Saber e gozo no discurso do mestre Nestor Lobo Lima Vaz introdução feita por Lacan no seminário sobre "O avesso da psicanálise" mostra-nos que o discurso que faz contraponto ao discurso analítico, que está no seu avesso é justamente o discurso do Mestre. Ao tomá-lo como ponto de partida não fazemos mais do que seguir o percurso traçado por Lacan. esse percurso toca diretamente um outro campo, o da filosofia, que desenvolveu ao longo de sua história uma série de questões referentes a esse mesmo discurso de que se serve como um eixo invisível, em busca da quetão da verdade, da Alétheia, como a define Heidegger tomando como base os fragmentos de Heráclito. O termo discurso usado por Lacan desde "Função e Campo da Palavra e linguagem " ganham uma extensão e rigor maiores por poder ser situado numa estrutura que define quatro lugares: agente/verdade, outro/produção e quatro termos. SI (significa mestre), S2 (saber), $ (sujeito barrado), a (objeto mais-de-gozar). Esses termos ao ocuparem os lugares altemadamente tornam possível o funcionamento dos quatro discursos fundamentais: discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do universitário, discurso do analista. Essa estrutura é deduzida não apenas de uma estrutura puramente lógica mas de uma certa constância com que os discursos formam na sua trama o próprio arcabouço do mundo, inscritos e articulados, multiplicando seus efeitos imaginários, circunscrevendo o real como impossível. Sincronia e diacronia. O discurso do mestre se escreve: j -* p SI no lugar do agente, lugar de onde se ordena o discurso. Lugar da lei articulada como direito, o SI não é dado na origem. Qualquer significante pode vir a ocupar este lugar de significante-Mestre e desempenhar sua função: representar um sujeito para outro significante. Contudo, como nos diz Lacan: "o sujeito que ele representa não é unívoco.. É representado porém também não é representado".1 Algo nesse nível permanece oculto em relação a esse mesmo significante. Isso que não é representado é justamente aquilo que vai se instituir como perda. Desse modo a relação entre SI e S2 comporta como efeito a constituição de um sujeito dividido e a produção de uma perda. Portanto, uma vez funcionando na estrutura SI não é do mesmo nível que S2 que Lacan define como o círculo do grande Outro e que poderíamos escrever em sucessão S2...S3...S4...Sn. SI é exterior a esse círculo e porta a marca da incompletude da rede de saber. Lacan fala de uma clivagem do A LETRA FREUDIANA-Ano XI-n 9 10/11/12 251 Saber e gozo no discurso do mestre significante-Mestre em relação ao saber: "o sujeito éprecisamente o que no discurso se acha ligado, com todas as ilusões que comporta, ao significante-Mestre, enquanto que a inserção no gozo concerne ao saber "2. O discurso do mestre é reconhecido como querer dominar, é um discurso de domínio, um discurso de consciência como dominante, como idêntica ao eu, funda uma eu-cracia, diz Lacan 3 .0 mestre é aquele que não quer saber nada porque não sabe o que quer. É preciso que as coisas funcionem conforme a lei. Identifica-se ao seu papel social. "É um sujeito que se esconde atrás de um significante, de uma bandeira como sua junção social É aposição natural de cada um se identificar com um significante para ter um nome depois de sua morte"4 como bem observou Alain Grosrichard. S2 no lugar do Outro. Lacan afirma, de forma enigmática que, "o saber é o gozo do Outro... O gozo sai do que é reconhecível como saber e permite referir-nos aos limites de fora de campo. "5 Isto nos conduz a pensar numa relação primitiva do saber ao gozo. O gozo só se sustenta do aparecimento do significante. Poder-se-ia então falar de uma cópula dos significantes, de SI a S2. Gozo diferente do sexual, gozo do significante, gozo da escritura. "A marca já écondutoradevolaptuosidade^ehsma função do traço unário que vem fundar a repetição. "É do traço unário que se origina tudo o que nos interessa como saber...saber como meio de gozo"1 É a marca que estrutura o mundo do fantasma como articulado ao gozo do Outro. "A afinidade da marca com o gozo do corpo mesmo, éprecisamente aí donde se indica que se trata somente do gozo e de nenhuma outra via que se estabelece esta divisão da qual se distingue o narcisismo da relação com o objeto"} E por último Lacan afirma "a repetição é uma denotação precisa do traço unário, elemento de escritura, de um traço enquanto que comemora a irrupção do gozo"? Na verdade são muitas as frases de Lacan que exigiriam um desenvolvimento maior dessa via, desse campo lacaniano do gozo como ele próprio o denomina. Os elementos SI, $ e S2 poderiam formar uma combinatória fechada se não irrompesse algo que surge como perda, perda de gozo que engendra um mais-de-gozar a retomar: objeto a, objeto perdido de Freud.. Entropia ou antropia, brinca Lacan10. É o aparecimento desse quarto elemento que nos impede de pensar a repetição como repetição do mesmo e sim como repetição da diferença. Outra forma de colocar o discurso do mestre e pensá-lo como o que demarca o próprio limite de nossa civilização, fato assinalado pela antropologia moderna quando separa as sociedades ditas "primitivas" das civilizadas. Por um lado vemos sociedades sem escrita, sem história, cuja rica tradição mítica é herdada oralmente, onde o discurso do Mestre não predomina conforme podemos constatar nos trabalhos de Lévy-Strauss e principalmente de Pierre Clastres. Por outro lado , temos as sociedades históricas, com sua escrita e os seus monumentos. Nelas predomina o discurso do mestre. Uma de suas primeiras figuras encarna a própria lei: personagem com poderes absolutos nos impérios orientais e cuja influência no aparecimento da cultura grega 252 LETRA FREUDIANA-Ano XI -n» 10/11/12 Saber e gozo no discurso do mestre pode ser resumida no rei micênico e sua civilização palaciana. Rei que unifica todos os elementos do poder: controla e regulamenta todos os setores da vida econômica, administrativa, política e religiosa, através dos seus escribas que contabilizam tudo nessa estranha escrita cuneiforme, escrita como marca perpetuação do poder. Rei cercado por uma aristocracia guerreira numa sociedade aparentada ao freudalismo da idade média. Poder do um que ao se dissolver pela invasão dórica rompe os laços do oriente com o ocidente e torna possível à sociedade homérica que com seus mitos de soberania tenta restabelecer os fragmentos dessa civilização micênica. No lugar desse um vemos retornar a aristocracia guerreira, uma sociedade de Mestres, onde cada qual coloca a gênese de seu poder em relação a um deus. É isto que nos mostra a Ilíada e a Odisséia de Homero11. Nessa nova configuração a oposição de forças mantém um estatuto do direito que se mede pela prova, pelo ordálio, onde a palavra de um mestre é confrontada a de um outro mestre, só pode ter como juiz um deus e não homens. É uma espécie de direito germânico como assinalou Michel Foucaut12. Devemos observar aqui que nada mudou na ordem da estrutura do discurso mas apenas nos efeitos imaginários. É numa transição da aristocracia para a democracia, isto é, o reconhecimento de SI como significante de uma lei abstrata, que daria a todos direitos iguais e cidadania, direito à palavra como domínio público, que vemos surgir um gênero cultural chamado filosofia, e um personagem misterioso, o filósofo, cujo papel no início não era muito bem explícito: um sábio, um sacerdote, um mestre? Difícil questão. Heidegger nos diz, citando Platão, que a filosofia é filha do espanto13, isto é, que é no movimento de interrogação que podemos conhecer melhor um filósofo do que nas questões que ele pretende responder na forma de um sistema fechado. A filosofia deveria ser sempre um sistema aberto porque o que ela busca não é só constituir um saber mas avançar na questão dessa verdade que só se desvela lançando um novo véu. O filósofo quer ser o Mestre da verdade. Nesse ponto poderíamos retornará questão lacaniana. A relação entre o mestre e o escravo é de tal natureza que para o Mestre, de início, o que importa é que a lei seja mantida na sua palavra de ordem. Não precisa saber já que o escravo é quem vai providenciar tudo. O escravo possui um savoir-faire, uma "techné". Lacan retoma a 'Política' de Aristóteles para nos mostrar o lugar ocupado pelo escravo na família e da família no Estado, sem chegar nunca a formar uma classe como vai ser reconhecido em nossa sociedade. Contudo, se essa relação entre o Mestre e o escravo não foi fadada ao imobilismo político dos impérios orientais ou das monarquias e tiranias ocidentais que tanto revoltavam o filósofo Etiene de Ia Boétie,14 isso se deu devido ao aparecimento da filosofia. Contudo, desde o início encontramos um duplo papel na filosofia: como uma interrogação constante e como constituição de um saber teórico que visa a completude antes de se tornar o saber que está na origem da ciência. Na primeira vertente, vemos a aproximação feita por Lacan da filosofia com o discurso da histérica ao mesmo tempo LETRA FREUDIANA-Ano X I - n s 10/11/12 253 Saber e gozo no discurso do mestre em que na segunda vertente não se faz mais do que aprimorar o discurso do Mestre as custas do avatar que faz sofrer ao saber do escravo como teórico em benefício do Mestre. Retomando uma questão desenvolvida por Alain Grosrichard poderíamos exemplificar este duplo papel da filosofia situando o enigma que constitui o personagem de Sócrates. Enigma porque nunca chegou a escrever nada, mas desenvolveu um ensino falado testemunhado pelos filósofos posteriores. Poderíamos falar de dois Sócrates: o primeiro é aquele que encarna o discurso da histérica. É o Sócrates da ironia, que paralisa seus adversários com suas perguntas. É como sujeito dividido que ele se endereça ao outro no lugar de Mestre, de SI, esse outro que acredita saber o que faz, que tem o registro da certeza, e coloca questões que fazem com que haja a produção de um saber (S2) que não satisfaz Sócrates, que logo aponta as contradições, o furo da certeza do Outro, demonstrando que o outro não sabe sobre o que fala, não conhece a verdade. Assim quando a questão retorna a Sócrates o que se escuta é: "sei que nada sei". É este não saber exatamente que o torna mais sábio que os outros. Daí o ódio dos seus interlocutores: generais, poetas, sofistas, sacerdotes. O segundo Sócrates é platônico. Não quer deixar os mestres irritados e preenche o vazio deixado pela divisão que é a verdade do discurso. Em lugar da ironia vem a dialética que conduz da doxa à episteme. O Mestre agora pode saber e o escravo está roubado. É a partir disso que se forma um domínio próprio da filosofia que nos conduz de Platão à Hegel, ao ideal hegeliano de um saber absoluto. É preciso abordara dialética hegeliana e o materialismo histórico e dialético de Marx a partir dessas primeiras considerações para tentar desenvolver melhor a questão do trabalho do escravo e a questão do trabalho da mais-valia em Marx que Lacan articula ao objeto a como mais-de gozar. É preciso também desenvolver a questão da ciência como discurso do Mestre. São questões que ficarão em aberto assim como o surgimento do discurso universitário como manutenção do discurso do Mestre. O discurso do analista ao tomar a pedra de refugo do discurso do Mestre torna possível uma conjunção do saber com a verdade. Saber no sentido de savoir-faire é verdade como enigma; enigma que possibilita uma travessia onde depois desse encontro com o real o que é produzido é esse SI, único mestre no barco do seu desejo depois de Deus. Referências bibliográficas 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 254 Lacan, J. - Avesso da Psicanálise Idem Idem Grosrichard, A. - Letras da Coisa NQ 8 (Coisa Freudiana) Lacan, J. - Avesso da Psicanálise Idem Idem Idem LETRA FREUDIANA - Ano XI - ns 10/11/12 Saber e gozo no discurso do mestre 9. 10. 11. 12. 13. 14. Idem Idem Homero - A Elíada - Ed. Ouro Foucault, M. - A verdade e as formas da PUC - Série Letras e Artes 6 - 1974 Heidegger, M. - O que é isto a Filosofia Os pensadores Boétie, E. - Discurso sobre a servidão voluntária - Ed. Campos LETRA FREUDIANA - Aao XI - n» 10/11/12 255