Nas Ondas
Comunitárias
O Movimento das Rádios
Comunitárias em Santa Catarina
Trabalho de Conclusão do Curso de
Jornalismo da UNIVALI
Professora Orientadora: Elaine Tavares
Novembro/99
Autor
Adenilson Teles
Diagramação
Joni César Tomazoni
Capa
Daniele Cristina Motta
Fotos
Eraldo Schnaider
“É livre a expressão da
atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação,
independentemente de
censura ou licença”.
Art. 5º/IX - Constituição Federal
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Nas Ondas Comunitárias
Índice
A “reforma agrária” também no ar.............................04
Uma bocuda no ar.....................................................19
Rádio deve ser comunitária........................................29
Um abraço no Brasil..................................................33
As contradições da lei................................................35
Os passos para conseguir a concessão.......................39
O movimento em Santa Catarina................................41
Oeste sai na frente.....................................................45
A
repressão..............................................................46
Rádio comunitária também gera emprego..................49
O movimento no mundo...........................................51
Como montar uma rádio livre...................................53
Rádio Comunitária Dona Edith.................................54
Uma luta que não pode morrer.................................56
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Nas Ondas Comunitárias
A “reforma agrária”
também no ar
Num barraco de madeira coberto com eternit, uma caixa
de som furada toca música sertaneja. Cartazes com fotos de Che
Guevara, trabalhadores sem-terra e até de guerrilheiros colombianos
decoram as paredes do pequeno casebre que, à primeira vista, parece
estar abandonado. Sobre uma mesa improvisada, um monte de papéis
manuscritos estão socados em pequenas caixas de papelão. A música
parece tocar em uma rádio qualquer, como também pode ser um cd,
fita k7 ou até um disco de vinil, já que muitos estão pendurados pelas
paredes.
Quase escondida atrás de uma divisória de vidro, uma
menina de 13 ou 14 anos controla uma aparelhagem de som. Ao
perceber a presença de visitantes, ela baixa o volume do som e pergunta
se são os estudantes que estão sendo esperados. Termina a música e a
garota anuncia no microfone que a Rádio Comunitária Terra Livre
FM acabara de receber a visita de dois estudantes. “Daqui a pouco
eles vão conversar com a gente e vamos saber o que vieram fazer por
aqui”, diz a jovem locutora, antes de preparar mais duas músicas que
tocam enquanto ela chama pelo “companheiro” Márcio, que joga
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Nas Ondas Comunitárias
futebol com amigos no campinho de várzea próximo dali.
Se não fossem os equipamentos, os fios e a antena de
quase 30 metros de altura, jamais alguém poderia imaginar que naquela
casinha simples, rústica, mas aconchegante, funciona a rádio
comunitária do Movimento dos Sem-Terra, perdida no meio do
Assentamento 25 de Maio, em Abelardo Luz, Oeste catarinense. Isso
mostra que uma rádio comunitária não precisa de equipamentos
modernos, estúdios sofisticados ou outras frescuras mais. Basta apenas
organização, participação da comunidade e vontade para comunicar.
Também não necessita de profissionais formados ou especialistas.
Pode ser feita pela comunidade e para a comunidade. E a Rádio Terra
Livre é assim. A participação da comunidade é visível. Os papéis
manuscritos que ficam sobre a mesa da recepção, são centenas de
cartinhas e recados que os ouvintes mandam para os dez programas
diários da emissora.
A menina que controla a aparelhagem de som é Silvia
Martins, 16 anos, mulher (ou companheira, como ela prefere) de
Márcio José dos Santos, 20 anos, um dos coordenadores da Rádio
Comunitária Terra Livre 99.9 FM. Parada Sertaneja é o nome do
programa que a simpática locutora apresenta no fim de tarde. Faltam
alguns minutos para às cinco horas da tarde e sol já vai se pondo,
dando um espetáculo digno de uma bela foto. E Eraldo Schnaider, o
fotógrafo que acompanha a viagem a Abelardo Luz, e que Silvia
achou que fosse um segundo estudante, não perde tempo.
Enquanto isso Márcio é aguardado para começar o
programa Querência Livre, com músicas e versos gaúchos, das 17h
às 18h. Esse programa é apresentado normalmente por Vanderlei
Baumgratz, um jovem militante do MST que está começando no rádio.
Mas, nesse dia, Vanderlei teve outro compromisso e passou a bola
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Nas Ondas Comunitárias
para Márcio. A conversa, ou entrevista que Silvia anunciou ao final
de seu programa, faz a abertura do Querência Livre. Mesmo sem
muita intimidade com microfones, conversamos quase meia hora
sobre rádio comunitária, reforma agrária, jornalismo, fotografia,
universidade, movimento estudantil, futebol e outros assuntos.
Tivemos até que falar com sotaque de gaúcho, já que o estilo do
programa era assim. Nos intervalos do bate papo, que não são
comerciais, mas
músicas, não falta
o
tradicional
chimarrão. Falar
em uma rádio
comunitária, poder
participar
e
acompanhar sua
programação é
uma experiência
interessante, que
até
emociona. No estúdio da Terra Livre, a emoção de falar numa rádio comunitária
Márcio não é
profissional em rádio, mas é muito bom de papo. Militante do MST
desde os 14, faz menos de um ano que trabalha na Rádio Terra Livre.
É filho de um funcionário público municipal de Abelardo Luz, mas
ingressou no movimento por incentivo de um tio, um dos primeiros
assentados do município. Aos 16 anos foi estudar num colégio do
MST em Veranópolis-RS. Formou-se em técnico em agropecuária,
mas nunca exerceu a profissão. Conta que o gosto pelo rádio surgiu
por acaso, ainda em Veranópolis, com algumas oficinas que fez no
colégio. Depois que terminou os estudos no Sul, fez um curso em
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Nas Ondas Comunitárias
São Paulo, de 90 horas/aula, sobre técnicas de rádio e já estava
preparado para comandar a programação da Rádio Terra Livre. “O
curso deu noções importantes, mas aprendi mesmo na prática. Hoje,
não me imagino fazendo outra coisa”, diz.
Para facilitar o trabalho, desde que passou a viver com
Silvia, mora em uma casinha ao lado da Rádio. É um antigo depósito
da Cooperativa Agrícola de Comercialização Justino Dracieski
(CooperJus), que também fica nas imediações. A CooperJus, além
de comercializar a produção agrícola das 1.230 famílias assentadas
em Abelardo Luz, possui ainda um supermercado onde a população
faz suas compras. Também dispõe de maquinário agrícola, silos de
armazenagem de grãos e fornece sementes e fertilizantes aos
agricultores.
É impressionante a organização do MST. Não é à toa
que é considerado um dos mais importantes e bem estruturados
movimentos sociais da América Latina. Em 14 anos de ocupação,
com muito trabalho, união e participação de todos nas decisões,
conseguiu transformar uma fazenda improdutiva no interior de
Abelardo Luz em um celeiro de grãos e alimentos. São 14
assentamentos, sendo que o maior é o 25 de Maio, onde se instalaram,
em 1985, os primeiros trabalhadores. Cada família possui seu lote de
sete alqueires, ou aproximadamente 170 mil metros quadrados de
área, com casa e outras benfeitorias. Produzem feijão, arroz, milho,
soja, erva mate, leite, suíno, gado, entre outros produtos agrícolas.
Por tudo isso, não dá para falar da rádio comunitária do
MST sem falar um pouco do próprio movimento. Até porque o MST
e o Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias têm muitas
afinidades. Enquanto o primeiro luta pela reforma agrária em terras
improdutivas, o segundo defende a “reforma agrária” no ar.
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Nas Ondas Comunitárias
A Rádio Comunitária Terra Livre é um importante
instrumento de formação e conscientização de trabalhadores,
mulheres, jovens e crianças dos assentamentos. Os programas, mesmo
os musicais, não deixam de falar de luta pela terra, justiça social,
cidadania, dignidade, participação popular, igualdade, democracia,
solidariedade, liberdade de expressão e outros assuntos de interesse
da comunidade.
Programação
O frio de quase zero grau não impede Márcio de acordar
um pouco antes das seis da manhã, ligar o transmissor e abrir a
programação da rádio com o programa Cheiro da Terra. “Bom dia
ouvintes da Rádio Comunitária Terra Livre! A nossa saudação especial
a você que está acordando agora. Bom dia também a você que já está
preparando o seu chimarrão. São seis horas e um minuto. Estamos
começando, com a graça de Deus, mais um programa Cheiro da Terra,
trazendo músicas e poemas caboclos que contam histórias do nosso
homem do campo. E para começar bem esta manhã fria de 5 de agosto
de 1999, vamos com a primeira música: O Rei do Gado”.
Depois da breve apresentação, Márcio programa mais
umas três ou quatro músicas e volta para a cama. Ele garante que não
costuma fazer isso sempre, mas como nesse dia o frio é intenso,
decidiu dormir mais um pouco. Quando as músicas estão quase
terminando, ele volta, fala a hora certa e seleciona novas. Enquanto
isso, a água para o chimarrão já está no fogo. Silvia também acorda
neste horário para ir à escola. Segundo Márcio, esse programa terá
ainda um quadro com histórias dos primeiros anos de assentamento.
Essas histórias serão contadas pelos próprios trabalhadores, mas ainda
não sabe como organizar isso.
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Nas Ondas Comunitárias
O Cheiro da Terra vai até às 8h, quando começa o
programa Manhã Ativa. Este é apresentado por Leandra Barizon
Ricardo, também militante do movimento e que coordena a rádio
junto com Márcio. O Manhã Ativa é um programa educativo e de
entrevistas sobre temas específicos como saúde, higiene, educação,
religião, agricultura, política entre outros. Os assuntos são abordados
por algum convidado, que pode ser um técnico agrícola, um professor,
o padre ou pastor, a enfermeira do posto de saúde, representantes do
Incra ou lideranças comunitárias.
Naquele dia, o pastor Osni Narciso, da Igreja Evangélica
É nesse casebre que funciona a Rádio Comunitária Terra Livre
Luz da Verdade falou sobre o fim do mundo, previsto para 11 de
agosto. Era o assunto do momento e deixou muitas pessoas da região
preocupadas. O pastor tranqüilizou os ouvintes dizendo que tudo
não passava de invenção de fanáticos. Perguntas ou dúvidas da
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Nas Ondas Comunitárias
comunidade chegam através de cartas ou são feitas pessoalmente.
Cada dia é definido o tema do programa seguinte. Depois do Manhã
Ativa vem o Terra Brasil, das 10h às 12h, com músicas sertanejas,
gaúchas, bandas e ainda discussões sobre assuntos do assentamento.
Também é coordenado por Márcio.
O único noticiário da rádio é o Jornal Terra Livre, das
12h às 13h. Apresentado por Vanderlei, o informativo divulga as
notícias do movimento, enviadas pela Assessoria de Imprensa do MST,
em Chapecó, e informações gerais da região e do país. São poucas as
matérias produzidas pelo próprio pessoal da rádio. Reportagens locais
praticamente não são feitas. Divulgam bastante recados e avisos
encaminhados pelos ouvintes. A equipe precisaria de mais instruções
e incentivos sobre a importância do jornalismo e da reportagem em
uma rádio. E certamente o que não falta entre eles é força de vontade
para aprender novas formas de fazer da rádio comunitária um veículo
ainda mais atuante e informativo. Se da forma como está já cumpre
um importante papel social e de formação, com a possibilidade de
contar boas histórias, então, será excelente.
E histórias não faltam. Uma delas poderia ser a de Maria
Clarice Batti, 49 anos, que desde a histórica ocupação da fazenda, em
25 de maio de 1985, luta por uma vida mais digna para ela, o marido,
os quatro filhos e, porque não dizer, para todos os trabalhadores rurais
da região. Dona Maria, como é conhecida, conta que os primeiros
tempos no assentamento foram difíceis. Porém, havia muita união e
solidariedade entre as famílias. “Quando chegamos aqui passamos
fome, frio e muita necessidade. Foi preciso muito trabalho e união de
todos para conseguir vencer e construir o que temos hoje”, fala
orgulhosa, enquanto lava roupa nos fundos da casa, a poucos metros
da rádio. O que ela chama de vencer é ter uma casa para morar e terra
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Nas Ondas Comunitárias
para plantar, o sonho de muitos brasileiros. Sua família dedica-se à
produção de leite. São 50 litros por dia, fornecidos à Cooperativa de
Lacticínios Terra Viva, de São Miguel d’Oeste, um dos maiores
empreendimentos do MST em Santa Catarina.
Mas o que chama a atenção na simpática senhora é o
espírito de luta, solidariedade e força de vontade para superar as
dificuldades. Mesmo com seu pedacinho de terra já garantido, e
vivendo em melhores condições do que quando chegou no
assentamento, ela não deixa de participar ativamente das discussões
do MST, sobre a luta pela reforma agrária e por mais dignidade aos
trabalhadores rurais. Por isso, fundou junto com outras companheiras
do assentamento, fundou a Associação de Mulheres Unidas
Venceremos, uma entidade que desenvolve um trabalho social muito
Enquanto lava roupa, Maria Clarice Batti conta sua história
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Nas Ondas Comunitárias
bonito e que até já foi premiada pela Fundação Maurício Sirotsky
Sobrinho. Esta associação, além de discutir assuntos diversos e prestar
assistência às mulheres trabalhadoras, mantém ainda uma confecção
de moletom que gera oito empregos e também ensina a costurar, bordar,
fazer tricô, crochê e outras habilidades.
Sobre a rádio, dona Maria reconhece que foi uma grande
conquista para o assentamento e tem o apoio e audiência de todos os
moradores. Segundo ela, facilita muito na comunicação entre as
comunidades mais distantes e até no trabalho da Associação de
Mulheres. “Todas as famílias ouvem a rádio o dia inteiro. Por isso,
quando a gente precisa mandar um aviso para alguém, sabemos que
vai ouvir”, diz. Ela mesma afirma que só não acorda ouvindo a rádio
porque a ordenha das vacas exige que toda a sua família comece a
jornada de trabalho antes das 6h da manhã, o horário que a emissora
entra no ar. Mas depois, só desliga o radinho às nove da noite, quando
encerra a programação.
A poucos metros da casa de dona Maria, numa das casas
mais simples do assentamento, mora Antonina Antunes Maciel, uma
mulher de 50 anos, muito simpática. Dona Antonina é outra que não
perde a programação da Rádio Comunitária. “Acho muito importante
ter uma rádio aqui. Serve muito quando a gente precisa mandar um
recado a algum vizinho ou até mesmo para ouvir as notícias e músicas”,
declara. A principal vantagem, segundo ela, é que para mandar um
aviso pela Rádio Terra Livre, não precisa pagar nada. Ao contrário da
rádio comercial Rainha das Quedas, que cobra R$ 4,00 por este tipo
de serviço. Antonina afirma ainda que não só apoia esta iniciativa,
como também defenderia a emissora numa possível tentativa de
fechamento. “Eu seria a primeira que iria para a frente da rádio
protestar contra”.
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Nas Ondas Comunitárias
“Agora só ligo a Rainha das Quedas para ouvir as
notícias do hospital e o jornal, ao meio-dia. Depois, só ouvimos a
nossa rádio”, declara, orgulhoso, o aposentado Mariano Saraiva, 66
anos, outro defensor da emissora e que também mora nas
proximidades. Ele diz que fará de tudo para que a rádio continue no
ar. “Ela é muito importante para a nossa comunicação com os
vizinhos”. Aliás, o rádio é praticamente o único veículo de
comunicação no assentamento. A maioria das famílias não possui
televisão. Melhor, não possui antena parabólica, já que televisão na
região só funciona com parabólica.
Ainda sobre a programação, a tarde começa com Banda
e Festa, uma espécie de humorístico, com músicas de bandas, histórias
engraçadas e muita alegria. É comandado por Vanderlei até às 14h.
Peterson é o apresentador do Conexão Terra Livre, que toca música
popular brasileira das 14h às 16h. No dia em que visitamos a Rádio,
o jovem radialista participava da Marcha dos Sem-Terra, em Brasília
e, por isso, não pudemos conhecê-lo.
A Parada Sertaneja, das 16h às 17h é com Silvia e, em
seguida, volta o Vanderlei com o Querência Livre. Márcio apresenta
Meu Sertão, com modas de viola das 18h às 19h e encerra a
programação com o romantismo do Som Brasil, das 19h às 21h. Este
é o programa que mais recebe cartinhas. São mais de 20 diariamente,
a maioria pedidos de música, recadinhos e pensamentos românticos.
Tem dia que o locutor não consegue ler todas. Outro detalhe é que são
todas muito parecidas. Mais ou menos assim: “Oi Márcio! É uma
prazer escrever para este maravilhoso programa. Gostaria de pedir a
música “É o Amor”, de Zezé Di Camargo e Luciano. Um grande
abraço...”
Todos as noites, antes de desligar o transmissor, Márcio
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Nas Ondas Comunitárias
agradece aos ouvintes pela audiência e a Deus por mais um dia. Na
frase “Ai que endurecer, pero sin perder la ternura jamais”, de Ernesto
“Che” Guevara, o locutor lembra da luta pela terra e faz uma
homenagem especial aos companheiros que morreram lutando por
mais justiça social neste país. “Uma boa noite a todos e até amanhã às
seis horas”, finaliza.
A repressão
Por ser mantida e instalada dentro de um assentamento
do Movimento dos Sem-Terra, a Rádio Comunitária Terra Livre é
uma das poucas em Santa Catarina, que nunca sofreu repressão da
Polícia Federal para ser fechada ou lacrada, como acontece com a
maioria das rádios livres em todo o país. As poucas vezes que saiu do
ar foram por problemas técnicos. Em duas ocasiões, um raio atingiu a
antena e queimou a mesa de som, deixando a emissora uma semana
desligada. Mas, a exemplo do que enfrentam as demais emissoras
comunitárias livres que ainda não estão legalizadas, e são
absurdamente classificadas como “piratas” pelos órgãos oficiais, a
Terra Livre também sofre grande pressão da única rádio comercial de
Abelardo Luz, a Rainha das Quedas AM, de propriedade do prefeito
João Marques Rosa (PFL) e alguns empresários locais.
Durante a programação da rádio do prefeito, além das
famosas vinhetas patrocinadas pela Associação Catarinense de
Emissoras de Rádio e Televisão (Acaert), dizendo que rádio ilegal
não é legal para a comunidade, ou ainda que derruba avião, os próprios
radialistas falam que no interior do município existe uma rádio pirata,
que está na mira da Polícia Federal e a qualquer momento será fechada.
A preocupação do prefeito e da oligarquia que domina
o município há muitos anos, tem uma explicação. Por falar a linguagem
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Nas Ondas Comunitárias
da comunidade, ser feita pela comunidade e ter programação voltada
aos interesses da comunidade, a Rádio Terra Livre é líder absoluta de
audiência no município e na região. Mesmo com um transmissor
caseiro de apenas 25 watts, tem quase 30 quilômetros de abrangência,
sendo ouvida em todos os assentamentos de Abelardo Luz e até em
municípios vizinhos, como Passos Maia, Ouro Verde e Faxinal dos
Guedes.
Por conta dessa audiência, alguns comerciantes até já
pediram para anunciar na Terra Livre, o que será bom para a
manutenção da emissora. A coordenação até já definiu os valores dos
apoios culturais, como são chamados anúncios em uma rádio
comunitária. Para quatro chamadas por dia, de 15 segundos cada, a
idéia é cobrar R$ 50,00 por mês. Na Rainha das Quedas, por exemplo,
praticamente esse é o valor cobrado por apenas seis anúncios de 30
segundos. Um simples aviso na rádio comercial custa R$ 4,00. Na
Terra Livre é gratuito.
Até então a rádio era mantida apenas com o apoio da
CooperJus e do MST. Nenhum dos locutores são remunerados. A
alimentação para eles é garantida pelo movimento, através da
CooperJus. Mas também arrecadam algum dinheiro com a venda de
produtos do MST, como camisetas, bonés, cartões postais, assinaturas
de jornal e revista, agendas e outros. Recebem 5% da arrecadação
mensal.
Além de tirar audiência da Rainha das Quedas, a Rádio
Terra Livre também é vista como ameaça ao poder da oligarquia
política local. Segundo Leandra, a rádio não provoca o prefeito, mas
sempre que a comunidade tem algo a reivindicar, os microfones estão
abertos. Em represália contra a atuação da emissora, a região dos
assentamentos está praticamente abandonada pela prefeitura. As
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Nas Ondas Comunitárias
estradas de acesso são só buracos e pedras, nos mais de 25 quilômetros
de extensão. Máquinas só passam em período pré-eleitoral. De acordo
com Leandra, o prefeito afirma que os assentamentos só dão prejuízos
ao município. “Porém, esquece que são as 1.230 famílias de
trabalhadores assentados que sustentam o comércio de Abelardo Luz,
já que os moradores da cidade fazem suas compras em Xanxerê, o
maior centro comercial da região”, contesta.
As estradas podem até ficar cheia de buracos, mas o
que o MST não abre mão é de que a prefeitura mantenha sempre
funcionando o ambulatório do assentamento, a escola que atende mais
de 400 alunos e o transporte escolar para estudantes secundaristas e
das comunidades mais distantes. Educação, aliás é assunto tratado
com a maior seriedade pelo MST. Nenhuma criança com idade escolar
está fora da escola nos assentamentos. Até Silvia, a companheira de
Márcio, mesmo depois de casada, ainda estuda na oitava série e recebe
total apoio e incentivo do marido.
Depois que passou a trabalhar na rádio, Leandra conta
que ela mesma já sofreu ameaças da prefeitura. Seu companheiro é
professor na rede municipal de ensino. Numa certa reunião, o secretário
de Educação deixou bem claro que o emprego dele como professor
dependerá do que Leandra falar nos microfones da rádio. “É um
absurdo, mas esse tipo de pressão é comum por parte da prefeitura.
Só que isso não nos intimida. Enquanto estiver no ar, a rádio vai
continuar lutando pelos ideais do MST e por melhores condições de
vida para o nosso povo”, afirma Leandra.
De livre a comunitária
No ar desde 1996, a Rádio Terra Livre FM, a exemplo
de outras rádios comunitárias, ainda não está legalizada. Por isso, é
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Nas Ondas Comunitárias
considerada uma rádio livre, e não pirata, como classificam as rádios
comerciais em campanhas patrocinadas pela Acaert, Abert e órgãos
oficiais de repressão. A propósito dessa confusão de termos, no 1º
Encontro Nacional de Rádios Livres, em maio de 1990, quando
começaram as primeiras discussões sobre a legalização desse serviço
público, foi definido que uma rádio livre “é aquela que vai ao ar sem
pedir autorização a quem quer que seja”.
Ainda segundo o documento do Encontro, “toda rádio
que inicia suas operações de forma ilegal, questiona o monopólio
estatal sobre as ondas sonoras e permite a livre expressão a qualquer
grupo distanciado dos meios de comunicação, pode ser considerada
uma rádio livre”. Já o termo “rádio pirata” surgiu em 1958, quando
navios ancorados às costas britânica, holandesa e dinamarquesa
transmitiam sinais de rádio que eram captados pela população mais
próxima. Como esse serviço também era ilegal e contestava o
monopólio estatal, foi chamado de pirata.
Existem ainda as rádios populares. Estas têm origens
nas escolas radiofônicas fundadas pela Igreja Católica, nos anos 60,
para combater o analfabetismo em países como Peru, Equador,
Colômbia, República Dominicana e outros. Clandestina é outro termo
usado para definir uma rádio sem autorização. Tem como característica
a luta pela transformação da ordem política, econômica e social
estabelecida. E por último as rádios comunitárias, que são emissoras
de baixa potência e alcance reduzido, já reconhecidas por lei no Brasil.
Embora exista a lei que regulamenta o serviço de
radiodifusão comunitária, as brasileiras ainda são consideradas livres,
já que iniciaram suas operações de forma ilegal e, por uma série de
burocracias criadas pelo Ministério das Comunicações (Minicom),
não dispõem da outorga ou concessão para funcionar. Portanto,
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Nas Ondas Comunitárias
comunitária, livre, clandestina, pirata, popular, são definições de rádios
que lutam, sobretudo, pela democratização dos meios de comunicação.
A Rádio Terra Livre pretende transformar-se em uma
rádio comunitária. Tanto que iniciou o longo e burocrático processo
junto ao Ministério das Comunicações para conseguir a concessão.
Já tem uma associação formada e registrada para esse fim, um dos
primeiros requisitos para obter a outorga. Mas para conseguir a
sonhada liberação, terá que substituir alguns de seus equipamentos.
É o caso do transmissor, que é caseiro, e de acordo com a lei, precisa
ser homologado pelo Minicom.
Segundo Leandra, para regulamentar será preciso
investir pelo menos mais R$ 3 mil. Os demais equipamentos da
emissora são de boa qualidade. Tem dois aparelhos de cd, dois tape
deck, um toca discos, uma mesa de som com seis canais, a antena
com uma haste de 28 metros de altura, fiação especial, além da velha
caixa de som furada que me chamou a atenção na chegada e serve de
retorno para os locutores. O investimento em equipamentos já é de
aproximadamente R$ 5 mil, dinheiro doado pelo MST.
Valeu a pena percorrer quase 600 quilômetros de
Blumenau a Abelardo Luz para conhecer esta que é uma das mais
importantes rádios comunitárias de Santa Catarina. Depois de enfrentar
os buracos e pedras da estrada, além da dificuldade para encontrar o
famoso Assentamento 25 de Maio, a 25 quilômetros do centro de
Abelardo Luz, espero ter contado uma boa história.
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Nas Ondas Comunitárias
Uma Bocuda no ar
São João do Sul, no extremo sul de Santa Catarina,
divisa com o Rio Grande é uma dessas típicas cidades de interior.
Tem uma rua principal, onde funcionam a prefeitura, o banco, a loja
de materiais de construção do seu Manoel Cardoso, a farmácia, outras
lojas, o açougue, o supermercado, a eletrônica do Celino Martins,
alguns bares, residências e a praça da Igreja Matriz. Mas desde julho
de 1997, os sete mil habitantes da pacata São João do Sul contam
com uma novidade que pelo menos outros 150 municípios catarinenses
ainda não têm. Por enquanto. É a “Bocuda”, como a população chama,
carinhosamente, a Rádio Comunitária 104.9 FM.
A começar pelas instalações e equipamentos é uma rádio
diferente da Terra Livre, de Abelardo Luz. Enquanto a rádio do MST
funciona num barraco de madeira, a 104.9 FM tem uma aparelhagem
da melhor qualidade e está confortavelmente instalada num estúdio
quase profissional, na sala 5 do Centro Comunitário da Igreja Matriz.
São diferentes também na forma de organização e atuação, além de
terem histórias distintas.
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Nas Ondas Comunitárias
A Bocuda voltou a funcionar em fins de agosto deste
ano, ainda na condição de rádio livre, depois de ter sido violentamente
lacrada e ter parte dos equipamentos apreendidos pela Polícia Federal,
em setembro de 1998. É mais uma emissora disposta a enfrentar a
repressão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) contra
rádios comunitárias. A Bocuda não têm mais paciência para esperar a
boa vontade do governo federal na liberação da concessão, e está no
ar outra vez. A documentação, solicitando a outorga para a rádio foi
encaminhada ao Minicom há muito tempo, mas até agora nada.
Como desenvolvia um trabalho voltado aos interesses
da comunidade, a exemplo de outras rádios comunitárias, com notícias
da cidade e região, músicas, recados, avisos e transmissões ao vivo
do Campeonato Municipal de Futebol e do Rodeio Crioulo, a
população pedia insistentemente que a Bocuda voltasse ao ar. Uma
pesquisa realizada em agosto de 98, pela Cooperativa Agrícola de
São João do Sul, apontou que 89% da população ouvia a rádio, que
naquela época tinha freqüência 97.7. Foi então que a diretoria da
Associação Comunitária de Radiodifusão Antônio Constante
Machado, entidade que administra a emissora, decidiu recolocá-la no
ar. Só que na ação da Polícia Federal, em 98, a Anatel apreendera o
transmissor e lacrara os demais equipamentos, sendo necessário mais
investimentos.
Então para comprar um novo transmissor e outros
acessórios, foi preciso pedir a colaboração da comunidade. Mas,
mais do que arrecadar dinheiro, procurou-se garantir apoio e
participação da população nesta nova fase da rádio. Em pouco tempo,
a Associação passou a contar com mais de 70 associados entre
comerciantes, sindicalistas, lideranças comunitárias, professores,
vereadores, prefeitura, igrejas e outras pessoas que reconhecem a
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Nas Ondas Comunitárias
importância de uma rádio comunitária para a cidade. Este trabalho de
mobilização foi coordenado por Eraldo Giovani Velho, o secretáriogeral da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária de Santa
Catarina (Abraço/SC), militante do Partido dos Trabalhadores e uma
das mais importantes lideranças sindicais da região.
Mas antes da rádio voltar ao ar, foi preciso eleger nova
diretoria da Associação. E como a entidade agrega pessoas de várias
correntes ideológicas e políticas, lançaram uma chapa de consenso
com o jovem padre César Budny na presidência. “Foi o maior erro
que cometemos”, lamenta Eraldo, que ficou com o cargo de secretáriogeral da Associação. Segundo ele, em menos de um mês de atividades,
começaram os conflitos de interesses e disputas por espaço. Todos os
partidos políticos têm representantes na diretoria, inclusive o prefeito
Rogério Duminelli (PMDB), um dos maiores incentivadores da rádio.
O padre, que não tem postura ideológica definida, não agüentou a
pressão de alguns setores e renunciou ao cargo de presidente. Assumiu
o vice-presidente Gilberto Celestino Delfim, vereador do PPB. E a
partir daí, a rádio, que deveria ser um veículo comunitário, democrático
e de integração da população, passa a ser motivo de uma das maiores
disputas políticas do município.
Eraldo atribui a crise a Elizeu da Rosa Cardoso, um dos
diretores da Associação e militante do PPB. Elizeu tem um programa
diário das 10h às 10h30min, do qual se utiliza para fazer política, já
que pretende ser candidato a vereador nas próximas eleições. O
programa também é um espécie de tribuna de oposição contra o
prefeito, seu inimigo político. De acordo com Eraldo, o fechamento
da rádio em 1998 já foi motivado pela atuação de Elizeu, que atacava
sistematicamente o prefeito. “A Anatel não divulga quem denuncia,
mas neste caso acho que foi o prefeito quem pediu para lacrar a rádio
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Nas Ondas Comunitárias
naquela época”, arrisca Eraldo.
Normalmente esse tipo de denúncia costuma partir de
rádios comerciais. Mas as quatro emissoras da região, duas de
Sombrio, uma de Jacinto Machado e outra de Torres (RS), durante os
14 meses que a Bocuda esteve no ar na primeira fase, e até mesmo
agora, nunca deram importância ao funcionamento. Só que desta vez,
perderam muitos anunciantes de São João do Sul para a rádio
comunitária, o que pode, a qualquer momento, motivar algum tipo de
pressão contra a emissora. Para não correr riscos, a Bocuda só vai ao
ar das 7h às 10h30min, de segunda a sexta e aos sábados e domingos
das 7h às 12h.
Apesar da crise institucional a Rádio Comunitária 104.9
vai muito bem financeiramente. O investimento em equipamentos
chega a R$ 7 mil e está conseguindo se manter com os apoios culturais,
já que praticamente todo o comércio anuncia nela. Também cumpre
um importante papel social, seja divulgando informações de interesse
da comunidade ou até mesmo nos avisos, recados e músicas. Os
moradores ouvem, aprovam e até pedem para ampliar a programação.
Mas enquanto não sai a concessão, vai continuar com as três horas e
meia diárias, de segunda a sexta e cinco horas nos finais de semana.
Com pouco mais de um mês no ar, ainda não foi realizada
nenhuma pesquisa para saber como está a audiência da rádio. Mas
basta dar uma volta pela cidade e perceber que todo mundo está
sintonizado na 104.9. Manoel Cardoso, 52 anos, dono da loja de
materiais de construção, é um que não perde a programação. Mesmo
durante o expediente de sua loja, seu Manoel, como é conhecido, fica
com o radinho ligado na Bocuda. “Escuto a rádio principalmente por
causa dos recados da comunidade, mas também gosto de ouvir as
músicas. Pena que fica tão pouco tempo no ar”, diz. Seu Manoel, um
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Nas Ondas Comunitárias
dos associados e anunciantes da emissora, considera a rádio importante
para o município, já que é o único meio de comunicação disponível.
A jovem Katerine Guaresi Bressau, 16 anos, que trabalha
na lojinha de aviamentos de sua mãe, ao lado da loja de seu Manoel,
também é fã da Bocuda. “Gosto do estilo de música que toca em
alguns programas. Acho muito importante para a cidade ter uma rádio
que fala das coisas daqui”, diz.
Programação
“Bom dia amigos ouvintes da Rádio Comunitária 104.9
FM. Hoje, 9 de outubro de 1999, são exatamente 10h30min. A partir
de agora você ficará na companhia de Eraldo Giovani Velho e do
companheiro Rafael Lumertz, nosso convidado deste sábado”. É assim
que Eraldo começa o programa As Mais Pedidas da Semana, todos
os sábados das 9h30min às 11h. Esta é apenas a terceira vez que ele
apresenta o programa nesta nova fase da rádio. Ainda não está muito
a vontade com o microfone e, para não se perder, preparou um roteiro
com os principais assuntos que teria de falar e as músicas a serem
tocadas. Rafael também se mostra meio nervoso no começo mais
depois ambos se soltam.
O programa toca músicas de todos os estilos, tem
horóscopo, notícias do Movimento das Rádios Comunitárias e, como
não poderia faltar, recadinhos e pedidos musicais dos ouvintes. Eraldo
também lê matérias do jornal A Notícia, que foram destaques na
semana. Cada bloco toca três músicas, três signos e alguma
informação.
Segundo Eraldo, a idéia é deixar o programa mais
comunitário e menos musical. “Vamos trazer convidados para falar
de determinados assuntos e abrir para a comunidade fazer suas
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Nas Ondas Comunitárias
reivindicações. Só estamos aguardando a instalação de uma linha
telefônica, o que deverá acontecer nos próximos dias”, diz. De acordo
com Eraldo, na primeira fase que a rádio esteve no ar era bem mais
atuante e crítica. “Foi por isso, inclusive, que ganhou o apelido
Bocuda”.
As músicas previamente definidas no roteiro, aos poucos
Eraldo e Rafael apresentam As Mais Pedidas da Semana
são substituídas pelos pedidos que a comunidade entrega pessoalmente
na rádio. Faltam poucos minutos para encerrar o programa e Eraldo
ainda não teve tempo de lançar uma promoção que vai mexer com a
cidade. É um concurso para escolher um novo nome para o programa.
As pessoas poderão dar sugestões e o vencedor ganhará prêmios. Mas
fica para a semana seguinte. Ele até faz um suspense, dizendo que
“na próxima semana haverá uma surpresa”. Diferentemente da Rádio
Terra Livre, a Bocuda tem um técnico de som, uma espécie de DJ. É
24
Nas Ondas Comunitárias
Luiz Antônio Martins, 13 anos, filho de Celino, que fica num espaço
separado dos locutores.
“Por essa luta vou até para a cadeia”
Eraldo Giovani Velho, 28 anos, nunca trabalhou em rádio
comercial. Mas desde que passou a atuar no Movimento das Rádios
Comunitárias é apaixonado pelo veículo e mais um brasileiro que
luta pela democratização dos meios de comunicação no País. Natural
de Jacinto Machado, a menos de 20 quilômetros de São João do Sul,
ouviu falar pela primeira vez de rádio comunitária em 1996, quando
presidia o Sindicato dos Servidores Públicos dos Municípios do Vale
do Araranguá e também assessorava o então deputado federal Milton
Mendes (PT), na região.
Em setembro de 96, com a vinda ao Estado do presidente
da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço),
Sebastião dos Santos, para falar do Movimento em Defesa das Rádios
Comunitárias no Brasil, Eraldo participou de um seminário sobre o
assunto em Curitibanos. Foi ali que conheceu Bernardo Becker, um
ex-agricultor, membro da Pastoral da Terra de Mafra; Sérgio Moreira,
sindicalista de Canoinhas; Zélia Musa, militante do Partido dos
Trabalhadores em Chapecó; Roberto Bonenberg, líder de movimentos
populares em Tangará e outras pessoas que mais tarde formaram uma
comissão responsável pela fundação da Associação Brasileira de
Radiodifusão Comunitária de Santa Catarina, a Abraço/SC, entidade
que coordena as ações do movimento no Estado.
A Abraço/SC só nasceu em março de 1998, mas desde
96 essas cinco lideranças percorreram vários municípios catarinenses
para falar do movimento e incentivar a criação de rádios comunitárias.
O resultado desses contatos refletiu no I Congresso Estadual de Rádios
25
Nas Ondas Comunitárias
Comunitárias, nos dias 14 e 15 de março de 98, em Florianópolis.
Mais de 250 pessoas participaram do evento de fundação da
Associação das Rádios Comunitárias Catarinenses.
No Congresso, Bernardo foi eleito presidente da Abraço/
SC; Eraldo, secretário- geral; Sérgio, secretário de Finanças; Zélia,
secretária de Organização; Roberto, secretário de Formação. Rúbia
Anacleto, de Blumenau, ficou com a Secretaria de Comunicação e
outras lideranças com cargos no conselho fiscal e diretorias regionais.
Além das atribuições burocráticas, cada membro da Abraço/SC
também ficou responsável pela orientação e incentivo à criação de
novas rádios comunitárias em suas respectivas regiões.
No sul do Estado, Eraldo garante que quase todos os
municípios já têm ou tiveram uma rádio comunitária. “A Bocuda
serviu de referência para muitas dessas emissoras”, diz. Em Jaguaruna,
por exemplo, a Rádio Comunitária Sambaqui FM, coordenada pelo
padre Angelo Bussolo foi para o ar praticamente no mesmo período
que a Bocuda. Também foi fechada pela Polícia Federal em 98, e
agora está novamente no ar. Só que desta vez conta com uma garantia
que outras rádios livres ainda não conseguiram. Um juiz federal da
comarca de Tubarão concedeu liminar para que a emissora possa
funcionar até que saia a concessão, já solicitada ao Ministério das
Comunicações. Segundo Eraldo, essa situação é inédita no Estado,
mas a Abraço está incentivando outras rádios a fazer o mesmo. “O
problema é que isso depende da interpretação de cada juiz, e
principalmente da pressão que as rádios comerciais do município ou
da região exercem sobre esse tipo de decisão”, avalia Eraldo.
O dirigente da Bocuda tem esperança que algum dia as
rádios comunitárias não precisem mais ser chamadas de clandestinas
ou piratas. Ele foi um dos que lutou como ninguém pela legalização,
26
Nas Ondas Comunitárias
mas acha que agora não dá mais para esperar a boa vontade do governo
federal na liberação das concessões. “Faz quase dois anos que a lei
foi aprovada e até agora o Ministério das Comunicações não concedeu
nenhuma outorga”, lamenta. Por isso, não resta outra alternativa senão
colocar no ar sem autorização. Eraldo está consciente dos riscos que
corre, mas não quer nem saber.
Desde que a Bocuda foi fechada em 98, ele responde
um processo federal por crime de instalação ou utilização de
telecomunicações sem autorização dos órgãos competentes, sujeito
a pena de detenção de um a dois anos . Isso é o que prevê o artigo 70
da Lei 4.117, de agosto de 1967, modificada pelo Decreto-lei nº 236,
de 29 de fevereiro de 1967. Esse decreto tem sido motivo de muita
polêmica. É que a Lei 9.612/98, que regulamenta o serviço de
radiodifusão comunitária, quando se refere a crime ou punição, baseiase no decreto criado em plena ditadura militar. É considerado pelo
Movimento um dos maiores absurdos da nova legislação das rádios
comunitárias. Mas Eraldo garante que isso não o intimida. “Por essa
luta, se for preciso, vou até para a cadeia”, diz.
Celino Balduino Martins, 48 anos, sogro do Eraldo, é o
No ar o
programa
Fundo do
Baú.
Apresentação
Celino
Martins
27
Nas Ondas Comunitárias
único técnico em eletrônica de São João do Sul. Conserta rádio,
televisão, vídeo cassete e outros eletrodomésticos. Por conta da
profissão é conhecido por todo mundo na cidade. Mas, nos últimos
tempos, passou a ser ainda mais conhecido. É que todos os dias, a
partir das 7h15min, Celino troca as ferramentas da eletrônica pelo
microfone da Rádio Comunitária 104.9 FM. Nesse horário começa o
programa Fundo do Baú, com músicas antigas de vários estilos. A
maioria é sertaneja e moda de viola, mas também toca Beatles, Jovem
Guarda e MPB.
Além do Fundo do Baú, que vai até às 8h, Celino ainda
comanda os dois programas seguintes: Músicas Nativas, das 8h às
9h e Músicas Diversas até às 9h30min, quando começa o programa
das entidades. Cada dia da semana, entidades como Epagri, Cidasc,
Secretaria de Saúde, Sindicato de Trabalhadores Rural, ou até mesmo
as igrejas, têm 30 minutos para expor seus projetos ou falar de algum
assunto de relevância comunitária. A última meia hora de programação
diária fica por conta do “polêmico” Elizeu Cardoso, que às vezes se
estende além do horário. Não existe noticiário. As informações são
veiculadas durante os programas.
Aos sábados a programação vai até às 11h, com o
programa do Eraldo e das 11h às 12h com mais músicas. Esta última
hora é apresentada pelo jovem DJ Luiz Antônio Martins. Aos
domingos, a rádio tem a mesma programação até às 9h15min, quando
começa a transmissão da Missa Dominical. Como a emissora está
instalada em frente a Igreja Matriz, basta um cabo ligando o microfone
do padre à mesa de som da rádio e imediatamente toda cidade passa
ouvir a missa. Depois da celebração, Zalmo Rocha toca música
nativistas até às 12h.
28
Nas Ondas Comunitárias
Rádio deve ser comunitária
Um momento de emoção contagiou a maioria das pessoas
presentes no auditório da Fecesc, em Florianópolis, naquela tarde de
domingo, 15 de março de 1998. Era a hora do discurso do ex-agricultor
Bernardo Becker, 39 anos, que acabara de ser eleito presidente da
recém criada Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária de
Santa Catarina (Abraço/SC). Ele não conseguiu conter as lágrimas
ao relembrar as lutas que travou junto com outros companheiros para
divulgar, em todo o Estado, o Movimento Nacional Pela
Democratização das Comunicações, que entre outras coisas defende
a regulamentação e concessão de rádios de baixa potência controladas
pela comunidade.
“Este momento é histórico para as rádios comunitárias
de nosso Estado. De forma democrática e participativa, acabamos de
criar a entidade que, de hoje em diante, vai nos representar e fortalecer
ainda mais o Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias. A
Abraço/SC representa o início de uma nova fase para o movimento.
É o resultado da luta de muitos companheiros que desejam construir
uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática. Com ela,
seremos ainda mais fortes para lutar pelo cumprimento da lei que
29
Nas Ondas Comunitárias
legaliza as rádios comunitárias...”
As palavras, com sotaque de homem simples do planalto
norte catarinense, soaram mais como um desabafo de quem respondia
dois processos federais por fundar uma dessas rádios em Mafra, sua
cidade, e ajudar a criar emissoras semelhantes em outros municípios
do Estado. Uma história de lutas já conhecida pela maioria dos 250
participantes naquele Congresso de Fundação da Abraço/SC.
Mas alguns deles, como Alexandre Gonçalves,
jornalista formado, com mais de dez anos de experiência em
T V,
na
ocasião
chefe
de
jornalismo
da
Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura de Blumenau,
ainda não tinha entendido como aquele moço simples, que
falava com alguns “errinhos” de português, poderia ser a
principal liderança do movimento das rádios comunitárias no
Estado.
Somente ao final dos dois dias de Congresso que definiu
estatuto, diretoria e metas da Abraço/SC, Alexandre e outros
congressistas como eu, compreendemos que uma rádio comunitária
pode ser administrada por uma comunidade e sobretudo ser um
instrumento democrático, sem fins lucrativos, defendendo os interesses
de pessoas excluídas, que não encontram espaço para fazer suas
reivindicações nos veículos da chamada grande imprensa. O exemplo
de Bernardo mostrou que não precisa ser formado em jornalismo,
nem doutor em língua portuguesa, para coordenar ou fundar uma rádio
comunitária. Ou como muito bem lembrou ele, “rádio comunitária
deve ser feita pela comunidade e para a comunidade. Deve ser
comunitária de verdade”, acrescentou.
Um de seus maiores desafios como presidente da entidade,
criada para coordenar e assessorar o Movimento das Rádios
30
Nas Ondas Comunitárias
Comunitárias no Estado, é não permitir que as rádios livres existentes
em Santa Catarina caíam nas mãos de interesses políticos ou
econômicos, diferentes daqueles definidos no estatuto da Abraço/SC.
Coisa difícil de ser cumprida.
Outro compromisso de Bernardo é lutar pelo cumprimento
da Lei 9.612, que legalizou o serviço de radiodifusão comunitária,
aprovada em dezembro de 1997 pelo Senado Federal, sancionada pelo
presidente da República em fevereiro de 98, mas que só foi
regulamentada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel),
o novo órgão federal controlador das comunicações, sucessor do antigo
Dentel, em junho daquele ano. E somente depois de regulamentadas
é que as rádios comunitárias que estão no ar em vários municípios
catarinenses poderão deixar de ser livres, e não “piratas” como divulga
a Acaert, a entidade que defende os interesses das rádios comerciais
em Santa Catarina.
Pressão das rádios comerciais
Um dos argumentos utilizados pela Acaert para impedir
o crescimento do movimento das rádios comunitárias é que essas
emissoras, com apenas 25 watts de potência, como prevê a lei, poderão
intervir em outros sistemas de comunicação e até derrubar avião. Foi
o que afirmou Silvano Silva, um dos diretores da entidade, em palestra
ministrada no curso de jornalismo da Univali, em junho de 1999.
“Isso é um absurdo”, contesta o assessor técnico da Abraço Nacional,
Paulo Fumaça, palestrante do Congresso de Fundação da Abraço/
SC. De acordo com ele, o ar tem capacidade ilimitada para transmissão
de ondas de rádio, e a freqüência de uma simples rádio comunitária,
de apenas 25 watts, jamais será capaz de derrubar um avião. “Tanto
que nunca se ouviu falar que um avião tivesse caído por causa de uma
31
Nas Ondas Comunitárias
rádio comunitária”.
Durante o Congresso da Abraço/SC, Bernardo Becker
contou um pouco de sua experiência como um dos fundadores da
Rádio Comunitária Cidadania, de Mafra. Com programação voltada
aos interesses da comunidade, em pouco tempo no ar, a primeira
emissora comunitária no planalto norte do Estado, fundada em
dezembro de 1996, conquistou o primeiro lugar na preferência da
população. Mas o sucesso durou pouco já que mexeu com o poder
local e passou a ser vista como ameaça às duas rádios comerciais da
cidade, que perderam audiência.
A partir de denúncia da Rádio Nova Era FM, uma
emissora comercial da cidade, à antiga Delegacia do Ministério das
Comunicações em Santa Catarina, em 18 de março de 1997, fiscais
do Dentel, acompanhados pela Polícia Militar do Paraná, lacraram
os equipamentos da rádio. Apenas lacraram. Mas em 8 de setembro
de 1997, atendendo a inúmeros apelos da comunidade, Bernardo
deslacrou a aparelhagem e colocou a rádio novamente no ar, desta
vez em sua casa.
Logo no dia seguinte, os mesmos fiscais do Dentel, desta
vez acompanhados da Polícia Federal, amanheceram em sua casa com
um mandado de busca e apreensão dos equipamentos. Naquele dia
Bernardo participava de um seminário em São Bento do Sul para
discutir o movimento das rádios comunitárias na região. Simone, sua
mulher era quem apresentava a programação. Ela avisou Bernardo,
por telefone, para que não voltasse a Mafra nesse dia, pois corria o
risco de ser preso. Tanto que os federais esperaram por ele, em frente
a rádio, das 9h às 17h. Como Bernardo não apareceu, os fiscais do
Dentel levaram praticamente todos os equipamentos, e a Polícia
Federal abriu dois processo contra ele. Um por emitir sinais de rádio
32
Nas Ondas Comunitárias
sem autorização e outro por ter deslacrado os equipamentos.
A apreensão dos equipamentos foi considerada uma arbitrária
pelo juiz federal Paulo Fernando Silveira, de Uberaba-MG, outro
palestrante do Congresso da Abraço/SC. Paulo Silveira tornou-se
conhecido por conceder liminares em favor de várias rádios
comunitárias na região de Uberaba, sul de Minas. De acordo com ele,
a apreensão de equipamentos é anticonstitucional, já que fere o
princípio da liberdade e privacidade. “A Anatel não tem competência
para seqüestrar qualquer bem privado. No máximo, pode lacrar o
transmissor e autuar o proprietário” alerta. Em caso de apreensão, o
juiz recomenda que a entidade que administra a rádio entre com
mandado de segurança e habeas-corpus na Justiça Federal.
Sem medo de ser feliz
Irradiando alegria e paixão
Sonhando com a democracia
Nos meios de comunicação
Buscando o sagrado direito
Da liberdade de expressão
Um Abraço no Brasil
Bernardo Becker
Um ABRAÇO na paz vamos dar
Um ABRAÇO na democracia
Um ABRAÇO que vai pelo ar
Na verdadeira notícia do dia
Um ABRAÇO no Brasil inteiro
No som livre da Rádio Magia
Pelo fim da monopolização
Apaixonadamente resistindo no ar
A Anatel não pode intervir
No direito de comunicar
Abaixo o autoritarismo
O povo também quer falar
33
Nas Ondas Comunitárias
O microfone está aberto
O transmissor está acionado
A emoção está tomando conta
O receptor está ligado
Antenas emitem sinais
O Sonho não vai ser lacrado
As rádios comunitárias
Não precisão de concessão
Jamais causaram interferências
Muito menos intervenção
Esta mentira tem origem
Na Rede Globo de televisão
O sol brilha para todos
Mas o ar foi privatizado
Grandes redes tomaram conta
De um direito sagrado
A comunicação está restrita
Ao rei e ao seu reinado
Está na hora de por um fim
Nesta repressão colossal
Nosso espaço vamos garantir
Não estamos fazendo nenhum mal
Pirataria são eles quem fazem
Em concessão eleitoral
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Nas Ondas Comunitárias
As contradições da lei
Antes de falar da Lei 9.612/98, que regulamenta o
serviço de radiodifusão comunitária no Brasil, é preciso voltar um
pouco no tempo para entender que a legalização das rádios
comunitárias é apenas uma etapa de um movimento bem maior, que
luta pela democratização dos meios de comunicação, principalmente
das rádios e tv´s, que sempre estiveram a serviço de interesses políticos
ou econômicos. Por isso, é preciso conhecer um pouco a história
dessa luta.
Tudo começou no início dos anos 80, quando se discutia
a redemocratização do país com a campanha das Diretas Já. As
tentativas de manipulação das eleições de 1982 pela Rede Globo
serviram de estímulo para que um grupo de jornalistas, professores e
estudantes de comunicação, apoiado por várias entidades, organizasse
a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação
(FNPDC).
A Frente cresceu, mas em 1985, com a derrota da
emenda das eleições diretas para presidente da República, o
movimento desmobilizou-se. Mesmo assim, ainda serviu como
referência para a mobilização e atuação, durante a Assembléia
35
Nas Ondas Comunitárias
Nacional Constituinte, de um grupo de entidades coordenado pela
Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ). Então, surge em 1987,
em São Paulo, o Movimento Nacional pela Democratização da
Comunicação, dando valiosas contribuições para a Constituinte, apesar
da maioria das propostas do movimento ter sido derrotada no
Congresso. Por causa disso, o movimento se desarticula novamente e
só em 1990 retomam-se as discussões. É aí que nasce o Fórum
Nacional Pela Democratização da Comunicação, com mais de 300
entidades filiadas de todo o Brasil, e que entre as muitas ações, já
defendia a legalização das rádios livres de baixa potência,
carinhosamente conhecidas como rádios comunitárias.
Mas é só depois de muitas lutas, congressos,
negociações, manifestações, audiências públicas, seminários,
encontros, bate boca, é que o Congresso Nacional finalmente aprovou
a lei que regulamenta as rádios comunitárias no Brasil. O projeto final
aprovado pelo Senado, em dezembro de 1997, que gerou a Lei 9.612,
ficou muito longe das propostas apresentadas pelo Fórum Nacional
pela Democratização da Comunicação, através da bancada do Partido
dos Trabalhadores. Pressionados pelos grupos que detém a maioria
dos meios de comunicação do país, governo federal, deputados e
senadores criaram uma série de limitações e entraves burocráticos na
lei. Na verdade, o projeto foi aprovado conforme as recomendações
da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert),
a poderosa entidade que representa os interesses dos grandes grupos
de rádios e tv´s.
Muitos artigos da lei foram até considerados
anticonstitucionais por alguns juristas. Os mais polêmicos são os que
tratam da potência e freqüência da emissora. De acordo com a
legislação, uma rádio comunitária pode operar com apenas 25 watts
36
Nas Ondas Comunitárias
de potência e a abrangência não poderá ultrapassar um quilômetro de
raio. “Um absurdo”, na opinião do presidente da Abraço/SC, Bernardo
Becker. “Com essa limitação não dá para atingir nem um bairro”,
contesta. Outra situação contestada pelas lideranças do movimento é
que as rádios comunitárias são desprotegidas contra as rádios
comerciais. Ou seja, as rádios de alta potência podem interferir nas
comunitárias, mas se as comunitárias interferirem nas comerciais,
serão punidas.
Depois de muita pressão do Movimento em Defesa da
Rádios Comunitárias, o Ministério das Comunicações modificou
algumas coisas. Uma delas é a que trata da freqüência. Inicialmente
a lei estabelecia freqüência única de 88.7 Mhz. Mas, a partir do
Decreto 2.615, que normatiza o serviço, foram incluídas também as
freqüências 104.9 e 105.9. Isso vai permitir que uma rádio comunitária
não interfira na outra.
Mas o que mais tem causado polêmica mesmo é a
demora na liberação das concessões. Mais de 20 mil entidades, em
todo o Brasil, já encaminharam ao Ministério das Comunicações os
requerimentos pedindo outorga. Dessas, apenas 50 ganharam as
concessões, embora os processos estejam parados na Câmara dos
Deputados para aprovação. Depois ainda seguirão para o Senado
Federal, que também precisa apreciar. O Ministério das Comunicações
alega que a demora na liberação se dá porque não dispõe de pessoal
suficiente para atender a tantos pedidos. Em Santa Catarina, por
exemplo, até desativou a Delegacia Regional por falta de funcionários.
Atualmente existe apenas um posto avançado em Florianópolis, com
função quase que exclusiva de reprimir as rádios comunitárias que
estão no ar. Os pedidos de outorga são apenas protocolados em
Florianópolis e depois encaminhados à Delegacia Regional do Paraná,
37
Nas Ondas Comunitárias
em Curitiba.
Mas o atraso na liberação das concessões não é por falta
de funcionários, como alega o Ministério. Na verdade, o que existe é
uma forte pressão por parte das emissoras comerciais para que o
processo de concessão de outorga às rádios comunitárias seja o mais
burocrático e demorado possível. Os exemplos de rádios
verdadeiramente comunitárias mostram que em pouco tempo no ar
essas emissoras tiram audiência das comerciais, além de despertar a
cidadania nas pessoas. Outro fator é o da influência política. Grande
parte dos deputados federais e senadores são proprietários de rádios.
Além da concorrência pela audiência, com ouvintes mais conscientes,
que sabem reivindicar seus direitos, correm o risco de perder espaço
político, já que usam suas emissoras apenas para fins eleitoreiros.
Por isso, haverá uma seleção muito criteriosa na liberação das
primeiras concessões. Esta é a avaliação de Bernardo Becker.
Entre as 50 concessões que já estão no Congresso
Nacional, Santa Catarina será contemplada com três. Uma em Itapoá,
outra em São Francisco do Sul, no norte do Estado e uma terceira em
Correia Pinto, perto de Lages. As de Itapoá e São Francisco, de acordo
com Bernardo, pertencem a políticos ligados ao PPB,
coincidentemente um dos principais partidos que dá sustentação ao
governo federal. Já a de Correia Pinto é coordenada pela Igreja
Católica. “Isso mostra que a lei não surgiu para democratizar a
comunicação, como defendemos, mas para atender interesses políticos
e econômicos, a exemplo do que aconteceu com as concessões das
emissoras comerciais”, lamenta Becker.
Mesmo que lei tenha surgido para acabar com as rádios
comunitárias, o presidente da Abraço/SC acredita que não há mais
como impedir o crescimento do movimento no Brasil. “Em menos
38
Nas Ondas Comunitárias
de dois anos que o serviço está legalizado, já são mais de 20 mil
pedidos de outorga encaminhados ao Ministério das Comunicações.
Isso mostra que o povo quer usar o rádio para expressar suas idéias,
fazer suas reivindicações, enfim, quer ter um meio para se comunicar,
já que não encontra espaço nos veículos tradicionais. Ninguém mais
vai segurar esse desejo”, diz.
Os passos para conseguir a concessão
1. Criação de uma associação, fundação ou cooperativa sem
fins lucrativos, específica para este fim;
2. Reunir toda a documentação (estatuto da entidade registrado,
coordenadas geométricas do local onde será instalada a rádio,
declarações de apoio de outras entidades ou pessoas físicas,
entre outros) e fazer um requerimento ao Ministério das
Comunicações pedindo a concessão.
3. Adquirir equipamentos homologados pelo Ministério das
Comunicações, entre os quais, o transmissor deverá ter
apenas 25 watts. A antena não poderá ser instalada acima de
30 metros de altura;
4. Não pode fazer link, ou seja, a antena tem que estar instalada
no mesmo local que a rádio e a abrangência terá que ser de
apenas um quilômetro de raio.
5. Aguardar pacientemente a publicação do requerimento no
Diário Oficial da União;
39
Nas Ondas Comunitárias
Os (des) mandamentos da radiodifusão comunitária no Brasil
Na avaliação da Abraço são muitos os paradoxos sobre a legislação
da radiodifusão comunitária. Estes são alguns:
1. Freqüência única - Condena as emissoras comunitárias a interferências
mútuas e exclui centenas de comunidades dos benefícios da lei;
2. Área de cobertura de um quilômetro de raio - reduz o conceito de
comunidade a um aspecto físico. Cria uma rádio comunitária nanica e
inexpressiva, incapaz de cobrir a real base territorial da maioria das
comunidades, excluindo-as do serviço;
3. Proibição de veicular publicidade - Inviabiliza a auto-sustentação
financeira das emissoras;
4. Proibição de operar em rede - impede que as micro-comunidades,
artificialmente limitadas a um quilômetro de raio, possam se articular
e se comunicar como uma comunidade real em torno de suas
necessidades, trocando informações e debatendo temas de interesse
comum;
5. Exigência de que os diretores da entidade interessada em executar o
serviço residam dentro da área de um quilômetro de raio - Viola o
direito à livre associação, interfere nos estatutos e impede que entidades
de maior representatividade popular executem a radiodifusão
comunitária;
6. Comunicados do Ministério das Comunicações em desacordo com as
normas do serviço - Trazem confusão e prejuízo para entidades
legitimamente interessadas em participar do processo de habilitação;
7. Exigência descabida e extemporânea de documentação - Obriga as
entidades candidatas a mudarem precipitada e muitas vezes inutilmente
seus estatutos;
8. Distorção do critério de representatividade originalmente estabelecido
na lei - Favorece manobras políticas na definição das autorização;
9. Não proteção contra interferências das rádios comerciais - Dá às
emissoras comerciais o direito de interferirem nas freqüências das
emissoras comunitárias;
10. Morte anunciada - As rádios comunitárias serão autorizadas a funcionar
pelo prazo máximo de seis anos.
40
Nas Ondas Comunitárias
O movimento em Santa Catarina
Florianópolis, 14 e 15 de março de 1998. Mais de 250
pessoas de vários municípios catarinenses participam ativamente das
discussões, debates e palestras do Congresso de Fundação da
Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária de Santa Catarina
(Abraço/SC). Chapecó, 14 e 15 de agosto de 1999. Um ano e cinco
meses depois, pouco mais de 20 lideranças de todo o Estado estiveram
presentes no I Encontro Estadual de Rádios Comunitárias, uma
assembléia, que entre outras coisas foi convocada para discutir os
rumos do Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias em Santa
Catarina depois que o serviço de radiodifusão comunitária foi
legalizado.
“Será o frio abaixo de zero, que fez cair até neve nesses
dois dias de Encontro, que impediu os companheiros de participarem
deste que deveria ser o principal encontro sobre rádio comunitária do
Estado? Onde está a militância?”, questionavam os dirigentes da
Abraço/SC no decorrer do encontro.
Cada “corajoso” que esteve em Chapecó naqueles que,
certamente, foram os dias mais frios de 1999, tentava encontrar uma
41
Nas Ondas Comunitárias
explicação para o número reduzido de participantes. Mas o baixo
quorum da assembléia nada tinha a ver com o frio. Apenas mostrou
às lideranças do movimento uma nova realidade, difícil de
compreender, mas que já era mais ou menos previsível, segundo
análise do deputado estadual Pedro Uczai (PT), palestrante do
Encontro e um dos maiores defensores das rádios comunitárias em
Santa Catarina.
Para Uczai, quando aconteceu o primeiro congresso em
1998, existiam pelo menos 70 rádios comunitárias em todo o Estado
que estavam ou estiveram no ar durante algum tempo. Aquele era o
melhor momento para organização do movimento. Todos estavam
empolgados e com vontade de comunicar através das ondas de uma
rádio comunitária.
A própria criação da Abraço/SC representava um grande
avanço. Surgia finalmente a entidade que daria apoio e assistência à
abertura de novas emissoras, além da organização do movimento. O
que ninguém imaginava é que a tão sonhada lei, fruto de alguns anos
de lutas, iria esvaziar o movimento e criar um clima de acomodação
entre as pessoas que defendem ou fazem da rádio comunitária um
veículo de comunicação alternativo e democrático. E foi exatamente
o que aconteceu. Com o surgimento da lei, cada associação tratou de
encaminhar individualmente ao Ministério das Comunicações o seu
pedido de outorga, abandonando assim a luta coletiva defendida e
coordenada pela Abraço/SC.
“Nesse aspecto, o Movimento das Rádios Comunitárias
é diferente do MST, onde as pessoas, mesmo depois que ganham a
terra continuam militando ativamente no movimento” compara Pedro
Uczai. Para ele, na medida em que as rádios livres se enquadram na
lei, passam a ser comunitárias, elas vão perdendo a combatividade.
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Nas Ondas Comunitárias
“A lei surgiu para acabar com o movimento”, completa. “Mas aí está
um paradoxo. A lei foi uma iniciativa do movimento, foi defendida
pelo movimento. E agora, o que vamos fazer?”, questiona Sérgio
Moreira, secretário de Finanças da Abraço/SC.
Luiz Carlos Vergara, vice-presidente da Abraço
Nacional, também presente no encontro, ressaltou que a desarticulação
do movimento é enfrentada em todos os estados brasileiros. “Por isso
é importante discutirmos novos rumos e estratégias para o movimento.
O que queremos afinal? Rádios combativas, democráticas, livres, com
liberdade de expressão, que questionem o monopólio público e
privado, ou emissoras legalizadas, mas cheias de limitações?”
Segundo Vergara, a maioria das rádios livres que estavam no ar no
Rio Grande do Sul, agora estão fechadas, esperando pela concessão.
“Isso mostra que o governo federal atingiu o seu objetivo com a
criação da lei: desarticular o movimento”, afirma.
O deputado petista propôs que o movimento esqueça
um pouco a lei e coloque no ar o maior número de rádios possíveis,
além de não permitir que elas sejam fechadas . “A lei pode ser um
instrumento de democratização dos meios de comunicação, mas pode
também representar o fim do movimento das rádios comunitárias e,
conseqüentemente, o fim da Abraço/SC”, alerta. Para ele, a lei tem
que ser vista na contradição. Tem que ser construída pela sociedade.
E quando uma lei supera, ou não está atendendo as necessidades da
população, tem que ser renovada. Outra recomendação de Uczai é
que uma rádio comunitária não pode ser neutra. Ou é de esquerda ou
de direita. Tem que assumir uma posição.
Os poucos participantes da assembléia compreenderam,
então, que não dá para ficar esperando a concessão. “As rádios terão
que ir para o ar imediatamente”, defendeu Zélia Musa, a secretária de
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Nas Ondas Comunitárias
Organização da Abraço/SC. A assembléia também definiu que em 14
de outubro seria o dia do deslacramento. Nessa data, todas as rádios
que foram lacradas entrariam no ar novamente. Segundo levantamento
da Abraço/SC, mais de 40 emissoras estão no ar atualmente no Estado.
O número reduzido de rádios no ar reflete diretamente
na organização do movimento. Se a rádio não está no ar, não tem
arrecadação e conseqüentemente não tem como pagar a contribuição
à Abraço/SC, única fonte de renda da entidade. Aliás, as dificuldades
financeiras da Abraço são enormes. A falta de dinheiro impede que a
direção possa dar a assistência necessária às rádios. Para arrecadar
algum recurso, recentemente foi alugado um aparelho de tirar
coordenadas geométricas do local da rádio, um dos primeiros
requisitos para pedir a concessão. Com isso sobrevivem, cobrando
R$ 200 pelo serviço.
Nenhum dos dirigentes são remunerados. Bernardo, o
único com dedicação exclusiva à Abraço, recebe uma ajuda de custos
de R$ 600 da deputada federal Luci Choinaki (PT). Os demais têm
suas ocupações. Eraldo é assessor do Sindicato dos Servidores
Públicos de São João do Sul; Sérgio Moreira é assessor de um vereador
petista em Canoinhas; Zélia trabalha na Prefeitura de Chapecó e Rúbia
trabalha no Sindicato dos Bancários de Blumenau. Todos os diretores
são filiados ou simpatizantes do Partido dos Trabalhadores, o que
cria uma aproximação muito grande e até um certo atrelamento do
movimento ao partido.
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Nas Ondas Comunitárias
Oeste sai na frente
Roupas simples, sotaque característico de agricultor da
região oeste, discurso de militante de movimentos populares,
engajamento, espírito de luta, vontade de transformar. É mais ou
menos este o perfil da maioria das pessoas que luta e defende as rádios
comunitárias em Santa Catarina. Dos quase 200 requerimentos
encaminhados ao Ministério das Comunicações solicitando concessão,
no Estado, 70% são de municípios do oeste. Praticamente todas as
cidades dessa região essencialmente agrícola, que enfrenta inúmeros
problemas sociais, como o êxodo rural, muitas vezes conseqüência
da falta de atenção dos governantes, já colocaram no ar ou estão
formando sua rádio comunitária.
Neste aspecto, o Vale do Itajaí e Norte catarinense,
consideradas a regiões economicamente mais desenvolvidas de Santa
Catarina, ficam para trás. Blumenau, por exemplo, apesar de ser
proporcionalmente o município mais bem representado na diretoria
da Abraço/SC, com os cargos de secretária de comunicação, diretor
regional e um conselheiro fiscal, sequer começou a organizar-se para
construir uma rádio comunitária. Uma situação que me causou certo
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Nas Ondas Comunitárias
constrangimento quando fui convidado para falar no Encontro de
Rádios Comunitárias, em Chapecó, na condição de conselheiro fiscal
da Abraço/SC e único representante do Vale do Itajaí. “Então
Adenilson, como anda o movimento em Blumenau e região?”,
questionaram as lideranças da Abraço/SC. “Infelizmente não anda”,
disse.
Enquanto isso, municípios “minúsculos” como Calmon,
Pinhalzinho, Cunha Porã, Ipumirim, Cocal do Sul, São João do Oeste,
entre outros, já colocaram no ar ou estão próximos de ter suas rádios
comunitárias. Apesar de toda a repressão da Anatel, em Cocal do Sul
e São João do Oeste, na ocasião do encontro, as rádios estavam no ar
normalmente e, segundo as lideranças presentes, decididas a enfrentar
possíveis ações da Polícia Federal e da Anatel. Isso tudo me fez
entender porque lideranças políticas como Luci Choinaki, José Fritsch,
Neodi Saretta, Idelvino Furlanetto, Pedro Uczai e tantos outros,
oriundos dos movimentos populares são da região Oeste.
A repressão
Ipumirim, 9 de outubro de 1998, sexta-feira. Passam
alguns minutos das 9h e Izairo Pellin apresenta, como de costume, o
Programa da Manhã, com músicas, solicitações e pedidos da
comunidade. Tudo corre bem até que dois agentes da Polícia Federal,
fortemente armados, e um fiscal da Anatel entram, de surpresa, na
Rádio Comunitária Mirim com um mandado de busca e apreensão
expedido por um juiz federal da vara de Chapecó. Um dos policiais
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Nas Ondas Comunitárias
pede para suspender imediatamente a transmissão. Ainda sem entender
o que está acontecendo, Izairo atende a ordem e desliga o transmissor.
Afinal trata-se de um policial federal.
“Recebemos uma denúncia e estamos aqui para lacrar
a emissora. Como o senhor deve saber, este tipo de atividade é ilegal”,
explica o fiscal da Anatel. Só então Izairo se dá conta que naquele
instante, o único meio de comunicação de Ipumirim estava sendo
extinto. Terminava ali cinco meses de trabalho comunitário, que
conquistou audiência e simpatia de toda a comunidade. “Mas era um
risco corríamos. Sabíamos que a qualquer momento isso poderia
acontecer”, lamenta Izairo.
Ele conta que não teve nem condições de argumentar
com os fiscais e imediatamente o funcionário da Anatel começou a
desmontar os equipamentos. Retirou os cabos do transmissor, colocou
o aparelho em um saco plástico e lacrou com fita adesiva. Os demais
equipamentos, como tape deck, aparelho de cd, mesa de som e até
mesmo fitas k7, discos e cd’s foram colocados em outro saco e
igualmente lacrados. O transmissor, além de ser lacrado é também
apreendido. Os demais aparelhos ficaram apenas lacrados. Terminado
o serviço, um dos agentes federais pede para Izairo assinar um termo
de responsabilidade e informa que ele vai responder um processo
federal.
Em 29 de setembro de 1997, agentes federais armados
com fuzis e metralhadoras, portavam um mandado de busca e
apreensão de equipamentos e queriam lacrar a Rádio Comunitária
102.9 FM, instalada no Diretório Central dos Estudantes da UFSC.
A apreensão dos equipamentos da rádio gerou manifestação de repúdio
e protesto da comunidade. Foi uma arbitrariedade, já que a Anatel
pode apenas lacrar os equipamentos e não apreender como fez. Até
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Nas Ondas Comunitárias
hoje a 102.9 FM não voltou a funcionar.
Estas situações já foram enfrentas por pelo menos 80
rádios comunitárias em Santa Catarina, segundo informações do posto
avançado do Ministério das Comunicações, em Florianópolis. O
período que mais se fechou rádios comunitárias no estado foi de
julho a dezembro de 1998. Foram 35 emissoras lacradas. Em muitos
casos, utiliza-se uma verdadeira operação de guerra. Policiais federais
chegam armados com metralhadoras e revólveres, algemas, como se
estivessem capturando criminosos perigosos. Em Santa Catarina não
há registro de nenhum caso de agressão física durante esse tipo de
ação. Nem mesmo ocorreram prisões de pessoas.
O problema é que nada do que acontece, as
arbitrariedades cometidas, ou mesmo o porquê as rádios são fechadas,
é divulgado à sociedade. A única versão que chega aos ouvintes das
emissoras comerciais é que rádios piratas, clandestinas, ilegais, não
podem funcionar. Jamais algum veículo de comunicação, mesmo os
jornais, falam, por exemplo, do trabalho social que essas rádios
desenvolvem.
Mas por que tanta oposição às rádios comunitárias por
parte das emissoras comerciais? O jornalista Nivaldo Manzano, em
matéria publicada na revista Caros Amigos, em maio de 1997,
descobriu que não é dinheiro que influencia essa contrariedade das
rádios comerciais. Ou seja, não é o medo de perder anunciantes para
as comunitárias, já que estas não visam lucro, que faz os empresários
da comunicação temer esse novo serviço de radiodifusão. Na verdade,
eles não querem é perder o controle da radiodifusão no Brasil. “Algo
como criar um monopólio privado”, explica.
Do ponto de vista político as rádios comunitárias
também são vistas como um grande risco às oligarquias. Das cinco
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Nas Ondas Comunitárias
mil emissoras comerciais em operação no Brasil, pelo menos três mil
pertencem a políticos. Logo, as rádios comunitárias podem acabar
com o domínio eleitoral de muitos “caciques” políticos, já que pode
despertar a cidadania na população. Por isso se explica o temor de
políticos que estão acostumados a usar meios ilícitos para vencer
uma eleição, por exemplo. “Uma rádio comunitária de verdade mexe
com o poder local. E a maioria dos municípios brasileiros são
controlados por oligarquias. Com uma rádio comunitária se inverte a
posição. De ouvinte, o cidadão passa a ser falante e os falantes passam
a ser ouvintes”.
Rádio comunitária
também gera emprego
Em Santa Catarina, as seis escolas de comunicação
lançam todos os anos no mercado de trabalho, mais de cem novos
jornalistas. Para onde vai toda essa gente? Tem espaço para todo
mundo nos veículos da chamada grande imprensa? Muitos certamente
terão que se sujeitar a subempregos ou atuar em outras áreas para
viver, ou sobreviver. Além da importância para a democratização da
comunicação, as rádios comunitárias surgem também como mais
uma opção de trabalho para quem está saindo da universidade.
No Brasil, segundo estimativa da Abraço Nacional, em
dez anos, as rádios comunitárias deverão gerar 200 mil novos
empregos diretos. Cada emissora emprega pelo menos cinco
trabalhadores. Entre os quais jornalistas, operadores, técnicos, além
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Nas Ondas Comunitárias
de pessoal administrativo. Um detalhe importante é que a Abraço
orienta as rádios para que contratem os profissionais dentro da lei.
“Deve diferenciar o colaborador, que não recebe salário, do
funcionário, trabalhador, de carteira assinada”, observa o ex-presidente
da entidade Sebastião dos Santos. As rádios comunitárias também
garantirão empregos indiretos, através da indústria de equipamentos.
Mas para isso, o Ministério das Comunicações precisa fazer valer a
Lei 9.612/98, autorizando o funcionamento desse tipo de emissora.
Para atuar numa rádio comunitária, o jornalista precisa
ter claro o papel que ela representa. Também precisa saber o que é e
para que serve o jornalismo comunitário. De acordo com a “jurássica”
jornalista e educadora Elaine Tavares, minha querida orientadora nessa
reportagem, existem apenas dois tipos de jornalismo: o que serve a
uma minoria e o que serve a maioria da população. “Quando falamos
em servir a maioria estamos falando em cons-piração (respirar juntos)
com as comunidades oprimidas, estar junto com a população nos seus
mais secretos sonhos de amor. Esse é o jornalismo comunitário, aquele
que conspira, que caminha junto, que se torna instrumento de
transcendência, que dá visibilidade ao oprimido não como o
‘marginal’, mas como o pobre, real e capaz de superar sua condição”,
diz.
Ela continua: “o ocupar-se dos excluídos não é ter pena
deles ou olhá-los em condolência, mas devolver-lhes, no mundo, o
lugar que lhes é próprio e do qual foram expulsos. Isso faz o jornalismo
produzido nas comunidades. Caminha com eles buscando as causas
de seus desânimos e sofrimentos, recordando-lhes sempre de sua
dignidade inviolável. A comunicação comunitária tem, na
comunidade, o papel da arte. Deve revelar aos oprimidos a sua
realidade. O jornalismo comunitário deve resgatar o homem comum
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Nas Ondas Comunitárias
na sua luta diária pela sobrevivência”.
“A vida pula nas comunidades de periferia, os excluídos
vivem em constante movimento se organizando para superar a
condição de excluído e é esse movimento que o jornalista deve
registrar. É claro que jornalismo comunitário também pode ser feito
nos grandes meios. O que está em jogo não é o local onde praticamos,
mas a forma de olhar o mundo. Já o trabalho na comunidade envolve
muito mais coisas que um simples ‘fazer jornal’. Nas comunidades
mais empobrecidas o número de analfabetos é assustador e a
comunicação deve criar espaços alternativos”.
Uma rádio comunitária pode ser um excelente meio para
se fazer jornalismo comunitário numa comunidade assim. Portanto,
se o jornalista tiver este espírito, poderá desenvolver um belo trabalho
com uma dessas “emissorazinhas”.
O movimento no mundo
Formas autoritárias fizeram surgir nos anos 70, na
Europa, as rádios livres democráticas. Na Itália, com a crise do
monopólio estatal, em 1975 as rádios começaram a surgir, desprezando
o monopólio e a legislação. Mas eram rádios de interesses comerciais.
Naquela época já existia a repressão do Estado em relação às rádios
livres. Mais tarde apareceram as rádios comunitárias burocráticas, do
Partido Comunista Italiano. Em 1978, das 2.275 rádios locais, 10%
apenas eram alternativas.
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Nas Ondas Comunitárias
Na França, o movimento das rádios livres pode ser
dividido em antes de depois de 1981, quando o Partido Socialista
assumiu o poder com Mitterrand. Logo depois, em 1983, Mitterrand
tratou de legalizar essas rádios. Mas para legalizar precisava ter
representatividade político-partidária, aí as alternativas ficaram de fora.
Já na Itália o principal critério era a competência técnica. Com isso
somente as rádios melhores equipadas e conseqüentemente as que
detinham maior capital é que ganhavam as concessões. Ou seja, as
alternativas novamente ficavam de fora. Mas o mais importante é que
com o surgimento das rádios livres na Europa, nos anos 70, as pessoas
passam da condição de ouvintes para a de agentes ativos de seus
discursos e idéias. Mas lá a legalização acabou com o movimento.
Revolucionárias
Em Cuba, a Rádio Rebelde teve um importante papel
no sucesso da Revolução Cubana, em fins dos anos 50. Ajudou a
transmitir os ideais de justiça e pedia o fim do regime ditatorial de
Fulgêncio Batista. Em El Salvador o rádio também teve importante
papel na redemocratização do país. Foi o veículo usado pela oposição
para divulgar as idéias e opiniões. Eram as chamadas rádioguerrilheiras. Tinham apoio da população, mas a repressão por parte
do governo era tão forte que contava até com ajuda dos Estados
Unidos para combatê-las.
Che Guevara dizia que rádios livres chamam a atenção
e estimulam o povo a pensar sobre a opressão e a lutar por liberdade.
“Uma rádio estimula o povo a lutar pelos seus ideais. A rádio explica,
ensina, excita, determina, entre amigos e inimigos, as futuras posições.
Mas deve obedecer ao princípio fundamental que é a verdade. Uma
pequena verdade, mesmo quando tem pouco efeito é preferível a uma
grande mentira vestida de gala”, dizia
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Nas Ondas Comunitárias
Como montar uma rádio livre
“Rádio livre nada mais é do que tecnologia de fundo de
quintal capaz de reverter o processo de desinformação e centralismo
cultural. A Constituição Federal, Artigo V, Inciso IX , fala de direito
de expressão. Rádio livre é a voz do povo para o povo, onde vale a
idéia e a cultura de uma população calada, submissa que vive de
mandos e desmandos dos poderosos. Todos têm direito a se comunicar
no invento do padre Landell de Moura, patenteado por Marconi em
fins do século XIX. Por isso, vou ensinar como montar uma rádio
livre”. Chico Lobo
1.
Criar uma associação cultural e comunitária, legalmente constituída e
sem fins lucrativos ;
2. Instalar em local viável técnica e topograficamente;
3. Adquirir a aparelhagem suficiente: dois CD’s players, um ou dois toca
fitas, um toca discos; uma mesa de som com no mínimo seis canais; dois
ou três microfones, um sintonizador, um transmissor, uma antena e cabo
coaxial.
4. A instalação deve ser feita por um técnico;
5. Cada membro da associação pode colaborar com CD’s, discos e fitas;
6. Definir as funções e responsabilidades de cada componente;
7. Formar um conselho editorial;
8. A participação da população na programação, seja gravada ou ao vivo é
fundamental;
9. Liberdade de expressão acima de tudo
10.Criatividade na programação
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Nas Ondas Comunitárias
Rádio Comunitária Dona Edith
Criar um canal de comunicação alternativo e aberto aos
moradores do Loteamento Dona Edith, uma das comunidades mais
carentes de Blumenau, foi a proposta do projeto experimental de
Regina Hostin, formada em jornalismo na Univali em 1996. Ela
elaborou um programa piloto com notícias do Loteamento,
reivindicações dos moradores e músicas. Tudo feito com base em
pesquisa realizada na comunidade, que definiu a linha editorial, o
nome do programa, as notícias que seriam veiculadas, tipos de músicas
e outros detalhes.
A idéia era veicular este programa por meio de um
sistema de alto-falantes que seria instalado em cinco postes localizados
em pontos estratégicos. O sistema de alto-falantes é uma forma mais
econômica e simples de se fazer uma rádio comunitária. Na época,
com R$ 2,5 mil seria possível comprar toda a aparelhagem necessária,
como amplificador, tape-deck, toca discos, microfone, cornetas, caixa
de som e outros acessórios. Este valor dividido entre as 240 famílias
do Dona Edith, cada uma pagaria R$ 10,41.
O projeto não foi colocado em prática em razão de outros
compromissos assumidos por Regina. Ela também achou que o sistema
de alto-falantes seria meio anti-democrático, já que todos os moradores
teriam que ouvir a rádio. Em 1998, quando um grupo de pessoas
discutia a criação de uma rádio comunitária em Blumenau e decidia
participar do Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias em
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Nas Ondas Comunitárias
Santa Catarina, o então presidente da Associação de Moradores do
Loteamento Dona Edith, José França, demonstrou interesse pela idéia.
Porém, não deu continuidade.
No projeto, Regina explica como fazer para montar o
conselho popular e criar uma associação para administrar a emissora.
Como a rádio seria por alto-falantes, segundo ela, bastava pedir
autorização à prefeitura e à Celesc para instalar as cornetas nos postes.
Mas se fosse por transmissor, precisaria pedir uma concessão ao antigo
Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), hoje Anatel
e tudo estaria resolvido. Só que as coisas não eram tão simples assim.
Na época, estavam apenas começando as primeiras discussões para
criação da lei que regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária.
E qualquer tentativa ou experiência de rádio comunitária era
expressamente proibida e os responsáveis sujeitos a penalidades, ou
arbitrariedades da Polícia Federal e do Dentel.
O primeiro projeto de lei foi apresentado no Congresso
Nacional em 1996, pelo Fórum Nacional pela Democratização das
Comunicações. Entre outras coisas estabelecia potência de pelo menos
250 watts para as rádios comunitárias. O que foi aprovado e
transformado na Lei 9.612 tem apenas 10% desta potência. Ou seja,
as rádios comunitárias só podem operar com 25 watts e ainda
abrangência de um quilômetro de raio.
Como se tratava de uma prática editorial em rádio, ou
um programa piloto, em seu projeto Regina Hostin não citou nenhuma
experiência de rádio comunitária no Estado. Apesar que já existiam
muitas no ar. Uma delas era a própria Rádio Terra Livre FM, que na
época começava suas atividades em Abelardo Luz. Em São Bento do
Sul também existia a Rádio Liberdade, lacrada pela Polícia Federal
em fins de 1996.
55
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Uma luta que não pode morrer
A grande discussão em torno de rádio comunitária
atualmente é se as emissoras livres que estão no ar devem ou não se
adequar à lei. O artigo 5º, inciso IX da Constituição Federal diz que
“é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença”. Com base
nisso, muitas pessoas entendem que não tem necessidade de
regulamentar o serviço de radiodifusão de baixa potência. Até porque,
com as inúmeras limitações impostas pela lei, as rádios comunitárias
serão menos combativas e, com isso, deixarão de cumprir seus
objetivos.
Mas como manter uma rádio comunitária livre no ar,
se a fiscalização dos órgãos oficiais e, principalmente, a pressão
exercida pelas rádios comerciais contra esse tipo de serviço é cada
dia maior? As experiências mostram que rádio comunitária não é nada
do que dizem os donos de grandes grupos de comunicação em
campanhas publicitárias contra essas “emissorazinhas”. A saída, então,
será a resistência, a mobilização da população em defesa do direito
de falar nas ondas do rádio. Isso é o que defende o Movimento em
Defesa das Rádios Comunitárias. Um movimento formado por
agricultores, lideranças comunitárias, mulheres, jovens, operários,
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sindicalistas, desempregados, trabalhadores, enfim, pessoas que não
encontram espaço nos veículos da grande imprensa para fazer suas
reivindicações, e decidiram usar o veículo de comunicação inventado
pelo padre Landell de Moura, no século XIX, para dizer o que pensam,
o que querem e o que fazem.
Não são se trata de um movimento corporativista que
defende apenas a criação de rádios comunitárias em todos os cantos
do País. Ele surgiu, principalmente, para envolver a população em
geral numa discussão que merece a atenção de todos: a democratização
dos meios de comunicação. O movimento luta, sobretudo, para
construir uma sociedade com mais justiça social e verdadeiramente
democrática.
Nesta reportagem procurei mostrar um pouco dessa
luta. Talvez não da forma como gostaria. A idéia era conhecer outras
experiências para contar ainda mais histórias. Mas, acredito que o
leitor terá ao menos uma noção do que significa essa luta que não
pertence apenas aos que estão diretamente ligados à ela. É uma luta
que a sociedade não pode, não deve e não vai deixar morrer.
Mais do que contar histórias e mostrar o dia-a-dia de duas
importantes rádios comunitárias, procurei me envolver ainda mais
no movimento e compreender o que ele representa para a construção
da sociedade que desejamos. Procurei, principalmente, deixar de lado
a imparcialidade e seguir o que recomenda Ricardo Kotscho:
“jornalista não deve ter medo de tomar posição”.
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