EDITORIAL
Aquele que genuinamente ensina é um indicador de caminhos;
Se àquele que aprende apraz, de facto, a verdade,
Basta-lhe apenas um aceno,
Para levá-lo a encontrar o que procura.
Novalis, Fragmentos logológicos
A c o m u n i c a ç ã o em exercício de posições temática e metodologicamente diferenciadas e difluentes que uma revista filosófica universitária
não só terá de ser por inevitabilidade, mas deverá assumir como programa, pode encontrar no esquema ensinar-aprender a modelização de um
dinamismo de reciprocidade, susceptível de contribuir, se não para uma
paz perpétua entre os filosofantes, pelo menos para a coexistência pacífica da república dos estudiosos dessa peculiar modalidade da intervenção humana — pensar sabendo que se pensa — , afastada a ameaça de
uma qualquer deriva doutrinária imperialista.
« S ó se aprende [e só se ensina] um pensamento pensando-o»: esta
uma asserção hegeliana que alude directamente à condição tipificadora
da atitude da efectiva c o m p r e e n s ã o filosófica e nos confronta de imediato com a sua exigência mais primitiva e mais determinante. Tudo o mais
são procedimentos técnicos, recursos úteis, imprescindíveis mesmo, mas
subordinados àquele pressuposto último que é pensar, pensar-se num
pensamento outro, na sua irredutível alteridade e, na seriedade desse irredutível, implantar a comunidade de inteligência possível.
Phiíosophica
3, Lisboa, 1994, pp. 3-5.
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Editorial
A pluralidade sincrónica das posições e dos métodos é passível do
mesmo tratamento que a diversidade sucessiva cujo registo constitui a
história da Filosofia: o reconhecimento autêntico de ambas impõe quer a
recusa de um atomismo enclausurante quer o esforço pelo estabelecimento de uma identidade através da diferença.
Pensar um pensamento significa necessariamente, por um lado, restitui-lo à individualidade irrepetível do seu autor e do seu momento, surpreender o que nele é posição peculiar, índice de um estado da questão e
insuprimível c o n t e ú d o tético ou aporético; representa então, a um tempo,
uma inquirição genealógica (reconstrução de uma génese) e topológica (a
circunscrição num horizonte de sentido). Por outro lado, e mais essencialmente, significa justificá-lo,
esclarecê-lo à luz dos seus suportes
formais, da sua coerência interna, da ordem argumentativa em que vem
dado e das suas implicações sistemáticas. Significa, mais radicalmente
ainda, fundamentá-lo,
ou seja, vê-lo derivar dos princípios supostos, da
decisão instauradora que está configurando a identidade única e a autenticidade de um pensamento com nome próprio.
O texto do autor, c o m u n i c a ç ã o in via, deverá constituir sempre a
pedra de toque do intento compreensivo, a autoridade soberana da exegese, sem com isso se pretender aprisionar o entendimento na mera «letra»:
aliando o empenhamento informativo, interpretativo e impugnativo à
técnica do c o m e n t á r i o , a leitura que visa a compreensão encara o texto
simplesmente como o lugar testemunhal das razões, o veículo, a mediação sempre disponível da «coisa m e s m a » , do que está realmente em
questão, do que importa ser pensado.
A c o m u n i c a ç ã o , quer no eixo da actualidade quer da diacronia, supõe,
deste modo, uma tarefa multidimensional — hermenêutica, sistemática,
crítica e reflexiva — sem por isso suspender minimamente a circunscrição temporal envolvente, antes sumamente a relevando: a c o m p r e e n s ã o
da individualidade filosófica implicará sempre o empenho em identificar
um complexo circunstancial de referência, sem com tal sacrificar a uma
qualquer tipologia temática ou doutrinária, tendo constantemente presente que toda a e x p o s i ç ã o é filha do seu tempo, e ganhando nessa circunscrição a Grundbefindlichkeit
específica que a particulariza e lhe
confere uma fisionomia peculiar. Nisto se segue mais uma vez a Hegel
que faz sempre de cada posição filosófica «o seu tempo captado no pens a m e n t o » , ou então a J. Habermas que a considera como «a sismografía
do espírito da é p o c a » , o que de modo algum equivale a assimilá-la redutoramente a um registo passivo e neutro da actualidade, esgotando-a
nesse seu agora. E, aliás, este inelidível intervalo que outorga irrevogavelmente a todo o projecto filosófico a sua relativa, frágil, mas incon-
Editorial
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tornável Unzeitgemássheit.
A comunicação instala-se justamente na consciência do carácter n ã o definitivo de um tal distanciamento: tornarmo-nos c o n t e m p o r â n e o s de remotos dizeres e de uma tal diáspora de significados é a eficácia própria da cultura filosófica e a validação do trabalho
empreendido.
Como trabalho hermenêutico, a comunicação em Filosofia introduz-nos na especificidade da discursividade reflexiva pelo tratamento da sua
génese e estrutura como texto: a atitude principiante, o tipo, o ritmo e o
estilo da reflexão e o modo de significação. Assim se cumpre a instauração da c o m p r e e n s ã o numa dialéctica de cumplicidade e distanciamento,
visando em última instância a «invenção» do sentido (o sujeito da escrita
e da leitura).
A d i m e n s ã o sistemática atende primordialmente ao elemento estratégico da a r g u m e n t a ç ã o filosófica e aos fundamentos da demonstração —
sapientia est ordinare — , procurando formular uma analítica dos filosofemas segundo a sua morfologia e estrutura tendencial; preocupa-se
sobretudo com a dialéctica especulativa no estabelecimento da reciprocidade entre a ordem integradora do discurso e as proposições, teses e
tópicos das proposições singulares, sem descurar a metafórica a que
recorre.
A c o m u n i c a ç ã o filosófica é ainda uma operação eminentemente crítica, n ã o como cedência ao ímpeto adolescente de refutação qua tale ou ao
nomadismo céptico e relativista, incapaz de perceber como a Filosofia
« n u n c a é a mesma, sendo sempre ela m e s m a » , mas como obra de justiça,
acção de efectivo reconhecimento e justificação de cada posição em si
própria — uma crítica imanente: como anagnoitsis, o exercício filosófico
de c o m p r e e n s ã o da sua diversidade implica a fixação de limites de um
pensar constituído, a denúncia da unilateralidade que sempre aflora na
posição dos seus axiomas fundadores, no rastreio da « s o m b r a do filósofo» e da fmitude essencial que é fermento da destituição da pretensão
do definitivo.
O trabalho filosófico em torno da sua pluralidade é, finalmente, reflexão, constituição de si mesmo como protagonista do seu próprio pensar,
não como retorno solipsista infecundo, num espelhamento mortal e auto-satisfeito, mes como um processo de auto-objectivação; mas a dialogia,
essa c o n d i ç ã o de pensar situando-se no ponto de vista do outro, é indissociável da génese de si como ser pensante, do seu carácter de interlocutor que, no j o g o de adesão e retenção, responde por si, insubstituivelmente.
Manuel Carmo
Ferreira
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