O ESTUDO DAS FRAÇÕES CONTÍNUAS José Carlos Ramos da Silva1 Orientador: Jorge Fernandes Lima Neto2 RESUMO Esse artigo tem como objetivo apresentar um estudo sobre frações contínuas. Uma fração contínua de um número racional pode ser representada por uma seqüência finita de inteiros e a de um número irracional por uma seqüência infinita de inteiros. Tais representações permitem encontrar uma aproximação de um número irracional por um número racional, tão próximo quanto desejarmos. Palavras-chave: Frações Contínuas, Matemática Pura, Análise. 1. INTRODUÇÃO As frações contínuas foram objetos de estudo de grandes matemáticos nos séculos XVII e XVIII, como Leonard Euler e Hermite, atualmente são de grandes interesses em várias áreas no campo da matemática, como em teoria dos números, na ciência da computação, e outros... Para obtermos uma fração contínua de certo número racional, basta aplicar o algoritmo da divisão de Euclides sucessivamente numa divisão de inteiros. Por exemplo, tomemos um p . racional irredutível q Assim, existem únicos a1 e r1 tal que p = a1q + r1 , com 0 ≤ r1 < q , logo p a1q r1 r 1 = + = a1 + 1 = a1 + . q q q q q r1 (1) Para q1 e r1 , obtemos únicos a2 e r2 tal que q = a2 r1 + r2 , com 0 ≤ r2 < r1 , logo p 1 = a1 + . r1 q a2 + r2 (2) Repetindo esse processo sucessivamente, obtemos p = a1 + q 1 2 1 a2 + . 1 a3 + 1 O+ 1 an Licenciado em Matemática da Universidade Católica de Brasília Professor do Curso de Matemática da Universidade Católica de Brasília 1 (3) Como o algoritmo da divisão de Euclides é um processo finito, esse também o é, e esta última p expressão é a fração contínua que representa o racional e escreveremos; q p = [a1 , a2 , a3 ..., an ] . (4) q 2. ASPECTOS HISTÓRICOS Foi encontrado em meados de 306 a.C. um texto de matemática mais bem sucedido de todos os tempos – Os Elementos (Stoichia) de Euclides, nele encontra-se um algoritmo (Algoritmo da divisão de Euclides) que, podemos obter qualquer número racional em termos de fração contínua. Durante os anos de 1650 à 1670 uma grande variedade de métodos infinitos foi desenvolvida, inclusive o método das frações contínuas infinitas para π que fora dado por William Brouncker (1620 ? – 1684), o primeiro presidente da Royal Society. Wallis [3, pág. 143], em 1650, obteve a curiosa expressão: 2 π = 2 ⋅ 2 ⋅ 4 ⋅ 4 ⋅ 6 ⋅ 6 ⋅ 8K 1 ⋅ 3 ⋅ 3 ⋅ 5 ⋅ 5 ⋅ 7 ⋅ 7K Por manipulação do produto de Wallis para 2 π (5). , Brouncker [2, pág 266] chegou de algum modo à expressão 4 π = 1+ 1 2+ (6) 9 2+ 25 49 2+ 2 +K Os primeiros passos para frações contínuas datavam de muito antes, na Itália, onde Pietro Antonio Cataldi (1548-1626) de Bolonha, escreveu raízes quadradas nessa forma, tais expressões são facilmente obtidas. Cataldi obteve 2 −1= 1 2+ . 1 2+ 1 2+ 2 1 2+K (7) Leonhard Euler contribuiu demasiadamente com a matemática, ele foi um dos primeiros matemáticos a desenvolver a teoria das frações contínuas, em 1737, encontrando o seguinte desenvolvimento para o número e. e = 2+ 1 1+ (8) 1 2+ 1 1+ 1 1+ 1 4+ 1 1+ 1 1+K 3. FRAÇÃO CONTÍNUA DE UM NÚMERO RACIONAL Em “Os Elementos” de Euclides, o método para achar o m.d.c. de dois números é usado para se converter uma fração (número racional) em fração contínua. Como exemplo o m.d.c. entre (85,32) 85 = 2 ⋅ 32 + 21 32 = 1 ⋅ 21 + 11 21 = 1 ⋅ 11 + 10 (9) 11 = 1 ⋅ 10 + 1 10 = 10 ⋅ 1 + 0 Logo o m.d.c. (85, 32) = 1 Expressamos 85 da seguinte forma: 32 85 21 1 1 1 = 2+ = 2+ = 2+ = 2+ = 32 11 1 32 32 1+ 1+ 21 21 21 11 1 1 1 = 2+ = 2+ = 2+ . 1 1 1 1+ 1+ 1+ 10 1 1 1+ 1+ 1+ 11 1 11 1+ 10 10 3 (10) Este último é a fração contínua expressa do número racional 85 e sua notação é 32 85 = [2, 1, 1, 1,10] . 32 De um modo geral, uma fração contínua de um número racional pode ser expressa da seguinte forma: a1 + 1 a2 + (11) 1 a3 + 1 O+ 1 an Os números a1 , a 2 , a3 ,..., a n são denominados os quocientes parciais e [ a1 , a 2 , a3 , K , a n ] representa a sua fração contínua. 3.1 O PRIMEIRO QUOCIENTE No processo de divisões sucessivas, apenas o primeiro quociente pode ser positivo, negativo ou zero. Podemos dizer que um número é racional quando é o quociente de uma divisão de p dois números inteiros, , com o divisor positivo, q > 0 . q Se p > q; o primeiro quociente parcial da fração contínua é positivo; se 0 < p < q o primeiro quociente parcial da fração contínua é zero; Se p for negativo, o primeiro quociente da fração contínua é negativo. Exemplo: 12 1 1 1 − 40 = −4 + = −4 + = −4 + = −4 + = [−4,1,12] 13 1 1 13 13 1+ 1+ 12 12 12 17 = 0+ 31 1 = [0,1,14,1,2] 1 1+ 1+ 1 4+ 1 1+ 4 1 2 (12) (13) TEOREMA 013 Todo número racional pode ser representado de duas maneiras distintas sob a forma de fração contínua finita e toda fração contínua finita representa um número racional. Para entendermos melhor, consideremos a seqüência [1,2,1,2] e sua fração contínua é representada da seguinte forma: 1+ 1 2+ = 1+ 1 1+ 1 2 1 1 2+ 3 2 = 1+ 1 2 2+ 3 = 1+ 1 3 11 = 1+ = 8 8 8 3 (14) Numa representação de uma fração contínua de um número racional, quando o termo a n for 1 maior que 1 (um) poderemos substituí-lo por a n − 1 + , assim a representação acima pode 1 assumir duas formas, por exemplo: 1 [1,2,1,2] = 1 + 2+ 1 = 1+ 1 2+ 1 1+ 2 = [1,2,1,1,1] 1 1+ (15) 1 1+ 1 1 4. FRAÇÃO CONTÍNUA DE UM NÚMERO IRRACIONAL 4.1 APROXIMAÇÕES SUCESSIVAS Seja ϕ um número irracional e a1 = ϕ , isto é, a1 o maior inteiro menor do que ou igual a ϕ , teremos: ϕ = a1 + 1 x1 (16) onde, x1 = 1 ϕ − a1 (17) Observe que x1 > 1 e x1 é irracional, dessa forma, repetindo o processo, poderemos escrever; 1 1 x1 = a 2 + , onde a 2 = x1 e x 2 = . x2 x1 − a1 3 Ver [4, pág 142] 5 Repetindo esse processo, teremos: ϕ = a1 + 1 x1 x1 = a 2 + 1 x2 x 2 = a3 + 1 x3 (18) M Onde todos os ai ' s são inteiros maiores ou iguais a 1 (hum) e todos os xi ' s são irracionais maiores do que 1 (hum). Assim obtemos: ϕ = a1 + 1 = a1 + x1 1 1 a2 + x2 = L = a1 + 1 a2 + (19) 1 a3 + 1 a4 + 1 O+ 1 xn Definimos [a1, a 2 , a3 , L] como fração contínua de ϕ . Lagrange, em 1770, caracterizou todos os irracionais possuidores de representação periódica quando expressos sob a forma de fração contínua e que a fração contínua infinita que representa um irracional é periódica, se e somente se, este irracional for raiz de um polinômio de 2º grau, ou seja, da forma ax 2 + bx + c , onde a, b e c são inteiros. Para entendermos melhor, mostraremos o irracional 8 na forma de fração contínua infinita. ϕ = 8 = 2 a1 = 2 x1 = 1 1( 8 + 2) 8+2 = = 4 8 − 2 ( 8 − 2)( 8 + 2) 8 + 2 a2 = = a2 = 1 4 x2 = 1 4 8 + 2 4 8 + 8 = = = 8+2 4 8+2 8 − 2 8 + 2 −1 4 6 (20) a3 = 8 + 2 ⇒ a3 = 4 1 x3 = 8 +2−4 ⇒ 1 8 + 2 4 8 +8 8+2 ⇒ ⇒ ⇒ 4 4 8−2 8 − 2 8 + 2 1 8 + 2 a4 = ⇒ a4 = 1 4 a5 = x5 = 4 8 + 2 4 8 +8 ⇒ ⇒ ⇒ 8+2 4 8+2 8 − 2 8 + 2 −1 4 8 + 2 ⇒ a5 = 4 1 x4 = 1 8 +2−4 ⇒ 1 8 + 2 4 8 +8 8+2 ⇒ ⇒ ⇒ 4 4 8−2 8 − 2 8 + 2 1 A fração contínua de 8 aparece em forma repetitiva com exceção do a1 , assim denominamos de fração contínua periódica. Juntando os termos acima, temos: 1 8 =2+ (21) 1 1+ 1 4+ 1 1+ 4+ 1 8 +2 4 e sua notação será expressa; [2,1,4,1,4,K] ou [2,1,4] , observemos que, podemos reverter o processo acima para obtermos novamente o número irracional que ele representa. 4.2. CONVERGENTES Qualquer número racional pode ser representado sob a forma de fração contínua. Se p = [a1 , a 2 , a 3 ,...a n −1 , a n ] , logo, [a1 ]; [a1 , a 2 ]; [a1 , a 2 , a3 ] ; é a seqüência da expansão da fração q p contínua de . Denominados: primeiro, segundo, terceiro... convergentes, da fração q contínua. 7 [a1 , a 2 , a 3 ,...a n −1 , a n ] , sendo a própria fração contínua o n-ésimo convergente. Chamaremos o i-ésimo convergente de ci. Assim, a1 p1 = , onde p1 = a1 e q1 = 1 1 q1 (22) a1 a 2 + 1 , onde p 2 = a1 a 2 + 1 e q 2 = a 2 a2 (23) c1 = c 2 = a1 + c3 = a1 + 1 1 a2 + a3 1 1 a2 + a3 = = a1 a 2 a3 + a1 + a3 a3 (a1 a 2 + 1) + a1 a3 p 2 + p1 = = , a3 a 2 + 1 a3 a 2 + 1 a 3 q 2 + q1 (24) onde p3 = a 3 p 2 + p1 e q3 = a3 q 2 + q1 TEOREMA 2 pi , o i-ésimo convergente da fração contínua [a1 , a 2 , a 3 ,..., a n −1 , a n ] então, para qi i ≥ 3 , o numerador p i e o denominador q i , do convergente ci satisfazem as seguintes relações. Seja ci = pi = a i p i −1 + pi − 2 (25) q i = ai q i −1 + q i − 2 Demonstração: Observe os números pi − 2 , pi −1 , q i − 2 , qi −1 , dependem apenas dos quocientes parciais e assumirmos como hipótese de indução a validade de um k ≤ i . Assim, poderemos obter ci +1 1 . Logo, simplesmente substituindo a i por ai + a i +1 ci +1 = a1 + 1 a2 + . 1 a3 + 1 O+ Então teremos; 8 1 a i −1 + 1 ai + 1 a i +1 (26) ci +1 1 ai + pi −1 + pi − 2 ai +1 (a )(a p + pi − 2 ) + pi−1 (ai +1 ) pi + pi −1 = = i +1 i i −1 = (ai +1 )(ai qi −1 + qi− 2 ) + qi − 2 (ai +1 )qi + qi −2 1 ai + qi −1 + qi −2 ai +1 (27) concluindo a demonstração por indução. Ajustando melhor os índices, vamos definir tornaremos verdadeiro o teorema para i ≥ 1 . p 0 = 1 , p -1 = 0 , q 0 = 0 e q -1 = 1 assim TEOREMA 34 A relação pi qi −1 − pi −1 qi = (− 1) se verifica para todo i ≥ 0 , onde pi e q i são respectivamente, o numerador e o denominador do i-ésimo convergente. i COROLÁRIO 1 Todo convergente ci = pi , temos que (p i , qi ) = 1 . qi 4.3 PROPRIEDADES DOS CONVERGENTES TEOREMA 4 A seqüência c1 , c 2 , c3 , L dos convergentes de uma fração contínua satisfaz as seguintes propriedades: (i) c1 < c3 < c5 < ... < c2 n+1 (ii) c 2 > c 4 > c6 > ... > c 2 n (iii) c2n +1 < c2 n+ 2 < c2 n Demonstração: Pelo teorema 3, temos que pi qi−1 − pi−1qi = (− 1) . Assim, i i p i q i −1 p i −1 q i (− 1)i p i p i −1 (− 1)i ( − 1) − = ⇒ − = ⇒ c i − c i −1 = q i q i −1 q i q i −1 q i q i −1 q i q i −1 q i q i −1 q i q i −1 4 Ver demonstração em [1, pág. 10] ou [4, pág. 145] 9 (28) pi p i − 2 p q − p i − 2 q i a i pi −1 q i − 2 − a i p i − 2 q i −1 ai (− 1) − = i i −2 = = qi qi − 2 qi qi −2 q i qi − 2 qi qi − 2 i −1 ci − ci − 2 = (29) Das duas desigualdades acima é fácil ver que o teorema é verdadeiro. 4.4 OBSERVAÇÂO Pelo teorema 4 a seqüência dos convergentes obedece a desigualdade c1 < c3 < c5 < ... < c 2 n +1 < ... < c 2 n < ... < c 4 < c 2 (30) Em análise, em seqüências monótonas, temos que, toda seqüência crescente e limitada superiormente converge e toda seqüência decrescente e limitada inferiormente também converge. Então c 2 n → L1 e c 2 n +1 → L2 . Como ci − ci −1 = (− 1)i q i q i −1 → 0 então, L1 = L2. Assim a seqüência dos convergentes, de uma fração contínua infinita, converge. Nos teoremas abaixo, veremos que essa seqüência converge para o número irracional que a gerou. TEOREMA 55 Para todo número real α temos, [a1 , a 2 , a3 ,...α ] = α ⋅ pi −1 + pi −2 , onde todos os quocientes α ⋅ pi −1 + qi −2 a i ' s são inteiros positivos com exceção do a1 , as seqüências dos pi ' s e q i ' s são dadas pela fração contínua de α , ou seja, p 0 = 1 , p −1 = 0 , q 0 = 0 , q −1 = 1 , pi = a1 p i −1 + p i − 2 e q i = a1 q i −1 + q i −2 , para todo i ≥ 1 . OBSERVAÇÃO. Seja ϕ um número irracional, pelo teorema 5, temos que x ⋅ p + pi −2 ϕ = [a1 , a 2 , a3 ,..., ai −1 , xi −1 ] = i −1 i −1 xi −1 ⋅ pi −1 + qi −2 Assim x ⋅ p + p i −2 p i −1 − ( pi −1 qi − 2 − p i −2 q i −1 ) (−1) i ϕ − ci −1 = i −1 i −1 − = = xi −1 ⋅ p i −1 + q i − 2 q i −1 q i −1 ( xi −1 q i −1 + qi − 2 ) q i −1 ( xi −1 q i −1 + qi −2 ) 5 Ver [4, pág. 153] ou [1, pág. 22] 10 (31) (32) Então ϕ − ci −1 → 0 , confirmando que a seqüência dos convergentes converge para o irracional que a gerou. CONSIDERAÇÕES FINAIS As frações contínuas têm uma vasta atuação no campo da matemática, nesse trabalho mostramos como obter uma aproximação de um número irracional por um racional tão próximo quanto desejamos, ou seja, como a fração contínua de todo número irracional é infinita, basta truncá-la para obtermos um número racional bem próximo de um irracional que estamos trabalhando. Como no ensino médio, o exemplo mais comum de número irracional é uma raiz quadrada de um inteiro, temos aqui uma ótima maneira de calcular um valor aproximado para tal raiz. No exemplo 8 = [2,1,4,1,4,K] ≅ [2,1,4,1,4] = 82 , é uma ótima aproximação para a raiz 29 procurada. As frações contínuas e seu conteúdo, a meu ver podem fazer parte do ensino fundamental e médio, elevando assim o grau do desenvolvimento e aprendizagem do aluno em relação aos números racionais e irracionais. BIBLIOGRAFIA 1. ANDRADE, Eliana Xavier Linhares de; BRACCIALI, Cleonice Fátima. Frações Contínuas: algumas propriedades e aplicações. Disponível em: <http://www.bienasbm.ufba.br/MC34.pdf>. Acesso em: 28/06/2007. 2. BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. 2 ed. São Paulo: Edgard Blücher LTDA, 1996. 3. EVES, Howard whitley. Introdução à História da Matemática. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. 4. SANTOS, José Plínio dos Santos. Introdução à teoria dos números. 2 ed. Rio de Janeiro: IMPA, 2005. 11