Nas Ondas Comunitárias O Movimento das Rádios Comunitárias em Santa Catarina Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo da UNIVALI Professora Orientadora: Elaine Tavares Novembro/99 Autor Adenilson Teles Diagramação Joni César Tomazoni Capa Daniele Cristina Motta Fotos Eraldo Schnaider “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Art. 5º/IX - Constituição Federal 2 Nas Ondas Comunitárias Índice A “reforma agrária” também no ar.............................04 Uma bocuda no ar.....................................................19 Rádio deve ser comunitária........................................29 Um abraço no Brasil..................................................33 As contradições da lei................................................35 Os passos para conseguir a concessão.......................39 O movimento em Santa Catarina................................41 Oeste sai na frente.....................................................45 A repressão..............................................................46 Rádio comunitária também gera emprego..................49 O movimento no mundo...........................................51 Como montar uma rádio livre...................................53 Rádio Comunitária Dona Edith.................................54 Uma luta que não pode morrer.................................56 3 Nas Ondas Comunitárias A “reforma agrária” também no ar Num barraco de madeira coberto com eternit, uma caixa de som furada toca música sertaneja. Cartazes com fotos de Che Guevara, trabalhadores sem-terra e até de guerrilheiros colombianos decoram as paredes do pequeno casebre que, à primeira vista, parece estar abandonado. Sobre uma mesa improvisada, um monte de papéis manuscritos estão socados em pequenas caixas de papelão. A música parece tocar em uma rádio qualquer, como também pode ser um cd, fita k7 ou até um disco de vinil, já que muitos estão pendurados pelas paredes. Quase escondida atrás de uma divisória de vidro, uma menina de 13 ou 14 anos controla uma aparelhagem de som. Ao perceber a presença de visitantes, ela baixa o volume do som e pergunta se são os estudantes que estão sendo esperados. Termina a música e a garota anuncia no microfone que a Rádio Comunitária Terra Livre FM acabara de receber a visita de dois estudantes. “Daqui a pouco eles vão conversar com a gente e vamos saber o que vieram fazer por aqui”, diz a jovem locutora, antes de preparar mais duas músicas que tocam enquanto ela chama pelo “companheiro” Márcio, que joga 4 Nas Ondas Comunitárias futebol com amigos no campinho de várzea próximo dali. Se não fossem os equipamentos, os fios e a antena de quase 30 metros de altura, jamais alguém poderia imaginar que naquela casinha simples, rústica, mas aconchegante, funciona a rádio comunitária do Movimento dos Sem-Terra, perdida no meio do Assentamento 25 de Maio, em Abelardo Luz, Oeste catarinense. Isso mostra que uma rádio comunitária não precisa de equipamentos modernos, estúdios sofisticados ou outras frescuras mais. Basta apenas organização, participação da comunidade e vontade para comunicar. Também não necessita de profissionais formados ou especialistas. Pode ser feita pela comunidade e para a comunidade. E a Rádio Terra Livre é assim. A participação da comunidade é visível. Os papéis manuscritos que ficam sobre a mesa da recepção, são centenas de cartinhas e recados que os ouvintes mandam para os dez programas diários da emissora. A menina que controla a aparelhagem de som é Silvia Martins, 16 anos, mulher (ou companheira, como ela prefere) de Márcio José dos Santos, 20 anos, um dos coordenadores da Rádio Comunitária Terra Livre 99.9 FM. Parada Sertaneja é o nome do programa que a simpática locutora apresenta no fim de tarde. Faltam alguns minutos para às cinco horas da tarde e sol já vai se pondo, dando um espetáculo digno de uma bela foto. E Eraldo Schnaider, o fotógrafo que acompanha a viagem a Abelardo Luz, e que Silvia achou que fosse um segundo estudante, não perde tempo. Enquanto isso Márcio é aguardado para começar o programa Querência Livre, com músicas e versos gaúchos, das 17h às 18h. Esse programa é apresentado normalmente por Vanderlei Baumgratz, um jovem militante do MST que está começando no rádio. Mas, nesse dia, Vanderlei teve outro compromisso e passou a bola 5 Nas Ondas Comunitárias para Márcio. A conversa, ou entrevista que Silvia anunciou ao final de seu programa, faz a abertura do Querência Livre. Mesmo sem muita intimidade com microfones, conversamos quase meia hora sobre rádio comunitária, reforma agrária, jornalismo, fotografia, universidade, movimento estudantil, futebol e outros assuntos. Tivemos até que falar com sotaque de gaúcho, já que o estilo do programa era assim. Nos intervalos do bate papo, que não são comerciais, mas músicas, não falta o tradicional chimarrão. Falar em uma rádio comunitária, poder participar e acompanhar sua programação é uma experiência interessante, que até emociona. No estúdio da Terra Livre, a emoção de falar numa rádio comunitária Márcio não é profissional em rádio, mas é muito bom de papo. Militante do MST desde os 14, faz menos de um ano que trabalha na Rádio Terra Livre. É filho de um funcionário público municipal de Abelardo Luz, mas ingressou no movimento por incentivo de um tio, um dos primeiros assentados do município. Aos 16 anos foi estudar num colégio do MST em Veranópolis-RS. Formou-se em técnico em agropecuária, mas nunca exerceu a profissão. Conta que o gosto pelo rádio surgiu por acaso, ainda em Veranópolis, com algumas oficinas que fez no colégio. Depois que terminou os estudos no Sul, fez um curso em 6 Nas Ondas Comunitárias São Paulo, de 90 horas/aula, sobre técnicas de rádio e já estava preparado para comandar a programação da Rádio Terra Livre. “O curso deu noções importantes, mas aprendi mesmo na prática. Hoje, não me imagino fazendo outra coisa”, diz. Para facilitar o trabalho, desde que passou a viver com Silvia, mora em uma casinha ao lado da Rádio. É um antigo depósito da Cooperativa Agrícola de Comercialização Justino Dracieski (CooperJus), que também fica nas imediações. A CooperJus, além de comercializar a produção agrícola das 1.230 famílias assentadas em Abelardo Luz, possui ainda um supermercado onde a população faz suas compras. Também dispõe de maquinário agrícola, silos de armazenagem de grãos e fornece sementes e fertilizantes aos agricultores. É impressionante a organização do MST. Não é à toa que é considerado um dos mais importantes e bem estruturados movimentos sociais da América Latina. Em 14 anos de ocupação, com muito trabalho, união e participação de todos nas decisões, conseguiu transformar uma fazenda improdutiva no interior de Abelardo Luz em um celeiro de grãos e alimentos. São 14 assentamentos, sendo que o maior é o 25 de Maio, onde se instalaram, em 1985, os primeiros trabalhadores. Cada família possui seu lote de sete alqueires, ou aproximadamente 170 mil metros quadrados de área, com casa e outras benfeitorias. Produzem feijão, arroz, milho, soja, erva mate, leite, suíno, gado, entre outros produtos agrícolas. Por tudo isso, não dá para falar da rádio comunitária do MST sem falar um pouco do próprio movimento. Até porque o MST e o Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias têm muitas afinidades. Enquanto o primeiro luta pela reforma agrária em terras improdutivas, o segundo defende a “reforma agrária” no ar. 7 Nas Ondas Comunitárias A Rádio Comunitária Terra Livre é um importante instrumento de formação e conscientização de trabalhadores, mulheres, jovens e crianças dos assentamentos. Os programas, mesmo os musicais, não deixam de falar de luta pela terra, justiça social, cidadania, dignidade, participação popular, igualdade, democracia, solidariedade, liberdade de expressão e outros assuntos de interesse da comunidade. Programação O frio de quase zero grau não impede Márcio de acordar um pouco antes das seis da manhã, ligar o transmissor e abrir a programação da rádio com o programa Cheiro da Terra. “Bom dia ouvintes da Rádio Comunitária Terra Livre! A nossa saudação especial a você que está acordando agora. Bom dia também a você que já está preparando o seu chimarrão. São seis horas e um minuto. Estamos começando, com a graça de Deus, mais um programa Cheiro da Terra, trazendo músicas e poemas caboclos que contam histórias do nosso homem do campo. E para começar bem esta manhã fria de 5 de agosto de 1999, vamos com a primeira música: O Rei do Gado”. Depois da breve apresentação, Márcio programa mais umas três ou quatro músicas e volta para a cama. Ele garante que não costuma fazer isso sempre, mas como nesse dia o frio é intenso, decidiu dormir mais um pouco. Quando as músicas estão quase terminando, ele volta, fala a hora certa e seleciona novas. Enquanto isso, a água para o chimarrão já está no fogo. Silvia também acorda neste horário para ir à escola. Segundo Márcio, esse programa terá ainda um quadro com histórias dos primeiros anos de assentamento. Essas histórias serão contadas pelos próprios trabalhadores, mas ainda não sabe como organizar isso. 8 Nas Ondas Comunitárias O Cheiro da Terra vai até às 8h, quando começa o programa Manhã Ativa. Este é apresentado por Leandra Barizon Ricardo, também militante do movimento e que coordena a rádio junto com Márcio. O Manhã Ativa é um programa educativo e de entrevistas sobre temas específicos como saúde, higiene, educação, religião, agricultura, política entre outros. Os assuntos são abordados por algum convidado, que pode ser um técnico agrícola, um professor, o padre ou pastor, a enfermeira do posto de saúde, representantes do Incra ou lideranças comunitárias. Naquele dia, o pastor Osni Narciso, da Igreja Evangélica É nesse casebre que funciona a Rádio Comunitária Terra Livre Luz da Verdade falou sobre o fim do mundo, previsto para 11 de agosto. Era o assunto do momento e deixou muitas pessoas da região preocupadas. O pastor tranqüilizou os ouvintes dizendo que tudo não passava de invenção de fanáticos. Perguntas ou dúvidas da 9 Nas Ondas Comunitárias comunidade chegam através de cartas ou são feitas pessoalmente. Cada dia é definido o tema do programa seguinte. Depois do Manhã Ativa vem o Terra Brasil, das 10h às 12h, com músicas sertanejas, gaúchas, bandas e ainda discussões sobre assuntos do assentamento. Também é coordenado por Márcio. O único noticiário da rádio é o Jornal Terra Livre, das 12h às 13h. Apresentado por Vanderlei, o informativo divulga as notícias do movimento, enviadas pela Assessoria de Imprensa do MST, em Chapecó, e informações gerais da região e do país. São poucas as matérias produzidas pelo próprio pessoal da rádio. Reportagens locais praticamente não são feitas. Divulgam bastante recados e avisos encaminhados pelos ouvintes. A equipe precisaria de mais instruções e incentivos sobre a importância do jornalismo e da reportagem em uma rádio. E certamente o que não falta entre eles é força de vontade para aprender novas formas de fazer da rádio comunitária um veículo ainda mais atuante e informativo. Se da forma como está já cumpre um importante papel social e de formação, com a possibilidade de contar boas histórias, então, será excelente. E histórias não faltam. Uma delas poderia ser a de Maria Clarice Batti, 49 anos, que desde a histórica ocupação da fazenda, em 25 de maio de 1985, luta por uma vida mais digna para ela, o marido, os quatro filhos e, porque não dizer, para todos os trabalhadores rurais da região. Dona Maria, como é conhecida, conta que os primeiros tempos no assentamento foram difíceis. Porém, havia muita união e solidariedade entre as famílias. “Quando chegamos aqui passamos fome, frio e muita necessidade. Foi preciso muito trabalho e união de todos para conseguir vencer e construir o que temos hoje”, fala orgulhosa, enquanto lava roupa nos fundos da casa, a poucos metros da rádio. O que ela chama de vencer é ter uma casa para morar e terra 10 Nas Ondas Comunitárias para plantar, o sonho de muitos brasileiros. Sua família dedica-se à produção de leite. São 50 litros por dia, fornecidos à Cooperativa de Lacticínios Terra Viva, de São Miguel d’Oeste, um dos maiores empreendimentos do MST em Santa Catarina. Mas o que chama a atenção na simpática senhora é o espírito de luta, solidariedade e força de vontade para superar as dificuldades. Mesmo com seu pedacinho de terra já garantido, e vivendo em melhores condições do que quando chegou no assentamento, ela não deixa de participar ativamente das discussões do MST, sobre a luta pela reforma agrária e por mais dignidade aos trabalhadores rurais. Por isso, fundou junto com outras companheiras do assentamento, fundou a Associação de Mulheres Unidas Venceremos, uma entidade que desenvolve um trabalho social muito Enquanto lava roupa, Maria Clarice Batti conta sua história 11 Nas Ondas Comunitárias bonito e que até já foi premiada pela Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho. Esta associação, além de discutir assuntos diversos e prestar assistência às mulheres trabalhadoras, mantém ainda uma confecção de moletom que gera oito empregos e também ensina a costurar, bordar, fazer tricô, crochê e outras habilidades. Sobre a rádio, dona Maria reconhece que foi uma grande conquista para o assentamento e tem o apoio e audiência de todos os moradores. Segundo ela, facilita muito na comunicação entre as comunidades mais distantes e até no trabalho da Associação de Mulheres. “Todas as famílias ouvem a rádio o dia inteiro. Por isso, quando a gente precisa mandar um aviso para alguém, sabemos que vai ouvir”, diz. Ela mesma afirma que só não acorda ouvindo a rádio porque a ordenha das vacas exige que toda a sua família comece a jornada de trabalho antes das 6h da manhã, o horário que a emissora entra no ar. Mas depois, só desliga o radinho às nove da noite, quando encerra a programação. A poucos metros da casa de dona Maria, numa das casas mais simples do assentamento, mora Antonina Antunes Maciel, uma mulher de 50 anos, muito simpática. Dona Antonina é outra que não perde a programação da Rádio Comunitária. “Acho muito importante ter uma rádio aqui. Serve muito quando a gente precisa mandar um recado a algum vizinho ou até mesmo para ouvir as notícias e músicas”, declara. A principal vantagem, segundo ela, é que para mandar um aviso pela Rádio Terra Livre, não precisa pagar nada. Ao contrário da rádio comercial Rainha das Quedas, que cobra R$ 4,00 por este tipo de serviço. Antonina afirma ainda que não só apoia esta iniciativa, como também defenderia a emissora numa possível tentativa de fechamento. “Eu seria a primeira que iria para a frente da rádio protestar contra”. 12 Nas Ondas Comunitárias “Agora só ligo a Rainha das Quedas para ouvir as notícias do hospital e o jornal, ao meio-dia. Depois, só ouvimos a nossa rádio”, declara, orgulhoso, o aposentado Mariano Saraiva, 66 anos, outro defensor da emissora e que também mora nas proximidades. Ele diz que fará de tudo para que a rádio continue no ar. “Ela é muito importante para a nossa comunicação com os vizinhos”. Aliás, o rádio é praticamente o único veículo de comunicação no assentamento. A maioria das famílias não possui televisão. Melhor, não possui antena parabólica, já que televisão na região só funciona com parabólica. Ainda sobre a programação, a tarde começa com Banda e Festa, uma espécie de humorístico, com músicas de bandas, histórias engraçadas e muita alegria. É comandado por Vanderlei até às 14h. Peterson é o apresentador do Conexão Terra Livre, que toca música popular brasileira das 14h às 16h. No dia em que visitamos a Rádio, o jovem radialista participava da Marcha dos Sem-Terra, em Brasília e, por isso, não pudemos conhecê-lo. A Parada Sertaneja, das 16h às 17h é com Silvia e, em seguida, volta o Vanderlei com o Querência Livre. Márcio apresenta Meu Sertão, com modas de viola das 18h às 19h e encerra a programação com o romantismo do Som Brasil, das 19h às 21h. Este é o programa que mais recebe cartinhas. São mais de 20 diariamente, a maioria pedidos de música, recadinhos e pensamentos românticos. Tem dia que o locutor não consegue ler todas. Outro detalhe é que são todas muito parecidas. Mais ou menos assim: “Oi Márcio! É uma prazer escrever para este maravilhoso programa. Gostaria de pedir a música “É o Amor”, de Zezé Di Camargo e Luciano. Um grande abraço...” Todos as noites, antes de desligar o transmissor, Márcio 13 Nas Ondas Comunitárias agradece aos ouvintes pela audiência e a Deus por mais um dia. Na frase “Ai que endurecer, pero sin perder la ternura jamais”, de Ernesto “Che” Guevara, o locutor lembra da luta pela terra e faz uma homenagem especial aos companheiros que morreram lutando por mais justiça social neste país. “Uma boa noite a todos e até amanhã às seis horas”, finaliza. A repressão Por ser mantida e instalada dentro de um assentamento do Movimento dos Sem-Terra, a Rádio Comunitária Terra Livre é uma das poucas em Santa Catarina, que nunca sofreu repressão da Polícia Federal para ser fechada ou lacrada, como acontece com a maioria das rádios livres em todo o país. As poucas vezes que saiu do ar foram por problemas técnicos. Em duas ocasiões, um raio atingiu a antena e queimou a mesa de som, deixando a emissora uma semana desligada. Mas, a exemplo do que enfrentam as demais emissoras comunitárias livres que ainda não estão legalizadas, e são absurdamente classificadas como “piratas” pelos órgãos oficiais, a Terra Livre também sofre grande pressão da única rádio comercial de Abelardo Luz, a Rainha das Quedas AM, de propriedade do prefeito João Marques Rosa (PFL) e alguns empresários locais. Durante a programação da rádio do prefeito, além das famosas vinhetas patrocinadas pela Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão (Acaert), dizendo que rádio ilegal não é legal para a comunidade, ou ainda que derruba avião, os próprios radialistas falam que no interior do município existe uma rádio pirata, que está na mira da Polícia Federal e a qualquer momento será fechada. A preocupação do prefeito e da oligarquia que domina o município há muitos anos, tem uma explicação. Por falar a linguagem 14 Nas Ondas Comunitárias da comunidade, ser feita pela comunidade e ter programação voltada aos interesses da comunidade, a Rádio Terra Livre é líder absoluta de audiência no município e na região. Mesmo com um transmissor caseiro de apenas 25 watts, tem quase 30 quilômetros de abrangência, sendo ouvida em todos os assentamentos de Abelardo Luz e até em municípios vizinhos, como Passos Maia, Ouro Verde e Faxinal dos Guedes. Por conta dessa audiência, alguns comerciantes até já pediram para anunciar na Terra Livre, o que será bom para a manutenção da emissora. A coordenação até já definiu os valores dos apoios culturais, como são chamados anúncios em uma rádio comunitária. Para quatro chamadas por dia, de 15 segundos cada, a idéia é cobrar R$ 50,00 por mês. Na Rainha das Quedas, por exemplo, praticamente esse é o valor cobrado por apenas seis anúncios de 30 segundos. Um simples aviso na rádio comercial custa R$ 4,00. Na Terra Livre é gratuito. Até então a rádio era mantida apenas com o apoio da CooperJus e do MST. Nenhum dos locutores são remunerados. A alimentação para eles é garantida pelo movimento, através da CooperJus. Mas também arrecadam algum dinheiro com a venda de produtos do MST, como camisetas, bonés, cartões postais, assinaturas de jornal e revista, agendas e outros. Recebem 5% da arrecadação mensal. Além de tirar audiência da Rainha das Quedas, a Rádio Terra Livre também é vista como ameaça ao poder da oligarquia política local. Segundo Leandra, a rádio não provoca o prefeito, mas sempre que a comunidade tem algo a reivindicar, os microfones estão abertos. Em represália contra a atuação da emissora, a região dos assentamentos está praticamente abandonada pela prefeitura. As 15 Nas Ondas Comunitárias estradas de acesso são só buracos e pedras, nos mais de 25 quilômetros de extensão. Máquinas só passam em período pré-eleitoral. De acordo com Leandra, o prefeito afirma que os assentamentos só dão prejuízos ao município. “Porém, esquece que são as 1.230 famílias de trabalhadores assentados que sustentam o comércio de Abelardo Luz, já que os moradores da cidade fazem suas compras em Xanxerê, o maior centro comercial da região”, contesta. As estradas podem até ficar cheia de buracos, mas o que o MST não abre mão é de que a prefeitura mantenha sempre funcionando o ambulatório do assentamento, a escola que atende mais de 400 alunos e o transporte escolar para estudantes secundaristas e das comunidades mais distantes. Educação, aliás é assunto tratado com a maior seriedade pelo MST. Nenhuma criança com idade escolar está fora da escola nos assentamentos. Até Silvia, a companheira de Márcio, mesmo depois de casada, ainda estuda na oitava série e recebe total apoio e incentivo do marido. Depois que passou a trabalhar na rádio, Leandra conta que ela mesma já sofreu ameaças da prefeitura. Seu companheiro é professor na rede municipal de ensino. Numa certa reunião, o secretário de Educação deixou bem claro que o emprego dele como professor dependerá do que Leandra falar nos microfones da rádio. “É um absurdo, mas esse tipo de pressão é comum por parte da prefeitura. Só que isso não nos intimida. Enquanto estiver no ar, a rádio vai continuar lutando pelos ideais do MST e por melhores condições de vida para o nosso povo”, afirma Leandra. De livre a comunitária No ar desde 1996, a Rádio Terra Livre FM, a exemplo de outras rádios comunitárias, ainda não está legalizada. Por isso, é 16 Nas Ondas Comunitárias considerada uma rádio livre, e não pirata, como classificam as rádios comerciais em campanhas patrocinadas pela Acaert, Abert e órgãos oficiais de repressão. A propósito dessa confusão de termos, no 1º Encontro Nacional de Rádios Livres, em maio de 1990, quando começaram as primeiras discussões sobre a legalização desse serviço público, foi definido que uma rádio livre “é aquela que vai ao ar sem pedir autorização a quem quer que seja”. Ainda segundo o documento do Encontro, “toda rádio que inicia suas operações de forma ilegal, questiona o monopólio estatal sobre as ondas sonoras e permite a livre expressão a qualquer grupo distanciado dos meios de comunicação, pode ser considerada uma rádio livre”. Já o termo “rádio pirata” surgiu em 1958, quando navios ancorados às costas britânica, holandesa e dinamarquesa transmitiam sinais de rádio que eram captados pela população mais próxima. Como esse serviço também era ilegal e contestava o monopólio estatal, foi chamado de pirata. Existem ainda as rádios populares. Estas têm origens nas escolas radiofônicas fundadas pela Igreja Católica, nos anos 60, para combater o analfabetismo em países como Peru, Equador, Colômbia, República Dominicana e outros. Clandestina é outro termo usado para definir uma rádio sem autorização. Tem como característica a luta pela transformação da ordem política, econômica e social estabelecida. E por último as rádios comunitárias, que são emissoras de baixa potência e alcance reduzido, já reconhecidas por lei no Brasil. Embora exista a lei que regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária, as brasileiras ainda são consideradas livres, já que iniciaram suas operações de forma ilegal e, por uma série de burocracias criadas pelo Ministério das Comunicações (Minicom), não dispõem da outorga ou concessão para funcionar. Portanto, 17 Nas Ondas Comunitárias comunitária, livre, clandestina, pirata, popular, são definições de rádios que lutam, sobretudo, pela democratização dos meios de comunicação. A Rádio Terra Livre pretende transformar-se em uma rádio comunitária. Tanto que iniciou o longo e burocrático processo junto ao Ministério das Comunicações para conseguir a concessão. Já tem uma associação formada e registrada para esse fim, um dos primeiros requisitos para obter a outorga. Mas para conseguir a sonhada liberação, terá que substituir alguns de seus equipamentos. É o caso do transmissor, que é caseiro, e de acordo com a lei, precisa ser homologado pelo Minicom. Segundo Leandra, para regulamentar será preciso investir pelo menos mais R$ 3 mil. Os demais equipamentos da emissora são de boa qualidade. Tem dois aparelhos de cd, dois tape deck, um toca discos, uma mesa de som com seis canais, a antena com uma haste de 28 metros de altura, fiação especial, além da velha caixa de som furada que me chamou a atenção na chegada e serve de retorno para os locutores. O investimento em equipamentos já é de aproximadamente R$ 5 mil, dinheiro doado pelo MST. Valeu a pena percorrer quase 600 quilômetros de Blumenau a Abelardo Luz para conhecer esta que é uma das mais importantes rádios comunitárias de Santa Catarina. Depois de enfrentar os buracos e pedras da estrada, além da dificuldade para encontrar o famoso Assentamento 25 de Maio, a 25 quilômetros do centro de Abelardo Luz, espero ter contado uma boa história. 18 Nas Ondas Comunitárias Uma Bocuda no ar São João do Sul, no extremo sul de Santa Catarina, divisa com o Rio Grande é uma dessas típicas cidades de interior. Tem uma rua principal, onde funcionam a prefeitura, o banco, a loja de materiais de construção do seu Manoel Cardoso, a farmácia, outras lojas, o açougue, o supermercado, a eletrônica do Celino Martins, alguns bares, residências e a praça da Igreja Matriz. Mas desde julho de 1997, os sete mil habitantes da pacata São João do Sul contam com uma novidade que pelo menos outros 150 municípios catarinenses ainda não têm. Por enquanto. É a “Bocuda”, como a população chama, carinhosamente, a Rádio Comunitária 104.9 FM. A começar pelas instalações e equipamentos é uma rádio diferente da Terra Livre, de Abelardo Luz. Enquanto a rádio do MST funciona num barraco de madeira, a 104.9 FM tem uma aparelhagem da melhor qualidade e está confortavelmente instalada num estúdio quase profissional, na sala 5 do Centro Comunitário da Igreja Matriz. São diferentes também na forma de organização e atuação, além de terem histórias distintas. 19 Nas Ondas Comunitárias A Bocuda voltou a funcionar em fins de agosto deste ano, ainda na condição de rádio livre, depois de ter sido violentamente lacrada e ter parte dos equipamentos apreendidos pela Polícia Federal, em setembro de 1998. É mais uma emissora disposta a enfrentar a repressão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) contra rádios comunitárias. A Bocuda não têm mais paciência para esperar a boa vontade do governo federal na liberação da concessão, e está no ar outra vez. A documentação, solicitando a outorga para a rádio foi encaminhada ao Minicom há muito tempo, mas até agora nada. Como desenvolvia um trabalho voltado aos interesses da comunidade, a exemplo de outras rádios comunitárias, com notícias da cidade e região, músicas, recados, avisos e transmissões ao vivo do Campeonato Municipal de Futebol e do Rodeio Crioulo, a população pedia insistentemente que a Bocuda voltasse ao ar. Uma pesquisa realizada em agosto de 98, pela Cooperativa Agrícola de São João do Sul, apontou que 89% da população ouvia a rádio, que naquela época tinha freqüência 97.7. Foi então que a diretoria da Associação Comunitária de Radiodifusão Antônio Constante Machado, entidade que administra a emissora, decidiu recolocá-la no ar. Só que na ação da Polícia Federal, em 98, a Anatel apreendera o transmissor e lacrara os demais equipamentos, sendo necessário mais investimentos. Então para comprar um novo transmissor e outros acessórios, foi preciso pedir a colaboração da comunidade. Mas, mais do que arrecadar dinheiro, procurou-se garantir apoio e participação da população nesta nova fase da rádio. Em pouco tempo, a Associação passou a contar com mais de 70 associados entre comerciantes, sindicalistas, lideranças comunitárias, professores, vereadores, prefeitura, igrejas e outras pessoas que reconhecem a 20 Nas Ondas Comunitárias importância de uma rádio comunitária para a cidade. Este trabalho de mobilização foi coordenado por Eraldo Giovani Velho, o secretáriogeral da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária de Santa Catarina (Abraço/SC), militante do Partido dos Trabalhadores e uma das mais importantes lideranças sindicais da região. Mas antes da rádio voltar ao ar, foi preciso eleger nova diretoria da Associação. E como a entidade agrega pessoas de várias correntes ideológicas e políticas, lançaram uma chapa de consenso com o jovem padre César Budny na presidência. “Foi o maior erro que cometemos”, lamenta Eraldo, que ficou com o cargo de secretáriogeral da Associação. Segundo ele, em menos de um mês de atividades, começaram os conflitos de interesses e disputas por espaço. Todos os partidos políticos têm representantes na diretoria, inclusive o prefeito Rogério Duminelli (PMDB), um dos maiores incentivadores da rádio. O padre, que não tem postura ideológica definida, não agüentou a pressão de alguns setores e renunciou ao cargo de presidente. Assumiu o vice-presidente Gilberto Celestino Delfim, vereador do PPB. E a partir daí, a rádio, que deveria ser um veículo comunitário, democrático e de integração da população, passa a ser motivo de uma das maiores disputas políticas do município. Eraldo atribui a crise a Elizeu da Rosa Cardoso, um dos diretores da Associação e militante do PPB. Elizeu tem um programa diário das 10h às 10h30min, do qual se utiliza para fazer política, já que pretende ser candidato a vereador nas próximas eleições. O programa também é um espécie de tribuna de oposição contra o prefeito, seu inimigo político. De acordo com Eraldo, o fechamento da rádio em 1998 já foi motivado pela atuação de Elizeu, que atacava sistematicamente o prefeito. “A Anatel não divulga quem denuncia, mas neste caso acho que foi o prefeito quem pediu para lacrar a rádio 21 Nas Ondas Comunitárias naquela época”, arrisca Eraldo. Normalmente esse tipo de denúncia costuma partir de rádios comerciais. Mas as quatro emissoras da região, duas de Sombrio, uma de Jacinto Machado e outra de Torres (RS), durante os 14 meses que a Bocuda esteve no ar na primeira fase, e até mesmo agora, nunca deram importância ao funcionamento. Só que desta vez, perderam muitos anunciantes de São João do Sul para a rádio comunitária, o que pode, a qualquer momento, motivar algum tipo de pressão contra a emissora. Para não correr riscos, a Bocuda só vai ao ar das 7h às 10h30min, de segunda a sexta e aos sábados e domingos das 7h às 12h. Apesar da crise institucional a Rádio Comunitária 104.9 vai muito bem financeiramente. O investimento em equipamentos chega a R$ 7 mil e está conseguindo se manter com os apoios culturais, já que praticamente todo o comércio anuncia nela. Também cumpre um importante papel social, seja divulgando informações de interesse da comunidade ou até mesmo nos avisos, recados e músicas. Os moradores ouvem, aprovam e até pedem para ampliar a programação. Mas enquanto não sai a concessão, vai continuar com as três horas e meia diárias, de segunda a sexta e cinco horas nos finais de semana. Com pouco mais de um mês no ar, ainda não foi realizada nenhuma pesquisa para saber como está a audiência da rádio. Mas basta dar uma volta pela cidade e perceber que todo mundo está sintonizado na 104.9. Manoel Cardoso, 52 anos, dono da loja de materiais de construção, é um que não perde a programação. Mesmo durante o expediente de sua loja, seu Manoel, como é conhecido, fica com o radinho ligado na Bocuda. “Escuto a rádio principalmente por causa dos recados da comunidade, mas também gosto de ouvir as músicas. Pena que fica tão pouco tempo no ar”, diz. Seu Manoel, um 22 Nas Ondas Comunitárias dos associados e anunciantes da emissora, considera a rádio importante para o município, já que é o único meio de comunicação disponível. A jovem Katerine Guaresi Bressau, 16 anos, que trabalha na lojinha de aviamentos de sua mãe, ao lado da loja de seu Manoel, também é fã da Bocuda. “Gosto do estilo de música que toca em alguns programas. Acho muito importante para a cidade ter uma rádio que fala das coisas daqui”, diz. Programação “Bom dia amigos ouvintes da Rádio Comunitária 104.9 FM. Hoje, 9 de outubro de 1999, são exatamente 10h30min. A partir de agora você ficará na companhia de Eraldo Giovani Velho e do companheiro Rafael Lumertz, nosso convidado deste sábado”. É assim que Eraldo começa o programa As Mais Pedidas da Semana, todos os sábados das 9h30min às 11h. Esta é apenas a terceira vez que ele apresenta o programa nesta nova fase da rádio. Ainda não está muito a vontade com o microfone e, para não se perder, preparou um roteiro com os principais assuntos que teria de falar e as músicas a serem tocadas. Rafael também se mostra meio nervoso no começo mais depois ambos se soltam. O programa toca músicas de todos os estilos, tem horóscopo, notícias do Movimento das Rádios Comunitárias e, como não poderia faltar, recadinhos e pedidos musicais dos ouvintes. Eraldo também lê matérias do jornal A Notícia, que foram destaques na semana. Cada bloco toca três músicas, três signos e alguma informação. Segundo Eraldo, a idéia é deixar o programa mais comunitário e menos musical. “Vamos trazer convidados para falar de determinados assuntos e abrir para a comunidade fazer suas 23 Nas Ondas Comunitárias reivindicações. Só estamos aguardando a instalação de uma linha telefônica, o que deverá acontecer nos próximos dias”, diz. De acordo com Eraldo, na primeira fase que a rádio esteve no ar era bem mais atuante e crítica. “Foi por isso, inclusive, que ganhou o apelido Bocuda”. As músicas previamente definidas no roteiro, aos poucos Eraldo e Rafael apresentam As Mais Pedidas da Semana são substituídas pelos pedidos que a comunidade entrega pessoalmente na rádio. Faltam poucos minutos para encerrar o programa e Eraldo ainda não teve tempo de lançar uma promoção que vai mexer com a cidade. É um concurso para escolher um novo nome para o programa. As pessoas poderão dar sugestões e o vencedor ganhará prêmios. Mas fica para a semana seguinte. Ele até faz um suspense, dizendo que “na próxima semana haverá uma surpresa”. Diferentemente da Rádio Terra Livre, a Bocuda tem um técnico de som, uma espécie de DJ. É 24 Nas Ondas Comunitárias Luiz Antônio Martins, 13 anos, filho de Celino, que fica num espaço separado dos locutores. “Por essa luta vou até para a cadeia” Eraldo Giovani Velho, 28 anos, nunca trabalhou em rádio comercial. Mas desde que passou a atuar no Movimento das Rádios Comunitárias é apaixonado pelo veículo e mais um brasileiro que luta pela democratização dos meios de comunicação no País. Natural de Jacinto Machado, a menos de 20 quilômetros de São João do Sul, ouviu falar pela primeira vez de rádio comunitária em 1996, quando presidia o Sindicato dos Servidores Públicos dos Municípios do Vale do Araranguá e também assessorava o então deputado federal Milton Mendes (PT), na região. Em setembro de 96, com a vinda ao Estado do presidente da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), Sebastião dos Santos, para falar do Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias no Brasil, Eraldo participou de um seminário sobre o assunto em Curitibanos. Foi ali que conheceu Bernardo Becker, um ex-agricultor, membro da Pastoral da Terra de Mafra; Sérgio Moreira, sindicalista de Canoinhas; Zélia Musa, militante do Partido dos Trabalhadores em Chapecó; Roberto Bonenberg, líder de movimentos populares em Tangará e outras pessoas que mais tarde formaram uma comissão responsável pela fundação da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária de Santa Catarina, a Abraço/SC, entidade que coordena as ações do movimento no Estado. A Abraço/SC só nasceu em março de 1998, mas desde 96 essas cinco lideranças percorreram vários municípios catarinenses para falar do movimento e incentivar a criação de rádios comunitárias. O resultado desses contatos refletiu no I Congresso Estadual de Rádios 25 Nas Ondas Comunitárias Comunitárias, nos dias 14 e 15 de março de 98, em Florianópolis. Mais de 250 pessoas participaram do evento de fundação da Associação das Rádios Comunitárias Catarinenses. No Congresso, Bernardo foi eleito presidente da Abraço/ SC; Eraldo, secretário- geral; Sérgio, secretário de Finanças; Zélia, secretária de Organização; Roberto, secretário de Formação. Rúbia Anacleto, de Blumenau, ficou com a Secretaria de Comunicação e outras lideranças com cargos no conselho fiscal e diretorias regionais. Além das atribuições burocráticas, cada membro da Abraço/SC também ficou responsável pela orientação e incentivo à criação de novas rádios comunitárias em suas respectivas regiões. No sul do Estado, Eraldo garante que quase todos os municípios já têm ou tiveram uma rádio comunitária. “A Bocuda serviu de referência para muitas dessas emissoras”, diz. Em Jaguaruna, por exemplo, a Rádio Comunitária Sambaqui FM, coordenada pelo padre Angelo Bussolo foi para o ar praticamente no mesmo período que a Bocuda. Também foi fechada pela Polícia Federal em 98, e agora está novamente no ar. Só que desta vez conta com uma garantia que outras rádios livres ainda não conseguiram. Um juiz federal da comarca de Tubarão concedeu liminar para que a emissora possa funcionar até que saia a concessão, já solicitada ao Ministério das Comunicações. Segundo Eraldo, essa situação é inédita no Estado, mas a Abraço está incentivando outras rádios a fazer o mesmo. “O problema é que isso depende da interpretação de cada juiz, e principalmente da pressão que as rádios comerciais do município ou da região exercem sobre esse tipo de decisão”, avalia Eraldo. O dirigente da Bocuda tem esperança que algum dia as rádios comunitárias não precisem mais ser chamadas de clandestinas ou piratas. Ele foi um dos que lutou como ninguém pela legalização, 26 Nas Ondas Comunitárias mas acha que agora não dá mais para esperar a boa vontade do governo federal na liberação das concessões. “Faz quase dois anos que a lei foi aprovada e até agora o Ministério das Comunicações não concedeu nenhuma outorga”, lamenta. Por isso, não resta outra alternativa senão colocar no ar sem autorização. Eraldo está consciente dos riscos que corre, mas não quer nem saber. Desde que a Bocuda foi fechada em 98, ele responde um processo federal por crime de instalação ou utilização de telecomunicações sem autorização dos órgãos competentes, sujeito a pena de detenção de um a dois anos . Isso é o que prevê o artigo 70 da Lei 4.117, de agosto de 1967, modificada pelo Decreto-lei nº 236, de 29 de fevereiro de 1967. Esse decreto tem sido motivo de muita polêmica. É que a Lei 9.612/98, que regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária, quando se refere a crime ou punição, baseiase no decreto criado em plena ditadura militar. É considerado pelo Movimento um dos maiores absurdos da nova legislação das rádios comunitárias. Mas Eraldo garante que isso não o intimida. “Por essa luta, se for preciso, vou até para a cadeia”, diz. Celino Balduino Martins, 48 anos, sogro do Eraldo, é o No ar o programa Fundo do Baú. Apresentação Celino Martins 27 Nas Ondas Comunitárias único técnico em eletrônica de São João do Sul. Conserta rádio, televisão, vídeo cassete e outros eletrodomésticos. Por conta da profissão é conhecido por todo mundo na cidade. Mas, nos últimos tempos, passou a ser ainda mais conhecido. É que todos os dias, a partir das 7h15min, Celino troca as ferramentas da eletrônica pelo microfone da Rádio Comunitária 104.9 FM. Nesse horário começa o programa Fundo do Baú, com músicas antigas de vários estilos. A maioria é sertaneja e moda de viola, mas também toca Beatles, Jovem Guarda e MPB. Além do Fundo do Baú, que vai até às 8h, Celino ainda comanda os dois programas seguintes: Músicas Nativas, das 8h às 9h e Músicas Diversas até às 9h30min, quando começa o programa das entidades. Cada dia da semana, entidades como Epagri, Cidasc, Secretaria de Saúde, Sindicato de Trabalhadores Rural, ou até mesmo as igrejas, têm 30 minutos para expor seus projetos ou falar de algum assunto de relevância comunitária. A última meia hora de programação diária fica por conta do “polêmico” Elizeu Cardoso, que às vezes se estende além do horário. Não existe noticiário. As informações são veiculadas durante os programas. Aos sábados a programação vai até às 11h, com o programa do Eraldo e das 11h às 12h com mais músicas. Esta última hora é apresentada pelo jovem DJ Luiz Antônio Martins. Aos domingos, a rádio tem a mesma programação até às 9h15min, quando começa a transmissão da Missa Dominical. Como a emissora está instalada em frente a Igreja Matriz, basta um cabo ligando o microfone do padre à mesa de som da rádio e imediatamente toda cidade passa ouvir a missa. Depois da celebração, Zalmo Rocha toca música nativistas até às 12h. 28 Nas Ondas Comunitárias Rádio deve ser comunitária Um momento de emoção contagiou a maioria das pessoas presentes no auditório da Fecesc, em Florianópolis, naquela tarde de domingo, 15 de março de 1998. Era a hora do discurso do ex-agricultor Bernardo Becker, 39 anos, que acabara de ser eleito presidente da recém criada Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária de Santa Catarina (Abraço/SC). Ele não conseguiu conter as lágrimas ao relembrar as lutas que travou junto com outros companheiros para divulgar, em todo o Estado, o Movimento Nacional Pela Democratização das Comunicações, que entre outras coisas defende a regulamentação e concessão de rádios de baixa potência controladas pela comunidade. “Este momento é histórico para as rádios comunitárias de nosso Estado. De forma democrática e participativa, acabamos de criar a entidade que, de hoje em diante, vai nos representar e fortalecer ainda mais o Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias. A Abraço/SC representa o início de uma nova fase para o movimento. É o resultado da luta de muitos companheiros que desejam construir uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática. Com ela, seremos ainda mais fortes para lutar pelo cumprimento da lei que 29 Nas Ondas Comunitárias legaliza as rádios comunitárias...” As palavras, com sotaque de homem simples do planalto norte catarinense, soaram mais como um desabafo de quem respondia dois processos federais por fundar uma dessas rádios em Mafra, sua cidade, e ajudar a criar emissoras semelhantes em outros municípios do Estado. Uma história de lutas já conhecida pela maioria dos 250 participantes naquele Congresso de Fundação da Abraço/SC. Mas alguns deles, como Alexandre Gonçalves, jornalista formado, com mais de dez anos de experiência em T V, na ocasião chefe de jornalismo da Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura de Blumenau, ainda não tinha entendido como aquele moço simples, que falava com alguns “errinhos” de português, poderia ser a principal liderança do movimento das rádios comunitárias no Estado. Somente ao final dos dois dias de Congresso que definiu estatuto, diretoria e metas da Abraço/SC, Alexandre e outros congressistas como eu, compreendemos que uma rádio comunitária pode ser administrada por uma comunidade e sobretudo ser um instrumento democrático, sem fins lucrativos, defendendo os interesses de pessoas excluídas, que não encontram espaço para fazer suas reivindicações nos veículos da chamada grande imprensa. O exemplo de Bernardo mostrou que não precisa ser formado em jornalismo, nem doutor em língua portuguesa, para coordenar ou fundar uma rádio comunitária. Ou como muito bem lembrou ele, “rádio comunitária deve ser feita pela comunidade e para a comunidade. Deve ser comunitária de verdade”, acrescentou. Um de seus maiores desafios como presidente da entidade, criada para coordenar e assessorar o Movimento das Rádios 30 Nas Ondas Comunitárias Comunitárias no Estado, é não permitir que as rádios livres existentes em Santa Catarina caíam nas mãos de interesses políticos ou econômicos, diferentes daqueles definidos no estatuto da Abraço/SC. Coisa difícil de ser cumprida. Outro compromisso de Bernardo é lutar pelo cumprimento da Lei 9.612, que legalizou o serviço de radiodifusão comunitária, aprovada em dezembro de 1997 pelo Senado Federal, sancionada pelo presidente da República em fevereiro de 98, mas que só foi regulamentada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o novo órgão federal controlador das comunicações, sucessor do antigo Dentel, em junho daquele ano. E somente depois de regulamentadas é que as rádios comunitárias que estão no ar em vários municípios catarinenses poderão deixar de ser livres, e não “piratas” como divulga a Acaert, a entidade que defende os interesses das rádios comerciais em Santa Catarina. Pressão das rádios comerciais Um dos argumentos utilizados pela Acaert para impedir o crescimento do movimento das rádios comunitárias é que essas emissoras, com apenas 25 watts de potência, como prevê a lei, poderão intervir em outros sistemas de comunicação e até derrubar avião. Foi o que afirmou Silvano Silva, um dos diretores da entidade, em palestra ministrada no curso de jornalismo da Univali, em junho de 1999. “Isso é um absurdo”, contesta o assessor técnico da Abraço Nacional, Paulo Fumaça, palestrante do Congresso de Fundação da Abraço/ SC. De acordo com ele, o ar tem capacidade ilimitada para transmissão de ondas de rádio, e a freqüência de uma simples rádio comunitária, de apenas 25 watts, jamais será capaz de derrubar um avião. “Tanto que nunca se ouviu falar que um avião tivesse caído por causa de uma 31 Nas Ondas Comunitárias rádio comunitária”. Durante o Congresso da Abraço/SC, Bernardo Becker contou um pouco de sua experiência como um dos fundadores da Rádio Comunitária Cidadania, de Mafra. Com programação voltada aos interesses da comunidade, em pouco tempo no ar, a primeira emissora comunitária no planalto norte do Estado, fundada em dezembro de 1996, conquistou o primeiro lugar na preferência da população. Mas o sucesso durou pouco já que mexeu com o poder local e passou a ser vista como ameaça às duas rádios comerciais da cidade, que perderam audiência. A partir de denúncia da Rádio Nova Era FM, uma emissora comercial da cidade, à antiga Delegacia do Ministério das Comunicações em Santa Catarina, em 18 de março de 1997, fiscais do Dentel, acompanhados pela Polícia Militar do Paraná, lacraram os equipamentos da rádio. Apenas lacraram. Mas em 8 de setembro de 1997, atendendo a inúmeros apelos da comunidade, Bernardo deslacrou a aparelhagem e colocou a rádio novamente no ar, desta vez em sua casa. Logo no dia seguinte, os mesmos fiscais do Dentel, desta vez acompanhados da Polícia Federal, amanheceram em sua casa com um mandado de busca e apreensão dos equipamentos. Naquele dia Bernardo participava de um seminário em São Bento do Sul para discutir o movimento das rádios comunitárias na região. Simone, sua mulher era quem apresentava a programação. Ela avisou Bernardo, por telefone, para que não voltasse a Mafra nesse dia, pois corria o risco de ser preso. Tanto que os federais esperaram por ele, em frente a rádio, das 9h às 17h. Como Bernardo não apareceu, os fiscais do Dentel levaram praticamente todos os equipamentos, e a Polícia Federal abriu dois processo contra ele. Um por emitir sinais de rádio 32 Nas Ondas Comunitárias sem autorização e outro por ter deslacrado os equipamentos. A apreensão dos equipamentos foi considerada uma arbitrária pelo juiz federal Paulo Fernando Silveira, de Uberaba-MG, outro palestrante do Congresso da Abraço/SC. Paulo Silveira tornou-se conhecido por conceder liminares em favor de várias rádios comunitárias na região de Uberaba, sul de Minas. De acordo com ele, a apreensão de equipamentos é anticonstitucional, já que fere o princípio da liberdade e privacidade. “A Anatel não tem competência para seqüestrar qualquer bem privado. No máximo, pode lacrar o transmissor e autuar o proprietário” alerta. Em caso de apreensão, o juiz recomenda que a entidade que administra a rádio entre com mandado de segurança e habeas-corpus na Justiça Federal. Sem medo de ser feliz Irradiando alegria e paixão Sonhando com a democracia Nos meios de comunicação Buscando o sagrado direito Da liberdade de expressão Um Abraço no Brasil Bernardo Becker Um ABRAÇO na paz vamos dar Um ABRAÇO na democracia Um ABRAÇO que vai pelo ar Na verdadeira notícia do dia Um ABRAÇO no Brasil inteiro No som livre da Rádio Magia Pelo fim da monopolização Apaixonadamente resistindo no ar A Anatel não pode intervir No direito de comunicar Abaixo o autoritarismo O povo também quer falar 33 Nas Ondas Comunitárias O microfone está aberto O transmissor está acionado A emoção está tomando conta O receptor está ligado Antenas emitem sinais O Sonho não vai ser lacrado As rádios comunitárias Não precisão de concessão Jamais causaram interferências Muito menos intervenção Esta mentira tem origem Na Rede Globo de televisão O sol brilha para todos Mas o ar foi privatizado Grandes redes tomaram conta De um direito sagrado A comunicação está restrita Ao rei e ao seu reinado Está na hora de por um fim Nesta repressão colossal Nosso espaço vamos garantir Não estamos fazendo nenhum mal Pirataria são eles quem fazem Em concessão eleitoral 34 Nas Ondas Comunitárias As contradições da lei Antes de falar da Lei 9.612/98, que regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária no Brasil, é preciso voltar um pouco no tempo para entender que a legalização das rádios comunitárias é apenas uma etapa de um movimento bem maior, que luta pela democratização dos meios de comunicação, principalmente das rádios e tv´s, que sempre estiveram a serviço de interesses políticos ou econômicos. Por isso, é preciso conhecer um pouco a história dessa luta. Tudo começou no início dos anos 80, quando se discutia a redemocratização do país com a campanha das Diretas Já. As tentativas de manipulação das eleições de 1982 pela Rede Globo serviram de estímulo para que um grupo de jornalistas, professores e estudantes de comunicação, apoiado por várias entidades, organizasse a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação (FNPDC). A Frente cresceu, mas em 1985, com a derrota da emenda das eleições diretas para presidente da República, o movimento desmobilizou-se. Mesmo assim, ainda serviu como referência para a mobilização e atuação, durante a Assembléia 35 Nas Ondas Comunitárias Nacional Constituinte, de um grupo de entidades coordenado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ). Então, surge em 1987, em São Paulo, o Movimento Nacional pela Democratização da Comunicação, dando valiosas contribuições para a Constituinte, apesar da maioria das propostas do movimento ter sido derrotada no Congresso. Por causa disso, o movimento se desarticula novamente e só em 1990 retomam-se as discussões. É aí que nasce o Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação, com mais de 300 entidades filiadas de todo o Brasil, e que entre as muitas ações, já defendia a legalização das rádios livres de baixa potência, carinhosamente conhecidas como rádios comunitárias. Mas é só depois de muitas lutas, congressos, negociações, manifestações, audiências públicas, seminários, encontros, bate boca, é que o Congresso Nacional finalmente aprovou a lei que regulamenta as rádios comunitárias no Brasil. O projeto final aprovado pelo Senado, em dezembro de 1997, que gerou a Lei 9.612, ficou muito longe das propostas apresentadas pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, através da bancada do Partido dos Trabalhadores. Pressionados pelos grupos que detém a maioria dos meios de comunicação do país, governo federal, deputados e senadores criaram uma série de limitações e entraves burocráticos na lei. Na verdade, o projeto foi aprovado conforme as recomendações da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a poderosa entidade que representa os interesses dos grandes grupos de rádios e tv´s. Muitos artigos da lei foram até considerados anticonstitucionais por alguns juristas. Os mais polêmicos são os que tratam da potência e freqüência da emissora. De acordo com a legislação, uma rádio comunitária pode operar com apenas 25 watts 36 Nas Ondas Comunitárias de potência e a abrangência não poderá ultrapassar um quilômetro de raio. “Um absurdo”, na opinião do presidente da Abraço/SC, Bernardo Becker. “Com essa limitação não dá para atingir nem um bairro”, contesta. Outra situação contestada pelas lideranças do movimento é que as rádios comunitárias são desprotegidas contra as rádios comerciais. Ou seja, as rádios de alta potência podem interferir nas comunitárias, mas se as comunitárias interferirem nas comerciais, serão punidas. Depois de muita pressão do Movimento em Defesa da Rádios Comunitárias, o Ministério das Comunicações modificou algumas coisas. Uma delas é a que trata da freqüência. Inicialmente a lei estabelecia freqüência única de 88.7 Mhz. Mas, a partir do Decreto 2.615, que normatiza o serviço, foram incluídas também as freqüências 104.9 e 105.9. Isso vai permitir que uma rádio comunitária não interfira na outra. Mas o que mais tem causado polêmica mesmo é a demora na liberação das concessões. Mais de 20 mil entidades, em todo o Brasil, já encaminharam ao Ministério das Comunicações os requerimentos pedindo outorga. Dessas, apenas 50 ganharam as concessões, embora os processos estejam parados na Câmara dos Deputados para aprovação. Depois ainda seguirão para o Senado Federal, que também precisa apreciar. O Ministério das Comunicações alega que a demora na liberação se dá porque não dispõe de pessoal suficiente para atender a tantos pedidos. Em Santa Catarina, por exemplo, até desativou a Delegacia Regional por falta de funcionários. Atualmente existe apenas um posto avançado em Florianópolis, com função quase que exclusiva de reprimir as rádios comunitárias que estão no ar. Os pedidos de outorga são apenas protocolados em Florianópolis e depois encaminhados à Delegacia Regional do Paraná, 37 Nas Ondas Comunitárias em Curitiba. Mas o atraso na liberação das concessões não é por falta de funcionários, como alega o Ministério. Na verdade, o que existe é uma forte pressão por parte das emissoras comerciais para que o processo de concessão de outorga às rádios comunitárias seja o mais burocrático e demorado possível. Os exemplos de rádios verdadeiramente comunitárias mostram que em pouco tempo no ar essas emissoras tiram audiência das comerciais, além de despertar a cidadania nas pessoas. Outro fator é o da influência política. Grande parte dos deputados federais e senadores são proprietários de rádios. Além da concorrência pela audiência, com ouvintes mais conscientes, que sabem reivindicar seus direitos, correm o risco de perder espaço político, já que usam suas emissoras apenas para fins eleitoreiros. Por isso, haverá uma seleção muito criteriosa na liberação das primeiras concessões. Esta é a avaliação de Bernardo Becker. Entre as 50 concessões que já estão no Congresso Nacional, Santa Catarina será contemplada com três. Uma em Itapoá, outra em São Francisco do Sul, no norte do Estado e uma terceira em Correia Pinto, perto de Lages. As de Itapoá e São Francisco, de acordo com Bernardo, pertencem a políticos ligados ao PPB, coincidentemente um dos principais partidos que dá sustentação ao governo federal. Já a de Correia Pinto é coordenada pela Igreja Católica. “Isso mostra que a lei não surgiu para democratizar a comunicação, como defendemos, mas para atender interesses políticos e econômicos, a exemplo do que aconteceu com as concessões das emissoras comerciais”, lamenta Becker. Mesmo que lei tenha surgido para acabar com as rádios comunitárias, o presidente da Abraço/SC acredita que não há mais como impedir o crescimento do movimento no Brasil. “Em menos 38 Nas Ondas Comunitárias de dois anos que o serviço está legalizado, já são mais de 20 mil pedidos de outorga encaminhados ao Ministério das Comunicações. Isso mostra que o povo quer usar o rádio para expressar suas idéias, fazer suas reivindicações, enfim, quer ter um meio para se comunicar, já que não encontra espaço nos veículos tradicionais. Ninguém mais vai segurar esse desejo”, diz. Os passos para conseguir a concessão 1. Criação de uma associação, fundação ou cooperativa sem fins lucrativos, específica para este fim; 2. Reunir toda a documentação (estatuto da entidade registrado, coordenadas geométricas do local onde será instalada a rádio, declarações de apoio de outras entidades ou pessoas físicas, entre outros) e fazer um requerimento ao Ministério das Comunicações pedindo a concessão. 3. Adquirir equipamentos homologados pelo Ministério das Comunicações, entre os quais, o transmissor deverá ter apenas 25 watts. A antena não poderá ser instalada acima de 30 metros de altura; 4. Não pode fazer link, ou seja, a antena tem que estar instalada no mesmo local que a rádio e a abrangência terá que ser de apenas um quilômetro de raio. 5. Aguardar pacientemente a publicação do requerimento no Diário Oficial da União; 39 Nas Ondas Comunitárias Os (des) mandamentos da radiodifusão comunitária no Brasil Na avaliação da Abraço são muitos os paradoxos sobre a legislação da radiodifusão comunitária. Estes são alguns: 1. Freqüência única - Condena as emissoras comunitárias a interferências mútuas e exclui centenas de comunidades dos benefícios da lei; 2. Área de cobertura de um quilômetro de raio - reduz o conceito de comunidade a um aspecto físico. Cria uma rádio comunitária nanica e inexpressiva, incapaz de cobrir a real base territorial da maioria das comunidades, excluindo-as do serviço; 3. Proibição de veicular publicidade - Inviabiliza a auto-sustentação financeira das emissoras; 4. Proibição de operar em rede - impede que as micro-comunidades, artificialmente limitadas a um quilômetro de raio, possam se articular e se comunicar como uma comunidade real em torno de suas necessidades, trocando informações e debatendo temas de interesse comum; 5. Exigência de que os diretores da entidade interessada em executar o serviço residam dentro da área de um quilômetro de raio - Viola o direito à livre associação, interfere nos estatutos e impede que entidades de maior representatividade popular executem a radiodifusão comunitária; 6. Comunicados do Ministério das Comunicações em desacordo com as normas do serviço - Trazem confusão e prejuízo para entidades legitimamente interessadas em participar do processo de habilitação; 7. Exigência descabida e extemporânea de documentação - Obriga as entidades candidatas a mudarem precipitada e muitas vezes inutilmente seus estatutos; 8. Distorção do critério de representatividade originalmente estabelecido na lei - Favorece manobras políticas na definição das autorização; 9. Não proteção contra interferências das rádios comerciais - Dá às emissoras comerciais o direito de interferirem nas freqüências das emissoras comunitárias; 10. Morte anunciada - As rádios comunitárias serão autorizadas a funcionar pelo prazo máximo de seis anos. 40 Nas Ondas Comunitárias O movimento em Santa Catarina Florianópolis, 14 e 15 de março de 1998. Mais de 250 pessoas de vários municípios catarinenses participam ativamente das discussões, debates e palestras do Congresso de Fundação da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária de Santa Catarina (Abraço/SC). Chapecó, 14 e 15 de agosto de 1999. Um ano e cinco meses depois, pouco mais de 20 lideranças de todo o Estado estiveram presentes no I Encontro Estadual de Rádios Comunitárias, uma assembléia, que entre outras coisas foi convocada para discutir os rumos do Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias em Santa Catarina depois que o serviço de radiodifusão comunitária foi legalizado. “Será o frio abaixo de zero, que fez cair até neve nesses dois dias de Encontro, que impediu os companheiros de participarem deste que deveria ser o principal encontro sobre rádio comunitária do Estado? Onde está a militância?”, questionavam os dirigentes da Abraço/SC no decorrer do encontro. Cada “corajoso” que esteve em Chapecó naqueles que, certamente, foram os dias mais frios de 1999, tentava encontrar uma 41 Nas Ondas Comunitárias explicação para o número reduzido de participantes. Mas o baixo quorum da assembléia nada tinha a ver com o frio. Apenas mostrou às lideranças do movimento uma nova realidade, difícil de compreender, mas que já era mais ou menos previsível, segundo análise do deputado estadual Pedro Uczai (PT), palestrante do Encontro e um dos maiores defensores das rádios comunitárias em Santa Catarina. Para Uczai, quando aconteceu o primeiro congresso em 1998, existiam pelo menos 70 rádios comunitárias em todo o Estado que estavam ou estiveram no ar durante algum tempo. Aquele era o melhor momento para organização do movimento. Todos estavam empolgados e com vontade de comunicar através das ondas de uma rádio comunitária. A própria criação da Abraço/SC representava um grande avanço. Surgia finalmente a entidade que daria apoio e assistência à abertura de novas emissoras, além da organização do movimento. O que ninguém imaginava é que a tão sonhada lei, fruto de alguns anos de lutas, iria esvaziar o movimento e criar um clima de acomodação entre as pessoas que defendem ou fazem da rádio comunitária um veículo de comunicação alternativo e democrático. E foi exatamente o que aconteceu. Com o surgimento da lei, cada associação tratou de encaminhar individualmente ao Ministério das Comunicações o seu pedido de outorga, abandonando assim a luta coletiva defendida e coordenada pela Abraço/SC. “Nesse aspecto, o Movimento das Rádios Comunitárias é diferente do MST, onde as pessoas, mesmo depois que ganham a terra continuam militando ativamente no movimento” compara Pedro Uczai. Para ele, na medida em que as rádios livres se enquadram na lei, passam a ser comunitárias, elas vão perdendo a combatividade. 42 Nas Ondas Comunitárias “A lei surgiu para acabar com o movimento”, completa. “Mas aí está um paradoxo. A lei foi uma iniciativa do movimento, foi defendida pelo movimento. E agora, o que vamos fazer?”, questiona Sérgio Moreira, secretário de Finanças da Abraço/SC. Luiz Carlos Vergara, vice-presidente da Abraço Nacional, também presente no encontro, ressaltou que a desarticulação do movimento é enfrentada em todos os estados brasileiros. “Por isso é importante discutirmos novos rumos e estratégias para o movimento. O que queremos afinal? Rádios combativas, democráticas, livres, com liberdade de expressão, que questionem o monopólio público e privado, ou emissoras legalizadas, mas cheias de limitações?” Segundo Vergara, a maioria das rádios livres que estavam no ar no Rio Grande do Sul, agora estão fechadas, esperando pela concessão. “Isso mostra que o governo federal atingiu o seu objetivo com a criação da lei: desarticular o movimento”, afirma. O deputado petista propôs que o movimento esqueça um pouco a lei e coloque no ar o maior número de rádios possíveis, além de não permitir que elas sejam fechadas . “A lei pode ser um instrumento de democratização dos meios de comunicação, mas pode também representar o fim do movimento das rádios comunitárias e, conseqüentemente, o fim da Abraço/SC”, alerta. Para ele, a lei tem que ser vista na contradição. Tem que ser construída pela sociedade. E quando uma lei supera, ou não está atendendo as necessidades da população, tem que ser renovada. Outra recomendação de Uczai é que uma rádio comunitária não pode ser neutra. Ou é de esquerda ou de direita. Tem que assumir uma posição. Os poucos participantes da assembléia compreenderam, então, que não dá para ficar esperando a concessão. “As rádios terão que ir para o ar imediatamente”, defendeu Zélia Musa, a secretária de 43 Nas Ondas Comunitárias Organização da Abraço/SC. A assembléia também definiu que em 14 de outubro seria o dia do deslacramento. Nessa data, todas as rádios que foram lacradas entrariam no ar novamente. Segundo levantamento da Abraço/SC, mais de 40 emissoras estão no ar atualmente no Estado. O número reduzido de rádios no ar reflete diretamente na organização do movimento. Se a rádio não está no ar, não tem arrecadação e conseqüentemente não tem como pagar a contribuição à Abraço/SC, única fonte de renda da entidade. Aliás, as dificuldades financeiras da Abraço são enormes. A falta de dinheiro impede que a direção possa dar a assistência necessária às rádios. Para arrecadar algum recurso, recentemente foi alugado um aparelho de tirar coordenadas geométricas do local da rádio, um dos primeiros requisitos para pedir a concessão. Com isso sobrevivem, cobrando R$ 200 pelo serviço. Nenhum dos dirigentes são remunerados. Bernardo, o único com dedicação exclusiva à Abraço, recebe uma ajuda de custos de R$ 600 da deputada federal Luci Choinaki (PT). Os demais têm suas ocupações. Eraldo é assessor do Sindicato dos Servidores Públicos de São João do Sul; Sérgio Moreira é assessor de um vereador petista em Canoinhas; Zélia trabalha na Prefeitura de Chapecó e Rúbia trabalha no Sindicato dos Bancários de Blumenau. Todos os diretores são filiados ou simpatizantes do Partido dos Trabalhadores, o que cria uma aproximação muito grande e até um certo atrelamento do movimento ao partido. 44 Nas Ondas Comunitárias Oeste sai na frente Roupas simples, sotaque característico de agricultor da região oeste, discurso de militante de movimentos populares, engajamento, espírito de luta, vontade de transformar. É mais ou menos este o perfil da maioria das pessoas que luta e defende as rádios comunitárias em Santa Catarina. Dos quase 200 requerimentos encaminhados ao Ministério das Comunicações solicitando concessão, no Estado, 70% são de municípios do oeste. Praticamente todas as cidades dessa região essencialmente agrícola, que enfrenta inúmeros problemas sociais, como o êxodo rural, muitas vezes conseqüência da falta de atenção dos governantes, já colocaram no ar ou estão formando sua rádio comunitária. Neste aspecto, o Vale do Itajaí e Norte catarinense, consideradas a regiões economicamente mais desenvolvidas de Santa Catarina, ficam para trás. Blumenau, por exemplo, apesar de ser proporcionalmente o município mais bem representado na diretoria da Abraço/SC, com os cargos de secretária de comunicação, diretor regional e um conselheiro fiscal, sequer começou a organizar-se para construir uma rádio comunitária. Uma situação que me causou certo 45 Nas Ondas Comunitárias constrangimento quando fui convidado para falar no Encontro de Rádios Comunitárias, em Chapecó, na condição de conselheiro fiscal da Abraço/SC e único representante do Vale do Itajaí. “Então Adenilson, como anda o movimento em Blumenau e região?”, questionaram as lideranças da Abraço/SC. “Infelizmente não anda”, disse. Enquanto isso, municípios “minúsculos” como Calmon, Pinhalzinho, Cunha Porã, Ipumirim, Cocal do Sul, São João do Oeste, entre outros, já colocaram no ar ou estão próximos de ter suas rádios comunitárias. Apesar de toda a repressão da Anatel, em Cocal do Sul e São João do Oeste, na ocasião do encontro, as rádios estavam no ar normalmente e, segundo as lideranças presentes, decididas a enfrentar possíveis ações da Polícia Federal e da Anatel. Isso tudo me fez entender porque lideranças políticas como Luci Choinaki, José Fritsch, Neodi Saretta, Idelvino Furlanetto, Pedro Uczai e tantos outros, oriundos dos movimentos populares são da região Oeste. A repressão Ipumirim, 9 de outubro de 1998, sexta-feira. Passam alguns minutos das 9h e Izairo Pellin apresenta, como de costume, o Programa da Manhã, com músicas, solicitações e pedidos da comunidade. Tudo corre bem até que dois agentes da Polícia Federal, fortemente armados, e um fiscal da Anatel entram, de surpresa, na Rádio Comunitária Mirim com um mandado de busca e apreensão expedido por um juiz federal da vara de Chapecó. Um dos policiais 46 Nas Ondas Comunitárias pede para suspender imediatamente a transmissão. Ainda sem entender o que está acontecendo, Izairo atende a ordem e desliga o transmissor. Afinal trata-se de um policial federal. “Recebemos uma denúncia e estamos aqui para lacrar a emissora. Como o senhor deve saber, este tipo de atividade é ilegal”, explica o fiscal da Anatel. Só então Izairo se dá conta que naquele instante, o único meio de comunicação de Ipumirim estava sendo extinto. Terminava ali cinco meses de trabalho comunitário, que conquistou audiência e simpatia de toda a comunidade. “Mas era um risco corríamos. Sabíamos que a qualquer momento isso poderia acontecer”, lamenta Izairo. Ele conta que não teve nem condições de argumentar com os fiscais e imediatamente o funcionário da Anatel começou a desmontar os equipamentos. Retirou os cabos do transmissor, colocou o aparelho em um saco plástico e lacrou com fita adesiva. Os demais equipamentos, como tape deck, aparelho de cd, mesa de som e até mesmo fitas k7, discos e cd’s foram colocados em outro saco e igualmente lacrados. O transmissor, além de ser lacrado é também apreendido. Os demais aparelhos ficaram apenas lacrados. Terminado o serviço, um dos agentes federais pede para Izairo assinar um termo de responsabilidade e informa que ele vai responder um processo federal. Em 29 de setembro de 1997, agentes federais armados com fuzis e metralhadoras, portavam um mandado de busca e apreensão de equipamentos e queriam lacrar a Rádio Comunitária 102.9 FM, instalada no Diretório Central dos Estudantes da UFSC. A apreensão dos equipamentos da rádio gerou manifestação de repúdio e protesto da comunidade. Foi uma arbitrariedade, já que a Anatel pode apenas lacrar os equipamentos e não apreender como fez. Até 47 Nas Ondas Comunitárias hoje a 102.9 FM não voltou a funcionar. Estas situações já foram enfrentas por pelo menos 80 rádios comunitárias em Santa Catarina, segundo informações do posto avançado do Ministério das Comunicações, em Florianópolis. O período que mais se fechou rádios comunitárias no estado foi de julho a dezembro de 1998. Foram 35 emissoras lacradas. Em muitos casos, utiliza-se uma verdadeira operação de guerra. Policiais federais chegam armados com metralhadoras e revólveres, algemas, como se estivessem capturando criminosos perigosos. Em Santa Catarina não há registro de nenhum caso de agressão física durante esse tipo de ação. Nem mesmo ocorreram prisões de pessoas. O problema é que nada do que acontece, as arbitrariedades cometidas, ou mesmo o porquê as rádios são fechadas, é divulgado à sociedade. A única versão que chega aos ouvintes das emissoras comerciais é que rádios piratas, clandestinas, ilegais, não podem funcionar. Jamais algum veículo de comunicação, mesmo os jornais, falam, por exemplo, do trabalho social que essas rádios desenvolvem. Mas por que tanta oposição às rádios comunitárias por parte das emissoras comerciais? O jornalista Nivaldo Manzano, em matéria publicada na revista Caros Amigos, em maio de 1997, descobriu que não é dinheiro que influencia essa contrariedade das rádios comerciais. Ou seja, não é o medo de perder anunciantes para as comunitárias, já que estas não visam lucro, que faz os empresários da comunicação temer esse novo serviço de radiodifusão. Na verdade, eles não querem é perder o controle da radiodifusão no Brasil. “Algo como criar um monopólio privado”, explica. Do ponto de vista político as rádios comunitárias também são vistas como um grande risco às oligarquias. Das cinco 48 Nas Ondas Comunitárias mil emissoras comerciais em operação no Brasil, pelo menos três mil pertencem a políticos. Logo, as rádios comunitárias podem acabar com o domínio eleitoral de muitos “caciques” políticos, já que pode despertar a cidadania na população. Por isso se explica o temor de políticos que estão acostumados a usar meios ilícitos para vencer uma eleição, por exemplo. “Uma rádio comunitária de verdade mexe com o poder local. E a maioria dos municípios brasileiros são controlados por oligarquias. Com uma rádio comunitária se inverte a posição. De ouvinte, o cidadão passa a ser falante e os falantes passam a ser ouvintes”. Rádio comunitária também gera emprego Em Santa Catarina, as seis escolas de comunicação lançam todos os anos no mercado de trabalho, mais de cem novos jornalistas. Para onde vai toda essa gente? Tem espaço para todo mundo nos veículos da chamada grande imprensa? Muitos certamente terão que se sujeitar a subempregos ou atuar em outras áreas para viver, ou sobreviver. Além da importância para a democratização da comunicação, as rádios comunitárias surgem também como mais uma opção de trabalho para quem está saindo da universidade. No Brasil, segundo estimativa da Abraço Nacional, em dez anos, as rádios comunitárias deverão gerar 200 mil novos empregos diretos. Cada emissora emprega pelo menos cinco trabalhadores. Entre os quais jornalistas, operadores, técnicos, além 49 Nas Ondas Comunitárias de pessoal administrativo. Um detalhe importante é que a Abraço orienta as rádios para que contratem os profissionais dentro da lei. “Deve diferenciar o colaborador, que não recebe salário, do funcionário, trabalhador, de carteira assinada”, observa o ex-presidente da entidade Sebastião dos Santos. As rádios comunitárias também garantirão empregos indiretos, através da indústria de equipamentos. Mas para isso, o Ministério das Comunicações precisa fazer valer a Lei 9.612/98, autorizando o funcionamento desse tipo de emissora. Para atuar numa rádio comunitária, o jornalista precisa ter claro o papel que ela representa. Também precisa saber o que é e para que serve o jornalismo comunitário. De acordo com a “jurássica” jornalista e educadora Elaine Tavares, minha querida orientadora nessa reportagem, existem apenas dois tipos de jornalismo: o que serve a uma minoria e o que serve a maioria da população. “Quando falamos em servir a maioria estamos falando em cons-piração (respirar juntos) com as comunidades oprimidas, estar junto com a população nos seus mais secretos sonhos de amor. Esse é o jornalismo comunitário, aquele que conspira, que caminha junto, que se torna instrumento de transcendência, que dá visibilidade ao oprimido não como o ‘marginal’, mas como o pobre, real e capaz de superar sua condição”, diz. Ela continua: “o ocupar-se dos excluídos não é ter pena deles ou olhá-los em condolência, mas devolver-lhes, no mundo, o lugar que lhes é próprio e do qual foram expulsos. Isso faz o jornalismo produzido nas comunidades. Caminha com eles buscando as causas de seus desânimos e sofrimentos, recordando-lhes sempre de sua dignidade inviolável. A comunicação comunitária tem, na comunidade, o papel da arte. Deve revelar aos oprimidos a sua realidade. O jornalismo comunitário deve resgatar o homem comum 50 Nas Ondas Comunitárias na sua luta diária pela sobrevivência”. “A vida pula nas comunidades de periferia, os excluídos vivem em constante movimento se organizando para superar a condição de excluído e é esse movimento que o jornalista deve registrar. É claro que jornalismo comunitário também pode ser feito nos grandes meios. O que está em jogo não é o local onde praticamos, mas a forma de olhar o mundo. Já o trabalho na comunidade envolve muito mais coisas que um simples ‘fazer jornal’. Nas comunidades mais empobrecidas o número de analfabetos é assustador e a comunicação deve criar espaços alternativos”. Uma rádio comunitária pode ser um excelente meio para se fazer jornalismo comunitário numa comunidade assim. Portanto, se o jornalista tiver este espírito, poderá desenvolver um belo trabalho com uma dessas “emissorazinhas”. O movimento no mundo Formas autoritárias fizeram surgir nos anos 70, na Europa, as rádios livres democráticas. Na Itália, com a crise do monopólio estatal, em 1975 as rádios começaram a surgir, desprezando o monopólio e a legislação. Mas eram rádios de interesses comerciais. Naquela época já existia a repressão do Estado em relação às rádios livres. Mais tarde apareceram as rádios comunitárias burocráticas, do Partido Comunista Italiano. Em 1978, das 2.275 rádios locais, 10% apenas eram alternativas. 51 Nas Ondas Comunitárias Na França, o movimento das rádios livres pode ser dividido em antes de depois de 1981, quando o Partido Socialista assumiu o poder com Mitterrand. Logo depois, em 1983, Mitterrand tratou de legalizar essas rádios. Mas para legalizar precisava ter representatividade político-partidária, aí as alternativas ficaram de fora. Já na Itália o principal critério era a competência técnica. Com isso somente as rádios melhores equipadas e conseqüentemente as que detinham maior capital é que ganhavam as concessões. Ou seja, as alternativas novamente ficavam de fora. Mas o mais importante é que com o surgimento das rádios livres na Europa, nos anos 70, as pessoas passam da condição de ouvintes para a de agentes ativos de seus discursos e idéias. Mas lá a legalização acabou com o movimento. Revolucionárias Em Cuba, a Rádio Rebelde teve um importante papel no sucesso da Revolução Cubana, em fins dos anos 50. Ajudou a transmitir os ideais de justiça e pedia o fim do regime ditatorial de Fulgêncio Batista. Em El Salvador o rádio também teve importante papel na redemocratização do país. Foi o veículo usado pela oposição para divulgar as idéias e opiniões. Eram as chamadas rádioguerrilheiras. Tinham apoio da população, mas a repressão por parte do governo era tão forte que contava até com ajuda dos Estados Unidos para combatê-las. Che Guevara dizia que rádios livres chamam a atenção e estimulam o povo a pensar sobre a opressão e a lutar por liberdade. “Uma rádio estimula o povo a lutar pelos seus ideais. A rádio explica, ensina, excita, determina, entre amigos e inimigos, as futuras posições. Mas deve obedecer ao princípio fundamental que é a verdade. Uma pequena verdade, mesmo quando tem pouco efeito é preferível a uma grande mentira vestida de gala”, dizia 52 Nas Ondas Comunitárias Como montar uma rádio livre “Rádio livre nada mais é do que tecnologia de fundo de quintal capaz de reverter o processo de desinformação e centralismo cultural. A Constituição Federal, Artigo V, Inciso IX , fala de direito de expressão. Rádio livre é a voz do povo para o povo, onde vale a idéia e a cultura de uma população calada, submissa que vive de mandos e desmandos dos poderosos. Todos têm direito a se comunicar no invento do padre Landell de Moura, patenteado por Marconi em fins do século XIX. Por isso, vou ensinar como montar uma rádio livre”. Chico Lobo 1. Criar uma associação cultural e comunitária, legalmente constituída e sem fins lucrativos ; 2. Instalar em local viável técnica e topograficamente; 3. Adquirir a aparelhagem suficiente: dois CD’s players, um ou dois toca fitas, um toca discos; uma mesa de som com no mínimo seis canais; dois ou três microfones, um sintonizador, um transmissor, uma antena e cabo coaxial. 4. A instalação deve ser feita por um técnico; 5. Cada membro da associação pode colaborar com CD’s, discos e fitas; 6. Definir as funções e responsabilidades de cada componente; 7. Formar um conselho editorial; 8. A participação da população na programação, seja gravada ou ao vivo é fundamental; 9. Liberdade de expressão acima de tudo 10.Criatividade na programação 53 Nas Ondas Comunitárias Rádio Comunitária Dona Edith Criar um canal de comunicação alternativo e aberto aos moradores do Loteamento Dona Edith, uma das comunidades mais carentes de Blumenau, foi a proposta do projeto experimental de Regina Hostin, formada em jornalismo na Univali em 1996. Ela elaborou um programa piloto com notícias do Loteamento, reivindicações dos moradores e músicas. Tudo feito com base em pesquisa realizada na comunidade, que definiu a linha editorial, o nome do programa, as notícias que seriam veiculadas, tipos de músicas e outros detalhes. A idéia era veicular este programa por meio de um sistema de alto-falantes que seria instalado em cinco postes localizados em pontos estratégicos. O sistema de alto-falantes é uma forma mais econômica e simples de se fazer uma rádio comunitária. Na época, com R$ 2,5 mil seria possível comprar toda a aparelhagem necessária, como amplificador, tape-deck, toca discos, microfone, cornetas, caixa de som e outros acessórios. Este valor dividido entre as 240 famílias do Dona Edith, cada uma pagaria R$ 10,41. O projeto não foi colocado em prática em razão de outros compromissos assumidos por Regina. Ela também achou que o sistema de alto-falantes seria meio anti-democrático, já que todos os moradores teriam que ouvir a rádio. Em 1998, quando um grupo de pessoas discutia a criação de uma rádio comunitária em Blumenau e decidia participar do Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias em 54 Nas Ondas Comunitárias Santa Catarina, o então presidente da Associação de Moradores do Loteamento Dona Edith, José França, demonstrou interesse pela idéia. Porém, não deu continuidade. No projeto, Regina explica como fazer para montar o conselho popular e criar uma associação para administrar a emissora. Como a rádio seria por alto-falantes, segundo ela, bastava pedir autorização à prefeitura e à Celesc para instalar as cornetas nos postes. Mas se fosse por transmissor, precisaria pedir uma concessão ao antigo Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), hoje Anatel e tudo estaria resolvido. Só que as coisas não eram tão simples assim. Na época, estavam apenas começando as primeiras discussões para criação da lei que regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária. E qualquer tentativa ou experiência de rádio comunitária era expressamente proibida e os responsáveis sujeitos a penalidades, ou arbitrariedades da Polícia Federal e do Dentel. O primeiro projeto de lei foi apresentado no Congresso Nacional em 1996, pelo Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações. Entre outras coisas estabelecia potência de pelo menos 250 watts para as rádios comunitárias. O que foi aprovado e transformado na Lei 9.612 tem apenas 10% desta potência. Ou seja, as rádios comunitárias só podem operar com 25 watts e ainda abrangência de um quilômetro de raio. Como se tratava de uma prática editorial em rádio, ou um programa piloto, em seu projeto Regina Hostin não citou nenhuma experiência de rádio comunitária no Estado. Apesar que já existiam muitas no ar. Uma delas era a própria Rádio Terra Livre FM, que na época começava suas atividades em Abelardo Luz. Em São Bento do Sul também existia a Rádio Liberdade, lacrada pela Polícia Federal em fins de 1996. 55 Nas Ondas Comunitárias Uma luta que não pode morrer A grande discussão em torno de rádio comunitária atualmente é se as emissoras livres que estão no ar devem ou não se adequar à lei. O artigo 5º, inciso IX da Constituição Federal diz que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Com base nisso, muitas pessoas entendem que não tem necessidade de regulamentar o serviço de radiodifusão de baixa potência. Até porque, com as inúmeras limitações impostas pela lei, as rádios comunitárias serão menos combativas e, com isso, deixarão de cumprir seus objetivos. Mas como manter uma rádio comunitária livre no ar, se a fiscalização dos órgãos oficiais e, principalmente, a pressão exercida pelas rádios comerciais contra esse tipo de serviço é cada dia maior? As experiências mostram que rádio comunitária não é nada do que dizem os donos de grandes grupos de comunicação em campanhas publicitárias contra essas “emissorazinhas”. A saída, então, será a resistência, a mobilização da população em defesa do direito de falar nas ondas do rádio. Isso é o que defende o Movimento em Defesa das Rádios Comunitárias. Um movimento formado por agricultores, lideranças comunitárias, mulheres, jovens, operários, 56 Nas Ondas Comunitárias sindicalistas, desempregados, trabalhadores, enfim, pessoas que não encontram espaço nos veículos da grande imprensa para fazer suas reivindicações, e decidiram usar o veículo de comunicação inventado pelo padre Landell de Moura, no século XIX, para dizer o que pensam, o que querem e o que fazem. Não são se trata de um movimento corporativista que defende apenas a criação de rádios comunitárias em todos os cantos do País. Ele surgiu, principalmente, para envolver a população em geral numa discussão que merece a atenção de todos: a democratização dos meios de comunicação. O movimento luta, sobretudo, para construir uma sociedade com mais justiça social e verdadeiramente democrática. Nesta reportagem procurei mostrar um pouco dessa luta. Talvez não da forma como gostaria. A idéia era conhecer outras experiências para contar ainda mais histórias. Mas, acredito que o leitor terá ao menos uma noção do que significa essa luta que não pertence apenas aos que estão diretamente ligados à ela. É uma luta que a sociedade não pode, não deve e não vai deixar morrer. Mais do que contar histórias e mostrar o dia-a-dia de duas importantes rádios comunitárias, procurei me envolver ainda mais no movimento e compreender o que ele representa para a construção da sociedade que desejamos. Procurei, principalmente, deixar de lado a imparcialidade e seguir o que recomenda Ricardo Kotscho: “jornalista não deve ter medo de tomar posição”. 57 Nas Ondas Comunitárias 58 Nas Ondas Comunitárias