1113 POR UMA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA ESCOLA Marina Alves Amorim Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO O objetivo da presente comunicação é refletir sobre a historiografia brasileira da educação, questionando o afunilamento que a produção científica de tal campo vem promovendo, no que tange ao significado da palavra educação, como se essa última significasse apenas a denominada educação escolar (objetivos). trata-se de uma pesquisa de cunho teórico-metodológico, realizada em ocasião da disciplina “história das culturas e das práticas escolares no brasil”, ministrada pelos professores luciano mendes de faria filho e francisca izabel maciel, no programa de pós-graduação em educação da faculdade de educação (fae) da universidade federal de minas gerais (ufmg), através de uma mapeamento da produção científica apresentada nos três principais congressos da área em questão, a saber: congreso brasileiro de história da educação, congresso luso-brasileiro de história da educação e reunião anual da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em educação (anped), (metodologia). as fontes utilizadas foram os cadernos de resumo da totalidade dos congressos brasileiro e lusobrasileiro de história da educação, além dos resumos das comunicações e pôsteres apresentados no gt de história da educação das reuniões anuais da anped, entre os anos de 1995 e 2002 (fontes, periodização). concluiu-se que a quase totalidade dos trabalhos centra-se na educação escolar, enquanto uma ínfima parte preocupa-se com os espaços educativos que extrapolam a instituição escola e os processos educativos que neles se concretizam. acredita-se que é de fundamental importância que os historiadores brasileiros da educação se conscientizem dessa lacuna e comecem a alçar vôos para além dos muros das escolas, dada a importância dos espaços e processos educativos que fogem a esses limites na formação dos sujeitos (conclusões). TRABALHO COMPLETO Educação. A etimologia da palavra, que foi dicionarizada em português no século XVII, é latina: educatio, sinônimo de ação de criar ou de nutrir, cultura, cultivo. Designa um ato ou um processo e um efeito. Educação, ao mesmo tempo, significa o ato ou processo de educar ou educar-se e o conhecimento e desenvolvimento resultantes desse ato ou processo. Alguém que educa e alguém que é educado estão unidos pela palavra educação, sendo que é possível a uma pessoa educar a si mesma, ou seja, ser educador e educando de um só vez, por exemplo, a partir da observação, enfim, da experiência da vida social. Sem dúvida alguma, a escola, lugar destinado ao ensino, é um espaço muito importante, quando falamos em educação, na atualidade. E acredito que, hoje, essa importância é válida mesmo para aqueles sujeitos que não a freqüentaram, na medida em que ter freqüentado ou não a escola, e, vamos dizer, a qualidade dessa freqüência, conformam identidades às pessoas. Entretanto, a escola não é o único espaço educativo existente, os saberes escolares não são os únicos ensinados e aprendidos, nem os professores e os alunos são os únicos que ensinam e aprendem. “Oié muié rendeira/ oié muié rendá/ tu me ensina a fazer renda/ eu te ensino a namorar”. LOPES (2003, p.53), partindo da epígrafe de uma música conhecida, afirma que “ensinar pode ser qualquer coisa (...)”. Concordo, e acrescento que ensinar pode ser em qualquer lugar, por qualquer um a qualquer outro, até a si mesmo. Juntamente com GALVÃO (2001, p.24), a mesma autora diz que: “...a educação nunca se restringiu a escola. Práticas educativas têm ocorrido, ao longo do tempo, fora dessa instituição e, às vezes, com maior força do que se considera, principalmente em determinados grupos sociais e em determinadas épocas. A cidade, o trabalho, o lazer, os movimentos sociais, a família, a igreja [etc] foram, e continuam sendo, poderosas forças nos processos de inserção de homens e mulheres em mundos culturais específicos.” A história da educação brasileira, objeto de análise neste artigo, tem dado conta dessa multiplicidade de espaços educativos, de saberes ensinados e aprendidos, de sujeitos que ensinam e aprendem? 1114 A produção brasileira no campo da história da educação pode ser pensada em três vertentes bem definidas, a saber: “a história da educação e o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro”; “a história da educação e as escolas normais”; e “a história da educação e a escrita acadêmica”, segundo VIDAL & FARIA FILHO (2003). A partir da sistematização proposta por tais autores, façamos uma incursão pela historiografia da educação brasileira. Compreender a produção histórica do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), de acordo com GUIMARÃES (1988), impõe compreender a sua função central: participar ativamente do projeto de construção de uma história nacional. No século XIX, os laços entre a historiografia e o debate em torno da questão nacional são tênues. Falando do Brasil especificamente, “uma vez implantado o estado nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a ‘nação brasileira’, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das ‘nações’ (...)” (GUIMARÃES, 1988, p.06), o que, para uma sociedade marcada pela existência de populações africanas e indígenas, não era tarefa fácil. A fundação do IHGB, no ano de 1838, é uma materialização desse empreendimento de construção da nação brasileira. Ao pano de fundo anunciado, devem ser somadas as características próprias da história positivista. Conforme DUMOULIN (1993, p.614), a história positivista, corrente historiográfica de referência para as primeiras gerações de historiadores de ofício (fim do século XIX e início do século XX), é marcada fundamentalmente pelo que denomina ambição científica. “A partir de uma concepção das ciências experimentais (...), a história positivista considera científico um método indutivo fundado no empirismo absoluto. No caso da história, o fato histórico substitui as experiências. Como os fatos falam por si próprios, basta a sua reconstituição (...). (...) o historiador critica os documentos cujo testemunho permite a redescoberta dos fatos históricos”. VIDAL & FARIA FILHO (2003) apontam as seguintes obras como pertencentes à vertente “a história da educação e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”: 1) Cultura intelectual, capítulo do livro O Império do Brasil, editado em 1867, 1873 e 1876 (sem autor explicitado); 2) L’instruction publique au Brésil, artigo de autoria de Frederico José de Santa-Anna Nery, publicado na Revue Pédagogique, em 1884; 3) capítulo sobre instrução pública do livro Le Brésil en 1889, de autoria de Frederico José de Santa-Anna Nery, do Barão de Sabóia, de Louis Cruls e do Barão de Teffé; 4) L’instruction publique au Brésil: histoire et legislation (1500-1889), livro de autoria de José Ricardo Pires de Almeida, publicado em 1889; 5) A instrução e a imprensa (1500-1900), capítulo do Livro do Centenário, de autoria de José Veríssimo Dias de Matos, publicado em 1900; 6) O ensino público no Congresso Nacional: breve notícia, livro de Primitivo Moacyr, publicado em 1916; 7) Instrução pública, notícia histórica de 1822 a 1922, capítulo do Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro, de autoria de M. P. Oliveira Santos; 8) obra de Primitivo Moacyr, publicada entre 1936 e 1942, composta por quinze volumes, sendo três dedicadas ao período imperial, três a instrução nas províncias, sete ao período republicano e dois a instrução em São Paulo; 9) O ensino em Minas Gerais no tempo do Império, livro de autoria de Paulo Kruger Corrêa Mourão, publicado em 1959; 10) O ensino em Minas Gerais no tempo da República, também de autoria de Paulo Kruger Corrêa Mourão, publicado em 1962. 1115 O que determina a inserção desses títulos na primeira das três vertentes não é necessariamente uma filiação ao IHGB (por exemplo, Frederico José de Santa-Anna Nery não era filiado), mas o fato de que os seus autores comungam com o projeto de construção de uma história nacional e com uma proposta positivista para a escrita da história, pontos fundamentais da proposta historiográfica do Instituto. Passando a segunda vertente, intitulada “a história da educação e as escolas normais”, encontramos os manuais didáticos produzidos para a disciplina história da educação dos cursos de formação docente como protagonistas. São mencionados no artigo de referência os seguintes títulos: 1) Noções de educação, de autoria de Júlio Afrânio Peixoto, publicado em 1933; 2) Pequena história da educação, de autoria das madres Francisca Peeters e Maria Augusta de Cooman, publicado em 1936; 3) História da educação, de autoria de Bento de Andrade Filho, publicado em 1941; 4) Esboço da história da educação, de autoria de Ruy de Ayres Bello, publicado em 1945; 5) Lições de história da educação, de autoria de Aquiles Archêro Júnior (sem data de publicação); 6) Noções de história da educação, de autoria de Theobaldo Miranda dos Santos, publicado em 1945. A história da educação, segundo LOPES & GALVÃO (2001), está intrinsecamente relacionada ao campo da pedagogia e não ao campo da história propriamente dito, já que, como disciplina, surgiu e desenvolveu-se nas escolas normais e nos cursos de formação docente, a partir do final do século XIX.1 Essa realidade histórica é definidora de características, e, portanto, fundamental para se compreender a historiografia da educação de forma geral. A utilidade dos conhecimentos para o aprimoramento da prática docente é uma idéia corrente e forte na área educacional. Em decorrência desse caráter utilitário na formação dos professores, a história da educação, quando se considera que o conhecimento histórico é capaz de dar lições ao presente, possui um lugar na formação docente. Por isso, por um lado, é perceptível em obras do campo a existência do que LOPES & GALVÃO (2001) denominam de “etos religioso”: não basta compreender a realidade, é preciso trabalhar no sentido de modificá-la. Nessa perspectiva, “(...) estudar história da educação é compreender o presente e intervir no futuro através do estudo do passado, não cometendo os mesmos erros de nossos antepassados” (LOPES & GALVÃO, 2001, p.26). Fundida à filosofia da educação nos currículos por muito tempo, por outro lado, a história da educação terminou por se preocupar centralmente com as idéias pedagógicas, a partir das obras dos pensadores. Os trabalhos, em larga medida, discorrem sobre o que deveria ter acontecido e não sobre a realidade propriamente dita, pois os ideários pedagógicos são tidos como doutrinas a serem seguidas para solução dos problemas educacionais. 1 No caso do Brasil especificamente, a disciplina história da educação foi introduzida no currículo da Escola Normal do Rio de Janeiro, em 1928, a partir da reformulação do curso de formação docente promovido por Fernando de Azevedo. Entretanto, em 1932, a disciplina história e filosofia da educação deixaram de existir enquanto disciplinas desmembradas, em conseqüência da reformulação promovida por Anísio Teixeira. A criação do curso de pedagogia da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1939, e a lei orgânica para o ensino normal de 1946, consagraram o modelo unificado para as duas disciplinas (VIDAL & FARIA FILHO, 2003). Somente na década de 70, é introduzida nos cursos de pedagogia a disciplina específica de história da educação (LOPES & GALVÃO, 2001). 1116 É a partir das características apresentadas por LOPES & GALVÃO (2001) que a segunda vertente deve ser compreendida. No conjunto dos manuais didáticos elencados, percebe-se um abandono da técnica da pesquisa historiográfica, ou seja, uma recusa do trabalho com as fontes históricas primárias, e uma eleição da compilação comentada de outras obras como forma de trabalho. O conhecimento histórico, além disso, aparece imbuído de uma linearidade e de uma idéia de progresso, como se passado, presente e futuro pudessem ser articulados de forma mecânica, sendo o passado a explicação dos problemas do presente no campo educacional, e a implantação de determinado ideário pedagógico, vale dizer defendido abertamente, a chave para solucionar os problemas postos. Enfim, é preciso dizer que a história da educação brasileira é marginalizada e até mesmo desprezada em relação à história geral da educação (VIDAL & FARIA FILHO, 2003). A terceira vertente, “a história da educação e a escrita acadêmica”, pode ser subdivida em quatro momentos bem definidos: o primeiro centrado na figura de Fernando de Azevedo; o segundo referente aos trabalhos produzidos no âmbito da Universidade de São Paulo (USP), entre a década de 50 e o início da década de 70 do século XX; o terceiro voltado para a produção dos Programas de Pós-Graduação em Educação, nos anos 70 e 80; e o quarto referente aos trabalhos dos historiadores da educação produzidos a partir do final da década de 80. Fernando de Azevedo, autor da obra A cultura brasileira, volume introdutório do recenseamento geral de 1940, publicada em 1943 pela Imprensa Nacional, é pioneiro, no que tange a produção acadêmica no campo da história da educação. Compreendê-lo implica em situar a sua inserção, por um lado, em um conjunto de intelectuais que buscavam analisar e produzir identidades para a cultura nacional, e, por outro, em um grupo que, dentro do campo de lutas sobre a educação brasileira, defendia a escola nova. A partir das regras da linguagem jornalística (repetições, polaridades, emissão de julgamentos, ironias etc), lançando mão de fontes primárias históricas, mesmo que não aquelas sob a guarda dos arquivos, Azevedo dicotomizou a história da educação brasileira em bons e maus, opondo os jesuítas ao Marquês de Pombal, os pioneiros da escola nova aos educadores tradicionais, enfim, o novo ao velho. A história da educação azevediana possui ares lineares e progressistas, como se o movimento da história fosse ascendente em direção ao novo (VIDAL & FARIA FILHO, 2003). No segundo momento da vertente, merecem destaque alguns dos nomes que compunham um grupo de pesquisadores ligados à USP: 1) Casemiro Reis Filho (responsável pela publicação do Índice básico da legislação do ensino paulista (1890-1945), datado de 1963); 2) Heládio César Gonçalves Antunha (autor da obra A reforma de 1920 da instrução pública no estado de São Paulo, publicada em 1967); 3) Jorge Nagle (autor da obra Educação e sociedade no Brasil, publicada em 1966); 4) Laerte Ramos de Carvalho (autor da tese As reformas pombalinas da instrução pública, defendida em 1952, mas publicada em 1978, e do artigo A educação brasileira e sua periodização, publicado em 1971, no volume resultante do I Seminário de Estudos Brasileiros realizado na USP); 5) Leonor Tanuri (autor da obra A escola normal no estado de São Paulo, publicada em 1973); 6) Maria Aparecida Rocha Bauab (responsável pela publicação do Ensino normal em São Paulo (1846-1963): inventário de fontes, datado de 1973); 7) Maria de Lourdes Mariotto Haidar (autora da obra O ensino secundário no Império, publicada em 1971); 1117 8) Roque Spencer Maciel de Barros (autor da obra A ilustração brasileira, publicada em 1959) (VIDAL & FARIA FILHO, 2003). É perceptível, na produção desse grupo de pesquisadores, um distanciamento da interpretação sociológica do passado, proposta por Fernando de Azevedo, e uma opção pela história associada à filosofia como matriz para a construção da análise histórica. São os levantamentos de documentos originais em arquivos que sustentam as obras, voltadas para o processo de desenvolvimento do sistema público de ensino brasileiro. Vale dizer que, sem dúvida, em decorrência do trabalho desse grupo é que a história da educação brasileira começou a ser incluída nos programas das disciplinas de história da educação, a partir dos anos 60. Segundo MONARCHA (apud VIDAL & FARIA FILHO, 2003, p.23), trata-se do ato inaugural da história da educação brasileira, já que é responsável pela “sedimentação e divulgação de uma metodologia privilegiada; profissionalização de um tipo de autor: o professor universitário; delimitação de um objeto de estudo e conhecimento e constituição de um público leitor específico” (VIDAL & FARIA FILHO, 2003). A produção científica dos primeiros Programas de Pós-Graduação em Educação brasileiros2 compõe o terceiro momento da vertente “a história da educação e a produção acadêmica”. LOPES & GALVÃO (2001) afirmam que a principal característica dessa leva de trabalhos é a utilização de um referencial marxista, dentre os quais destacam-se Althusser e Gramsci. As grandes contribuições da aproximação com essa corrente historiográfica, segundo as autoras, foram o abandono das análises do fenômeno educativo descolado de outros aspectos sociais, já que a história marxista preza a análise de tipo macro, onde a educação, enquanto dimensão superestrutural, deve ser compreendida dentro do quadro econômico de cada sociedade, e a incorporação da categoria classe social na problematização das pesquisas, o que transferiu a importância do indivíduo para o grupo social. Entretanto, ainda de acordo com LOPES & GALVÃO (2001), muitos desses trabalhos, como todos aqueles baseados em uma leitura apressada de Marx, terminaram por associar de forma mecânica o escolar e a esfera econômica. Como a história na perspectiva marxista possui um caminho predefinido, onde, por exemplo, do capitalismo caminha-se para o socialismo e posteriormente para o comunismo, a produção dos historiadores da educação marxistas é marcada por uma idéia de progresso. E a educação, dentro desse quadro, adquiriu uma explicação funcional: fomentar a marcha da história, o que implicava em ares dicotômicos, onde os bons eram as práticas educativas tidas como revolucionárias e os maus as práticas educativas tidas como conservadoras. As fontes históricas primárias, além disso, muitas vezes foram utilizadas apenas para comprovar aquilo que o pesquisador já tinha como pressuposto desde o início da investigação, sendo as contradições que apresentavam desprezadas ou sequer enxergadas. Finalmente, o quarto momento da terceira vertente é composto pela produção do campo da história da educação a partir do final da década de 80. A escola dos annales, mais especificamente uma das correntes historiográficas da sua terceira geração, a nova história cultural, confere tom aos trabalhos. BURGUIÈRE (1993, p.49) define a Escola dos Annales em três dimensões entrecruzadas e inseparáveis: 2 A saber: PUC-Rio (1965), PUC-SP(1969), UFSM (1970), UFF e USP(1971), PUC-RS (1972), UNIMEP (1972). 1118 “1- Uma revista fundada em 1929 por dois historiadores, Marc Bloch e Lucien Febvre (...) para promover a história econômica e social e favorecer os contatos interdisciplinares no seio das ciências sociais. 2- A rede de colaboradores e simpatizantes que se formou em torno da revista e se transformou, depois da guerra, em instituição universitária, quando Lucien Febvre criou com Ernest Labrousse e Charles Morazé a VI Seção da EPHE (Escola Prática de Altos Estudos). 3- A concepção da ciência histórica, de suas exigências metodológicas, de seu objetivo, de suas relações com as outras ciências do homem que Bloch, Febvre e seus discípulos desenvolveram na revista – o que chamam de ‘espírito dos anais’ – e ilustraram em suas obras”. Entretanto, o movimento dos annales não é um bloco monolítico, seja considerando um momento específico, seja considerando o conjunto do movimento. “Em sua primeira fase [ou primeira geração], de 1920 a 1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos” (BURKE, 1997, p.12). É o reinado de Marc Bloch e Lucien Febvre. A segunda fase ou segunda geração ou, ainda, era Braudel, de 1945 e 1968, é “(...) marcada pela produção de grandes obras de ‘história total’, centradas nos aspectos sócioeconômicos e suas relações com o meio geográfico, e em tudo avessa ao estudo do mental (...)” (AMORIM, 2002, p.08). É o período em que Fernand Braudel comandou a produção historiográfica francesa. Finalmente, a terceira fase ou terceira geração, que se inicia em 1968, possui um caráter fragmentado, e agrupa na verdade um conjunto de correntes historiográficas, a saber: a nova história, a história das mentalidades, a história cultural, a nova história cultural e a micro-história. Essa última reestruturação dos annales promoveu “(...) uma pulverização das temáticas de estudo, dando preferência aos assuntos ligados à vida cotidiana e as representações, elegendo temas pouco ou nada freqüentados pelos historiadores, valorizando enredos e personagens muitas vezes anônimos” (AMORIM, 2002, p.08). Uma aproximação com a corrente historiográfica da nova história cultural é a responsável não tanto por uma renovação temática no campo da história da educação, já que a realização das pesquisas continuou respeitando limites já de longa data estipulados, ou seja, os temas tradicionais da disciplina, mas, sem dúvida, por uma renovação nas perspectivas de abordagem utilizadas na realização dessas pesquisas. De acordo com LOPES & GALVÃO (2001, p.42.): “Temas como a cultura e o cotidiano escolares, a organização e o funcionamento interno das escolas, a construção do conhecimento escolar, o currículo e as disciplinas, os agentes educacionais (...), a impressa pedagógica, os livros didáticos etc tem sido crescentemente valorizados. Desloca-se, crescentemente, o interesse dos pesquisadores da investigação das idéias e da legislação educacionais para as práticas, os usos e as apropriações dos diferentes objetos educacionais”. O trajeto percorrido pela historiografia da educação brasileira, apresentado a partir da sistematização por vertentes, vislumbra que história da educação no Brasil, em larga medida, é sinônimo de história da educação escolar, já que o recorte espacial privilegiado define a escola como espaço educativo a ser pesquisado. Tomemos os trabalhos apresentados no grupo de trabalho (GT) de história da educação da ANPED (fundado em 1984), espaço dos mais importantes de socialização das 1119 pesquisas produzidas no campo, entre os anos 2000 e 20023, para desvelar de forma mais apurada o lugar da escola nessa “hierarquia social dos objetos de pesquisa” (BOURDIEU, 2001), na historiografia da educação brasileira mais recente. De um total de 50 (100%) pesquisas apresentadas4, entre os anos de 2000 e 2002, conforme pode ser visualizado na Tabela 01, 45 (90%) voltam as suas análises para espaços educativos escolares e 05 (10%) para espaços educativos não escolares, a saber: 1) A educação no império dos preferidos do sol, de autoria de José Joaquim Pereira Melo, apresentado no ano 2000; 2) Pavilhão Mourisco: biblioteca e educação em Cecília Meireles, de autoria de Jussara Santos Pimenta, apresentado no ano de 2001; 3) Uma contribuição para a história da infância: festejos comemorativos da criança, de autoria de Cynthia Greive Veiga e Maria Cristina Soares de Gouvêa, apresentado no ano de 2001; 4) Pregar ao pregador, educar o educador, de autoria de Carmem Lúcia Fornari Diez, apresentado no ano de 2002; 5) A violência física doméstica na educação de escritores brasileiros, de autoria de Maria Helena Palma de Oliveira, apresentado no ano de 2002. Em relação aos trabalhos encomendados apresentados, um total de 03 (100%), 02 (66,66%) abordam a historiografia da educação e 01 (33,33%) o ensino de história da educação. As pesquisas apresentadas, dessa forma, estão centradas nos espaços educativos escolares, sendo os espaços educativos não escolares, bem como análises de cunho puramente teórico-metodológico, temáticas marginais.5 O GT de história da educação, em comparação a totalidade dos GTs da ANPED, pertence a um conjunto de GTs, juntamente com o de didática, de educação de crianças de 0 a 6 anos, de currículo, de educação fundamental, de sociologia da educação, de educação especial, de educação de jovens e adultos e de psicologia da educação, onde o não escolar é uma temática ainda pouco ou quase nada estudada, considerando o total das pesquisas apresentadas.6 Além desse conjunto, aponto a existência de dois outros: um primeiro, composto pelos GTs de movimentos sociais e educação, educação popular, trabalho e educação, alfabetização, leitura e escrita, educação e comunicação e filosofia da educação, onde o não escolar é muito valorizado pelos pesquisadores; e um segundo, composto pelos GTs de estado e política educacional, formação de professores, política de educação superior e educação matemática, onde nenhuma pesquisa voltada para o estudo de espaços educativos não escolares foi localizada. É interessante notar que os próprios nomes dos GTs, nesse último caso, com exceção do GT de educação matemática, já define esses espaços como 3 Optei por abordar a produção dos anos 2000, 2001 e 2002 porque consegui acessar os títulos, resumos e textos completos dos trabalhos apresentados no GT de história da educação somente em se tratando desse período. Acredito que esse conjunto de dados é necessário para promover uma análise segura dos espaços educativos abordados pelas pesquisas. 4 O valor total refere-se a soma dos trabalhos e pôsteres apresentados. Vale dizer que os trabalhos encomendados foram desconsiderados, tendo sido quantificados apenas aqueles propostos ao GT e aceitos. 5 Sobre essa marginalidade, inclusive, acredito que seria interessante analisar os trabalhos encaminhados ao GT e não aceitos para apresentação, no intuito de verificar se as temáticas por eles abordadas coincidem com as que apontei como marginais. 6 Novamente, volto a ressaltar que os trabalhos encomendados apresentados não foram contabilizados. 1120 socializadores de pesquisas centradas no escolar.7 A Tabela 01 permite também a observação da quantidade total de pesquisas apresentadas em cada GT, entre 2000 e 2002, e a quantidade dessas pesquisas preocupadas com o não escolar. TABELA 01 - Pesquisas centradas em espaços educativos não escolares Apresentadas nas Reuniões Anuais da ANPED por GT ano a ano (2000-2002) Ano 2000 2001 2002 GT8 GT 02 01 5,88% 17 100% 02 12,5% 16 100% 02 GT 03 04 36,36% 11 100% 05 45,45% 11 100% 04 GT 04 00 00% 17 100% 01 5,55% 18 100% 02 GT 05 00 00% 17 100% 00 00% 14 100% 00 GT 06 03 25% 12 100% 07 50% 14 100% 03 GT 07 01 6,25% 16 100% 01 5,88% 17 100% 01 GT 08 00 00% 18 100% 00 00% 24 100% 00 GT 09 02 13,33% 15 100% 03 20% 15 100% 04 GT 10 02 18,18% 11 100% 03 20% 15 100% 01 GT 11 00 00% 14 100% 00 00% 14 100% 00 GT 12 01 6,67% 15 100% 00 00% 20 100% 02 GT 13 01 6,67% 15 100% 01 6,25% 16 100% 00 GT 14 01 9,09% 11 100% 01 9,09% 11 100% 00 GT 15 00 00% 14 100% 03 23,07% 13 100% 00 GT 16 08 47,05% 17 100% 05 27,77% 18 100% 07 GT 17 01 10% 10 100% 02 22,22% 09 100% 06 GT 18 01 6,67% 15 100% 00 00% 17 100% 00 GT 19 00 00% 15 100% 00 00% 14 100% 00 GT 20 02 13,33% 15 100% 00 00% 14 100% 01 GT 21 XX XX XX XX XX XX XX XX 00 TOTAL 28 10,18% 275 100% 34 11,72% 290 100% 33 11,76% 33,33% 15,38% 00% 21,43% 6,67% 00% 36,36% 6,25% 00% 14,28% 00% 00% 00% 46,66% 66,66% 00% 00% 8,33% 00% 12,08% 17 12 13 15 14 15 25 11 16 15 14 16 10 08 15 09 14 12 12 10 273 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% Fonte: Cadernos de resumo das reuniões anuais da ANPED realizadas entre 2000 e 2002. Não é possível negar a existência de uma grande lacuna dentro do campo da historiografia educacional brasileira. A história da educação nos espaços não escolares, tantos por sinal, ainda está por ser escrita, considerando que são poucas e isoladas as iniciativas localizadas nessa perspectiva. Certamente, a “hegemonia da escola”, vamos dizer, está associada à própria história da história da educação e faz parte da identidade do campo. Relembrando, a disciplina história da educação surgiu nas escolas normais, próxima da pedagogia e distante da história, o os pesquisadores da área, em larga medida, são pedagogos ou educadores e não historiadores de ofício.9 7 Vale ressaltar que o GT relações étnico/ raciais e educação não foi inserido em nenhum dos três conjuntos definidos, pois, considerando o recente início das atividades do mesmo, ocorrido em 2002, seria precipitado fazê-lo. 8 GT 02: História da educação; GT 03: Movimentos sociais e educação; GT 04: Didática; GT 05: Estado e Política Educacional; GT 06: Educação popular; GT 07: Educação de crianças de 0 a 6 anos; GT 08: Formação de professores; GT 09: Trabalho e educação; GT 10: Alfabetização, leitura e escrita; GT 11: Política de educação superior; GT 12: Currículo; GT 13: Ensino Fundamental; GT 14: Sociologia da Educação; GT 15: Educação especial; GT 16: Educação e comunicação; GT 17: Filosofia da educação; GT 18: Educação de pessoas jovens e adultas; GT 19: Educação matemática; GT 20: Psicologia da educação; GT 21: Relações étnico/raciais e educação. 9 É interessante notar que pesquisas educacionais mais recentes tem afirmado e reafirmado a importância dos saberes aprendidos fora da escola e a sua relação com os saberes escolares, tanto no que tange ao corpo discente 1121 Acredito que, na medida em que os historiadores da educação brasileiros começarem a lançar os seus olhares de pesquisa para além dos muros da escola de forma mais sistemática, a historiografia da educação tornar-se-ia mais rica, não somente em decorrência da abrangência de uma maior multiplicidade de espaços educativos, mas porque poderia redimensionar, inclusive, a sua produção centrada na escola e em cada espaço educativo abordado especificamente, na medida em que a relação dialógica entre os vários espaços educativos possuem um caráter que perpassa a própria constituição desses espaços. Além disso, o foco da história da educação poderia deixar de ser um ou outro espaço da educação e passar a ser o sujeito que transita por esses vários espaços, o que daria uma nova dimensão ao campo, já que o objeto central deixaria de ser o lugar da formação dos sujeitos, e passaria a ser a própria formação desses sujeitos.10 Finalizo fazendo das palavras de JULIA (1993, p.272-273) aos historiadores franceses da educação as minhas aos historiadores brasileiros do mesmo campo: “É evidente que a história da educação não se poderia reduzir à das formas escolares (...). Convém neste ponto retomar e prosseguir as pistas abertas por Philippe Ariès em seu livro pioneiro sobre L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Regime (Paris, 1960). Nas sociedades antigas, a criança era mais socializada pelas estruturas familiares e comunitárias (paróquias, comunidades rurais, corporações de ofícios), das quais cumpre redescobrir os papéis respectivos e as inflexões. A análise da alfabetização levada a efeito por François Furet e Jacques Ozouf (...) fez aparecer um aprendizado apenas limitado à leitura, cuja distribuição regional (...) e sexual (...) explica-se pela proliferação, mediante o impulso da Contra Reforma católica, de uma rede de ‘pobres moças’ que, nas ‘assembléias’ que reuniam, ensinavam a um auditório majoritariamente feminino simultaneamente o trabalho manual e a leitura dos textos sagrados, que seriam em seguida repetidos no foro familiar. Mutatis mutandis, reencontramos aqui o modelo de uma educação familiar-religiosa por que passou a Suécia da época moderna: na ausência de qualquer instituição escolar, os súditos do reino escandinavo aprenderam a ler (...) sob o controle dos pastores luteranos (...) enquanto a mãe de família servia, cotidianamente, de professor particular. A etnohistória recente, aliás, acentuou a importância dos conventos de juventude e do papel de rito de iniciação desempenhado pelas festas de que eles participavam (...). Conviria praticar análises do mesmo tipo no que se refere ao conjunto das estruturas de sociabilidade em que mergulham a criança e o adolescente: da oficina paterna, onde o menino aprendia seu ofício (...) até a peregrinação de oficial da profissão (...), dos exercícios guerreiros e corteses do pajem nobre às associações de conscritos e aos movimentos contemporâneos de juventude. (...) Dentro dessa perspectiva, seria necessário abrir espaço a uma história, por demasiado tempo abandonada aos colecionadores, dos jogos e dos brinquedos, de que Philippe Ariès mostrou toda a fecundidade. Porque as fontes escolares são menos seriais e mais dispersas, sem dúvida o historiador percorreu com menos facilidade esse vasto campo de investigação (...). Apostemos que os próximos anos enfrentarão esse desafio”. quanto ao corpo docente. Entretanto, parece que os resultados dessas pesquisas não conseguiram reencaminhar a produção do conhecimento dentro de toda a área educacional, como é o caso da história da educação. 10 A sociologia da educação vem articulando com sucesso a família e a escola, procurando compreender as trajetórias escolares a partir das trajetórias familiares. Entretanto, são apenas dois espaços educativos dos sujeitos que ainda estão sendo relacionados, dentro de uma multiplicidade deles existente. Talvez, um bom caminho para compreender as trajetórias escolares dos, como são denominados nesse campo do conhecimento, “estatisticamente improváveis”, seria ampliar os espaços educativos relacionados nas pesquisas. 1122 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANPED. Caderno de resumos da 23ª reunião anual da ANPED. Educação não é privilégio (centenário de Anísio Teixeira). Caxambu/MG: ANPED, 2000. 238p. ANPED. Caderno de resumos da 24ª reunião anual da ANPED. Intelectuais, conhecimento e espaço público. Caxambu/MG: ANPED, 2001. 231p. ANPED. Caderno de resumos da 25ª reunião anual da ANPED. Educação: manifestos, lutas e utopias. Caxambu/MG: ANPED, 2002. 286p. AMORIM, Marina Alves. Momentos da vida fazendo gênero: o saber da experiência. Belo Horizonte: FaE/ UFMG, 2002. Projeto de mestrado. Mimeo. 29p. BOURDIEU, Pierre. Método científico e hierarquia social dos objetos. In: NOGUEIRA, Maria Alice & CATANI, Afrânio (orgs.). Pierre Bourdieu. Escritos de educação. 3ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001. p.33-38. Tradução de Denice Bárbara Catani e Afrânio Mendes Catani. “Méthode scientifique et hiérarchie sociale des objets". In : Actes de la recherche en sciences sociales. Paris, n.01, jan/1975, p.04-06. BURGUIÈRE, André. Anais (Escola dos). In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p.49-54. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Dictionnaire des Sciences Historiques. Paris: PUF, 1986. BURKE, Peter. A escola dos annales (1929 – 1989) : a revolução francesa da historiografia. 1ª ed. 7ª reimp. São Paulo: UNESP, 1997. 154p. Tradução de Nilo Odalia. The french historical revolution: the annales school 1929-1989. Inglaterra, 1990. CATANI, Denice Bárbara & FARIA FILHO, Luciano Mendes de. “Um lugar de produção e a produção de um lugar: a história e a historiografia divulgadas no GT História da Educação da ANPEd (1985-2000)”. In: ANPED. Revista Brasileira de Educação. nº19. Campinas/SP: Autores Associados, jan/abr.2002. p. 113-128. DUMOULIN, Olivier. Positivismo. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p.614-615. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Dictionnaire des Sciences Historiques. Paris: PUF, 1986. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”. In: Revista Estudos Históricos. nº01. Rio de Janeiro, 1998. p.05-27. HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro Sales. Dicionário Houaiss da Línguas Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p.1100-1101. JULIA, Dominique. Educação. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p.264-274. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Dictionnaire des Sciences Historiques. Paris: PUF, 1986. 1123 LOPES, Eliane Marta Teixeira. Ensinar História da Educação. In: LOPES, Ana Amélia Borges de Magalhães et al (orgs.). 1ª ed. História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: FUMEC, 2002. p.58-65. LOPES, Eliane Marta Teixeira & GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. 1ª ed. RJ: DP&A, 2001. 115p. PEIXOTO, Ana Maria Casasanta. A educação mineira na história: notas para um inventário. In: LOPES, Ana Amélia Borges de Magalhães et al (orgs.). 1ª ed. História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: FUMEC, 2002. p. 13-22. VEIGA, Cynthia Greive & PINTASSILGO, Joaquim. Pesquisas em História da Educação no Brasil e em Portugal: caminhos da polifonia. Mimeo. 18p. VIDAL, Diana Gonçalves & FARIA FILHO, Luciano Mendes de. História da Educação no Brasil: um território de disputas. Belo Horizonte/ São Paulo, 2003. Mimeo. 45p.