melhores atores não
nos excederiam. Mas é tempo de por termo a esta cruel
mistificação, em que nos estamos escarnecendo
mutuamente, senhor. Entretemos na realidade por mais
triste que ela seja, e resignem-se cada um ao que é eu uma
mulher traída; e o senhor, um homem vendido.
- Vendido! Exclamou Seixas ferido dentro
d’alma.
- Vendido sim; não tem outro nome. Sou rica,
muito rica, sou milionária; precisava de uma marido, traste
indispensável ás mulheres honestas. O senhor estava no
mercado; comprei-o, custou-me cem contos de réis, foi
barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a
minha riqueza por este momento.
Aurélia proferiu estas palavras desdobrando um
papel no qual Seixas reconheceu a obrigação por ele
passada ao Lemos.
Não se pode exprimir o sarcasmo que salpicava
dos lábios da moça, nem a indignação que vazava dessa
alma profundamente revolta, no olhar implacável com que
ela flagelava o semblante do marido.
Seixas, transpassado pelo cruel insulto,
arremessado do êxtase da felicidade a esse abismo de
humilhação, a princípio ficara atônito. Depois quando os
assomos a irritação vinham sublevando-lhe a alma,
recalcou-se esse poderoso sentimento de respeito à
mulher, que raro abandonava o homem de fina educação.
Penetrado da impossibilidade de retribuir o
ultraje à senhora a quem havia amado, escutava imóvel,
cogitando no que lhe cumpria fazer; se matá-la a ela,
matar-se a si, ou matar a ambos.
Aurélia como se lhe adivinhasse o pensamento,
esteve por algum tempo afrontando-o com inexorável
desprezo.
- Agora , meu marido, se quer saber a razão por
que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la,
e peço que não me interrompa. Deixa-me vazar o que
tenho dentro desta alma, e que há um ano a está
amargurando e consumindo.
A moça apontou a Seixas uma cadeira próxima.
- Sente-se, meu marido.
Com que tom acerbo e excruciante lançou a
moça esta frase meu marido, que nos seus lábios ríspidos
acerava-se como um dardo ervado de caustica ironia!
Seixas sentou-se.
“Dominava-o a estranha fascinação dessa
mulher, e ainda mais a situação incrível a que fora
arrastado.”
Quitação: é a volta ao passado. Temporalmente,
Alencar apresenta Aurélia dois anos antes do casamento e
carrega a narrativa até a primeira parte do volume. Moça
pobre, residente á Rua Santa Tereza, filha de Dona Emília,
senhora enferma e tristonha. Ambas sozinhas no mundo.
Dona Emília casou-se às escondidas com um
estudante de Medicina (Pedro de Souza Camargo), filha
natural de rico fazendeiro. Com ele teve dois filhos; Aurélia
e Emilio. Morre-lhe o marido e, e algum tempo depois,
também o filho. Pressentindo seu fim próximo, não
podendo Emilia contar com o ânimo nem de sua família,
escreve ao sogro, que lhe enviou uma quantia em dinheiro,
mas sem qualquer palavra de afeição. Agrava-se mais a
situação da viúva ao ver que poderia morrer e deixar
desamparo para a filha. Por isso, insiste para que Aurélia
arranje casamento. Embora a contragosto, Aurélia põe-se à
janela e cedo a beleza da menina corre a Corte. Entre
aqueles que cortejavam a jovem esta o velho Lemos. Mas é
a Seixas que Aurélia dará seu coração. Contratam
casamento. No entanto, “Seixas pertencia a essa classe de
homens criados pela sociedade moderna, e para os quais o
amo deixou de ser um sentimento e tornou-se uma fineza
obrigada entre os cavalheiros e as damas de bom-tom” e
troca o amor de Aurélia pelo dote (trinta contos) de
Adelaide Amaral. Quando Aurélia soube disso jurou vingarse. Veio a calhar a fortuna que recebeu de seu avô que,
antes de morrer, reatou laços com a nora e reconheceu a
neta.
Após a morte da mãe, Aurélia, já rica, passa a
viver na Corte, tendo como tutor Lemos e como dama de
companhia Dona Firmina.
Volta ao momento em que havia parado no
capitulo IX da segunda parte, findando ai o flash-back. Inicia
o capitulo com “tornemos à câmara nupcial, onde se
representa a primeira cena do drama original, de que
apenas conhecemos o prólogo.”
“-Não, senhora, não se enganou, disse afinal
com o mesmo tom frio e inflexível. Vendi-me; pertenço-lhe.
A senhora teve mau gosto de comprar um marido aviltado;
ei-lo como o desejou. Podia ter feito de um caráter, talvez
gasto pela educação, um homem de bem que se
enobrecesse com sua afeição; preferiu um escravo branco;
estava em seu direito, pagava com seu dinheiro, e pagava
generosamente. Este escravo aqui o tem; é seu marido,
porém nada mais do que seu marido!
O rubor afogueou as faces de Aurélia, ouvindo
essa palavra acentuada pelo sarcasmo de Seixas.
- Ajustei-me por cem contos de réis, continuou
Fernando; foi pouco, mas o mercado está concluído. Recebi
como sinal da compra vinte contos; falta-me arrecadar o
resto do preço, que a senhora acaba de pagar-me.
O moço curvou-se para apanhar o cheque. Leu
com atenção o algarismo e dobrando lentamente o papel,
guardou-o no bolso do rico chambre de gorgorão azul.
- Quer que lhe passe um recibo?...Não; confia na
minha palavra. Não é seguro. Enfim estou pago. O escravo
entra em serviço.
Soltando estas palavras com pasmosa
volubilidade, que parecia indicar o requinte da impudência,
Fernando sentou-se outra vez defronte da mulher.
Espero suas ordens.”
Posse: a terceira parte começa com a
consciência de Seixas que passa a aceitar sua condição de
escravo de uma Senhora, pejorativamente apresentando O
fechado. Ao mesmo tempo, ressurge o orgulho: embora
conviva com Aurélia não aceita nada que é dela. Começam
a viver num clima de profunda tensão. Aparentemente
forma um casal feliz, mas são contínuos seus atritos.
Fernando continua trabalhando na repartição,
começa a juntar dinheiro, enquanto se anuncia a disputa
entre os dois. Tinha uma pretensão ousada. Queria poder
pagar Aurélia e dessa maneira comprar a sua liberdade.
Resgate: a disputa continua com trocas de
injúrias de maneira refinada:
“ – Há que tempo o procuro! Disse Aurélia
sentando-se ao seu lado, e olhando-o inquieta. Está
incomodado?
- Não, senhora: tive a pouco o prazer de vê-la
dançar com o Abreu.
Aurélia lançou um olhar rápido e penetrante ao
marido.
- É verdade; dancei com ele; é um de meus pares
habituais, tornou com volubilidade. E o senhor, por que
não dançou também?
- Porque a senhora não me ordenou.
- É esta a razão? Pois vou dar-lhe um par...Quer
oferecer-me seu braço? Replicou Aurélia sorrindo.
- Seria ridículo oferecer-lhe o que lhe pertence.
A senhora manda, e é obedecida.
Aurélia tomou o braço do marido, e afastou-se
lentamente ao longo da alameda.
- Por que me chama de senhora? Perguntou ela
fazendo soar o ó com a voz cheia.
- Defeito de pronúncia!.”
No entanto, a convivência impassível tornara-se
um martírio. Em um baile, realizado na casa de Aurélia, a
jovem desmaiou nos braços do marido enquanto valsavam.
Ao tornar a si, percebeu o quanto amava aquele homem.
Impossível viver sem ele e, portanto, era constrangedora a
situação. Importante notar que o inverso também ocorria,
Aurélia chegou a perceber que o marido também a amava,
fazendo-a dizer para si mesma: “E por que não podemos
ser felizes desde esse momento? Ele está ali, pensando em
mim; talvez me espere! Basta-me abrir aquela porta. Virá
suplicar-me seu perdão, eu o receberei em meus braços; e
estaremos para sempre unidos1(...) Quando sua mão tocou
o aço, a impressão fria do metal produziu-lhe um arrepio.
Rejeitou a chave e fechou a gaveta, dizendo ser cedo e “ é
preciso que ele me ame bastante para vencer-me a mim, e
não só para ele deixar vencer”.
Seixas fizera um negócio com minas de cobre
havia três anos e surtiu inesperado lucro, cerca de quinze
contos de réis. Foi correndo buscar uns papéis em casa e,
ao entrar no escritório, encontra a mulher com o Doutor
Eduardo Abreu; fabulando alguma ligação entre eles,
enciumado, procurou arrecadar todo o dinheiro que tinha
para liquidar um assunto importante, a quitação de uma
dívida. Em diálogo com Aurélia, Fernando explica-se:
“ – Ouça-me, desejo que um dia remoto, quando
refletir sobre este acontecimento, me restitua uma parte
da sua estima,; nada mais. A sociedade no seio da qual me
eduquei, fez de mim um homem a sua feição; o luxo
dourava-me os vícios, e eu não via através da fascinação o
materialismo que eles arrastavam. Habituei-me a
considerar a riqueza como a primeira força viva da
existência, e os exemplos ensinavam-me que o casamento
era meio tão legitimo de adquiri-la, como a herança e
qualquer honesta especulação. Entretanto , ainda assim, a
senhora me teria achado inacessível à tentação, se logo
depois que seu tutor procurou-me , não surgisse uma
situação que aterrou-me. Não somente vi-me ameaçado da
pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividado,
como achei-me o causador, embora involuntário, da
infelicidade da minha irmã cujas economias havia
consumido, e que ia perder o casamento por falta de
enxoval. Ao mesmo tempo minha mãe, privada dos
módicos recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu
tinha disposto imprevidentemente pensando que os
poderia refazer mais tarde!... Tudo isso me abateu. Não me
defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica a abdicação
da dignidade. Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser
homem; naquele tempo não era mais do que um ator de
sala; sucumbi. Mas a senhora regenerou-me e o
instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.”
Ao devolver-lhe o dinheiro, Fernando diz que
pretende uma separação, mas Aurélia o chama, dizendo-lhe
que os onze meses de casamento foram vividos por outros
pares e, ajoelhando-se aos pés do marido, suplica-lhe amor.
E assim vai-se dar a cena final:
“Seixas ergueu nos braços a formosa mulher,
que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniram já
em fervido beijo, quando um pensamento funesto
perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com
gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma
aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda
tristeza.”
- Não ,.Aurélia! Tua riqueza nos separou para
sempre.
A moça desprendeu-se dos braços do marido,
correu no toucador, e trouxe um papel lacrado que
entregou a Seixas.
- O que é isso, Aurélia?
- Meu testamento.
Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o
papel. Era efetivamente um testamento em que ela
confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía
seu universal herdeiro.
- Eu escrevi logo depois do nosso casamento;
pensei que morresse naquela noite, disse Aurélia com gesto
sublime.
Seixas contemplava-a com olhos rasos de
lágrimas.
- Esta riqueza causa-te horror? Pois me faz viver,
meu Fernando. È o meio de a repelires. Se não for bastante,
eu a dissiparei.
“As cortinas cerraram-se, e as auras da noite,
acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso
do santo amor conjugal.”
Download

Comentário das obras da UEM- Análise da obra-