Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição no 41, p. 93-113, 2010
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A NOÇÃO DE FRAME NO CONTEXTO
NEUROLINGUÍSTICO: O QUE ELA É CAPAZ DE
EXPLICAR?
Edwiges Maria Morato
RESUMO
Vários são os modelos ou construtos teóricos formulados
para dar conta, teórica e empiricamente, da forma pela qual
os indivíduos constroem (compartilham, modificam, organizam, regulam, representam, justificam, reconhecem) a
experiência de conhecimento de mundo. O objetivo deste
texto é pensar a noção de frame – termo polissêmico – em
um dos campos produtivos para o estudo sócio-cognitivo
da linguagem e do conhecimento, a Neurolinguística.
PALAVRAS-CHAVE: frame – cognição – Neurolinguística
FRAME E CONHECIMENTO: CONSIDER AÇÕES INICIAIS
O
objetivo deste texto é refletir sobre a noção de frame – termo polissêmico – em um dos campos produtivos para o estudo sócio-cognitivo
da linguagem e da interação, a Neurolinguística.
Tal empreendimento demanda que tomemos inicialmente algumas das
possibilidades conceituais da noção de frame e seus avatares desde seu ingresso
no campo da Linguística, sob influência da Psicologia Experimental e dos
trabalhos em Inteligência Artificial, que tomam frame como “a cover term for
a data-structure representing a stereotyped situation” (cf. Minsky, 1975:2121).
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MINSKY, M. “A framework for representing knowledge”. The Psychology of Computer Vision, ed. Patrick Henry Winston, 211-277. New York: McGraw-Hill, 1975.
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Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
Na realidade, vários são os modelos ou construtos teóricos que têm sido
formulados para dar conta, teórica e empiricamente, da forma pela qual os
indivíduos constroem (compartilham, modificam, organizam, regulam, representam, justificam, reconhecem) a experiência de conhecimento de mundo:
contexto, prática, sistemas de referência, enquadre, esquema, conhecimento prévio,
situação social, script, moldura comunicativa.
Contudo, esses termos, ainda que assemelhados entre si, não tratam exatamente da mesma coisa; tampouco são a mesma coisa. Apenas para dar um
exemplo das sutis distinções existentes entre eles, tomemos a conceituação de
alguns desses termos. Script (cf. Schank e Abelson 1977)2, por exemplo, tem
sido definido como uma “cadeia de inferência pré-organizada de uma situação
específica”; o termo moldura (moldura comunicativa), por sua vez, pode ser entendido a partir do sentido que Fillmore (1982)3 dá a frame, isto é, esquemas
de conhecimento ou padrões prototípicos e estereotípicos, ou ainda hipóteses
feitas pelos indivíduos a respeito do mundo ou estados de coisa no mundo
(Garcez e Ribeiro, 1987:140). Enquadre, por sua vez, não diz respeito apenas a
um conhecimento estruturado em termos linguísticos e conceptuais, e sim ao
enquadramento social dos falantes na interação e aos regimes e práticas sociais
que a qualificam, de acordo com Goffman (1974)4 ou Tannen e Wallat (1998)5.
Tal acepção, a propósito, é semelhante à que é dada à noção de contexto por
linguistas e antropólogos, como Gumperz (1982/2002)6 e Hanks (2008)7.
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SCHANK, R.C.; ABELSON, R. Scripts, Plans, Goals, and Understanding. Hillsdale, NJ: Earlbaum Assoc., 1977.
FILLMORE. C. “Frame semantics”. In Linguistics in the Morning Calm, ed. by The
Linguistic Society of Korea, 111-137. Soeul: Hanshin, 1982.
GOFFMAN, E. Frame analysis. New York: Harper & Row, 1974.
TANNEN, D; WALLAT, C. “Enquadres interativos e esquemas de conhecimento em
Interação: Exemplos de um exame/consulta médica”. In RIBEIRO, B. e GARCEZ,
P. (org.). Sociolingüística Interacional. Porto Alegre: Age, 120-14, 1998).
GUMPERZ, J. “Convenções de contextualização”. In: RIBEIRO, B. T. e GARCEZ,
P. M. Sociolinguística Interacional. São Paulo: Loyola, 2002. Neste texto, o autor afirma: “é através de constelações de traços presentes na estrutura da superfície das mensagens
que os falantes sinalizam e os ouvintes interpretam qual é a atividade que está ocorrendo,
como o conteúdo semântico deve ser entendido e como cada oração se relaciona ao que se
precede ou sucede. Tais traços são denominados pistas de contextualização” (p. 152).
HANKS, W. “O que é contexto”. BENTES, A. et alli (org.) Língua como prática
social: das relações entre língua, sociedade e cultura a partir de Bourdieu e Bakhtin.
Org. São Paulo, Cortez, 2008.
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No terreno da Linguística Cognitiva, Lakoff (1987)8 chama de Modelos
Cognitivos Idealizados (MCIs) as estruturas por meio das quais organizamos
nosso conhecimento e criamos categorias com as quais fazemos relações, entre
nós e o mundo social e também entre nossas variadas formas de conhecimento; os MCIs, em suma, são estruturas conceptuais de ordem sócio-cognitiva
que permitem a aquisição e o desenvolvimento do conhecimento humano.
Metodologicamente, tais modelos cognitivos, ancorados nas experiências cotidianas, permitem a organização seletiva e não exaustiva do conhecimento
sob a forma de categorias cujos limites são associados em rede (“networks”).
Uma categoria, portanto, pode envolver um complexo de diferentes modelos cognitivos. A categoria mãe, por exemplo, remete-nos para os domínios
de nascimento, genética, educacional, nutritivo, afetivo, conjugal, genealógico (cf. Lakoff 1987: 74-76). Com isso, a mulher que educa e cuida de uma
criança, mesmo que não tenha lhe dado à luz, pode ser considerada sua mãe.
Trata-se, assim, de uma noção que, seja qual for a perspectiva teórica que
a mobiliza (da Semântica Cognitiva à Sociolingüística Interacional, por exemplo), terá sempre a ver com estruturas de expectativa, isto é, não se trata de algo
concebido a priori e nem de forma independente quanto a nossas experiências
sócio-culturais; pelo contrário, dependem dos atos de significação e, portanto,
das práticas mediadas largamente por linguagem.
Em sua obra Frame Analysis (1974), Goffman concebe os frames como
enquadres, metáfora que funciona para se compreender melhor o que no campo da Sociologia é também denominado “contexto”, “conhecimento prévio”,
“situação social”. Enquadres, assim, são compreendidos como estruturas sociais relacionadas intimamente com a linguagem, reconhecidas e modificadas
pelos indivíduos – “agentes de mudanças e de condução do envolvimento
interacional” - em contextos e práticas discursivas situadas.
Autores como Tannen e Wallat (1987), por exemplo, abordando as estruturas de expectativas com as quais manipulamos interacionalmente os conhecimentos adquiridos, estabelecem uma distinção entre enquadres interativos (isto é, conhecimentos compartilhados pelos interactantes que atuam na
definição do que está acontecendo na interação) e esquemas de conhecimento
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LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the
mind. The University of Chicago Press, Chicago, 1987.
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Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
(isto é, expectativas dos participantes em relação às pessoas e seus propósitos,
aos objetos, aos eventos).
Em uma perspectiva teórica distinta, isto é, mais instanciada no campo
da Psicologia Cognitiva e no da Linguística Textual, Van Dijk figura entre os
estudiosos da organização do conhecimento que se servem da noção de frame,
assim como de outras, como contexto, sistemas de memória, processamento
textual etc.
Partindo de pressupostos construtivistas que procuram integrar processamento linguístico e processamento mnêmico em torno da explicação de
como os indivíduos constroem e interpretam estrategicamente textos de diversas naturezas, vários modelos de processamento de informação surgem nos
anos 1970 a 1990, como os essencialmente mnêmicos: scripts, frames, cenários, enquadre etc. (Van Dijk, 1988/1992)9.
O objetivo central de Van Dijk em seus textos sobre processamento textual é a expansão de uma semântica do discurso cuja representação cognitiva é
categorizada sob a forma de esquemas ou frames gerais estruturados em vários
subesquemas.
Para o autor, vale lembrar, entre as estruturas linguísticas e os processos
cognitivos, há a interação social e as práticas comunicacionais. Os modelos
contextuais ou de situação diriam respeito a dois tipos de conhecimento (procedimental e declarativo), que estariam relacionados, por sua vez, a dois tipos
de memória (episódica e semântica). A noção de modelo, assim, é importante
para indicar a forma pela qual as representações textuais (RTs) permitem a
categorização do mundo e criam novos modelos de situação, específicos (isto
é, relativos à memória episódica) e generalizados (isto é, relativos à memória
semântica ou “social”): os frames, os planos e scripts. Esses, por sua vez, atuam
na compreensão e no processamento da informação.
A noção de frame inscreve-se nas propostas do autor de análise do processamento textual, relacionado por sua vez com a representação cognitiva do
conhecimento de mundo e com os modelos estratégicos de modelagem, armazenamento e ativação seletiva da memória. Essa noção, bem como a de script,
aparece vinculada ao conceito de cognição social, a partir do que os efeitos
de sistemas de crença e atitudes, entre outros, elaboram estratégias cognitivas
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VAN DIJK, T. Cognição, Discurso e Interação. São Paulo: Contexto. 1992.
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compartilhadas pelos integrantes de uma determinada comunidade. Os frames
diriam respeito aos modelos generalizados socialmente, relacionados com a
memória semântica; os modelos de situação, por sua vez, já diriam respeito
às experiências concretas e individuais dos indivíduos, relacionando-se, assim,
com a memória episódica10.
O interesse inicial do autor pela criação de modelos de processamento textual ou modelos de situação girou em torno do estudo das estratégias de que os
indivíduos lançam mão para criar sistemas cognitivos apropriados nos quais
se encaixam a informação e o conhecimento de mundo. Esse tipo de interesse
caracterizou os trabalhos de Kintsch e Van Dijk na década de 1970 e ilustra
bem os estudos do segundo na década de 1990.
Os modelos de processamento da memória e da informação que funcionam em termos de esquemas, modelos ou scripts partem da hipótese de
que nossas lembranças são adquiridas, memorizadas e ativadas de modo dinâmico e contextualizadas; não se trata simplesmente de “revivificação” de
situações, incidentes ou eventos passados. São, antes, representações textuais
que armazenamos e reativamos de forma seletiva e pragmaticamente situada,
com ou sem modificações. Os exemplos encontrados na literatura são aqueles
com os quais nos deparamos o tempo todo em nossas práticas cotidianas.
Ao reativarmos o frame “restaurante”, por exemplo, evocamos os modelos de
procedimentos, falas, rituais culturais etc. associados a ele, podendo apresentar
características variadas – e mesmo assim o modelo não deixa de ser por nós
reconhecido: o restaurante pode ser regional ou internacional, pode ter um
funcionamento do tipo self service ou de rodízio, pode ser dançante, pode ser
típico etc. Alguns autores, atentos às diferenças procedimentais que podem
ser encontradas em qualquer modelo de situação ou frame, as denominam de
scripts (Schwartz e Reisberg, 1991)11.
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Para Van Dijk (1992), a memória episódica difere da semântica na medida em
que à primeira caberia a informação derivada da representação textual e à segunda,
derivada de um conhecimento “prototípico”, ainda que do tipo declarativo e derivado da cognição social (scripts e frames), caberia a organização e a aplicação do
conhecimento na compreensão e na produção do discurso. A memória semântica,
dita “social” (porque coletiva, isto é, permite o compartilhamento de modelos de
situações ou eventos entre os membros da sociedade), atua mediante a episódica
(pessoal) na construção de modelos novos e na atualização dos antigos.
SCHWARTZ, B; REISBERG, D. Learning and memory. New York: Norton, 1991.
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Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
A partir do panorama conceitual esboçado até aqui, vemos que, em linhas gerais, os frames têm sido compreendidos como conjuntos ou “blocos”
de conhecimentos inter-relacionáveis que, incorporados por meio de práticas
sociais nas quais emergem e por meio das quais se reconstroem, atuam na
organização de nossas experiências e são reciprocamente por elas organizados.
Contudo, as distintas abordagens a respeito do frame não estão em concordância entre si especialmente quando a questão está em pontuar o elemento
chave da noção de frame. Para os que se pautam pelas abordagens tidas como
externalistas (como as perspectivas etnográficas e antropológicas), a questão
do frame está baseada essencialmente na observação do que ocorre no decurso
de uma dada interação (cf. Hymes, 197412); já para as abordagens internalistas, ela estaria baseada nos esquemas cognitivos de conhecimento ativados e
reconhecidos pelos interlocutores em sua tarefa de tornar compreensíveis seus
atos de significação.
COEXISTÊNCIA DE FRAMES SEMÂNTICOS E INTERACIONAIS?
Seja qual for o ponto de vista a partir do qual é tomada, a noção de frame
tem a ver efetivamente com a questão do conhecimento. Assim como ela pode
questionar o referencialismo em relação à linguagem no campo da Linguística, questiona também o essencialismo reinante no campo das Neurociências
em relação à cognição ou ao cérebro. Em um e em outro campo, não raras
vezes encontramos uma concepção platônica de conhecimento na qual se confunde conhecimento com abstração e conteúdo mental, “crença verdadeira e
justificada”. Ao que parece, tivemos que esperar estudos psicolinguísticos e
neuropsicológicos de epistemologia sócio-interacional (como os de Bartlett13,
Vygotsky14 e Tomasello15, dentre muitos outros), que abriram possibilidades
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HYMES, D. Foundations in Sociolinguistics. Philadelphia: University of Philadelphia, 1974.
BARTLETT, F. C. Remembering: a study in experimental and social psychology.
Cambridge: Cambridge University Press, 1977 (original de 1932).
VYGOTSKY, L.S. Thinking and Speech - The Collected Works Of L.S. Vygotsky
(Vol I: Problems Of General Psychology. (Rieber, R. & Carton, A., eds.). New York:
Plenun Press. 1987 (original de 1934).
TOMASELLO, M. As origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São
Paulo: Martins Fontes, 2003 (original de 1999).
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de uma discussão sócio-antropológica a respeito de nossos processos cognitivos, para chegarmos a uma concepção mais pragmática de conhecimento, algo
que envolve uma relação mais estreita entre reflexão e ação.
Se frame é de fato um termo difícil de ser definido, conhecimento, por sua
vez, não fica atrás. Não é por acaso que, de uma maneira ou de outra, Linguagem, Cérebro e Cognição têm estado de uma maneira ou de outra entre as
respostas para as perguntas sobre o conhecimento.
Se deixarmos de lado os becos sem saída dos dualismos vários (biológicos, cognitivos, linguísticos), seremos instados a procurar na relação homemrealidade motivações sócio-antropológicas, psico-sociais, sensório-motoras,
intersubjetivas. É o que se faz grosso modo na perspectiva sócio-cognitiva, que
está longe de ser um bloco monolítico, mas busca reunir campos disciplinares
em torno da tese segundo a qual a práxis social é a base da modulação da experiência linguístico-cognitiva. Nessa perspectiva, admite-se que a cognição, ao
contrário de ser um antecedente, é um resultado de toda a atividade interacional dos indivíduos em seus modos de interação com o mundo16.
Tendo em vista o panorama esboçado anteriormente, podemos de maneira algo esquemática destacar pelo menos duas posições fundamentais a respeito da noção de frame enquanto conhecimento - e vale a pena pensar aqui
se podemos, e em que termos, admitir uma relação entre ambas: frame como
conhecimento social dos objetos e frame como conhecimento de objetos sociais.
A questão epistêmica que interessa à primeira posição é: como aparecem
e se mantêm os frames para o processamento de atividades significativas? A
orientação teórica dessa posição procura levar em conta os mecanismos de
constituição da noção e das práticas de legitimidade dos frames. Aqui, os frames são entendidos como esquemas cognitivos ou conhecimentos pressupostos,
apreendidos pela via da interiorização das experiências sociais, compartilhados
(ou não) pelos indivíduos em interação. Como exemplos de temas ou questões
de investigação baseada na concepção de frames enquanto esquemas linguístico-conceptuais de conhecimento podemos citar, dentre outros: perspectivização, intersubjetividade, atenção, categorização, inferenciação, decisão lexical,
16
Ao elegermos, com Tomasello e Vygotsky (dentre outros), as interações sociais como
uma condição para a representação simbólica do mundo (intersubjetiva e perspectivada), estamos frente à importância radical da linguagem e da interação na
constituição da cognição humana.
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Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
construções gramaticais, mesclagem conceptual, estereótipos, metaforicidade.
Já a questão epistêmica que interessa à segunda posição é: como se dá
o agenciamento dos frames? A orientação teórica dessa posição procura focalizar a organização ou a relação social em que os sujeitos estão mergulhados
ao produzirem significações, ao “revelarem” pelo habitus a apropriação sóciocognitiva da linguagem, suas condições de produção e seus efeitos sóciodiscursivos. Como exemplos de temas ou questões de investigação baseada na
concepção de frames interativos, tomados a partir do enquadramento social
dos falantes e do contexto interacional local em que estão imersos, temos,
dentre outros: footing17 ou alinhamento (cf. Goffman, 1974), contexto, atividade18 (Gumperz, 1982/1998), operações de referenciação, categorização
social dos falantes.
Diferentemente de autores como Tannen e Wallat (1998), acreditamos que essas duas esferas do conhecimento – interacional (enquadres interativos) e semântico (esquemas de conhecimento) -, inter-relacionadas num
continuum dialético, podem ser articuladas em torno de um postulado interacionista básico já formulado por Vygotsky (1934/1987), que pode ser assim
enunciado de forma sintética: “não há pensamento ou domínios cognitivos
integrais fora da linguagem e nem possibilidades integrais de linguagem fora
de processos interativos humanos” (Morato, 1996)19.
Nesse sentido, podemos afirmar que foge aos autores que opõem frames
semânticos e interacionais o fato de que as ações nas quais se engajam os sujeitos
em interação são parte integrante da constituição e da re-significação dos frames
semântico-conceptuais (cf. Cienki, 200720). Do mesmo modo, estes são parte
integrante da orientação dos atos de significação no decurso das interações.
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“modo pelo qual os interactantes enquadram e negociam as relações inter-pessoais
de um evento” (GOFFMAN, E. Footing. In: RIBEIRO, B. T., GARCEZ, P. M.
(orgs.). Sociolingüística Interacional. Porto Alegre: AGE, Pp. 70-97, 1998).
“unidade básica de interação socialmente relevante em termos da qual o significado é avaliado” (Gumperz, 1998:99).
MORATO, E.M. Linguagem e Cognição - As reflexões de L.S. Vygotsky sobre a ação
reguladora da Linguagem. São Paulo: Plexus, 1996.
CIENKI, A. “Frames, idealized cognitive models and domains”. In: GEERAERTS,
D.; CUYCKENS, H. The Oxford handbook of cognitive linguistics. OUP, New York.
Pp.170-187, 2007.
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Foge, pois, às perspectivas essencialmente internalistas e externalistas,
que há um continuum dialético entre distintas “esferas da realidade”21, interação e conceptualização, manifestações linguísticas e estruturas complexas de
conhecimento. Foge, em suma, às perspectivas baseadas em dicotomias, que
frame é um conceito interacional.
Em uma passagem de um texto já clássico, Mondada e Dubois
(1995/2003:25)22 chamam a atenção para o modo de funcionamento desse
continuum dialético:
De um ponto de vista linguístico, quando um contexto é reenquadrado (Goffman, 1974), as categorias podem ser reavaliadas e
transformadas, juntando diferentes domínios, como na metáfora,
na metonímia e na metalepse.
A noção de frame parece ter a ver, pois, assim como a noção de contexto, com
um estado de coisas que em parte está organizado a priori, e em parte está associado a uma significação que emerge de sua própria organização (cf. Hanks, 2008).
FRAME E CONHECIMENTO NO CONTEXTO DA NEUROLINGUÍSTICA
Como se sabe, a Neurolinguística, essa disciplina híbrida, dedica-se às relações entre linguagem, cérebro e cognição. Ela o faz assumindo pressupostos
e métodos próprios à Linguística e às Neurociências.
Da tradição dos estudos linguísticos, a Neurolinguística mantém o foco e
o interesse na descrição e na análise da estrutura, organização e funcionamento da linguagem, o que envolve o interesse pelas práticas sócio-culturais, os
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A expressão é emprestada de Bakhtin, para quem “a atividade mental tende desde a origem
para uma expressão externa plenamente realizada (...) Uma vez materializada, a expressão exerce
um efeito reversivo sobre a atividade mental: ela põe-se então a estruturar a vida interior, a darlhe uma expressão ainda mais definida e mais estável.” (BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia
da linguagem. São Paulo: Cultrix. p. 118, 1981 (original de 1929).
MONDADA, L ; DUBOIS, D. “Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação”. In: CAVALCANTE, M.M.
et alli (orgas). Coleção clássicos da lingüistica: Referenciação. São Paulo: Contexto.
pp. 17-52, 2003.
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Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
vários elementos que constituem o contexto situacional e o histórico, os modos diferenciados de constituição e de organização das semioses não verbais,
os diferentes processos cognitivos com os quais compreendemos e atuamos no
mundo, dentre os quais a memória, a atenção, a percepção, a gestualidade etc.
Da tradição de estudo das Neurociências, a Neurolinguística mantém o
foco e o interesse em um conjunto de questões às voltas com o velho problema mente-cérebro: como o cérebro reage frente às dificuldades linguísticas e
cognitivas que se impõem após o dano neurológico? Como se desenvolve a
plasticidade cerebral e como ela atua no desenvolvimento e no declínio cognitivo? Como as crianças fazem para aprender e usar a linguagem? Qual é a
responsabilidade do cérebro em relação aos processos cognitivos, e qual seria a
responsabilidade destes em relação ao cérebro, sua estrutura e funcionamento?
A noção de frame, no campo que imbrica processos linguísticos, cognitivos e cerebrais, pode assinalar as vantagens de modelos que integram aspectos
biológicos e sociais na compreensão da cognição humana, baseados na análise
qualitativa e contextualizada de seu funcionamento e estrutura.
Neste artigo, em especial, buscamos mostrar que a noção de frame (e seus
avatares) pode nos ajudar a compreender melhor o que acontece quando a relação entre sujeito, cérebro, cognição e vida social é afetada por determinadas
circunstâncias, como a Doença de Alzheimer, responsável por lesões cerebrais
degenerativas que implicam um declínio cognitivo generalizado.
Para uma abordagem sócio-cognitiva da Doença de Alzheimer, linguagem e interação jogam um papel fundamental no entendimento da cognição
humana, do funcionamento do cérebro, dos impactos do comprometimento
neurológico, das estratégias encontradas pelo portador da doença, seus familiares e todo o corpo social para lidar com dificuldades de várias ordens colocadas
em cena – da constelação sintomatológica da patologia à sua recepção social.
A discussão em torno da noção de frame pode, além disso, ajudar-nos
a aprofundar uma perspectiva sócio-cognitiva dos processos ligados ao envelhecimento normal, alternativa à visão veiculada por modelos estritamente
biomédicos que acabam por promover o que por vezes é chamado de “alzheimerização da velhice” (cf. Adelman, 1995 apud Debert, 199923).
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DEBERT, G. G. A Reinvenção da velhice. socialização e processos de reprivatização do
envelhecimento. São Paulo: EDUSP, 1999.
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A INTER-RELAÇÃO DE FRAMES INTERACIONAIS E
SEMÂNTICOS: EXEMPLIFICAÇÃO
Como forma de pontuar uma concepção interacional de frame, esta seção será dedicada à análise de processos metadiscursivos e de enquadres interativos observáveis na conversação entre uma senhora, IG, diagnosticada como
portadora da Doença de Alzheimer (doravante, DA) em estágio inicial, com
uma pesquisadora, EM. Tal situação enunciativa, a ser detalhada mais adiante,
se dá em meio à aplicação de um protocolo de estudo sobre a interpretação de
provérbios e idiomatismos por pessoas portadoras de DA.
Chamaremos a atenção no fragmento a ser apresentado para a forma
pela qual as interactantes procedem ao enquadramento e à negociação não
apenas da relação inter-pessoal estabelecida na interação, como também para
as implicações das mudanças de footing ou alinhamento (que é negociado, ratificado, co-sustentado ou modificado no decorrer da interação, cf. Goffman,
2002:107). Tais aspectos serão observados em meio a uma tarefa de interpretação e manipulação enunciativa da expressão “chá de cadeira”. Antes, porém,
tratemos de conceituar a DA, ainda que brevemente.
Descrita pelo médico alemão Aloïs Alzheimer em 1906, a Doença de
Alzheimer se traduz por alterações cognitivas progressivas, degenerativas
(distúrbio de memória, apraxia, agnosia e afasia) e comportamentais que
constituem uma síndrome demencial associada à presença de lesões histológicas características (Cf. Défontaines, 2001:37)24. Trata-se do tipo mais comum entre as demências, atingindo dois terços das que são diagnosticadas.
Entre suas causas ainda não devidamente elucidadas, podemos encontrar fatores genéticos, fatores de risco (antecedentes mórbidos como traumatismos
cranianos com perda de consciência, arteriosclerose e diabetes) e depressões
tardias, não tratadas.
No campo dos estudos neurocognitivos, entende-se em linhas bem gerais que a DA evolui em três fases: a forma leve, na qual os problemas mnésicos são constantes; a forma moderada, na qual os problemas mnésicos passam
a ser incapacitantes, seguidos de desorientação têmporo-espacial e linguística
(nessa fase, os problemas de linguagem, ainda não presentes na forma anterior,
24
DÉFONTAINES, B. Les démences. Paris: MED-Line Éditions, 2001.
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Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
passariam a ser frequentes e prontamente perceptíveis. Somados a eles, os problemas práxicos e gnósicos configurariam o que é chamado por muitos autores
de síndrome afásico-apráxico-agnósica); a forma severa, na qual a memória
encontra-se gravemente alterada e a linguagem apresenta-se sensivelmente
comprometida, podendo chegar ao mutismo.
Com relação aos problemas de linguagem na DA, na primeira fase (2 a
10 anos após a incidência), seriam identificados déficits na atividade de nomeação, repetições, circunlóquios, uso expressivo de dêiticos e de estruturas
sintáticas consideradas “simples”, sem déficits expressivos no processamento
fonológico. A produção da linguagem é geralmente normal no nível da articulação sem alterações de linguagem no nível articulatório - ainda que as pausas
e as hesitações sejam consideradas recorrentes.
Segundo Huff et alli. (1988)25, a segunda fase seria caracterizada pela deterioração expressiva tanto do processamento semântico quanto do sintático.
Nesta fase, as pessoas com DA apresentam tendência a parafasias semânticas
(mesa por cadeira). Com relação ao processamento sintático, haveria uma progressão na dificuldade de compreender orações simples e complexas. Observase nesta fase também uma crescente tendência para a produção de parafasias
fonológicas, além de um maior comprometimento da escrita.
A propósito da reflexão que desenvolvemos neste artigo, veremos, a seguir, um exemplo extraído de uma interação da pesquisadora com uma senhora (IG), professora de primeiro grau aposentada, portadora de provável DA
de grau leve a moderado. Nesse episódio, a pesquisadora EM, após a concordância de IG, propõe a ela, no contexto de um estudo sobre metaforicidade
na DA, desenvolvido a partir de um protocolo do qual constam 10 provérbios
e 10 idiomatismos, que interprete o idiomatismo “chá de cadeira”. Essa expressão configura um sintagma nominal e exerce a função de objeto direto,
veiculando a ideia de enfado ou cansaço causado pela impontualidade, pela
expectativa ou espera excessiva, inútil ou vã, como em “O dentista me deu um
chá de cadeira” ou “Fui ao baile e tomei um chá de cadeira”.
Como têm apontado os dados que vimos obtendo a partir desse protocolo de estudo, no caso das DAs, em que as atividades epilinguísticas estariam
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HUFF, F. J. CORKIN, S., GROWDON, J. H. “Semantic impairment an anomia
in Alzheimer’s disease.” Brain and Langage, 28, 1988.
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mais ou menos severamente alteradas (cf. Damasceno, 200026), observa-se o
aprofundamento da importância do papel do interlocutor na qualidade da
autonomia enunciativa do portador de DA e na relevância de seus processos e
atos de significação, bem como na estruturação (textual, conversacional, pragmática) da interação. Em outras palavras, o caráter regulador da linguagem e
da interação frente aos processos cognitivos passa – na DA – a depender acentuadamente do papel do interlocutor e dos contextos situados.
No exemplo aqui evocado, podemos ver, além dos frames semânticos
relativos à expressão “chá de cadeira” acionados por IG e EM, a dinâmica dos
frames interacionais acionados no decurso da interação entre as duas (mudanças de footing, dinâmica de turno, o caráter dirigido da entrevista e a questão
da assimetria entre as interlocutoras, a evocação de diferentes cenas enunciativas nos gestos interpretativos, como a sala de espera de consultório, um salão
de baile). Chamaríamos a atenção para a presença de processos linguísticotextuais e interacionais implicados na intervenção da metadiscursividade na
tarefa interpretativa de IG e EM.
Segundo Jubran, as “referências metadiscursivas têm a propriedade de autoreferenciação discursiva, indiciando a introjeção da instância e das circunstâncias de
enunciação na materialidade textual” (2005)27, como as referências à formulação
linguística do texto (indicativas da função mais linguístico-textual da metadiscursividade) e as instâncias co-produtoras do texto (indicativas da função mais
interacional da metadiscursividade). Ambas mantêm entre si uma distinção em
termos de predominância, porém se reúnem no decurso da atividade discursiva.
A metadiscursividade de fato engloba vários processos, linguísticos e
cognitivos, e sua ênfase em relação à objetivação do sentido recai ora sobre
o enunciado, ora sobre a enunciação, ora sobre os recursos linguísticos, ora
sobre o contexto interacional, ora sobre outros processos cognitivos cuja realidade semiológica vincula-se à linguagem, mas não se manifesta de forma
necessariamente verbal.
26
27
DAMASCENO, B. P. “Avaliação da linguagem no sujeito idoso”. In: O. V. Forlenza; P. Caramelli (Org.). Neuropsiquiatria Geriátrica. V. 1. São Paulo: Atheneu,
p. 527-530, 2000.
JUBRAN, C. “Especificidades da referenciação metadiscursiva”. In: I.G.V. Koch;
E. M. Morato, A. C. Bentes. (Orgs.). Referenciação e Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
106
Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
No episódio focalizado, podemos observar que tanto IG, a senhora com
DA, quanto sua interlocutora, EM, mobilizam processos metadiscursivos
(Jubran, 2005, 200228; Borillo, 198529), tais como: referência à formulação
linguística dos enunciados, próprios e alheios; referência à estruturação tópica
das interações verbais; referência aos papéis enunciativos assumidos na interação; referência ao próprio ato comunicativo; referência a fatores, a instâncias
não-verbais co-produtoras dos enunciados, próprios e alheios.
O que nos parece interessante observar no episódio abaixo é que os variados processos metadiscursivos emergentes na fala de IG e na de EM estão relacionados intimamente com pistas de contextualização (cf. Gumperz,
1982/1998) e com as mudanças de footing, bem como de enquadres interacionais e estrutura de participação de ambas na conversação.
Se as mudanças de footing ocorrem de forma a “realinhar” o enquadre comunicativo e as posições discursivas das interactantes no decurso da
interação, os processos metadiscursivos a quem ambas recorrem assinalam
também, como nas inserções meta-enunciativas, a presença de esquemas
de conhecimento envolvidos na metaforicidade. Os gestos interpretativos
levados a cabo por IG e EM em torno da expressão chá de cadeira promovem constantes realinhamentos e novos enquadres interacionais, ao mesmo
tempo em que estes atuam de forma decisiva na interpretação do sentido da
expressão em foco.
No início do episódio, EM pergunta a IG se conhece a expressão chá
de cadeira, solicitando a ela uma interpretação do tipo metalinguístico (“o
que ela quer dizer?”) e contextual (“em que situação a gente pode usar essa
expressão?”). IG, rindo, afirma que não pretende falar contra sua interlocutora, produzindo com seu enunciado um implícito que (re)orienta a sequência interativa entre elas neste momento (em resposta a EM, IG afirma estar,
naquele momento, tomando um chá de cadeira). A partir de um realinhamento na sequência interacional entre IG e EM (na qual IG altera seu status
na interação), temos uma primeira interpretação de chá de cadeira posta em
questão: tomar chá de cadeira é permanecer sentada na cadeira por muito
28
29
JUBRAN, C. “Marcadores metadiscursivos em entrevista televisiva: funções textuais-interativas”. Estudos Lingüísticos XXXI. São Paulo, cd-room, 2002.
BORILLO, A. “Discours ou Metadiscours?” DRLAV Revue de linguistique (32).
Paris: Centre de Recherche de l’Université de Paris VIII, p. 91-151, 1985.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição no 41, p. 93-113, 2010
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tempo (ou seja, não exatamente ficar sentada esperando por alguém por
muito tempo, ou em vão, mas estar sentada durante muito tempo).
Não reconhecendo na explicação de IG uma boa aplicação à situação
que ambas experimentavam concretamente, uma vez que as duas foram pontuais em relação ao horário marcado previamente para a entrevista ora em
andamento, EM manifesta um questionamento da interpretação proposta por
IG (“tá tomando um chá de cadeira?”). IG, entretanto, procede a uma modalização de seu enunciado, reduzindo possíveis efeitos de constrangimento
provocados em sua interlocutora pela comum percepção da injunção éticodiscursiva contida na expressão em foco (“brincadeirinha, tá”). Instada pelo
comentário que EM faz sobre a mudança de footing que ocorrera (“Veja só...”),
IG, ainda entre risos, procura explicitar o sentido que está dando à expressão
chá de cadeira (“eu tô aqui respondendo às perguntas”), algo que não deixa
de veicular uma ideia de tempo (e de enfado) presente na interpretação desse
idiomatismo.
Entretanto, a intervenção de EM destaca a relação entre o sentido veiculado pela expressão e a situação concreta que ambas vivenciavam (“sentada
conversando é tomar chá de cadeira?”). Neste momento, uma formulação de
ordem metalinguística provoca nova mudança na dinâmica interacional e, certamente, na atividade interpretativa levada a cabo por IG, que se vê entre uma
instabilidade de sentido e uma ação reflexiva provocada por essa contingência:
“exato é é (4s) deixa eu ver (3s) como é? sentada”. A partir da complexidade
linguística aí presente, IG, novamente entre risos, concentra-se em sua interpretação inicial, reintroduzida aqui com um marcador argumentativo (“mas”),
reforçando o contexto interacional que associa ao sentido que dá à expressão
(“mas tô tomando um chá de cadeira”).
EM a interpela a respeito do sentido por ela atribuído à expressão e IG
ratifica o sentido de estar sentada por muito tempo: “é o seguinte é eu fiquei
sentada muito tempo tomando um chá de cadeira”. Ainda que desta vez a interpretação não esteja vinculada ao comentário a respeito da situação concreta
da entrevista, nova instabilidade emerge a partir da inserção de um elemento
(a ideia de esperar por alguém por muito tempo) por EM: “num sentido de
que a gente fica esperando?” .
Confrontada com exemplos de cenas cotidianas fornecidos por EM para
pontuar os sentidos de impontualidade, espera e enfado veiculados à expressão
108
Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
idiomática, IG prontamente os reconhece: “ISSO”, “EXATO”. Contudo, demonstra não atentar para aspectos semânticos envolvidos no escopo da expressão, que marcam uma diferença entre “ficar muito tempo sentada na cadeira
(enquanto conversa, responde a perguntas, emite opiniões etc.)” e “ficar muito
tempo sentada (à espera de alguém ou em vão)”.
Um novo exemplo de contexto de uso da expressão é aventado por EM,
sendo aqui o sentido, mobilizado por frames semânticos e interacionais e
ancorado na memória cultural de ambas, co-construído por IG e EM, que
promovem, com o concurso de processos metadiscursivos, nova mudança de
footing: ambas evocam de forma colaborativa uma cena enunciativa na qual
caberia o uso da expressão chá de cadeira:
EM ou então assim quando as pessoas falam “ah, fui ao
baile”
IG aham
EM “e no baile eu fiquei tomando “chá de cadeira”
IG [“chá de cadeira”
EM
[quer dizer eu
fiquei esperando (3s)
IG que algum cavalheiro
EM algum cavalheiro
IG tirasse você pra dançar
Porém, quando EM retorna à questão da distinção entre a ideia de permanecer sentada na cadeira por longo tempo e a de esperar por alguém por
muito tempo ou em vão, IG novamente manifesta uma incompreensão em
relação ao que sua interlocutora procura enfatizar de forma metalingüística:
EM então não é só ficar sentada um tempão
IG como?
Quando instada a interpretar novamente a expressão chá de cadeira, IG
retorna à interpretação que fizera inicialmente, mesmo quando confrontada
por EM (“este contexto é um pouco diferente do que tá acontecendo aqui com
a senhora...ou não é?”, “a senhora tá tomando um chá de cadeira porque tá
sentada e conversando?”, “mas a senhora não tá por exemplo ali no...no sala
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição no 41, p. 93-113, 2010
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esperando ser atendida?” “ficou esperando muito tempo? tomou um chá de
cadeira?”), assinalando a percepção de uma injunção presente na expressão em
foco e reafirmando que sua intenção não é criticar ou ofender EM: “não eu
não tô falando da senhora né”, “eu não tô falando pra ofender”. E, finalmente,
como quem espera ser compreendida, explica, de forma paciente, à sua interlocutora: “eu tô falando/tô COM-PA-RANDO”.
Vejamos, pois, o episódio, em que o nome verdadeiro de IG foi trocado,
para preservar sua identidade.
EM
IG
EM
IG
EM
“chá de cadeira” (3s) conhece esta?
“chá de cadeira”?
é já ouviu?
já
então o que ela quer dizer? em que situação a gente
pode usar essa expressão?
IG
[é chá (3s) “chá de cadeira’ é a gente usa da
seguinte maneira (4s) EU não vou falar contra a
senhora ((rindo))
EM o quê?
IG ((rindo)) é (3s) eu tô aqui agora tomando um chá de
cadeira
EM ((rindo)) tá tomando um chá de cadeira?
IG tô aqui agora tomando um chá de cadeira (3s)
brincadeirinha tá?
EM
[veja só
((rindo))
IG eu tô aqui respondendo às perguntas ((risos de ambas))
EM mas em que situação a senhora tá agora? A senhora tá
tomando um chá de cadeira?
IG tô sentada aqui muito bem
EM sentada conversando é tomar chá de cadeira?
IG exato é é (4s) deixa eu ver (3s) como é? sentada
EM é
IG mas tô tomando um chá de cadeira ((rindo))
EM qual é o sentido então que a senhora tá dando pra
expressão “chá de cadeira” nessa
Morato, Edwiges Maria
110
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
IG
[ah o chá de cadeira?
EM é, nesse uso da senhora é
[é o seguinte é eu fiquei sentada muito
IG
tempo tomando um chá de cadeira
EM num sentido de que a gente fica esperando?
IG hum-hum
EM [alguém?
IG aham?
EM ou esperando por muito tempo à toa muito tempo pra
ser atendido, como quando alguém diz, por exemplo,
“eu fui ao dentista”
IG ISSO!
EM [e ele me deu um chá de cadeira”
IG [eXATO
EM não porque ficou muito tempo com ele
IG aham
EM mas é porque eu fiquei muito tempo esperando
IG [sentada na cadeira
EM mas eu fiquei sentada na cadeira, esperando por ele
IG pois é
EM não tem isso?
IG tem
EM ou então assim quando as pessoas falam “ah, fui ao baile”
IG aham
EM “e no baile eu fiquei tomando “chá de cadeira”
IG EM
[“chá de cadeira”
fiquei esperando (3s)
[quer dizer eu
IG que algum cavalheiro
EM algum cavalheiro
IG tirasse você pra dançar
EM me tirasse pra dançar e não aconteceu tomei um
tremendo chá de cadeira
IG Isso mesmo
EM então não é só ficar sentada um tempão
IG como?
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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição no 41, p. 93-113, 2010
EM não é só ficar sentada na cadeira um tempão, mas é
ficar um/ sentada um tempão...
IG
[aham
EM sozinha esperando alguma coisa acontecer (3s) ficar na
espera e nada...
IG certo certo
EM este contexto é um pouco diferente do que tá
acontecendo aqui com a senhora...ou não é?
IG aham... é...
EM então (4s) a senhora tá tomando um chá de cadeira
porque tá sentada e conversando
IG [não eu não tô falando da senhora né eu não tô
((risos))
EM [mas a senhora não tá por exemplo ali no...no sala
esperando ser atendida? ficou esperando muito tempo?
Tomou um chá de cadeira?
IG não! ((risos))
EM nessa situação em que....ficar ali tomando um chá de cadeira
IG [não
vai se ofender comigo!
EM Imagina, dona Isaura. É que
[eu não tô falando pra ofender
IG
EM imagina imagina
IG eu tô falando/tô COM-PA-RANDO
EM tá comparando
IG comparando (3s)
EM os exemplos do baile e do dentista eles são... eles
falam de quando a gente espera(3s) espera (3s) m vão
((EM encena uma pantomima na cadeira, olhando no
relógio, com expressão de enfado))
IG e isso mesmo sem resolver né? ((risos))
EM nesse contexto em que a senhora fica sentada na
cadeira um tempão conversando comigo
IG não (3s) é (4s) “chá de cadeira” (3s) é
brincadeirinha, heim?
((risos))
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Morato, Edwiges Maria
A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?
Dados como o acima indicam que indivíduos com DA em fase inicial
podem proceder a “cálculos metafóricos” (cf. Moura, 200530) de identificação
do significado da expressão a partir de uma situação de uso e da observação de
normas pragmáticas a ela relativas: tais dados mostram também que a metaforicidade é apreendida pelos indivíduos com DA a partir de expectativas interpretativas que eles nutrem em relação às regularidades linguísticas referentes
ao “cálculo” aludido acima.
Temos observado que os indivíduos com DA em fase inicial, malgrado
suas dificuldades linguístico-cognitivas, são capazes de reorganizar ou reorientar a significação durante a atividade em curso e em função da interação que
mantêm com seu interlocutor em conversações situadas nas quais se torna
(mais) perceptível todo um conjunto de processos colaborativos e toda uma
construção conjunta e intersubjetiva de referentes (Morato, 2008)31.
Comentários finais
Como dar conta dos conhecimentos prévios e emergentes, reconhecidos,
co-construídos, retomados em contextos interacionais? Como dar conta de
um estado de coisas que em parte está organizado a priori, e em parte deriva
da organização de algum ato de significação qualquer, verbal ou não-verbal?
A postulação de uma co-existência de conhecimentos organizados por
estruturas ou esquemas conceptuais e por padrões interacionais requer que
coloquemos em xeque qualquer corte abissal entre essas duas formas do conhecimento, mutuamente constitutivas, linguagem e cognição.
Se a noção de frame pode servir como ferramenta teórica e analítica para
o estudo da forma como constituímos e (re)organizamos o conhecimento,
impõe ao pesquisador alguns desafios.
Entre os desafios teóricos encontra-se a superação de posições externalistas e internalistas com relação à concepção de cognição, bem como a necessidade de uma articulação mais estreita entre as chamadas análises macro e as
30
31
MOURA, H.M. “Metáfora e regularidades lingüísticas”. In: Lingüística e Cognição.
(Miranda, N.S.; Name, M.C. Eds.). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
Morato, E.M. “O caráter sócio-cognitivo da metaforicidade: contribuições do estudo do tratamento de expressões formulaicas por pessoas com afasia e com Doença de Alzheimer”. Revista de Estudos da Linguagem 16:2, 2008.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição no 41, p. 93-113, 2010
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análises micro. O enfrentamento de tais desafios vincula-se tanto à explicação
sobre a constituição do conhecimento, quanto ao que alguns autores chamam
de atualização ou modificação de frames (reframing), fenômenos para os quais
parecem concorrer tanto esquemas conceptuais ou frames semânticos, quanto
frames interacionais.
RÉSUMÉ
Il existe plusieurs modèles ou constructions théoriques
formulées pour rendre compte théoriquement et empiriquement de la manière dont les individus construisent
(partagent, modifient, organisent, règlent, représentent,
reconnaissent) l´expérience de la connaisance du monde.
Le but de cet article est de réfléchir sur la notion de frame - terme polysémique - dans un domaine théorique
porteur pour une approche socio-cognitive du langage
et de la connaissance, la Neurolinguistique.
LE MOTS-CLÉS: frame – cognition – Neurolinguistique
Recebido em: 31/03/2010
Aprovado em: 17/06/2010
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