INOVAÇÕES TÉCNICO-PRODUTIVAS, DISPOSITIVOS COLETIVOS E
DESENVOLVIMENTO RURAL: A AGROECOLOGIA NO OESTE DE SANTA
CATARINA E NO AGRESTE DA PARAÍBA
[email protected]
APRESENTACAO ORAL-Agropecuária, Meio-Ambiente, e Desenvolvimento
Sustentável
CYNTHIA XAVIER DE CARVALHO1; GUILHERME RADOMSKY2; EDGARD
MALAGODI3; VALÉRIO VERISSIMO BASTOS4.
1.UFPE-CAA, RECIFE - PE - BRASIL; 2.PPGAS-UFRGS/UNIVERSITY OF NORTH
CAROLINA AT CHAPEL HILL, PORTO ALEGRE - RS - BRASIL; 3.UFCG,
CAMPINA GRANDE - PB - BRASIL; 4.UEPB, CAMPINA GRANDE - PB - BRASIL.
Inovações técnico-produtivas, dispositivos coletivos e desenvolvimento
rural: a agroecologia no Oeste de Santa Catarina e no Agreste da Paraíba
Grupo de Pesquisa: AGROPECUÁRIA, MEIO-AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Resumo
Este artigo analisa experiências em agroecologia e certificação participativa, a partir de
pesquisas junto a agricultores familiares, mediadores e consumidores do oeste de Santa
Catarina e do agreste de Paraíba. Dispositivos coletivos, redes sociais e inovações baseadas
no conhecimento local aparecem como fundamentais para os sucessos das experiências.
Em Santa Catarina, a organização em rede, a participação e a horizontalidade do processo
foram cruciais na criação do mecanismo de confiança (o selo) e base da própria agricultura
ecológica. Na Paraíba, os formatos técnico-produtivos, as organizações coletivas e as redes
que se formam propõem novos vínculos territoriais no interior dos quais se encontra a
perspectiva agroecológica. A autonomia e as inovações no território estão relacionadas.
Primeiramente, a autonomia está ligada à geração de redes e à eficácia de dispositivos
coletivos produzidos localmente. Em segundo lugar, as inovações são derivadas da
natureza local, histórica e coletiva do conhecimento aplicado, sendo também resultados das
redes de relações. Ambas arquitetam um funcionamento para a produção de novidades e
credibilidades que tendem a edificar um novo panorama para o (entendimento do)
desenvolvimento rural.
Palavras-chaves: agroecologia; certificação; dispositivos coletivos; inovações.
Abstract
This article analyzes experiences in agroecology and participatory certification from
fieldwork researches within family farmers, brokers and consumers of the west of Santa
Catarina and of the Agreste of Paraiba states. Collective apparatus, social networks and
innovations based on local knowledge appear as fundamental for the successes of the
experiences. In Santa Catarina, network organization, participation and the horizontality of
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the process were crucial to the creation of the trust scheme (the label) and also the basis of
ecological agriculture itself. In Paraíba, technician-productive formats, collective
organizations and the networks propose new territorial bonds within which the
agroecological perspective is constructed. In both cases, autonomy and territorial
innovation are related. Firstly, the autonomy is linked to the generation of networks and the
effectiveness of the collective apparatus locally developed. Secondly, the innovations are
derived from the local, historical and collective applied knowledge, being also results that
emerged from network relationships. Both of them put together an operation for the
production of innovations and trustworthiness that leads toward a new panorama for the
(understanding of the) rural development.
Key-words: agroecology; certification; collective apparatus; innovations.
1 INTRODUÇÃO
A agricultura ecológica faz parte de uma ampla transformação social dos espaços
rurais, tanto no Brasil como no exterior, e possui matrizes próprias de desenvolvimento
recente no âmbito das ciências em conjunto com a recuperação de formas tradicionais de
cultivo. De certo modo, ela se insere num processo social de mudanças desencadeadas a
partir da crescente preocupação com formas ambientalmente salutares de produção e
consumo, inscrevendo-se numa agenda para reconversão de espaços rurais em direção a
formatos técnico-produtivos mais sustentáveis. No interior destas transformações, que têm
relações diretas com o advento da globalização, a agroecologia emerge nos espaços rurais
conforme os diferentes territórios são historicamente constituídos. Portanto, entender como
essas mudanças se vinculam com outros processos sociais, econômicos e políticos em
determinados espaços se torna um modo de compreender como diferentes experiências na
agricultura ecológica se concatenam.
Este texto apresenta uma discussão sobre experiências em agroecologia no Oeste de
Santa Catarina e no Agreste da Paraíba de modo comparado. O trabalho se estrutura em
torno das práticas, processos e formas de organização que são utilizadas pelos agricultores
– bem como por demais atores do meio rural – visando a manutenção e a reprodução em
termos sociais e produtivos dos atores envolvidos e que podem surgir de inovações locais.
Basicamente, o objetivo é compreender o papel das inovações, das redes e das formas de
conhecimento local para a configuração de novos formatos técnico-produtivos e de
arranjos sociais que possam fornecer novas modalidades de entendimento do
desenvolvimento rural. Nossa hipótese está na centralidade do que estamos denominando
de dispositivos coletivos, conceito a ser apresentado na próxima seção. Estes pontos são
trabalhados a partir de uma análise conjunta das situações identificadas nestes dois estados,
descrevendo, no caso de Santa Catarina, as experiências de certificação participativa na
agroecologia da Rede Ecovida – tendo como caso empírico o núcleo de Chapecó do Oeste
do Estado – e, na Paraíba, experiências desenvolvidas por agricultores agroecológicos do
município de Lagoa Seca.
Do ponto de vista metodológico, o trabalho faz uso, sobretudo, de entrevista
qualitativa como técnica de coleta de dados por meio de roteiro de questões. No entanto,
sendo um roteiro passível de relativa flexibilidade, os pesquisadores também se valeram de
situações etnográficas nas quais se realizaram observações entre os atores sociais e, desse
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modo, obtiveram-se descrições mais apuradas das realidades locais. Com isso, igualmente
importante é sublinhar que os dados utilizados para ambos os Estados também recobrem
um grande número de pessoas entrevistadas informalmente em reuniões, encontros, dias de
campo e pequenas assembleias. Em Santa Catarina foram realizadas entrevistas com cinco
famílias de agricultores, cinco mediadores e quatro consumidores. Na Paraíba, além de
contato com mediadores, foram visitadas cinco experiências de agricultores que
apresentam características diferenciadas, selecionando-se os casos de acordo com o maior
ou o menor grau de relacionamento, mais especificamente com as entidades coordenadoras
do movimento (Sindicato e Pólo Sindical), que por sua vez também estão relacionadas com
as organizações não-governamentais presentes na região (ONGs).
O artigo apresenta resultados de pesquisa no âmbito do projeto “Sementes e brotos
da transição: inovações, poder e desenvolvimento nas áreas rurais do Brasil” (IPODE),
financiado pelo CNPq. Trata-se de um projeto de natureza coletiva e interinstitucional,
cujo objetivo é abordar, comparativamente, processos inovadores relacionadas ao
desenvolvimento rural e à agricultura familiar nas regiões sul e nordeste do Brasil. O texto
inicia-se com uma breve discussão teórica. A parte seguinte apresenta a caracterização e
contextualização dos locais de pesquisa. Discutem-se, após, as experiências em
agroecologia nas duas regiões, focando-se nas inovações, dispositivos coletivos,
mediadores e a construção da autonomia. Ao final, são tecidas algumas considerações com
uma análise comparativa sintética.
2 AGÊNCIA, INOVAÇÕES E O PAPEL DAS REDES NOS PROCESSOS SOCIAIS
Agricultores, mediadores e consumidores, como distintos atores envolvidos na
agroecologia, tornam-se atores sociais na medida em que se inserem em redes de relações.
A noção de “ator social” pode ser apreendida a partir do exposto em Menezes e Malagodi
(2009), ao buscarem os trabalhos de Long e Long (1992) e Ploeg (2008) que, por sua vez,
valem-se de avanços recentes das teorias de Bourdieu, Giddens, Latour e outros. Para
Menezes e Malagodi, no centro da definição de “ator social”, está a noção de “capacidade
de agente” – posse de habilidades – que pressupõe a existência de uma rede de ações que
ocorrem com intensidade e forma diferentes, mas que influenciam a todos mutuamente.
Assim, a noção de ator é reconfigurada na teoria social nos últimos anos quando passa a
estar relacionada diretamente a noção de rede (LATOUR, 2005). Os processos de
formação de redes envolvem coletivos heterogêneos e, nestes, dois elementos são basilares
das ações que abrangem processos sociais agrários: a arquitetura da mediação entre
agricultores e outros grupos sociais e a construção de dispositivos coletivos no ambiente
rural.
A noção de mediador tem um pressuposto de poder, da possibilidade de fazer
mundos diferentes serem traduzidos e exercício de um papel dinâmico. Como mostraremos
adiante, mediadores não são apenas técnicos de organizações ou do Estado, envolvem
agricultores e até mesmo consumidores e líderes das comunidades. Já a noção de
dispositivos dá expressão primordial às relações sociais, redes de cooperação, confiança e
compromisso, sendo basicamente um “patrimônio eficaz” baseado em laços sociais,
entretanto, permeado por desequilíbrios, jogos de poder e conflitos (DIAS, PIRAUX,
2008).
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Ambos conceitos são fundamentais para a discussão contemporânea sobre o
desenvolvimento rural (e suas formas locais, territoriais ou endógenas) e o papel das
inovações. Inovações podem ser levadas de um lugar a outro, isto é, podem ser mediadas e
apropriadas, mas também podem ser construídas e gerenciadas de outro modo. Aspecto
que permite introduzir o que Oostinide e Broekhuizen (2008) denominam de “novidades” –
inovações que surgem da experiência propriamente local. Aqui, o que se destaca é o papel
das formas situadas de conhecimento: as novidades que surgem destes processos e das
formas de transação locais, de caráter endógeno, e que, portanto, podem ser vistas, a
exemplo do exposto por Ploeg et al. (2004), como “sementes de transição”. Ou seja, como
elementos dinamizadores do desenvolvimento rural (sustentável) num cenário diferente.
Construções baseadas nas tentativas, experimentações (SABOURIN, ALMEIDA,
1999) e heranças culturais são capazes de potencializar o desenvolvimento rural,
compreendido a partir do protagonismo dos agricultores (e outros atores locais) e da
valorização de formas especificas de se pensar e de se fazer agricultura. No entanto,
inovações de fora, quando apropriadas localmente, também demonstram o poder da
mediação e dos coletivos locais para reinventarem usos sociais de técnicas e de saberes.
Mesmo assim, é preciso observar como interagem essas duas dinâmicas. Nas
experiências em que se combinam conhecimentos situados, técnicas apropriadas (de fora)
com novidades produzidas contextualmente, emergem elementos que podem contribuir, ao
nosso entendimento, para um novo modo de se articular o desenvolvimento rural (PLOEG
et al., 2004). Nestas, por um lado, reconfiguram-se os papéis destinados às inovações
promovidas e difundidas por organizações ou instâncias identificadas com a ciência, uma
vez que extensão rural e pesquisa podem ser aliadas e não as únicas depositárias de
geração de saberes para o campo. Por outro, novidades surgem igualmente do
agenciamento efetuado pelas relações em rede, pois os locais são articulados a dinamicas
mais gerais. Após um balanço sucinto das perspectivas teóricas que guiam a reflexão,
segue a caracterização das localidades pesquisadas e suas contextualizações históricas.
3 CARACTERIZAÇÃO DAS ÁREAS DE PESQUISA
3. 1 Oeste de Santa Catarina: município de Chapecó.
Chapecó localiza-se no oeste do estado de Santa Catarina, sendo município divisa
com Rio Grande do Sul. É o maior centro urbano da região, com 164 mil habitantes, ampla
maioria no meio urbano, e o IDH-M do município era de 0,848 para o ano 2000. A região
passou por ciclos de produção, iniciando com a extração e venda da madeira na segunda
década do século passado. De fato, este processo foi responsável pelo começo da
colonização do espaço por famílias de agricultores (especialmente oriundos do RS) que
compravam terras no lugar. Mas no local já habitavam populações indígenas e lusobrasileiras, que permaneceram à margem do acesso primordial a terra. O Estado brasileiro
foi ator crucial que destinou estas terras à colonização para uma agricultura de base
familiar e de origem europeia, o que marca todo o tecido social da região até o período
contemporâneo. O essencial, nesta política de Estado, era formar uma agricultura que
Seyferth (1990 apud RADIN, 1996) denominou de policultora e de estilo camponês,
marcadamente diferente da grande propriedade rural, na qual o ímpeto de desbravamento
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das matas pelos colonos seria uma forma de se apropriar do espaço e produzir alimentos,
semelhante ao discurso que se pronuncia sobre o processo de colonização italiana na Serra
gaúcha (RADOMSKY, 2006).
Com a modernização da agricultura, algumas décadas mais tarde, produtores que já
criavam suínos e outros pequenos animais passaram à especialização nessas atividades.
Nos anos 1970, o Estado passa a estimular a agroindustrialização de suínos e dá subsídios
as grandes empresas e cooperativas para a integração vertical, processo que enfrenta, já nos
anos 80, a crise desse modelo (ROVER, 2007). Nas últimas décadas as culturas de grãos,
já praticadas anteriormente, também se tornaram expressivas no local; pode-se afirmar que
os agricultores diversificados (agroecológicos ou não) são poucos comparados aos que
seguem o modelo de produção em escala. É possível observar também, apenas a título de
caracterização da economia, que a região possui um número considerável de agroindústrias
pequenas, médias e algumas grandes, além de indústrias de outros ramos também.
O meio rural de Chapecó contava no ano de 2000 com cerca de 3.300 famílias
(aproximadamente 7 % do total de famílias do município), entre agricultores familiares e
outros moradores. Toda a região Oeste possui uma expressiva quantidade de pequenas
agroindústrias diretamente vinculadas a agricultores familiares. Estas produzem queijos,
salames, vinhos, sucos, geléias, conservas e, dentre estas, uma quantidade razoável faz
parte de cooperativas de comercialização.
No que diz respeito mais especificamente à caracterização das propriedades rurais
no meio rural de Chapecó, os dados disponíveis mostram que suas extensões variam
geralmente de pequenas a médias, com tamanhos diversos e mais de 90% até 50 hectares
(os municípios nos arredores possuem a estrutura fundiária muito semelhante). Cabe
perceber que os agricultores ecológicos, que são em número de 33 em Chapecó (8
certificados, 25 em transição) e são os produtores mais diversificados do local, possuem
geralmente tamanhos de propriedade menores que a média, algumas com pouco mais de 1
ha até outras com cerca de 25 ou 30 ha.
De modo crucial, a perspectiva sobre a qual se assenta a agroecologia na região se
vincula da maneira como a agricultura familiar se consolidou no oeste catarinense. Embora
ela encontre expressão, de algum modo, na negação ao modelo produtivista e deletério da
natureza que o processo territorialmente construído ao longo de gerações efetivou, o
panorama cultural e a estrutura social são tributários desta mesma história. Neste processo
contraditório, condensado aqui em poucos parágrafos, encontramos as particularidades da
agroecologia como uma construção social que adquire um matiz bastante próprio na região
e que igualmente fornece elementos para compreender a certificação.
Um dos fatos marcantes para a experiência de construção da agroecologia em
Chapecó é a ligação embrionária entre as formas de produção orgânica e a certificação dos
produtos. Isto é, desde que se iniciam projetos de conversão agroecológica ao final da
década de 1990 o tema certificação já aparecia entre os atores sociais locais. Cabe aqui
descrever o processo com minúcia.
Desde meados dos anos noventa, o Brasil vinha sendo pressionado para criar regras
para o setor orgânico que fossem válidas internacionalmente. Este movimento foi
primeiramente implantado pelos países centrais e foi especialmente quando a então
Comunidade dos Estados Europeus e os Estados Unidos efetivaram suas normas de
produtos orgânicos que outras nações necessitaram se adequar. O Ministério da
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Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) convidou entidades atuantes com grupos
de produtores orgânicos para estabelecer marcos para a produção ecológica no país e,
simultaneamente, discutir os processos de certificação, objetivando, dentre outras
finalidades, atingir os patamares para exportação. Este diálogo entre o MAPA e as
entidades durou anos e teve poucas concordâncias, mas a questão central era que
dificilmente o Brasil escaparia de uma política de certificação de alimentos orgânicos.
Nesse sentido, quando foi criada a Rede Ecovida no final dos anos 90, já existia no país o
debate sobre certificação e normas harmonizadas para o setor de orgânicos (ainda não o
texto final). Particularmente, não se pode afirmar que as certificações no mundo foram
obras de Estados tão-somente, pois os selos foram criados por organizações locais, tais
como o projeto do selo Blue Angel na Alemanha em 1977, entidades de certificação na
Califórnia ainda nos anos setenta (GUTHMAN, 2004) e mesmo experiências no Rio de
Janeiro e em Porto Alegre em meados dos anos oitenta (RADOMSKY, 2009).
Na Rede Ecovida, portanto, um modo de certificação diferenciado foi estudado
com a finalidade de simultaneamente certificar os alimentos criando mercados e construir
pedagogicamente a agroecologia. Sob estas diretrizes é que, no âmbito da Rede, a
certificação participativa e responsabilizada foi o método coletivamente escolhido.
Ressalta-se que o Brasil acabou aprovando muito recentemente as regras para orgânicos e,
de maneira distinta aos outros países, se consolidaram legalmente as formas de certificação
por terceira parte e também as participativas.
No caso do Oeste catarinense, os atores perceberam que naquele momento – fins
dos anos noventa – era necessário diferenciar os produtores ecológicos dos convencionais,
controlar a procedência e demarcar para os consumidores a garantia de alimento orgânico,
bem como estimular a prática agroecológica por meio das feiras municipais. Nesse sentido,
técnicos e agricultores lideres planejaram a conversão para agricultores do local com o
apoio dos núcleos mais antigos da Rede (Ipê – Antonio Prado, no Rio Grande do Sul).
Fundamental foi implantar e estimular a agroecologia na região por meio de uma mudança
de pensamento sobre a questão ambiental, tendo como égide a forma participativa e
responsabilizada de certificação e o vínculo de proximidade com consumidores.
Mais detalhadamente sobre a particularidade do processo social em Chapecó, podese afirmar que, entre 1998 e 1999, a prefeitura de Chapecó reforma as feiras livres,
existentes desde o fim dos anos oitenta. A ideia inicial, conduzida por agricultores
interessados em transformar processos produtivos, mediadores, professores e técnicos do
Estado, era de que todos os feirantes se convertessem para agroecologia, no entanto muitos
não fizeram (alguns iniciaram e não conseguiram ou não quiseram completar a transição).
O poder público, preocupado em não destituir o novo formato das feiras (que passaram a
contar com novas estruturas e espaços na cidade) acabou aceitando agricultores
convencionais e ecológicos, dando o nome de Feira de produtos coloniais e
agroecológicos que hoje acontece em dez pontos do município. Naturalmente, a
certificação da Ecovida foi obtida por aqueles que se mantiveram na agroecologia.
Portanto, é preciso destacar quatro pontos até aqui examinados. Primeiro, a
certificação participativa encontra-se em meio ao conjunto de certificações que os
mercados de orgânicos geraram, porém ela se afirma como diferente justamente por sua
natureza coletiva e preocupada com a formação do agricultor e o vínculo, numa cadeia
curta, com o consumidor. Segundo, o processo de constituição da agroecologia e da
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certificação no Oeste de Santa Catarina teve em três grupos sociais os seus pilares:
produtores, técnicos/mediadores (do Estado e de organizações não-governamentais) e
consumidores. Terceiro, caso seja possível analisar a experiência pelo ponto de vista da
ação de pessoas ou famílias específicas (líderes), é preciso ressaltar a atuação de
organizações coletivas. Quarto, o Estado foi crucial na implementação, contudo o processo
como um todo não se pode atribuir a esta entidade, uma vez que já existiam formas mais
ou menos informais de certificação anteriores no país e no exterior1. Além disso, a
perspectiva de mercados segmentados e o processo de diferenciação dos produtos podem
ser considerados uma tendência própria do capitalismo recente.
Cabe fazer uma breve caracterização dos organismos da sociedade civil que
possuem desempenho em Chapecó e no oeste catarinense tanto entre agricultores
convencionais como entre os agroecológicos, as organizações coletivas. A APACO
(Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense) é a associação mais
importante, congregando agricultores da região e abrigando técnicos para trabalhos
diversos (extensão rural, conversão à agroecologia, educação sobre selos ecológicos,
agroindustrialização). Existente desde fim dos anos oitenta, a APACO age também no
surgimento de novos núcleos da Ecovida na região, estimulando a concretização de
seminários e a difusão de informações sobre produção de orgânicos e sobre as políticas
governamentais para o setor. Há também a Associação dos feirantes, a Unochapeco
(Universidade Regional), com atuação através do Curso de Agronomia e o GTA – Grupo
de Trabalho em Agroecologia e através de ações de extensão pela Incubadora Tecnológica.
Passaram-se cerca de dez anos desde o início da experiência e, neste período, o
grau de enraizamento e a construção social dos mercados para agroecologia certificada de
forma participativa são efetivos. Sempre um processo complexo e que envolve um
contínuo esforço dos atores protagonistas, os agroecologistas se vêem frente a novas
normas para o setor de orgânicos e formatos mais burocráticos de certificação participativa
que, em nível federal, são harmonizados. É o caso do decreto n. 6.323 de 2007 que reforça
a certificação participativa pelos Sistemas Participativos de Garantias (SPGs) e chancela os
Organismos Participativos de Avaliação de Conformidade (OPACs), no entanto também
dispõe sobre a necessidade do Estado (por meio do MAPA) de fiscalizar e tornar mais
transparente a atuação de todas as certificações participativas no Brasil.
3. 2 Agreste da Paraíba: o município de Lagoa Seca
Lagoa Seca situa-se na Mesorregião do Agreste da Paraíba, Microrregião de
Campina Grande, caracterizada pelo bioma Caatinga2. Com uma população aproximada de
1
De qualquer modo, não se deve subestimar os desígnios do Estado, neste caso. Como já destacado, uma das
políticas que tiveram efeito na promoção da agroecologia em Chapecó foram as leis municipais que
estabeleceram os novos formatos das feiras e as que forneceram as regras de conformidade orgânica
municipal (leis do ano de 1999). Ainda no início da experiência, houve incentivos municipais para a
formação (educação, cursos, seminários), dias de campo e fundo para compra de máquinas. Além destes,
destacam-se as atuações da EPAGRI (Empresa de Extensão Rural e Pesquisa do Estado) e, indiretamente, de
políticas públicas que favoreceram agricultores familiares ecológicos, como a merenda escolar e o PAA.
2
Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em: 09.12.09.
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24.937 habitantes e 16.042 residindo no campo3, apresentava um IDH-M de 0,612 para o
ano de 2000. Em termos territoriais, o município dispõe de um total de 33 comunidades
rurais que ocupam aproximadamente 70% da área (ALMEIDA, s.d).
Para contextualizar histórico e espacialmente o município, cumpre observar que o
perfil produtivo do Agreste nordestino foi se caracterizando por uma sucessão de ciclos
produtivos, com a alternância do predomínio de determinadas atividades agropecuárias
sobre outras (cultivos da cana-de-açúcar, do algodão, do café, do sisal e do fumo, bem
como a pecuária), a depender das condições de produção local e do cenário
economicamente mais promissor. No entanto, essas atividades produtivas mais voltadas
para o abastecimento do mercado, sempre conviveram, em maior ou menor grau, com a
presença de lavouras tradicionais de subsistência, em geral cultivadas por agricultores
familiares detentores de menores áreas, parceiros e moradores. A alternância dos ciclos
produtivos e a manutenção de lavouras alimentares para consumo local caracterizaram o
Agreste como uma região diversificada (MOREIRA, 1997; ANDRADE, 1986). Esse
processo histórico foi acompanhado de um aumento demográfico, ocasionado pelo
dinamismo das culturas de mercado na região que, conforme se observa em estudos da
área, foi um dos fatores que contribuiu para a fragmentação de terras e para o decréscimo
dos espaços disponíveis para as atividades produtivas. Este fato, somado aos problemas
decorrentes do padrão produtivo divulgado pelo processo de “modernização” da
agricultura, foi conduzindo a sérios problemas ambientais, sociais e econômicos.
Inserido no contexto no qual o processo de ocupação possibilitou a presença
histórica da agricultura familiar, o município de Lagoa Seca apresenta uma estrutura
fundiária composta de aproximadamente 1.820 estabelecimentos agropecuários, sendo
90,13% com menos de 10 hectares e aproximadamente 77% com menos de 5 ha. Do total
de estabelecimentos, 1.592 unidades agropecuárias foram classificadas como pertencentes
ao segmento da agricultura familiar (contabilizando 87,47% do total)4. Considerando que
para a região em questão define-se 12 hectares como o tamanho do módulo fiscal5, o que
se observa é uma estrutura fundiária formada basicamente por estabelecimentos com
menos de meio módulo fiscal, portanto, podendo ser classificados como minifúndios.
Com a agricultura camponesa especialmente voltada para a produção de
hortifrutigranjeiros, o município situa-se estrategicamente próximo ao mercado
consumidor, respondendo por grande parte do abastecimento regional desses produtos, se
comparado a produção que é escoada de toda a região semi-árida e da parte sul e leste do
município de Campina Grande, embora, como será exposto adiante, com sérios problemas
de infraestrutura. A comercialização de outros produtos da agropecuária - incluindo-se leite
(850 mil litros), ovos (82 mil dúzias), mel de abelha (1.900 kg), flores, citrus em geral,
dentre outros produtos6 – é direcionada em sua maioria para mercados regionais.
Atualmente Lagoa Seca é grande fornecedora para o município adjacente, Campina
Grande, que conta hoje com quase meio milhão de habitantes, e para a capital do Estado,
João Pessoa.
3
População residente em 01/04/2007 (IBGE).
Censo Agropecuário de 2006 (IBGE).
5
IE/INCRA Nº 20.
6
IBGE, Produção da Pecuária Municipal 2008.
4
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Visto isso, cabe fazer igualmente uma rápida caracterização dos organismos da
sociedade civil com forte desempenho na Paraíba. Para o estado como um todo é possível
apontar, já nas décadas de setenta e oitenta, para a atuação de instituições, a exemplo do
PATAC (Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas às Comunidades) (mais
fortemente no município de Soledade e no Cariri), do Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Lagoa Seca, e da CAAASP (Central das Associações dos Assentamentos do Alto Sertão
Paraibano). Com o objetivo de melhorar as condições de vida no campo e de valorização
da agricultura familiar, o PATAC foi um dos grandes incentivadores de ações voltadas
para o uso de tecnologias apropriadas, alçando debates sobre as questões da captação e do
armazenamento de água na região e já delegando um papel central ao conhecimento local.
No princípio da década de 90, buscando ampliar o debate e encontrar saídas e
propostas para superar as dificuldades vivenciadas pelo campesinato na região, além do
sindicato de Lagoa Seca, ganhou destaque a participação de mais sindicatos de
trabalhadores rurais (STRs). Nesse processo, um conjunto de atividades foi sendo
proposto, incentivando o uso de alternativas produtivas que respondessem às necessidades
dos agricultores, iniciando-se um movimento que cresceu a partir da década de 90 ao se
ampliar o leque de articulações, especialmente no contexto da ASA-PB (Articulação do
Semi-Árido Paraibano) e com a AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura
Alternativa ).
O início da mobilização da ASA-PB – que integra organizações em torno da troca
de experiências e metodologias focadas nas regiões semi-áridas – coincide com a chegada
da AS-PTA em um momento em que o STR de Lagoa Seca já apresentava uma pauta de
ações muito dinâmica de apoio à agricultura camponesa. A articulação do movimento
sindical com a AS-PTA, o PATAC e outras ONGs, no contexto da rede ASA-PB, em parceria com
universidades, igrejas e instituições de pesquisa, impulsiona as ações de cunho agroecológico na
região, inserindo-as numa dimensão territorial (CARVALHO e MALAGODI, 2008).
As parcerias entre as organizações locais foram sendo construídas com ações
conjuntas, mesmo com diferenciais de focos de atuação dados por cada uma delas. Por
exemplo, nas regiões mais específicas de atuação da AS-PTA (especialmente o Agreste), o
PATAC trouxe o programa de cisternas e de fundos rotativos. Nas áreas mais específicas
de trabalho do PATAC (município de Soledade e a microregião do Cariri), a AS-PTA
procurou organizar a metodologia da transição agroecológica. Esse processo, caracterizado
pelo diálogo entre distintas instituições e entre estas e os agricultores e mediadores em
geral, permitiu que se avançasse no intercâmbio de experiências e num tipo de divisão de
trabalho entre as instituições, visando à valorização de práticas e estratégias já existentes,
bem como descobertas de inovações técnicas e político-organizativas direcionadas para a
promoção da agricultura familiar em bases agroecológicas. Aqui, a ação dos sindicatos
locais (especialmente de Remígio, de Solânea e de Lagoa Seca), dando acesso às suas
bases para o trabalho de assessoria das organizações não-governamentais, aparece como
elemento importante na construção dessa dinâmica (CARVALHO e MALAGODI, 2008).
Acontece que o avanço das atividades sindicais nos municípios de Solânea,
Remígio e Lagoa Seca, e a regularização da parceria com distintas ONGs de perfil
agroecológico, foram levando à valorização da perspectiva agroecológica e ao
desenvolvimento de uma dinâmica singular de interação entre sindicatos da região que
levou à configuração do atual Pólo Sindical da Borborema – uma rede de organizações que
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conta com o apoio e participação de 16 sindicatos de trabalhadores rurais do estado, uma
associação regional de agricultores agroecológicos (ECOBORBOREMA) e mais de 150
associações comunitárias, além de parcerias com entidades não-governamentais locais e
nacionais, assim como com a rede Articulação do Semi-Árido (ASA-PB) (BASTOS, 2007)
A dinâmica de articulações e de trocas de experiências em torno das práticas
produtivas vem se apresentando através da realização de eventos, encontros, festas, visitas
de intercâmbio e, recentemente, nos atuais seminários para se discutir a “construção do
conhecimento agroecológico”, pensando-se ações coletivas a partir da integração de
diversos atores (camponeses, consumidores...) e instituições (governamentais, nãogovernamentais, de pesquisa...). Como exposto por Bastos (2007), inovações organizativas
de gestão coletiva de recursos como os Bancos de Sementes Comunitários (BSCs)7 e os
Fundos Rotativos Solidários (FRSs)8 foram dando força a este processo.
A proposta agroecológica na Paraíba, e em especial no Agreste, surge em meio a
uma forte articulação, envolvendo camponeses, consumidores, entidades sindicais e suas
associações de base, em parceria com outros movimentos sociais rurais e entidades nãogovernamentais, constituindo um cenário propício para a promoção das potencialidades da
agricultura familiar camponesa da região. Nesse contexto, atores e instituições passaram a
criar e consolidar redes sociais9, no interior das quais a agroecologia pode ser apontada
como um importante eixo na formação de uma “nova” configuração produtiva e social dos
territórios rurais, que acabam, em maior ou menor grau, por influenciar a prática produtiva,
a organização dos mercados e o comportamento dos atores.
Essa “nova” configuração produtiva e social dos territórios rurais não tem tido
como pressuposto uma total transformação nos processos produtivos no rural paraibano. E
é isso justamente que dificulta a sua análise por parte das ciências sociais: a agroecologia
não se insere de maneira uniforme. Ou seja, nem todos têm acesso às informações ou
participam desse processo, e, como exposto por Sabourin (2009), o acesso a determinados
tipos de conhecimento, por exemplo, não implica necessariamente o seu uso. Como
afirmado pelo autor, a partir de estudos na Paraíba referentes às representações dos espaços
e das redes que se formam, “os agricultores e os diversos atores com os quais se
relacionam no plano local mantêm uma série de relações e de prestações que produzem
fluxos de informações, saberes e práticas acerca da produção agrícola, mais ou menos
densos e ordenados” (SABOURIN, 2009, p. 201). Porém, os fatos analisados pelo autor –
também percebidos no âmbito da presente pesquisa – permitem inferir que “a inovação e o
saber são distribuídos e socializados de forma diversa” (p. 204), apontando-se para o fato
que essa diferenciação pode decorrer dentre outros fatores, de aspectos como: o peso das
normas sociais e familiares, a falta de recursos e a aversão ao risco.
7
Surgiram dos trabalhos das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Segundo Silva e Almeida (2007; p.
14), é um sistema pelo qual uma família toma emprestada uma quantidade de semente, comprometendo-se a
devolvê-la acrescida de uma percentagem, a depender das regras definidas na comunidade.
8
Poupança comunitária com gestão compartilhada, formada pelas contribuições das famílias ou entrada de
capital externo (de cooperação nacional/internacional ou de políticas governamentais) (Rocha e Costa, 2005).
9
Formas de associações que mobilizam organizações, ações e recursos, conformando “redes de movimentos”
ou “redes sociais” que podem ser organizadas em nível local, regional, nacional ou internacional, em torno de
novos temas, tais como: relações de gênero, proteção ao meio ambiente, defesa de estilos de vida
comunitários, etc. (GOHN, 2003; SCHERER-WARREN, 2005).
10
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O que será exposto é que, se de um lado a perspectiva agroecológica emerge como
reação de parte dos agricultores locais aos problemas decorrentes da anterior adoção de um
modelo de produção causador de externalidades negativas; de outro, aparece como um
reforço a um modo de vida e de produção já existente, contribuindo para revelar e legitimar
as estratégias produtivas já praticadas por agricultores familiares da região, antes
desconsideradas, ou simplesmente “invisíveis” - utilizando uma nomenclatura trabalhada
por Sabourin (2009). Se em determinados casos torna-se importante a noção de transição
agroecológica, em outros, a demanda se faz justamente em direção a um processo de
valorização das estratégias de adaptação já adotadas em face de determinadas situações.
Em todo caso, há um quadro de valorização do que é desenvolvido nas experiências e nas
dinâmicas de intercâmbio de saberes. O que ganha dinamismo com as articulações
enfatizadas anteriormente, embora paralelo a uma série de dificuldades.
4 INOVAÇÕES, DISPOSITIVOS COLETIVOS, MEDIADORES E AUTONOMIA
O estudo da agroecologia em Santa Catarina reporta-se às experiências da Rede
Ecovida, relativas à geração do selo e da certificação participativa. Cumpre observar que
apesar de nem todos os atores presentes no local estudado terem participado da formulação
do projeto da Rede, alguns estiveram presentes desde o início da discussão. Embora as
inovações pertençam em geral ao nível da Rede Ecovida, localmente o modo de atuação da
Rede foi apropriado pelos atores, que constituíram o grupo e a comissão de ética que zelam
pelas normas da agroecologia entre os agricultores da região; organizaram o formato do
grupo, as formas de reuniões, sanções, apoios e articulações com entidades externas. O
diferencial foi o trabalho de formação e a responsabilidade coletiva do grupo.
Os casos da Paraíba reportam-se às inovações que surgem na comercialização, mas
também na produção. No aspecto da produção, há uma heterogeneidade que se apresenta,
na prática, num conjunto de iniciativas que apontam em síntese, para: a diversificação das
atividades, a preocupação com o meio ambiente, a utilização de técnicas adaptadas às
condições locais, de fácil acesso e controladas pelos próprios agricultores e a produção de
alimentos sem uso de agrotóxicos. Há o movimento em torno da certificação participativa
dos produtos e da construção de novos canais de comercialização por cadeias curtas. Aqui,
a certificação ocorre informalmente, na configuração do que pode ser chamado de “selos
de confiança”, e passa a ser um diferencial face à experiência da Rede Ecovida.
Em ambos há razões sociais e simbólicas, além das econômicas, envolvendo as
experiências em agroecologia. A exposição, a seguir, inicia-se com referência às
experiências em Santa Catarina e, após, ao Agreste da Paraíba.
4. 1 O selo gerado em rede: a Ecovida no Oeste de Santa Catarina
Em Santa Catarina, o relevante é entender a forma como as famílias agricultoras
entram na Rede e como o trabalho de acompanhamento coletivo gera o respaldo do selo e a
perspectiva crítica sobre o conhecimento local aplicado à agroecologia e à certificação em
grupo. Organizada de forma coletiva, as famílias participam do grupo local da Ecovida a
convite dos outros membros ou por ficarem sabendo da existência do núcleo. Interessadas
na conversão, elas iniciam o processo na sua propriedade, que pode durar de um até três ou
11
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quatro anos. Nesse momento, acompanham os encontros do grupo, visitam propriedades e
lhes são transmitidas as normas da Rede. No grupo, são estimuladas as atividades agrícolas
diversificadas (que se orientam para a autonomia da família) e também a diversificação de
mercados; discutem-se as formas de comercialização, preferência dos consumidores,
espaços para novos membros, novos núcleos de proximidade, decisões tomadas pela
direção regional da Rede e as atividades das entidades parceiras. Também se debatem nas
reuniões ou nos encontros ampliados (menos frequentes) a assistência técnica, a troca de
conhecimentos, as ações do Estado e os programas governamentais de compra. Nesse
período de participação inicial da família, a propriedade deve ser visitada em alguns
momentos por um agrônomo que pode fazer um laudo da área. Porém, é o
acompanhamento entre produtores e a discussão frequente em reuniões e nas feiras que
torna a certificação participativa, pois as propriedades rurais das famílias em transição
devem estar “transparentes” para os outros membros do grupo, isto é, devem receber
visitas de seus pares. Por essa razão, o importante é a “vistoria” dos membros da Rede para
que o aval seja coletivo. O momento final da avaliação, o papel é da comissão de ética
(também parte do grupo local, geralmente composto por três agricultores) para proceder
(ou não, no caso de reprovação) a concessão do selo.
O mais curioso é que as entrevistas indicam que havia pouco ou nenhum
conhecimento anterior para a implementação do projeto/experiência. Alguns agricultores
afirmaram resgatar conhecimentos tradicionais das comunidades rurais, heranças das
antigas famílias, outros disseram que fizeram cursos em agroecologia no Rio Grande do
Sul. Portanto, da parte dos agricultores, os conhecimentos, tanto sobre selos como sobre
técnicas de produção orgânica, eram raros. Especificamente sobre a certificação, percebese que foi uma construção coletiva e que contou com o apoio fundamental de núcleos mais
antigos da Rede junto ao suporte de agricultores locais sensíveis ao problema da
certificação. Somam-se a estes os mediadores locais já interessados no tema e no
desenvolvimento da agroecologia da região e pesquisadores da área (técnicos da APACO,
da EPAGRI, da Secretaria de Agricultura municipal de Chapecó e professores
universitários). Esse cruzamento de discursos, experiências pessoais, conhecimentos
inovadores, origens sociais e práticas tradicionais formataram o modo como a Rede
Ecovida se materializou em Chapecó10.
Assim, permite-se considerar um ponto fundamental da experiência da Ecovida, a
autonomia. De fato, existe autonomia no processo desenvolvido no lugar, mas há também
diretrizes que são da Rede que foram construídas coletivamente de modo translocal. É
preciso ver, portanto, a dimensão relacional e coletiva do que seja a autonomia, haja vista
que conhecimentos e experiência em certificação eram particularmente externos ao local.
Mesmo assim, realça-se que, no princípio, havia (a) mediadores locais que já conheciam o
assunto do ponto de vista técnico e político e (b) agricultores que mantinham formas de
conhecimento situado-tradicional que constitui uma das bases para a agroecologia (o
“resgate” de técnicas e saberes dos antepassados). O que se sublinha é que a autonomia
10
Cabe chamar a atenção para os diversos relatos que indicam a dificuldade do Estado (nível estadual e
municipal) em oferecer subsídios em termos técnico-agronômicos para a produção agroecológica, sobretudo
o precário conhecimento acerca dos métodos de produção e do alcance da certificação, particularmente no
começo das atividades do núcleo.
12
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deve ser tratada aqui como relativa, pois havia protagonismo por parte de alguns e
voluntarismo por parte de muitos. Esta condição se associa à possibilidade de
experimentação, fato gerador de novidades no campo (STUIVER et al., 2004), que foi
desempenhado por agricultores em parceria com técnicos e estímulos econômicos e sociais
que provinham do conjunto de organizações locais.
Porém até aqui observamos o que diz respeito à autonomia de conhecimento e do
projeto coletivo. Por outro lado, os recursos e a autonomia financeira do processo
dependem, em nossa análise, do escopo da atividade. Tomando apenas a certificação, os
dados indicam que os recursos são provenientes dos agricultores associados à Rede: cada
família paga R$ 12,00 a Rede por ano. Tomando-se a experiência da certificação vinculada
à promoção da agroecologia como um todo, recursos iniciais foram obtidos junto ao MDA
para pagamento de assessoria e capacitação. Mas há também mais canais que podem ser
citados como fontes de recursos (não de dinheiro diretamente): da prefeitura de Chapecó
(extensão, dias de campo, apoio para cursos fora da região) e da EPAGRI (cursos,
hospedagem para cursistas no centro de treinamento, assistência técnica). Nesse sentido, a
autonomia financeira também é relativa, contudo pode-se afirmar que a ajuda externa foi
mais expressiva no princípio das atividades do núcleo, o que mostra que após certo período
de estímulo o grupo pôde avançar de maneira menos dependente.
Todavia, há uma dimensão da autonomia que diz respeito às relações horizontais no
grupo e a densidade de relações entre famílias e organizações. Há uma vantagem de
pertencer a um grupo local e, simultaneamente, à Rede. Os entrevistados afirmam trocar
informações e conhecimentos nas reuniões do grupo, enquanto nas reuniões da diretiva
regional o líder do grupo tem a obrigação de levar demandas e trazer ao grupo o que foi
tratado (dinâmica que foi acompanhada por meio de várias observações). Nessa dialética
ocorre a relação real e construtiva entre o local e os planos regional e nacional. Mas é ainda
mais complexo que isso, pois a maior parte dos agricultores tem participação em diversas
instâncias (associação dos feirantes, APACO, sindicato dos trabalhadores rurais, UCAF,
cooperativa Cooperfamiliar, feiras e festas de sementes), aspecto que demonstra a
densidade de organizações e as articulações políticas projetadas. Assim, a autonomia é um
conceito contraditório, pois a experiência aqui examinada evoca justamente que o processo
de constituição da Ecovida em Chapecó dependeu em larga medida da ampliação da
interdependência dos atores em três esferas: (1) nas relações interpessoais nos mais
variados ambientes; (2) nas organizações de caráter local (estatais e, sobretudo, nãoestatais); (3) na esfera especificamente em rede da Ecovida, isto é, na relação entre
núcleos11.
Em parte, este processo de criação de formas autonômicas e interdependentes no
processo de construção da experiência responde pela geração de laços sociais de confiança
e apoio, mesmo que se reconheçam problemas de conflito e rupturas sociais. É sobre este
aspecto que, na realidade, age o dispositivo coletivo (DIAS, PIRAUX, 2008). No caso da
11
Desse modo, a autonomia deve ser refletida em termos de autonomia em relação a quê (que
conhecimentos, que tipo de técnica, que formas de imposição e dominação) e a quem (Estado, entidades nãolocais). A certificação promove uma interação participativa com o exercício de crítica, da formulação de
sugestões e opiniões dos agricultores e dos técnicos sobre as propriedades nas reuniões, aspectos adjacentes
ao processo de fiscalização e concessão da certificação. Nisso, desenvolve-se um senso de educação mútua
aliado à prática de formação de um conhecimento coletivo.
13
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Ecovida, ele faz funcionar o princípio de controle coletivo por meio da participação e da
responsabilização nos membros. Por isso, a experiência tem como resultado a criação de
uma espécie de tecnologia social cujo fundamento é a própria manutenção dos laços
sociais de proximidade e o controle efetivo sobre práticas agroecológicas na propriedade –
neste, o selo é o ápice do trabalho social, é a ferramenta que garante este mesmo trabalho, e
não deixa de ser curioso como ela “condensa e sintetiza” um conjunto de atributos a serem
observados no produto levado ao mercado (BÖSTROM, KLINTMAN, 2008).
Todavia, não é de surpreender que a participação e o elo social se tornam
simultaneamente garantia e problema, responsável inclusive pela desistência de muitas
famílias. Na realidade, o tipo de certificação da Rede Ecovida “obriga a participar”, o que
estimula a interação constante entre os agricultores. Conflitos e desequilíbrios de poder são
comuns, inclusive porque a certificação fiscaliza, inspeciona, promove uma transparência
que nem todos desejam. O resultado é a exclusão ou sanção de alguns produtores. Além
disso, a própria participação é um custo, pois retira o agricultor de seu trabalho e de sua
propriedade constantemente e faz cada família se responsabilizar pelas outras.
Apresentamos que a experiência da Ecovida em Chapecó contou com três grupos
de atores sociais relevantes: agricultores, técnicos/mediadores e consumidores. A pesquisa
de campo indica, entretanto, que os dois primeiros grupos são mais ativos do que o último.
No entanto, mesmo entre estes, vale ressaltar a ideia geral de mediação e complexificá-la
com base no caso. Embora uma parte razoável dos mediadores encontre-se realmente no
segundo grupo, é preciso mencionar as exceções: (a) parte dos técnicos faz um papel
bastante passivo, portanto pouco caberia a denominação de “trabalho de mediação”; isto se
aplica tanto aos que atualmente se encontram em exercício como àqueles que exerceram
(ou deveriam ter exercido) função relevante no passado recente e abandonaram; (b) parte
da mediação é realizada de modo incessante é incansável por agricultores líderes.
Nestes dois casos, o que apreendemos é que realmente os mediadores foram
fundamentais para a experiência de Chapecó, tanto aqueles lotados em instituições de
pesquisa, ensino ou assistência técnica e associações e cooperativas, como da parte de
agricultores que tomaram liderança de processos. Assim, a “liderança” pode ser entendida
em duas formas: na construção política com o trabalho de animação e na formação e
transmissão de conhecimentos técnicos sobre agroecologia e certificação. Embora a
tendência seja associar a liderança político-associativa aos agricultores e o mundo da
técnica e do saber com os técnicos, na realidade a Rede preserva a formação do saber
dialogado e construído localmente. Isso não destitui a possibilidade de cooptação e a
tentativa, sempre presente, de fazer valer a ciência como saber universal acima dos
conhecimentos tradicionais. Mas a experiência coletiva e participativa coloca em questão
essa naturalidade e faz emergir os conhecimentos dos agricultores – porque estes dialogam
com mais frequência sobre o trabalho no campo – e as capacidades político-associativas
dos técnicos – porque são eles que possuem melhores condições, muitas vezes, de
constituir os vínculos entre organizações distintas e de fornecer meios de acesso a políticas
públicas.
4. 2 Processos e formas de inovação: a agroecologia em Lagoa Seca
14
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A agroecologia na Paraíba tem se apresentado como uma forma heterogênea
(porém com critérios aceitos e geridos coletivamente), de inovação técnico-produtiva e
social. Essa heterogeneidade foi identificada nos casos estudados, que podem ser
agrupados em dois cenários, mas que contribuiu para o entendimento de que o universo no
qual a agroecologia se insere é plural e diverso. Para começar, nos reportaremos às
experiências de famílias agricultoras residentes em dois sítios em Lagoa Seca (com 3,5 e
8,6 hectares respectivamente). Neste primeiro cenário, diferentemente do que se observa
em alguns textos que dissertam sobre os processos de transição agroecológica, não houve
necessariamente uma reconversão produtiva de uma agricultura que antes era
“convencional” para uma agricultura de base ecológica. Não se tratam de experiências que
tivessem chegado a altos níveis de artificialização da produção, através da especialização
produtiva, mas de experiências já baseadas no baixo uso de insumos externos, com
aspectos similares aos princípios defendidos pela agroecologia.
Aqui, apesar da tradição de cultivos ecológicos e de conhecimentos aplicados às
técnicas de cultivo, o acesso as tecnologias de armazenamento e captação de água (a
exemplo das cisternas de placas e da barragem subterrânea), divulgadas por organizações
presentes na região, e adaptadas às condições locais, foi apontado como fator que ampliou
as possibilidades de produção e, portanto, a autonomia da família, na medida em que
permitiu uma menor dependência face às condições climáticas. Fato que possibilitou maior
diversidade de cultivos e, consequentemente, maior geração de insumos internamente.
A experimentação aparece como um princípio orientador das inovações. Considere
o caso de um agricultor que iniciou a produção de viveiro de mudas em terras arrendadas,
aprendendo a fazer enxertia. Como essa técnica não era muito utilizada por produtores da
região, o agricultor começou a participar de cursos na Escola Técnica do município. O
procedimento da enxertia tem sido aprimorado com a experimentação e tem resultado em
“novidades”, no sentido trabalhado por Ploeg et al. (2004), a exemplo de um experimento
que permitiu a obtenção de oito variedades diferentes de laranjas em uma única planta,
utilizando-se limão cravo como porta enxerto. Outros testes vêm sendo realizados in lócus
e o aprendizado tem sido divulgado em visitas às propriedades, em eventos, em reuniões
do sindicato e nos diálogos com agricultores de outras localidades. Na medida em que a
família do agricultor em questão foi investindo na captação de água, foi possível ampliar o
número de mudas no próprio estabelecimento, sem necessidade de arrendar outras terras,
transformando essa atividade em uma importante fonte de renda.
Em geral, as áreas apresentam diversidade de cultivos, trabalhando-se
comercialmente a produção de cítricos, mudas, roçados, hortaliças, reservando-se área para
preservação de mata e pequena criação animal. Mas o caráter agrícola não define o total
das atividades desenvolvidas. Aspecto especialmente verificado na visita a um sítio de 3,5
hectares. O que se percebeu é a realização de distintas atividades por membros da família,
como: artesanato (fabricação de sabonetes, bonecas de pano, bordados...), produção de
detergentes e desinfetantes, produção de multi-mistura, aspectos que apontam tanto para o
debate sobre a pluriatividade como para mudanças nas relações de gênero e entre gerações.
Fato apontado como relevante para o aumento da renda e da autonomia da família, no
sentido de torná-la mais apta a ultrapassar problemas com safra, oscilação e queda de preço
dos produtos agrícolas.
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A questão da sustentabilidade da agricultura familiar foi exposta por um dos
agricultores como decorrente da valorização do “círculo produtivo” no estabelecimento.
Para este, “o campo sem a pecuária não é nada e a pecuária sem agricultura também não
é muita coisa... Ou seja, da pecuária forma o adubo, que é o esterco, que volta para o
campo... que vai criar o capim e alimentar a agricultura e que volta novamente para
pecuária”. Além disso, ressaltou que com o reduzido apoio em termos de assistência
técnica na região, muito do que aplica em campo aprendeu do manejo diário e do contato
com a natureza, observando que “não é você querendo dominar a natureza que ela vai te
dar maior resultado”.
Interessa destacar o fato de o agricultor assinalar para a impossibilidade de
gerenciar, com a ajuda do filho e da esposa, uma área maior do que dispunha (8,6
hectares). Foi dito que o problema não é o tamanho, mas a qualidade de trabalho que se faz
e destacou que, para Lagoa Seca, com o clima que possui, “uma família em 2 hectares de
terra e um pouco de água e planejamento sustenta muito bem”. Para tanto citou a
experiência vivenciada no Sítio Almeida, quando com um hectare inicial foi possível
prover o sustento de 25 (vinte e cinco) pessoas, utilizando 70% da área. Segundo o
produtor, foi um “jogo de cintura” possível pela produção do viveiro de mudas, pela
grande diversidade existente e pelo desenvolvimento de outras atividades fora da
propriedade, que chegava a suprir cerca de 30% das necessidades da família.
Para esses agricultores, a noção da agroecologia introduzida pelos parceiros externos
apareceu muito mais como um aprofundamento e legitimação de uma forma de agricultura
praticada tradicionalmente. Mas, por outro lado, também foi verificado outro cenário de
inserção da perspectiva agroecológica na região. Neste, encontram-se as experiências de
produtores que estão passando por um processo de transição para um “novo” modo de
pensar e fazer agricultura. São casos de agricultores que antes já tinham ingressado num
sistema imerso em “pacotes tecnológicos”, dependentes de insumos externos, para os quais
a agroecologia aparece como um rompimento ao modelo intensivo em insumos externos e
causador de externalidades negativas. As experiências com cultivos ecológicos, nesse
contexto, vieram posteriores aos contatos com as atividades do sindicato local, com ONGs
defensoras da perspectiva agroecológica, reforçada por motivações pessoais.
Nesse âmbito, inserem-se experiências de famílias que tiveram acesso,
especialmente desde a década de 80, aos financiamentos agrícolas acompanhados dos
chamados “pacotes tecnológicos”. A assistência técnica governamental na época não tinha
conhecimento e não debatia acerca da agricultura de base ecológica. O que existia era a
difusão de uma perspectiva que atrelava os ganhos de produtividade ao uso de defensivos
químicos e à especialização produtiva. Aspectos que, segundo os agricultores, levaram a
obtenção de produtos de pior qualidade e com menor nível de competitividade no mercado,
o que gerava perdas e, consequentemente, a entrada em uma “ciranda de endividamento”.
Vale destacar a experiência de um agricultor que antes trabalhava de meia12 em
roçados da região. Para este, a ausência de água na propriedade o levou a se empregar em
outros estabelecimentos, trabalhando em cultivos convencionais. Sem informações sobre
12
Nesse sistema, em geral os proprietários cedem a terra e arcam com as despesas de água e energia e
controla o processo produtivo. Aos trabalhadores cabe o fornecimento da mão-de-obra em troca da repartição
dos resultados do processo produtivo.
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os possíveis danos que o manuseio indevido de agrotóxicos poderia ocasionar, relatou que
chegou a se alimentar de hortaliças após aplicação de defensivos, passando a apresentar
uma série de problemas de saúde. No final da década de 90, em reunião da associação
local, o agricultor teve conhecimento da existência da barragem subterrânea. Em 2000,
com financiamento e ajuda dos trabalhadores rurais da região, construiu uma, implantando
um sistema de irrigação por aspersão. A maior disponibilidade de água, somado ao diálogo
sobre novas formas de se fazer agricultura proporcionados pela participação em eventos e
discussões geridas por organizações na região, levaram o agricultor não só a retomar as
atividades na sua propriedade, como também a implantá-las de acordo com a perspectiva
agroecológica. Hoje, dividindo espaço de moradia com seus familiares, o agricultor dispõe
de 25 braças (0,3 hectares) cultivando verduras e flores com a ajuda da esposa e do filho.
O cultivo de flores pode ser considerado uma inovação, já que está pouco presente
na região, sendo destacada como relevante por sua comercialização permitir uma renda que
não depende das oscilações de preço do produto alimentar, além de gerar bem-estar aos
familiares, fato mencionado por meio da beleza que proporciona ao ambiente.
Para os agricultores inseridos nesse segundo cenário, o contato com o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Lagoa Seca e a participação nos intercâmbios e debates acerca da
agricultura ecológica, diferentemente das experiências relatadas no primeiro momento,
proporcionou não uma valorização de práticas já existentes, mas uma “ruptura” com as
práticas agrícolas anteriores. Aspecto também vivenciado por um agricultor originário da
região, antes trabalhador em cultivos convencionais em fazendas no Paraná.
No todo, foram apontadas melhorias atreladas à diversificação das atividades
(dentro e fora do ambiente rural), às experimentações, ao desenvolvimento de tecnologias
adaptadas, especialmente as que permitem maior acesso à água, ao maior diálogo com rede
de organizações locais (a exemplo do Pólo Sindical), e a maior autonomia proporcionada
por insumos provenientes do próprio estabelecimento. Quanto a este último aspecto,
importa destacar não apenas para a produção propriamente dita do insumo internamente,
mas também para o simples aproveitamento/gerenciamento de recursos existentes, a
exemplo das folhagens que ficam disponíveis em áreas de mata, utilizadas para a
adubação, e de “cercas vivas” que se tornam suporte para o arame, ao passo que produzem
frutos. Em todo caso, há o entendimento, conforme exposto por um dos agricultores, que
“o trabalho com agroecologia não se realiza de uma hora para outra”, há dificuldades e
obstáculos que necessitam ser superados e que ultrapassam a esfera do estabelecimento
produtivo. No entanto, o que foi colocado é que hoje há um universo diferente do existente
na década de 80 – período em que “60% dos pequenos proprietários (...) só sabiam plantar
mandioca, fumo, sisal e agave...”
Os relatos fortaleceram a ideia de que tem ocorrido um avanço na interação social
entre distintos atores e organizações da região, num cenário no qual se reúnem
conhecimentos e reações. Há saberes exógenos, porém em diálogo com conhecimentos
práticos, isto é, com o saber fazer do agricultor. Este, por outro lado, se torna mais ciente
da força desse saber, que provém do manejo e da convivência com a terra e que permite
descobertas. Se em alguns casos as inovações foram introduzidas a partir do contato com
outros agricultores em eventos organizados pelo Pólo Sindical, pela ação da assessoria
técnica de ONGs, dentre outras, hoje esses agricultores já contam com um sistema
produtivo que dispõe de um dinamismo próprio.
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Não poderíamos deixar de observar que essa relativa autonomia também depende
das redes e dos dispositivos locais de comercialização e de apoio ao sistema produtivo. As
inovações na esfera da produção por si só não se concretizariam em melhorias sem uma
correspondente inovação na esfera da comercialização. Nesse sentido é que o apoio dos
dispositivos coletivos e das redes que equivalem, na prática, as formas de organização coletiva
da produção, da comercialização e de debate acerca da agroecologia, tem figurado como um
dos elementos chave desse processo na Paraíba.
A mobilização em torno da organização de feiras agroecológicas e de certificação
participativa dos produtos na região tem fortalecido as relações não só entre os próprios
produtores ou entre produtores e consumidores, como também entre distintos atores que
contribuem para a rede de relações. As feiras têm se tornado um ambiente no qual se
multiplicam as chances de diálogo entre os agricultores, multiplicando também as chances
de valorização da inovação promovida. Aqui, há um caráter inovador que se faz
especialmente visível na qualidade do produto comercializado, na certificação
participativa, no movimento de afirmação de uma forma de se fazer agricultura e, de modo
geral, na maneira de produzir alimentos e de organizar espaço de comercialização. Trata-se
de um ambiente no qual não há a rigidez dos canais formais de comercialização de
orgânicos, voltados especialmente para o varejo. Pode-se dizer que a certificação
participativa resulta num selo informal de qualidade que tem sido essencialmente social,
coletivo e gerador de confiança. Para isso, os consumidores frequentemente são
convidados a acompanhar e conhecer o processo de produção e, assim, os feirantes
defendem a necessidade de construção de uma imagem positiva junto a eles.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os casos analisados em Santa Catarina e na Paraíba sugerem aproximações e
diferenças importantes, das quais destacaremos apenas um conjunto. Começaremos por um
aspecto: a agroecologia aparece como uma construção coletiva cuja primazia é uma
transformação do processo produtivo, da valorização do saber e da inserção social dos
agricultores. O que se pode sublinhar é que mercados são essenciais neste processo, mas
eles não são a única instância de perspectiva de mudança das famílias, isto é, aqueles que
se envolveram com agroecologia e certificação participativa parecem ter ideais
consolidados.
As experiências em agroecologia mostram que os mediadores são essenciais, pois,
importantes no início das atividades, continuam com papel central de articulação e acesso
as políticas públicas. Em Santa Catarina, um conjunto de organizações locais e o Estado
atuam de maneira a assessorar tanto a certificação como os formatos produtivos, de forma
destacada para a agência das associações e cooperativas que trabalham com recursos
financeiros limitados; na Paraíba, são os sindicatos, especialmente no contexto do Pólo
Sindical, que possuem atuação especial e capilaridade nas comunidades rurais e que
estabelecem canais de comunicação e ação com outras organizações não-estatais de
assessoria.
Efetivamente, uma das conclusões mais relevantes que essa pesquisa comparada
revelou foram as dimensões da autonomia (aspecto que tem sido chave para os
agricultores, seu bem-estar, o uso do tempo e sua a satisfação de lidar com alimentos
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ecológicos) e dos dispositivos coletivos. Ambas salientam significativamente que se está
em face de processos cuja natureza é eminentemente social.
A inovação dos selos participativos pode ser atribuída à Rede Ecovida como um
todo, mas parte dos atores da região participou de sua constituição. Isto significa
basicamente que, no local, invenções e apropriações são feitas para melhor funcionar a
certificação, a transição dos novos membros, a comissão de ética, a difusão e a legitimação
dos selos nos mercados. Em Lagoa Seca, as organizações regionais tiveram papel no
conjunto das inovações, todavia pouco sentido faria se os saberes situados e dominados
pelos agricultores há gerações não adquirissem protagonismo e implementação eficaz. A
certificação participativa na Paraíba constitui uma importante inovação, mas que apresenta
certo diferencial face às experiências em Santa Catarina. Em ambos há um movimento
participativo de certificação, social e coletiva, porém, enquanto em Santa Catarina busca-se
mais detidamente a certificação formal, na Paraíba o movimento ainda é forte no sentido
de estabelecer uma certificação menos formal, com menor preocupação com a
sistematização e a rotinização para a geração do selo.
Os dois casos mostram que o processo coletivo é essencial para elaboração de
inovações e para a construção da autonomia. Mesmo que seja uma autonomia relativa e
baseada na interdependência de atores locais que possuem relações de horizontalidade, ela
conduz os processos agroecológicos a apropriações positivas. No caso de Santa Catarina, a
inovação diz respeito à participação, ou seja, é um mecanismo social, um dispositivo que
agencia uma forma de controle e interação, a construção do conhecimento com base na
articulação entre atores sociais que ocupam posições distintas no espaço social; no caso de
Paraíba, as inovações são significativamente associadas à dinâmica produtiva, mas também
comercial, enfatizando técnicas locais dos antepassados e sua valorização no panorama dos
conhecimentos.
O dispositivo opera de forma distinta e agencia diferentes entidades e discursos, no
entanto, conexões de sentido podem ser vislumbradas nas experiências aqui examinadas.
Se num caso a certificação participativa formal aglutina os esforços e pode elevar a
agroecologia a uma construção social com apropriação local cujos efeitos serão sentidos
nos formatos produtivos e nos mercados; no outro, as inovações técnico-produtivas,
somadas às novas modalidades comerciais e à dinâmica político-associativa, consideram
reconhecer à certificação informal social uma confiança salutar para construir e ampliar a
agroecologia.
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