2012
D E Z EMAIO
MBRO
DE 2009
1
Reitor
Vice-Reitora para PósGraduações e Investigação
Pró-Reitor para as TIC
Pró-Reitor para Assuntos Pedagógicos e Profissionalizantes
Pró-Reitor para a Graduação,
Desenvolvimento Curricular e
Qualidade Académica
Administradora-Geral
2
3
4
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Editorial
A Universidade de Cabo Verde, enquanto
sede pública e nacional para a produção
de conhecimentos com objecto e objectivo
Cabo Verde, o seu desenvolvimento, a sua
identidade e a sua afirmação no concerto
das nações, tem nesta publicação – Revista
de Estudos Cabo-verdianos (REC) – um
instrumento de realização de ciência acabada.
Importa agora fazê-la chegar aos seus
destinatários e mais importam ainda
as consequências que neles conseguem
produzir no âmbito da compreensão de
fenómenos da rede conceptual Cabo Verde
e a da subsequente melhoria da qualidade
na tomada de decisões por quem as deve
tomar.
A REC tem cumprido o seu papel,
facultando a investigadores sobre Cabo
Verde a realização da etapa definidora
de ciência: a submissão ao escrutínio
pelos pares e finalmente a partilha com
a sociedade – também ela escrutinadora.
Este quarto número da Revista
inaugura uma nova era: o advento das
publicações primo digital chega à UniCV por esta porta magna. Esse salto
vai permitir o alcance da mui almejada
regularidade e transformar a revista
num dos principais escapes da produção
científica da área na Uni-CV e no país.
Diga-se que a dinâmica da investigação
que se pretende imprimir com a criação
de novos centros e núcleos demanda uma
revista com um tabuleiro editorial forte
e uma regularidade metrométrica.
De igual modo, o estabelecimento
duma política editorial estribada na
sustentabilidade e na qualidade, esta, aferida
pelas relevâncias científica, académica e
social, e visando tanto o estímulo à produção
intelectual como a extensão universitária,
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vem propiciar um nicho confortável para
as publicações científicas da Uni-CV, nos
três níveis previstos, a saber, formação
académico-científica inicial, apoio à
pós-graduação e investigação científica
avançada. A REC número quatro vem
materializar essa política. E a Revista
de Ciência e Tecnologia da Universidade
de Cabo Verde, cujo primeiro número
sairá brevemente, também.
Saudações pois aos autores e à equipa
editorial, por esta edição e pelas etapas
promissoras que se adivinham pela frente!
Paulino Lima Fortes
Reitor
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Apresentação
Caros leitores,
Voltamos ao vosso convívio, em formato
electrónico, com imenso prazer e lamentando
muito a demora deste regresso. Melhorias
sensíveis serão introduzidas, como poderão
comprovar no próximo número.
Neste número estão disponíveis artigos
de áreas diversificadas das ciências sociais.
Assim, na área da política, Edalina
Sanches, no artigo intitulado O processo de
institucionalização do sistema de partidos
cabo-verdiano e tendo como instrumento
a grelha de análise de Mainwaring (1999),
reflecte sobre a importância dos partidos e
dos sistemas de partidos para o estudo dos
processos de democratização no contexto
da “Terceira Vaga”, concluindo por uma
crescente consolidação da dimensão
bipartidária, como resultado do também
crescente enraizamento dos dois maiores
partidos políticos cabo-verdianos.
Ainda na política, mas centrado na
articulação comunicação/construção da
democracia, Silvino Lopes Évora, em
Políticas de comunicação e construção
democrática: Analisando a atmosfera do
jornalismo em Cabo Verde, e a partir de
textos sobre os media e deles oriundos,
discute a premente e actualíssima questão
de regulação efectiva da comunicação social,
artigo especialmente contributivo num
momento em que acaba de ser constituído o
Conselho de Comunicação Social e instituída
a carteira profissional dos jornalistas.
Por sua vez, Flávia Lenira Gomes
Marques dos Santos, em Cidade Velha,
Património Mundial e medidas arquitectónicas,
analisa, do ponto de vista dos actores e dos
moradores da cidade do nosso orgulho, os
posicionamentos adoptados face às medidas
arquitectónicas, as quais, no entender da
autora, estão a gerar tensões e conflitos.
Permanecendo na cultura, ou
na intersecção desta com a história,
em Experiências atlânticas: africanos e
crioulos na dinâmica de construção dos
Quilombos do Borrachudo- Barra do Rio de
Contas, 1835, a autora Valdinéa de Jesus
Sacramento traz ao nosso conhecimento
os padrões de rebeldia escrava, enquanto
resultados de uma pesquisa que analisa
a história dos Quilombos do Borrachudo
na década de 1830, do ponto de vista das
relações sociais, económicas e políticas.
Acreditamos que este artigo será útil aos
que se dedicam a aspectos semelhantes
da nossa história, também marcada pela
escravatura.
Nesta mesma linha, Gláucia Nogueira,
em Batuku: de divertimento de escravos a
património imaterial, traça o percurso da
evolução das atitudes dos cabo-verdianos
face a esta expressão musical-coreográfica,
antes e depois da independência de Cabo
Verde.
De um ponto de vista estritamente
antropológico, Andréa Lobo, a partir de
dados recolhidos na Boa Vista, busca
perceber a estrutura familiar cabo-verdiana
e os seus modelos de suporte, no artigo A
família em Cabo Verde. Uma perspectiva
antropológica.
Inserido numa outra área do conhecimento,
a Filosofia, Jasson da Silva Martins e
Jacqueline Oliveira Leão apresentam O
lugar da síntese na ética kierkegaardiana,
buscando responder a questões do tipo Como
o indivíduo articula o geral em si mesmo?
A ética é uma tarefa individual que deve
ser expressa na generalidade?, a partir
do pensamento de Søren Kierkegaard,
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
caracterizado como filosofia da síntese.
Outros artigos provêm da área da história.
Dentre eles, um foca a administração
pública e outro enfatiza a religião. Assim,
em As reformas administrativas de José da
Costa Ribeiro: Cabo Verde, 1ª metade do
século XVIII, Bertelina Maria do Rosário
de Brito traz ao debate a fundação do
regime autárquico no país, analisando a
situação nas ilhas na primeira metade do
século XVIII e as alterações introduzidas
pelo projecto autárquico de José da Costa
Ribeiro.
Através do artigo Evangelização de
capuchinhos espanhóis na ilha de São
Nicolau de Carlene Recheado, ficamos
a conhecer o “estado da arte” da igreja
no arquipélago na segunda metade do
século XVII, a partir da actuação de dois
capuchinhos andaluzes que naufragaram
na ilha de São Nicolau em 1666, aquando
de uma missão da Congregação para a
Propaganda Fide.
7
Roberto Zaugg examina postais de Cabo
Verde, das primeiras décadas do século
XX, mostrando qual era a representação
de Cabo Verde e dos cabo-verdianos no
imaginário colonial e como certos elementos
iconográficos foram ressignificados, dando
conta do papel dos media visuais na
construção da identidade.
Relacionado com os media, mas
usando dispositivos tecnológicos, Luísa
Inocêncio, Marcel Pereira e Elisabeth
Andrade apresentam os resultados de uma
experiência de utilização da plataforma
Moodle na Uni-CV, tudo apontando para
uma mudança metodológica ou mesmo
reconfiguração dos processos de ensinoaprendizagem, ainda que o caminho a
percorrer seja longo.
Votos, pois, de uma muito útil e
prazerosa leitura.
Amália Maria Vera-Cruz de Melo Lopes
Editora Responsável
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO
SISTEMA DE PARTIDOS CABO-VERDIANO1
Edalina Sanches2
Resumo/Abstract
Este artigo analisa a importância dos partidos e dos sistemas de partidos para
o estudo dos processos de democratização no contexto da “Terceira Vaga”. Com base
na grelha de análise de Mainwaring (1999), descrevemos características básicas do
sistema de partidos cabo-verdiano desde a transição para a democracia. Os resultados
demonstram que um dos aspectos centrais do processo de institucionalização do
sistema partidário cabo-verdiano tem sido a crescente consolidação da dimensão
bipartidária. Com efeito, para além do sistema eleitoral, demonstramos que o nível
de volatilidade em diferentes eleições, a identificação partidária, a percentagem de
votos dos partidos, a idade média dos partidos e a evolução dos direitos políticos e
civis, dão indicação de um crescente enraizamento dos dois maiores partidos.
Palavras-chave: sistema de partidos; Terceira Vaga; institucionalização dos
sistemas partidários; bipartidarismo.
This article analyses the relevance of parties and party systems when assessing
the “Third Wave” of democratisations. The aim is to describe essential features of the
cape verdean party system since the democratic transition, drawing upon Mainwarings’
(1999) framework of analysis. The findings evince that one central aspect in Cape
Verdes’ party system institutionalization process is precisely the growing consolidation
of its two-party nature. In fact, beyond the electoral system, we reveal that level of
volatility in different elections, share of votes, mean age of parties and extension
of civil and political rights, all combine for strengthening the roots of the two major
parties.
Keywords: party system; Third Wave; institutionalization of party systems;
two-party.
1 Este artigo é uma versão revista de um dos capítulos da dissertação de mestrado da autora, intitulada “Sistema
de Partidos Cabo-Verdiano no Período Democrático: 1991-2006”, ICS- UL. A Autora agradece à Doutora Gláucia
Nogueira pelos seus comentários à primeira versão deste artigo.
** Edalina Rodrigues Sanches é aluna de Doutoramento em Ciência Política na Universidade de Lisboa (UL)
e colabora em vários projetos de investigação no Instituto de Ciências Sociais/UL. Entre Setembro e Dezembro
de 2011 foi Visiting Student na Universidade de Leiden. Os seus principais interesses de investigação são as
instituições políticas e os partidos políticos nas sociedades africanas contemporâneas. As suas publicações cobrem
tópicos variados sobre o funcionamento dos sistemas partidários em democracias europeias e africanas.
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Introdução
Os partidos e os sistemas de partidos
dizem muito sobre o funcionamento de
um sistema político e podem ser um
veículo para o estudo dos processos de
democratização. Desde a emergência da
democracia de massas no século XIX,
os partidos têm-se tornando os maiores
agentes de representação e de canalização
de interesses no interior de uma determinada
sociedade (Mainwaring, 1999). A forma como
se organizam, a ideologia e as estratégias
de competição eleitoral que adoptam, é
historicamente contingente (Mair, 1990)
e tem implicações directas na natureza de
um regime político. A primeira tentativa
de tipificação dos sistemas partidários,
entre bipartidários e multipartidários,
foi conseguida por Duverger (1954),
contando apenas o número de partidos
em diferentes sistemas políticos. Os
efeitos políticos destes dois formatos
eram diferenciados. Assim, enquanto a
competição entre dois partidos mais ou
menos equivalentes em poder, permitiria
equacionar governos de partido único,
alternância no governo e estratégias
eleitorais centristas, a competição entre
vários partidos, implicaria a necessidade
de coligações para a formação de governo,
a fragmentação ideológica é maior logo
espera-se maior instabilidade governativa.
Se o alcance de algumas destas premissas
foi contestado, por outro lado, o critério
utilizado por Duverger (1954) – número
de partidos – tem estado na base da
maioria dos estudos posteriores que se
fizeram sobre os sistemas de partidos.
Se até meados dos anos 90, as tipologias
desenvolvidas pretendiam compreender o
funcionamento dos partidos e dos sistemas
de partidos nas democracias ocidentais
industrializadas, a partir da Terceira Vaga
de democratização, com a emergência de
novas formas de organização partidária,
surgem também novos modelos teóricos
(por exemplo, Mainwaring, 1999; Kuenzi
e Lambright, 2005 e 2001;Manning, 2005;
Bogaards, 2001).
Neste artigo, iremos descrever alguns
traços do sistema de partidos caboverdiano. Começaremos por fazer uma
breve apresentação da literatura sobre
os sistemas de partidos. Neste contexto,
elegemos a tipologia de Mainwaring (1999),
que analisa o processo de institucionalização
dos sistemas de partidos, para aplicar ao
caso cabo-verdiano. Continuamos com a
medição do grau de institucionalização do
sistema de partidos em três dimensões
(estabilidade/regularidade dos padrões
de competição eleitoral, enraizamento
dos partidos na sociedade e legitimidade
das eleições) e, finalmente, terminamos
com as considerações finais.
Estado da Arte
(…) A party system is precisely the system of
interactions resulting from inter-party competition.
(Sartori, 1976: 43-4)
Os sistemas de partidos podem ser
compreendidos como padrões de competição
e de cooperação entre os diferentes partidos
dentro de um sistema (Ware,1996: 7) e
o seu estudo é sobretudo orientado para
responder à questão sobre o que determina
o número de partidos que competem e
são eleitos numa determinada sociedade.
O estudo dos partidos e dos sistemas de
partidos está associado ao processo de
democratização no mundo ocidental. Por
este motivo, o seu sentido está associado a
características históricas, sociais, económicas
e políticas típicas destes países. São estas
primeiras tipologias que apresentamos
de seguida.
As tipologias clássicas de descrição dos
sistemas de partidos (Mair, in Le Duc,
10
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
1996) tiveram, de um modo geral, por base o
critério do número de partidos. Unicamente
com base nesta medida Duverger (1954)
distinguiu sistemas bipartidários de sistemas
multipartidários, resultando o primeiro
tipo em governos de maior estabilidade,
enquanto o último se caracterizava por
uma maior fragmentação e instabilidade
governativa, como aliás, já referimos
na introdução1. Ao número de partidos,
Rokkan (1968) junta mais dois critérios;
a probabilidade de ocorrerem maiorias
monopartidárias e a distribuição da minoria
em forças partidárias e; identifica três
tipos de sistemas de partidos: 1) sistema 1
vs 1+1, no qual dois partidos dominantes
coabitam com um terceiro pequeno
partido, 2) sistema 1 vs 3+4, existência
de um grande partido confrontado com
uma aliança formal entre 3-4 pequenos
partidos e, 3) sistema multipartidário
equilibrado 1 vs 1 vs 1 + 2-3, onde a
competição é dominada por três ou mais
1 Esta ideia é também amplamente discutida por Lijphart
(1994), quando identifica dois estilos de democracia: a
maioritária e a consensual. Assim, enquanto a democracia
maioritária favorece a responsabilização e a estabilidade
do governo; a democracia consensual envolve secções
mais amplas da sociedade no processo de tomada de
decisão do governo.
11
partidos com igual peso. Por sua vez,
Sartori (1976) propõe uma tipologia
em que analisa as interacções entre os
partidos dentro de um sistema político.
Assim, através dos padrões de competição
(medido pelo número de partidos) e da
distância ideológica (medida pelo grau
de polarização) destaca quatro formatos
distintos: bipartidário (pouca distância
ideológica com competição limitada),
pluralismo moderado (pluralismo limitado,
distância ideológica relativamente pequena),
pluralismo polarizado (pluralismo extremo
ampla distância ideológica) e partido
dominante (um partido ganha a maioria
dos lugares).
Estes modelos foram essencialmente
desenvolvidos e testados em democracias
consolidadas (europeias), no entanto quando
estudamos as democracias de “Terceira
Vaga” poderá ser necessário repensar a
teoria dos sistemas de partidos existente.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Com efeito, desde que Huntington (1991)
assinalou o início da “Terceira Vaga” tornase imperativa a distinção entre os sistemas
de partidos em democracias consolidadas
e não consolidadas.
estão pouco profissionalizados, em muitos
casos são veículos personalísticos existindo
por isso uma fraca lealdade por parte
da própria elite política) (Mainwaring,
1999: 21-39).
É este o exercício que nos propõe
Mainwaring (1999), que aos critérios
de Sartori vem acrescentar, o grau de
institucionalização do sistema partidário,
que define como o processo pelo qual as
práticas e as organizações são tomadas como
universalmente legítimas, permitindo que
os actores políticos possuam expectativas
claras e estáveis sobre o comportamento
de outros actores políticos. Este conceito é
operacionalizado em quatro componentes:
1) a estabilidade da competição eleitoral
(medido através do índice de volatilidade
eleitoral), 2) o enraizamento dos partidos
na sociedade (medido pela consistência das
posições ideológicas, se os votantes estão
ligados aos seus partidos e candidatos, se
grupos de interesse apoiam os partidos ou
são fundados por eles, pela percentagem
de votantes que afirmam ter preferência
partidária, pela possibilidade de candidatos
independentes serem eleitos e pela idade
Do ponto de vista teórico, Mainwaring
refuta a utilidade de uma teoria das
clivagens sociais ou eleitoralista per se,
propondo que se analise também, o modo
como a relação estado/elites partidárias
tem contribuído para a estruturação e
reestruturação dos sistemas partidários
a partir do topo. Precisamente, a partir
deste trabalho, Kuenzi e Lambright (2005)
sustentam que, nos sistemas de partidos
africanos a estabilidade (medida pela idade
média dos partidos) e a competitividade
(medida pelo número efectivo de partidos)
estão positivamente correlacionadas
com as perspectivas de consolidação e
qualidade da democracia. Ou seja, nos
sistemas de partidos onde os partidos
estão fortemente institucionalizados, o
processo de consolidação democrática
tenderá a ser mais fácil, (Mainwaring,
1998), logo quanto maior a idade média
dos partidos maior o grau de estabilidade
Quadro 2 – Círculos e mandatos por distrito em Cabo Verde
Dimensão
1991
1995
2001
2006
CE
MD
%
CE
MD
%
CE
MD
%
CE
MD
%
12
25
31,6
16
41
56,9
17
39
54,2
17
40
55,6
Media
5
28
35,4
1
7
9,7
1
9
12,5
1
6
8,3
Grande
2
26
32,9
2
24
33,3
2
24
33,3
2
26
36,1
19
79
100
19
72
100
20
72
100
20
72
100
Pequena
Total
média dos partidos), 3) a medida em que os
cidadãos e outros actores políticos aceitam
os partidos e as eleições como meio de
determinar quem governa e; 4) a medida
em que os partidos estão organizados
(na maioria das democracias de Terceira
Vaga os partidos têm fracos recursos e
democrática, por exemplo.
Adicionalmente, Mozaffar e Scarritt
(2005) identificaram a existência de
elevada volatilidade eleitoral e de
baixa fragmentação nos sistemas de
partidos africanos. A explicação destes
12
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
fenómenos tinha a ver com o impacto
dos legados institucionais dos regimes
autoritários no processo de formação e
desenvolvimento dos partidos políticos.
Perante os constrangimentos colocados pelos
regimes autoritários (fraca mobilização
eleitoral e escasso pluralismo político,
etc.) os actores políticos nas democracias
emergentes estabeleceram partidos
políticos com vista a manterem a sua base
de poder fragmentada e, contavam com
as eleições e as clivagens etnopolíticas,
para a coordenação estratégica dos
votos e dos lugares e para a formação
de coligações eleitorais. Como resultado,
os sistemas de partidos foram invadidos
por um grande número de partidos de
curta existência. Assim, os sistemas de
partidos apresentariam níveis elevados
de volatilidade combinada com uma
baixa fragmentação, na medida em que
a representação parlamentar continuava a
ser um exclusivo dos maiores partidos. Na
mesma linha, Bogaards (2004) sustentou
que a “Terceira Vaga” de democratização,
essencialmente caracterizada pela
introdução de eleições multipartidárias
concorrenciais, resultou no predomínio
dos partidos históricos e, logo, de sistemas
de partidos dominantes.
Na próxima secção iremos descrever
o sistema de partidos cabo-verdiano com
base no conceito de institucionalização dos
sistemas partidários de Mainwaring (1998
e 1999). Como veremos os dados apontam
13
para uma crescente estabilização do padrão
de competição eleitoral bipartidário.
Processo de institucionalização
do sistema de partidos
Desde 1991, os resultados eleitorais
traduzem uma sucessão de maiorias com
rotação entre os dois maiores partidos, MPD
(Movimento para a Democracia) e PAICV
(Partido Africano para a Independência
de Cabo Verde). A contribuir para este
fenómeno de bipolarização acresce o facto
de, na curta história da democracia caboverdiana, os poderes presidencial e legislativo
nunca se terem oposto, criando-se assim
verdadeiras maiorias de partido (este facto
é salientado em vários estudos veja-se
Costa, 2003 e Semedo e cols., 2007).
Uma das potenciais explicações deste
fenómeno é o tipo de sistema eleitoral.
Com efeito, a aplicação do método d’Hondt
em círculos de baixa dimensão aumenta a
desproporcionalidade no processo de conversão
de votos em mandatos e a probabilidade
de ocorrência de maiorias artificiais
favorecendo assim os maiores partidos
(Lijphart, 1994). Como se pode observar
no quadro 2, apesar de representarem
85% do total de círculos eleitorais em
2006, os círculos de pequena dimensão
elegem pouco mais de metade (55,6%)
do total de deputados da Assembleia da
República.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Mas este argumento não é suficiente,
segundo Semedo e cols. (2007) o fenómeno
de bipartidarização tem-se acentuado
ao longo do processo de consolidação
democrática, porque para além destes
aspectos disposicionais, existe uma marcada
homogeneidade cultural (ver também
Chabal, 2002 e Meyens, 2002) e todo um
contexto histórico de mudança de regime
que favorece o MPD e o PAICV. O facto
de terem protagonizado os dois momentos
politicamente mais relevantes da história
do país – o primeiro está ligado à abertura
política e o segundo à independência –
faz com que reúnam as preferências de
grande parte do eleitorado (Ibid.).
Outra forma de olhar para estes padrões,
já o referimos, é avaliar o processo de
institucionalização do sistema de partidos
nas suas componentes: estabilidade/
regularidade dos padrões de competição
eleitoral, enraizamento dos partidos na
sociedade e legitimidade das eleições.
A quarta componente apontada por
Mainwaring (1999) “organização dos
partidos” não será aqui analisada uma
vez que não dispomos de dados suficientes
para o fazer. Pensamos, no entanto, que
esta dimensão deverá ser tida em conta
em investigações futuras.
Estabilidade ou regularidade dos
padrões de competição eleitoral
Os padrões de competição partidária
tendem a ser, relativamente, regulares
nas democracias mais consolidadas.
Esta característica pode ser medida através
do índice de volatilidade eleitoral, que diz
respeito à percentagem total de mudança
de votos de um partido para outro de uma
eleição para outra (Op. Cit. Przeworski,
1975 e Pedersen, 1983 in Mainwaring,
1999: 28)2. Mainwaring (1998) calculou
a volatilidade eleitoral de 26 países: 8
democracias industriais avançadas, três
casos da Europa do Sul, as três democracias
mais antigas na América Latina, quatro
casos da Ex-União Soviética e 8 países
recentemente democratizados da América
Latina. Os resultados revelaram padrões
bastante distintos, com as democracias
industriais avançadas a apresentarem
2 Exemplo para o cálculo da volatilidade: num
sistema com três partidos dominantes se o partido
A vencer 38 % numas eleições e 43% na próxima,
enquanto o partido B descer de 47% para 27% e o
partido C aumentar de 15% para 30% então a V =
5+20+15÷2 = 10%.
14
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
níveis de volatilidade mais baixos, do
que os países da Ex-União Soviética e
da “Terceira Vaga” de democratização.
Ora níveis de volatilidade distintos
assumem consequências políticas distintas,
nomeadamente, ao nível dos padrões
de competição entre os partidos. Onde
a volatilidade for mais baixa os resultados
eleitorais são mais previsíveis de eleição
para eleição. Onde a volatilidade for maior,
as expectativas tanto dos eleitores como
dos partidos eleitorais, são de maior
incerteza (Ibid.: 72).
Analisando a volatilidade eleitoral em 30
países africanos, entre 1966-1999, Kuenzi
e Lambright (2001: 449), encontram uma
volatilidade eleitoral média de 31.4%.
No período 1991/1995, que correspondeu
às duas legislaturas do MPD, Cabo Verde
registou uma volatilidade eleitoral de
7,7% enquanto, por exemplo S. Tomé e
Príncipe a proporção era de 24% (Ibid.).
15
No período eleitoral seguinte –
1995/2001 – os cidadãos cabo-verdianos
trouxeram o PAICV de volta ao poder
e, em consequência disso, a volatilidade
eleitoral aumentou 14.6 pontos percentuais
(22,3%). Se tivermos em conta unicamente
os dois maiores partidos, verificamos que
o MPD perde 19.8 pontos percentuais
enquanto o PAICV ganha exactamente
mais 19.8 pontos percentuais, ou seja a
alteração do sentido de voto, poderá deverse maioritariamente a uma volatilidade do
comportamento eleitoral entre estes dois
partidos. Quanto aos pequenos partidos
– PSD (Partido Social Democrata), PRD
(Partido da Renovação Democrática) e a
coligação ADM (Aliança Democrática para
a Mudança) – verifica-se que ganham mais
votos, crescendo 1.6 pontos percentuais
comparativamente aos resultados de
19953. No período eleitoral 2001/2006 o
3 A comparação dos níveis de volatilidade aponta
tendências importantes ao nível da regularidade da
competição eleitoral. Uma informação complementar
poderia seria dada através da medição das transferências
de votos, o que não tem lugar neste artigo mas é sem
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
PAICV mantém-se no poder e os níveis
de volatilidade descem para 7,7%. Numa
leitura desagregada verifica-se que o
PAICV e o MPD registaram aumentos
de 4.5 e 4.8 pontos percentuais enquanto
os pequenos partidos – PRD, PSD e UCID
(União Cabo-Verdiana Independente e
Democrata) – perdem no total 6 pontos
percentuais, piorando a sua performance
face a 2001.
Em termos globais ficamos com a
ideia que a volatilidade média observada
(12,6%) é relativamente baixa e que a
competição eleitoral está dotada de alguma
regularidade.
Esta percepção pode ainda ser medida
de outra forma, nomeadamente, observando
até que ponto os cidadãos votam no mesmo
partido em diferentes eleições. No quadro
4 apresentamos a diferença de votos entre
as eleições presidenciais e as legislativas
para os dois maiores partidos. Assim,
relativamente às eleições presidenciais
e para efeitos deste cálculo, assume-se a
percentagem de voto no candidato apoiado
pelo partido faz-se a diferença relativamente
aos votos obtidos nas eleições legislativas
(Mainwaring, 1999).
A título descritivo apresenta-se ainda
o posicionamento dos pequenos partidos
relativamente aos candidatos presidenciais.
dúvida importante.
16
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
No caso cabo-verdiano os votantes
têm seguido, sistematicamente, as
labels partidárias para votar nas eleições
presidenciais. O candidato presidencial
apoiado pelo partido do poder vence sempre
as eleições presidenciais (ver quadro 4).
Observa-se, por outro lado, que enquanto
o MPD reforça sempre o número de
votos nas eleições presidenciais face às
eleições legislativas, mesmo quando sai
derrotado (2001 e 2006 o candidato era
Carlos Veiga), o PAICV tende a perder
votos nas eleições presidenciais face às
legislativas (excepção feita às eleições
de 2001 ganhas pela margem mínima
de 12 votos). Outro aspecto adicional que
acentua a bipartidarização do regime
é a posição dos pequenos partidos em
eleições presidenciais, que tem oscilado
uma posição neutra e um apoio aberto
aos dois maiores candidatos.
Enraizamento dos partidos na
sociedade
alteração no comportamento do voto
estão reflectidas na volatilidade eleitoral.
Podemos observar se os partidos têm raízes
fortes na sociedade se os cidadãos votam
com base na sua filiação partidária, pela
percentagem de inquiridos que afirmam ter
uma identificação partidária, pela idade
média dos partidos e pela percentagem de
lugares que obtêm em eleições legislativas
(Mainwaring, 1999 e 1998).
De acordo com os dados do Afrobarómetro
a maioria dos cabo-verdianos inquiridos
não assume uma identificação partidária
(52,6% em 2002 e 55,5% em 2005).
Dos que referem ter uma identificação
partidária – 47,4% em 2002 e 44,6% em
2005 – a esmagadora maioria identifica-se
com o PAICV e com o MPD, os pequenos
partidos recolhem em conjunto 2,1% e
0,7% das preferências, em 2002 e 2005,
respectivamente.
Este critério pode estar intimamente
relacionado com a volatilidade eleitoral,
Ainda no que diz respeito à percentagem de
inquiridos sem uma identificação partidária,
vale a pena salientar que Cabo Verde
pois onde existe maior regularidade do
voto, ou seja, mais cidadãos que apoiam
o mesmo partido de uma eleição para
outra, existem poucos eleitores cuja
regista uma proporção relativamente
inferior à média dos países analisados
no Afrobarómetro. Por outro lado, como
se pode observar pelo quadro que se
17
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
segue, os indivíduos parecem apresentar
simpatias partidárias fixas, já que tendem
a votar de acordo com a sua identificação
partidária, ainda que aqui estejamos a
falar em termos da intenção de voto e
não do comportamento voto numa eleição
passada.
Assim, 85% dos indivíduos que afirmaram
identificar-se com o PAICV e com o MPD
em 2005, também perspectivam votar
nesse partido se as eleições legislativas
fossem amanhã, sendo que apenas 15%
se apresentaram como indecisos.
Podemos ainda medir se os partidos
têm raízes estáveis na sociedade utilizando
dois indicadores adicionais: percentagem
de lugares obtidos por partidos fundados
em 1970 nas últimas eleições e idade média
dos partidos a vencer 10% dos lugares
nas últimas eleições (Mainwaring, 1999
e 1998).
Kuenzi e Lambright (2001: 453-457)
verificaram que em 13 dos 30 países
africanos analisados, entre os quais
o Benim e a Zâmbia, nenhum partido
fundado em 1970 tinha ganho um lugar
nas últimas eleições (em finais da década
de 90). Noutros casos, como o Zimbabué
e a Namíbia grande parte dos lugares,
98,3% e 73,6%, respectivamente, foram
ganhos por um único partido (fundado
nos anos 70). Nestes países confirmase a predominância dos partidos que
desempenharam um papel de destaque
no pré e pós independência. Face ao
ano eleitoral considerado para Cabo
Verde, 1995, o PAICV ganhou 29% dos
lugares, ocupando o 14 lugar no ranking
de institucionalização elaborado pelas
autoras.
Se considerarmos as eleições de 2006,
em que o PAICV ganhou 56,9% dos lugares,
podemos afirmar que o partido apresenta
uma grande capacidade para fixar lealdades
ao longo do tempo e que o sistema de
partidos está mais institucionalizado do
que em 1995. Relativamente ao segundo
indicador verifica-se uma grande disparidade
entre os países analisados por Kuenzi e
Lambright (2001). Em sete casos a idade
média dos partidos a vencer 10% dos lugares
nas últimas eleições, é superior a 30, em
seis casos é superior a 20 e em oito casos
é superior a 10. No caso Cabo-verdiano a
idade média dos partidos a vencer 10%
dos lugares em 2006 é de 33 anos, sendo
considerados o PAICV e MPD, fundados
respectivamente em 1956 e 1990.
Com base nestes dados é possível
argumentar que o sistema partidário caboverdiano, se caracteriza pela predominância
dos partidos com importância histórica
e aos quais a maioria da população se
18
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Dimensão
1991
1995
2006
MD
%
CE
MD
%
CE
MD
%
CE
MD
%
12
25
31,6
16
41
56,9
17
39
54,2
17
40
55,6
Media
5
28
35,4
1
7
9,7
1
9
12,5
1
6
8,3
Grande
2
26
32,9
2
24
33,3
2
24
33,3
2
26
36,1
19
79
100
19
72
100
20
72
100
20
72
100
Pequena
Total
sente identificada. Isto significa que os
partidos têm raízes estáveis na sociedade
e que por isso, os resultados eleitorais
são de algum modo previsíveis ou pelo
menos a luta eleitoral está reduzida aos
dois principais partidos.
19
2001
CE
Confiança/Legitimidade
nos partidos e eleições
A legitimidade diz respeito às atitudes
sobre o regime político enquanto um todo,
mas pode estar vinculada a determinadas
instituições sociais. Neste caso, diz respeito
à aceitação dos partidos e das eleições
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
enquanto meios para determinar quem
governa. Os partidos são legítimos na medida
em que os actores políticos os consideram
essenciais para o funcionamento de um
bom regime político. Atitudes positivas
poderão indicar que o sistema é mais
estável. Onde os partidos forem mais
“desacreditados”, mais fácil se torna que
políticos “anti-partido” ganhem lugares
(Mainwaring: 1998; 76-78).
Kuenzi e Lambright (2001: 457) definiram
três indicadores para este critério: se a
oposição boicotou as eleições, se os vencidos
aceitaram a derrota e se as eleições são
livres e justas. Assim as eleições podem
ser consideradas legítimas se os partidos
da oposição participaram livremente nas
eleições, se o processo eleitoral não foi
marcado por boicotes, se os procedimentos
eleitorais foram amplamente aceites e se
existiu liberdade de acesso à informação,
bem como garantia dos direitos políticos.
Relativamente ao primeiro e ao segundo
indicadores não se registaram nas quatro
eleições legislativas realizadas até ao
momento, fenómenos de boicote ou de
não-aceitação dos resultados por parte
dos partidos cabo-verdianos. No que diz
respeito ao terceiro critério de acordo com
os relatórios da Freedom House4, o país
tem assinalado melhorias no respeito pelas
liberdades políticas e civis, atingindo o
score máximo (1) nesses dois itens, a partir
de 2004. Ainda segundo esta fonte, apesar
de se terem registado queixas junto do
Supremo Tribunal alegando fraude eleitoral,
nomeadamente nas eleições presidenciais
de 2001, as mesmas foram arquivadas uma
vez que as eleições foram consideradas
«livres e justas» e o resultado, definido
pela margem de 12 votos, aceite.
As opiniões dos eleitores constituem
4 Http://www.freedomhouse.org/modules/mod_
call_dsp_country-fiw.cfm?year=2004&country=2906
outra forma de medir o nível de confiança
e de aceitação das instituições políticas.
Neste sentido, recorremos, novamente, ao
inquérito do Afrobarómetro, utilizando a
questão que mede o grau de confiança nas
instituições sociais: «Até que ponto confia
em cada uma das seguintes (instituições), ou
não ouviu falar o suficiente para dar a sua
opinião?». Para este critério seleccionámos
unicamente as respostas relativamente às
instituições políticas. Começamos por utilizar
os dados individuais e, posteriormente,
iremos construir um índice de confiança
nas instituições políticas.
Os resultados de 2002, apontam, de um
modo global, para uma baixa confiança
dos inquiridos em todas as instituições
políticas. Com efeito, a grande maioria
(cerca de 60%) afirma não confiar «de
maneira nenhuma» ou confiar «só um pouco»
nas instituições políticas em avaliação. O
Partido do Poder (31,2%), os Partidos da
Oposição (30,1) e o Presidente da República
(28,0%), são as instituições que inspiram
menor confiança aos inquiridos.
Por outro lado a proporção que “não
sabe ou não ouviu o suficiente” para
se posicionar na escala de confiança, é
relevante ultrapassando a percentagem de
inquiridos que confiam “até certo ponto” ou
“muito”, em algumas instituições políticas
(por exemplo: CNE, AM, e P/A)
Os dados de 2005 revelam algumas
melhorias nos níveis de confiança. Assim,
a maioria dos inquiridos refere confiar «até
certo ponto» ou «muito» nas instituições
políticas. No entanto, a proporção que não
confia «de maneira nenhuma» continua a
ser bastante expressiva (20-30%).
Se analisarmos os dados em termos
agregados, utilizando antes o índice de
confiança nas instituições políticas, verificamos
20
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
que há uma tendência de melhoria nas
atitudes face às instituições políticas.
Enquanto em 2002, cerca de metade dos
inquiridos (49,4%) não tinha nenhuma
confiança nas instituições políticas em
2005 essa percentagem desce perto de
20 pontos percentuais (29,4%). Outra
diferença importante é que a distribuição
dos inquiridos pela escala de confiança, é
mais heterogénea em 2002 (percentagens
variam entre 16% e 49,4%) do que em
2005 (as percentagens variam entre 20,9%
e 29,8%).
O aumento da confiança nas instituições
políticas de 2002 (média = 1,54) para 2005
(média = 1,91) pode estar relacionado com
a avaliação da performance dos órgãos de
poder político. Fizemos uma correlação
entre a “avaliação da performance dos
órgãos de poder político” e o “índice de
confiança nas instituições políticas” e os
resultados demonstraram uma correlação
estatisticamente significativa entre as
duas dimensões quer em 2002 (p <0,01)
quer em 2005 (p <0,01).
Assim, do mesmo modo que a confiança
nas instituições políticas é reforçada
em 2005, também a percepção que os
inquiridos têm sobre a performance do
governo é mais positiva: a percentagem de
inquiridos que consideraram a performance
do governo boa em 2005 aumentou 4.3
pontos percentuais.
Considerações finais
Os resultados obtidos nesta análise
apontam para um progressivo processo
de institucionalização, a par de uma
crescente consolidação da dimensão bipolar
do sistema partidário cabo-verdiano. Todos
os indicadores que aqui utilizámos –
volatilidade legislativa e presidencial, idade
dos partidos, percentagem de lugares dos
21
partidos, evolução dos direitos e liberdade
políticas e civis, identificação partidária,
entre outros – serviram para demonstrar a
força dos dois maiores partidos no sistema
político cabo-verdiano e a sua evolução desde
a transição para a democracia. A tendência
tem sido o reforço da bipartidarização.
Segundo Sartori (1976) podemos identificar
um formato bipartidário sempre que a
existência de um terceiro partido, não
inibe o governo sem oposição, dos dois
maiores partidos, ou seja sempre que
não se coloca um quadro de coligação
(Sartori, 1976: 143).
No contexto cabo-verdiano, desde de
1991, os resultados eleitorais têm sido
altamente regulares e previsíveis, a
distância entre os dois maiores partidos é
curta, no sentido em que permite aos dois
principais partidos terem expectativas
legítimas de vencer as eleições e de formar
governo maioritário. Também por isso
o tipo de competição entre os partidos é
definido por uma tendência centrípeta (ver
também Mair, 1990), ou seja, uma vez que
os eleitores se identificam sobretudo com
dois partidos as clivagens e estratégias
políticas – são mais moderadas, porque
os eleitores flutuantes são eles próprios
mais moderados (Sartori, 1976: 46). Isto
significa que o bipartidarismo funciona
quando existe uma fraca variação das
posições ideológicas. Os partidos funcionam
neste quadro como agências agregadoras
que competem entre si no sentido de
representarem o maior número de grupos
e de interesses possíveis.
Reflictamos brevemente sobre estas
questões tendo em conta os contextos
históricos nos quais os dois maiores
partidos foram forjados.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Contexto de fundação
dos partidos
O PAIGC/CV surgiu, num contexto em
que os movimentos de libertação nacional se
disseminavam por toda a África Lusófona.
Fundado por Amílcar Cabral e outros em
1956, a sua ideologia e prática foram,
amplamente, influenciadas pela matriz
socialista e revolucionária (Chilcote, 1991:
153). Do ponto de vista das suas bases
de apoio o partido assume uma natureza
inter-classista agregando o campesinato, o
proletariado, as elites pseudo-burguesas ou
pequena burguesia e adopta como função
principal a organização das camadas sociais
em redor de um único motor político, o
partido (Gomes, 2002: 40). Neste sentido,
o PAICV identificava-se, na sua origem,
com o tipo ideal de partido de massas
de base nacionalista. Segundo Gunther
(2003) estes partidos caracterizam-se
por ter uma base alargada de suporte,
organizações partidárias extensivas e
uma clientela eleitoral constituída por
indivíduos que se identificam com um
projecto distinto de estado nação. As
suas aspirações relacionam-se com o
governo do território e a construção do
estado independente (Gunther, 2003:
180-181). No entanto, este objectivo foi,
historicamente, contingente e logo após
a independência o PAICV foi incapaz de
manter um discurso unificador. Segundo
Furtado (1993) a reforma agrária permitiu
ao partido direccionar a sua acção, numa
segunda fase, para os trabalhadores rurais
tendo assumindo, assim, uma componente
mais classista do que anteriormente.
O MPD constitui-se inicialmente com
o objectivo de fazer oposição ao regime de
partido único e de reivindicar a instauração
da democracia. Ao contrário do PAICV não
resultou de um movimento social, tendo
antes, sido fundado por elites políticas que
chegaram a assumir postos de confiança
no regime autoritário, nomeadamente
quadros técnicos superiores que estavam
envolvidos na administração do Estado
no regime monopartidário mas que, de
certa forma, assumiam uma postura
reformista dentro do regime (Furtado
1997, in Évora 2004: 93). Ao lado de
Carlos Veiga, estavam alguns quadros
da mesma geração que os dirigentes do
PAICV, mas que sempre tinham recusado
colaborar (Teófilo Figueiredo Silva, Manuel
Chantre), mas sobretudo quadros de 3545 anos que tinham sido estudantes em
Portugal por volta de 1970 (…) dos quais
alguns pertenceram mais tarde ao chamado
«trotskismo cabo-verdiano», como Manuel
Faustino e José Tomas Veiga (Cahen,
1991: 147).
Segundo Évora (2004), dificilmente
conseguiremos associar o MPD a uma
linha ideológica definida, na medida em
que tanto nas eleições de 1991, como no
programa político de 1997, o partido
limitou-se a apresentar as suas propostas
de desenvolvimento não se posicionando à
esquerda ou à direita do PAICV. Segundo o
jornalista João Paulo Guerra, “teoricamente
o MPD está mais perto das posições da
Igreja Católica do ponto de vista ideológico
do que o PAICV, membro da Internacional
Socialista. Mas a definição ideológica do
MPD é algo de muito vago e complexo.
Agrupando toda a oposição ao PAICV, o
MPD vai de posições da direita liberal e
democrata-cristã aos dissidentes trotskistas
do partido” (O Jornal 14/12/1990).
Numa entrevista concedida ao jornal
22
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Público (29/07/90), o líder Carlos Veiga
referiu: “Temos gente da esquerda à direita.
Vamos elaborar um programa credível,
alternativo” e identificou, também, alguns
princípios e valores defendidos pelo seu
partido “democracia pluralista, cultura
das liberdades, economia mista em que o
papel do sector privado tenha um papel
fundamental e o homem é medida de todas
as coisas” e demarca-se da esquerda “o
que decerto não vamos é para a ideologia
marxista. Rejeitamos o dogmatismo”. Estas
posições foram continuamente reforçadas,
no decorrer da campanha eleitoral para as
eleições de 1991: “O MPD não se considera
um partido de orientações e, por isso,
não assume qualquer filosofia monista
sobre a história ou sobre a evolução da
sociedade” (Diário de Noticias 6/12/1990).
O MPD é, assim, desde a sua origem,
um partido de base eleitoralista (Gunther,
2003; Katz e Mair, 1995), semelhante ao
ideal tipo catch all. Otto Kirchheimer
(1995 e 1966) desenvolveu este conceito
para explicar a transformação dos partidos
de massas em partidos “agregadores”,
nas sociedades ocidentais a partir dos
anos 50-60. Com o enfraquecimento das
fronteiras sociais, em consequência dos
elevados níveis de bem-estar económico
e de segurança social, torna-se mais
difícil identificar sectores separados do
eleitorado e interesses de longo-termo. No
caso africano, Manning (2005), salientou
que a crescente personificação dos partidos
e a perda de autonomia dos governos
nacionais face às políticas externas de
ajustamento estrutural, impostas pelos países
doadores, contribuíam para uniformizar
os conteúdos programáticos dos partidos
e também para uma a fraca polarização
esquerda/direita.
Ao mesmo tempo, este novo quadro
democrático criou, incentivos para a
23
formação de novos partidos, sendo o
aspecto mais singular deste fenómeno,
o facto da grande maioria ter surgido
a partir do topo da sociedade política,
nomeadamente a partir de cisões no interior
de outros partidos, o que vai de encontro
ao argumento de Manning (2005) e de
Mainwaring (1999), segundo os quais os
sistemas de partidos, na “Terceira Vaga”,
são formatados em grande medida pelo
topo da sociedade política, nomeadamente
por notáveis/elites políticas. Com efeito,
os quatro partidos, que surgiram entre
1992-2000, foram fundados por elites
políticas dissidentes. Assim, o PCD e
o PRD, fundados respectivamente em
1993 e 2000, resultam de duas crises no
interior do MPD e; o PSD, fundado em
1992, resulta de uma cisão no interior
da UCID. Apenas o PTS não resultou de
uma cisão, tendo sido formado em 2000,
por Onésimo Silveira que, no passado,
chegou a integrar governos do PAICV.
Porém, a entrada em cena de novos
partidos eleitorais não parece ter alterado
a distribuição do poder já que a fórmula
maioritária tem-se reproduzido sem que
as estratégias dos pequenos partidos
(coligações, candidaturas independentes
pelas listas dos dois maiores partidos)
surtam efeitos acentuados.
♦♦♦♦♦
A democracia cabo-verdiana emerge
no contexto da “Terceira Vaga”, com a
introdução de eleições livres concorrenciais
em 1991, às quais apenas dois partidos
(PAICV e MPD) concorreram. O sistema de
partidos pode, contando apenas o número
de partido relevantes, ser identificado com
o formato bipartidário, pois não existia, à
altura uma terceira força política. Ambos
os partidos tinham expectativas fortes de
vencer as eleições em 1991, mas é o MPD
que as vence, com maioria qualificada e
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
forma um governo maioritário. Com um
padrão de alternância entre dois partidos
apenas e o acesso ao poder virtualmente
impossibilitado aos pequenos partidos,
pelas regras do sistema eleitoral por um
lado, e pelas dificuldades de financiamento
que enfrentam por outro lado, a fórmula de
governo, no sentido em que foi formulado
por Mair (1990), é sistematicamente a
mesma: maioritária.
Estes factores parecem colocar Cabo
Verde ao lado das democracias mais
consolidadas onde aparentemente as
estruturas de competição são mais regulares
e estáveis. No entanto estas estruturas
não são condicionadas unicamente por
factores mecânicos (como por exemplo a
lei eleitoral), mas também psicológicos,
uma vez que as preferências de voto
são aqui condicionadas pelo facto de as
expectativas serem mais previsíveis. Ou
seja os eleitores têm conhecimento que a
luta pelo poder está concentrada nos dois
maiores partidos. Adicionalmente, como
demonstramos, o crescente enraizamento
dos partidos na sociedade, acontece porque
os simpatizantes dos dois maiores partidos
apresentam lealdades relativamente fixas
e estáveis e têm atitudes cada vez mais
positivas sobre as instituições políticas.
24
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
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- Freedom House: http://www.freedomhouse.org/
Jornais Consultados
- Público
- Diário de Noticias
- Liberal On-line (http://www.liberal-caboverde.com)
- A Semana (http://www.asemana.cv)
- Voz di Povo (http://www.vozdipovo-online.com)
27
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
28
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO E CONSTRUÇÃO
DEMOCRÁTICA: ANALISANDO A ATMOSFERA
DO JORNALISMO EM CABO VERDE
Silvino Lopes Évora1
Resumo/Abstract
Este artigo procura reunir três textos, publicados na comunicação social, numa
tentativa de contribuir para o debate sobre a revisão constitucional, tendo em vista
a questão dos media. Discute a produção de políticas públicas e a regulação da
comunicação social, para concluir, apesar de todos os mecanismos normativos, por uma
ausência de regulação efectiva. A desregulamentação prática atinge a comunicação
social de várias formas: a regulação sectorial, embora existindo normativamente, não
funciona porque o Conselho de Comunicação Social – enquanto entidade reguladora
– está longe de cumprir as suas atribuições e não tem, ao seu dispor, os instrumentos
de que precisa para ser um regulador forte; a lei, muitas vezes, não passa de ‘letra
morta’, não produzindo efeitos na sociedade; a não existência de carteira profissional
torna o jornalismo em ‘terra de ninguém’ e, por falta de qualificação e preparação de
vários profissionais, deparamos com um jornalismo comprometido, amorfo, que não
contesta e pouco contribui para a construção da democracia cabo-verdiana.
Palavras-Chave: políticas de comunicação; liberdade de imprensa; comunicação
social; democracia e jornalismo.
This article aims to contribute to the debate about the Constitutional revision
in Cape Verde, based on three texts previously published in the media. This article
discusses the policy process and media regulation and it concludes that, despite
numerous regulatory mechanisms, there is no effective regulation in the country.
The practical non-regulation of the media has several causes and consequences. The
sectorial media regulation, although inscribed in the law, does not work because the
Council for the Media as a media regulatory body does not fulfill its obligations once
it does not have the indispensable tolls to become a strong regulator. The law is dead
letter, producing no social effects. Furthermore, in Cape Verde there is no professional
accreditation which means that journalism has no clear professional frontiers and it
is open to unqualified professionals. As a result, there is no journalistic independence
and the journalistic output is uncritical and unable to make a substantial contribution
to the democratic development..
Keywords: media policy; press freedom; mass media; democracy and journalism.
1
Silvino Lopes Évora é professor de Jornalismo da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde e de
Comunicação Estratégica da Universidade de Cabo Verde. Doutorado e Mestre em Ciências da Comunicação,
Licenciado em Jornalismo e Pós-graduado em Jornalismo Judiciário. É jornalista, escritor e investigador.
29
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
1. Políticas de Comunicação e
Serviço Público: da protecção
jurídica às práticas
Com a chegada da democracia em 1991,
uma das primeiras medidas que afectou
a comunicação social é a aprovação da
Constituição da República de Cabo Verde,
em 1992, que chegou mesmo antes da
legislação ordinária para o sector, já que
a lei da rádio foi aprovada em 1993, as
restantes leis sectoriais no Verão de 1998 e
o Regulamento para a Carteira Profissional
dos Jornalistas em 2004. Portanto, a
Constituição é um dos primeiros ganhos
jurídicos que o país conheceu no processo
de implementação da sua democracia.
Sendo o principal instrumento a partir
do qual emana as grandes referências da
organização e da orientação social, ela
deve compreender as reais necessidades
de um país, de forma a dar resposta ao seu
processo de desenvolvimento e, muitas vezes,
contribuir para a emancipação ideológica
dos cidadãos. Miranda considera, assim,
a Constituição como a “Lei fundamental,
Lei das leis, revela-se mais do que isso.
Vem a ser a expressão imediata dos
valores jurídicos básicos acolhidos ou
dominantes na comunidade política, a
sede da ideia de Direito nela triunfante,
o quadro de referência do poder político
que se pretende ao serviço desta ideia, o
instrumento último de reivindicação de
segurança dos cidadãos frente ao poder. E,
radicada na soberania do Estado, torna-se
também ponte entre a sua ordem interna
e a ordem internacional” (1996: 67).
Em Cabo Verde, a Constituição da
República constitui um dos principais
alicerces da nossa democracia, uma vez
que é nela que se encontram protegidos os
fundamentais direitos da pessoa humana.
Por isso, a sua elaboração constitui um
dos principais momentos de produção de
políticas para a organização da sociedade.
Lembremos que os pós-positivistas já tinham
dito que, no processo de definição de políticas
públicas (public policy process), mais do
que actores nacionais que lutam para
alcançarem interesses específicos, também
entram em linha de conta a interacção
de valores, as normas que estabelecem a
organização de uma determinada sociedade
e as diferentes formas numa fase muito
mais avançada do desenvolvimento do
sector da comunicação social em Cabo
Verde. Contrário à alienação, é preciso que
o Estado invista no sector da comunicação
social, no sentido de melhorar a sua
qualidade. É que, se o Estado não conseguir
fazer isso, ninguém ainda mostrou que
consegue. O investimento aqui passa por
várias intervenções: a) dotar os meios
de comunicação social de instrumentos
materiais para cumprir as suas obrigações;
b) trabalhar na autonomização dos meios
de comunicação, cortando com o circuito
interventivo dos Governos através de
nomeação do Conselho de Administração das
empresas estatais da área, seguindo-se-lhe
toda a cadeia de comandos; c) promover o
profissionalismo dos jornalistas, através
de formações generalizadas que elevam
o nível da classe; d) fazer a necessária
reestruturação do sector que, em quase
20 anos, ninguém conseguiu fazer; e)
estabelecer o Contrato de Concessão de
Serviço Público – previsto –, definindo
a engenharia financeira envolvente e as
atribuições dos órgãos de serviço público;
f) dar eficácia à fiscalização das atribuições
dos órgãos de serviço público de forma
a que alcancem os objectivos definidos
(se olharmos para a Constituição, a Lei
e o que tem sido a TCV, notamos que,
desde 1992, ela vem operando numa
‘inconstitucionalidade por omissão’,
entrando numa ‘ilegalidade por omissão’ a
partir de 1998, com a publicação da Lei da
Televisão. Isto porque, a estação pública
30
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
tem estado longe de alcançar os padrões
de qualidade que a Constituição e a Lei
determinam como estruturas orientadoras
do seu funcionamento); g) promover a
Carteira Profissional dos Jornalistas,
definindo a política de acesso à profissão,
privilegiando vectores como o mérito e a
formação; h) ancorar a regulação por via da
definição do padrão de qualidade através
dos órgãos de serviço público à regulação
institucionalizada, promovendo a regulação
independente e estimulando a promoção
e o desenvolvimento de mecanismos autoreguladores, no sentido de se encontrar um
equilíbrio entre a liberdade de imprensa
e a responsabilidade social dos media.
Tudo isso são caminhos, possibilidades
e, diríamos, oportunidades para que a
sociedade possa desenvolver a crítica,
promover o pensamento divergente, apostar
na diversidade e encarar a comunicação
social como chave para a solidificação do
sistema democrático. Nestas questões,
não se deve ficar pelos discursos. Que a
comunicação social é um factor de reforço
da democracia, já se ouve desde o início do
percurso da nossa democracia. É preciso
que ela seja transformada nesse elemento
intrínseco ao desenvolvimento do sistema
democrático.
Em Cabo Verde, é preciso encarar a
comunicação social como uma oportunidade
de desenvolver o pensamento, as consciências
e a própria democracia, potenciando o
próprio desenvolvimento do país. Não
conhecemos países em que se conheceu
grandes avanços sem que haja avanços na
mentalidade. Neste sentido, a comunicação
social figura-se como um importante
elemento da modernidade democrática,
capaz de contribuir para, e promover,
essa abertura de mentalidade.
Recordemos, portanto, que, depois
da TVEC, veio a TNCV e, em 1992, por
31
imposição constitucional, ficou assente que
o Estado asseguraria um serviço público
de radiodifusão e de radiotelevisão de
qualidade, sendo que, para isso, teria
de celebrar um contrato de concessão de
serviço público com a empresa gestora
dos dois órgãos, neste caso, a RTC. Ora,
de 1992 até hoje, contam-se 17 anos e
nesse meio tempo não há contrato de
concessão, não há qualidade no serviço
público e não há forma de os cidadãos
terem melhor televisão nacional, sendo que,
ainda que os privados tenham entrado, não
conseguiram agitar as águas, no sentido
de fazer ‘mossa’ à televisão do Estado.
E ficamos nessa ‘inconstitucionalidade
por omissão’ que as Ciências Jurídicas
explicam muito bem.
2. Regulação Sectorial
da Comunicação Social
Legislar sobre a Constituição da
República constitui um dos momentos
políticos mais importantes de um país,
na medida em que, em quase todos os
países modernos, decidiu-se consagrar
a forma da organização institucional em
Constituições. Portanto, por consagrar
matérias ambivalentes, que procuram
cobrir todas as preocupações de uma
sociedade, ainda que de forma genérica,
o ideal seria que a sociedade pudesse
participar no debate sobre as matérias
protegidas na Constituição. Neste ponto,
iremos debater a regulação da comunicação
social, um sector espezinhado durante
o Colonialismo, amargurado durante o
Partido Único e sofrido durante a Segunda
República. Tendo em conta que o Direito
de Informação – o de informar e de se
informar – só faz sentido porque existe
o Direito à Informação dos cidadãos, a
qualidade da comunicação social devia
ser a preocupação de toda uma sociedade
democrática.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Em vários países ocidentais, tem
sido implementado um processo de
complementaridade na regulação do
sector da comunicação social, em que a
auto-regulação assume uma natureza
complementar à hetero-regulação. Esta
consiste numa regulação com sede nos
poderes públicos, enquanto que aquela
se trata de um sistema de regulação em
que os directos envolventes na produção
da matéria noticiosa se assumem como
actores principais na regulação da sua
própria actividade profissional. Portanto,
por agora, não vamos nos debruçar muito
sobre as conceptualizações teóricos das
duas dimensões da regulação. Entretanto,
importa realçar que a regulação passa, antes
de mais, por criar estruturas, organismos
e condições para disciplinar, organizar
e fiscalizar o exercício da profissão e a
organização do sector mediático. Portanto,
pode haver duas naturezas de regulação
com sede no poder político: a sectorial, que
recai sobre um determinado domínio de
actividade; e a profissional, que procura
disciplinar uma profissão.
Antes de avançar, devemos lembrar
que o uso da expressão regulação, neste
caso, tem em vista a hetero-regulação,
deixando de fora todos os mecanismos autoreguladores. Posto isto, é possível verificar
que, em Cabo Verde, a regulação sectorial
tem sido um grande fracasso. Criou-se
um Conselho de Comunicação Social no
início da nossa caminhada democrática,
composto por 9 membros, cuja presidência
foi entregue a um magistrado judicial, que,
necessariamente, terá que ser indicado pelo
Conselho Superior da Magistratura. Se
formos à Lei da Comunicação Social (B.O.
n.º 21, I Série), notaremos que o Conselho
de Comunicação Social foi pensado como
um órgão independente, que funciona
junto da Assembleia Nacional. O seu
peso parlamentar é visível já que, como
a própria lei consigna, cabe à Assembleia
Nacional eleger 3 dos nove membros que
compõem o órgão. Também vale a pena
lembrar que a substituição dos membros do
Conselho da Comunicação Social merece a
aprovação de dois terços dos deputados em
efectividades das suas funções. Portanto,
esse pormenor, como iremos ver, é muito
importante.
Devemos realçar que, como atribuições
do Conselho de Comunicação Social, a
lei estabelece: a) assegurar o exercício
do direito à informação e à liberdade de
informação; b) salvaguardar a possibilidade de
expressão e confronto das diversas correntes
de opinião nos meios de informação; c)
providenciar pela salvaguarda da isenção,
rigor e objectividade da informação; d)
garantir o exercício efectivo dos direitos de
antena, de resposta e de réplica política; e)
contribuir para a garantia da independência
e do pluralismo dos meios de comunicação
social do Estado; f) promover a adopção
pelos meios de comunicação social de
critérios jornalísticos ou de programação
que respeitem os direitos individuais; g)
garantir a independência do jornalista e
o respeito pela ética e pela deontologia
profissional.
Ora, depois de onze anos da aprovação
da Lei da Comunicação Social e quase
vinte anos sobre a criação do Conselho da
Comunicação Social, o que é que temos?
Quase nada. A regulação sectorial para
a comunicação social em Cabo Verde é
praticamente inexistente. O Conselho
da Comunicação Social apenas emite
alguns pareceres quando são nomeados
os directores dos órgãos públicos e pouco
mais. Pelo menos, é esse o sentimento
dos profissionais da comunicação social e,
quase sempre, a sociedade passa ao lado da
sua existência. Portanto, tendo sob a sua
alçada uma matéria tão importante como
32
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
a regulação dos conteúdos da comunicação
social, era mais do que necessário que o
Conselho de Comunicação Social fosse
um órgão actuante na sociedade. Esta
sentiria que tinha uma instituição
intermediária à qual poderia recorrer,
não esperando para que os casos ganhem
figurinos incriminatórios, para recorrer
à tábua judicial. O grande problema é
que o Conselho de Comunicação Social
possui pouca força institucional e as suas
decisões não têm natureza vinculativa,
podendo ser valoradas ou não, já que não
passam de recomendações. Em algumas
matérias específicas, há a possibilidade
desse órgão regulador aplicar contraordenações em caso de faltas graves
aos deveres profissionais, mas não tem
recorrido a esse instrumento.
Por outro lado, também há a questão
da validade temporal dos mandatos. A
este respeito, devemos lembrar que o
mandato dos membros do Conselho de
Comunicação Social é válido por um período
de quatro anos e a actual composição
já vai para o triplo do tempo estipulado
pela lei, justamente por causa da lei ter
estabelecido que é preciso dois terços de
deputados consensualizados para votarem
favoravelmente a uma proposta. Ora, isso
significaria duas coisas: que um partido
ganhasse as legislativas com maioria
qualificada, como aconteceu uma vez
com o MpD, dispondo dos dois terços de
deputados impostos pela lei; ou, que haja
entendimento entre as duas bancadas
parlamentares maioritárias (ou não! Basta
haver dois terços de deputados dispostos a
viabilizarem uma proposta para a composição
do Conselho de Comunicação Social. Mas,
com a natureza dos partidos que temos, até
agora é o MpD e o PAICV que asseguram
um número de deputados suficiente para
se chegar a esse limiar de dois terços de
parlamentares). Portanto, para ambas as
33
situações, as soluções são difíceis de serem
encontradas: tanto é difícil haver uma
maioria qualificada, como também difícil
será haver um entendimento entre o MpD
e o PAICV no sentido de substituírem os
membros de um órgão como o Conselho
de Comunicação Social ou qualquer outro
semelhante, cuja natureza jurídica é
idêntica. Tendo em conta a idiossincrasia
do povo cabo-verdiano, muito voltado à
desconfiança para com aquele que pensa
diferente, conseguir consensos tem sido
muito complicado. Neste sentido, temos
um Conselho de Comunicação Social que
não funciona e, como os partidos não se
entendem, continua a não funcionar.
Fala-se, depois, na falta de qualidade
dos órgãos de comunicação social em
Cabo Verde. Mas, haverá qualidade
nas políticas de comunicação em Cabo
Verde? Está-se a pensar efectivamente
na dignificação da comunicação social,
quando temos um órgão fundamental
para regular o sector desfalcado, indo
para dez anos de caducidade do mandato,
sem que ninguém mexa uma palha para
mudar esse estado de coisas? A revisão
da Constituição da República de Cabo
Verde pode ser um momento importante
para alterar o estado de coisas, já que se
está a ignorar a formação das mentes, a
informação dos cidadãos e, para resumir, a
constituição do mosaico cognitivo do cidadão
cabo-verdiano. Em suma, é coisificar o
processo de aprendizagem das crianças, a
maturação dos conhecimentos dos jovens e
adolescentes e a solidificação das estruturas
cognitivas e argumentativas dos adultos,
transformando-os em preocupações menores
da sociedade. A Constituição impõe como
regulador do sector mediático o Conselho
da Comunicação Social, mas é preciso que
ela seja mudada para se poder mudar o
figurino da regulação da comunicação
social. Impor, constitucionalmente, o
Conselho da Comunicação Social ou qualquer
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
outra entidade de natureza análoga será,
sempre, atrelar o sector da comunicação
social a um figurino que não funciona
e ao qual não se pode fugir. Pensamos
que a resolução de um problema dessa
natureza não passa unicamente por mudar
a nomenclatura da instituição. Passará por
criar mecanismos para que as instituições
funcionem, independentemente do nome
que pode constituir a sua designação.
Portanto, há uma necessidade fundamental
de se alterar o quadro constitucional da
regulação mediática, criando uma entidade
independente do Governo e dos partidos,
que zele efectivamente pela melhoria do
trabalho da comunicação social, impondo
exigências, defendendo os direitos dos
jornalistas, protegendo as esferas privadas,
assegurando a realização do direito à
liberdade de imprensa e promovendo
a comunicação social no processo de
consolidação de uma democracia que,
quase 20 anos depois da sua chegada,
ainda tenta dar os seus primeiros passos,
de uma forma algo tímida. Para isso, a
autoridade reguladora tem que ter mais
poderes, não podendo se confinar apenas
a um órgão decorativo, cuja capacidade de
intervenção se cinja a meras advertências.
É preciso ir mais longe na regulação do
sector da comunicação social em Cabo
Verde. Na comunicação social, deve haver
mais povo e menos partidos; mais sociedade
e menos política; mais independência e
menos subordinação; mais informação
de interesse público e menos informação
de interesse político.
A democracia cabo-verdiana tem um
grande desafio à sua frente: é os partidos,
quando chegarem ao Governo, fazer o
seu trabalho e deixar a comunicação
social livre para contribuir no processo
de construção democrática. Os profissionais
da comunicação têm que ousar mais e se
sentirem mais comprometidos com o seu
dever profissional. Por fim, deve haver
uma regulação mais eficiente. Será que
os membros das entidades reguladoras
para a comunicação social que se venha
a criar em Cabo Verde têm que ser
profissionalizados? É uma possibilidade.
Quando profissionalizamos alguém, estamos
em condições de exigir responsabilidades.
Um profissional, normalmente, sentese obrigado a mostrar trabalho feito e
aquele que é digno da profissão e da
posição que ocupa na sociedade procura
responder às suas exigências para que
tenha a consciência de que o dinheiro que
a sociedade lhe paga é revertido em forma
de trabalho prestado. Agora, quando pomos
pessoas em lugares fundamentais para
a consolidação do sistema democrático
a prestarem trabalhos com bases em
colaborações cívicas que pontualmente
acontecem é claro que teremos sempre
deficiências. Entre ‘prestar favores’,
mediante avenças pouco significativas,
e apresentar resultado no trabalho para o
qual efectivamente alguém é contratado, a
primeira sai a perder. Portanto, no actual
esquema de funcionamento do Conselho
de Comunicação Social, os seus membros
são apenas colaboradores, que têm as suas
atribuições profissionais em outros sítios.
O Conselho de Comunicação Social acaba
por ficar para trás e, parecendo que não, a
sociedade cabo-verdiana tem muito mais
a perder do que se imagina. A verdade é
que muitos dizem que a comunicação social
está atrasada, criticam a televisão nacional
e outros órgãos de informação do país,
mas não procuram as raízes do problema.
Enquanto continuarmos a secundarizar a
comunicação social, continuaremos a ter
uma imprensa amorfa, que não contribui
grande coisa para a criação do pensamento
divergente na sociedade cabo-verdiana. E
pensamento divergente aqui não é poder ser
do PAICV ou do MpD. Esta é uma forma
34
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
maniqueísta de organização social que nós
criámos depois da nossa transição para o
sistema democrático e, sem percebermos
bem, criamos problemas graves na nossa
concepção do modelo democrático que nos
deixa atrelados a um ou outro partido,
não podendo estar ‘soltos’ entre as duas
‘carruagens’ porque pode-se correr sérios
riscos de se ser esmagado.
A concepção do modelo democrático
desenhado em Cabo Verde resulta da definição
de políticas para os sectores chaves para
o aprofundamento da democracia, como a
comunicação social. Por isso, todos devem
lutar e exigir políticas consentâneas com as
ambições de uma sociedade democrática.
Essas políticas e as condições ideais que
as democracias possam nos proporcionar
permitem-nos ser nós, seres humanos,
livres e com independência de pensamento,
e não partidos, cooptados a determinadas
amarras de interesses.
3. Regulação Profissional
da Comunicação Social
Se a regulação sectorial da comunicação
social é importante, havendo a necessidade
de se assegurar entidades autónomas
capazes de garantir a independência dos
órgãos de comunicação social e assegurar
a qualidade dos conteúdos que chegam
ao espaço público, a verdade é que essa
não é a única porta pela qual o problema
da falta de qualidade nos órgãos de
imprensa pode ser atacado. A regulação
profissional também é muito importante
nesta matéria e, para situarmos melhor
o nosso contexto de debate, deitaremos
mão a algumas concepções teóricas, que
muito nos servem para ajudar a explicar
a profissionalização do jornalismo.
A Sociologia das Profissões dá-nos
contributos importantes para compreender
35
o estabelecimento de algumas profissões,
entre elas a do jornalismo. A tese de
doutoramento de Fidalgo (2005), jornalista
e docente da Universidade do Minho, vai
‘pescar olhos’ a essas concepções teoréticas
para enquadrar a profissão de jornalismo,
evidenciando as suas especificidades e,
inclusive dificuldades de afirmação, em
comparação com as profissões estabelecidas,
como as de médico, advogado, engenheiro
ou enfermeiro. O princípio de diferenciação
é um daqueles à qual se deita mão para
explicar a peculiaridade do jornalismo
enquanto profissão e, neste caso, Fidalgo
(2005) recorre a Bourdieu que concebe
o ‘mundo social’ como um espaço (a
várias dimensões), construído na base
de princípios de diferenciação. Desta
forma, a emergência do jornalismo como
uma profissão resulta-se de um esforço
no sentido de definir uma actividade
profissional com características que lhe
são próprias, capazes de lhe tornar singular,
diferenciando-a das demais categorias de
actividades. Como diz Fidalgo (2005), esse
procedimento começou por explorar as
vertentes negativas, tentando distinguir
aquilo que era jornalismo do que não era:
“nem uma tribuna de propaganda política e
proselitismo partidário, nem o espaço mais
alargado (em termos de difusão pública)
para os escritores interessados em publicar
as suas crónicas ou os fascículos dos seus
romances, nem a tribuna pessoal de quem
queria promover-se e à sua carreira,
nem o registo burocrático das singelas
informações sobre a cotação dos produtos
no mercado e do seu trânsito comercial.
Tratava-se, aqui, essencialmente de definir
uma ‘fronteira’ – termo que Ruellan
(1997) vai buscar à geografia humana e
que considera bastante útil no contexto
da sociologia dos grupos profissionais,
ilustrando a ocupação, por um determinado
grupo, de um terreno virgem que se vai
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
‘demarcando’ até à linha separadora de
outros terrenos/actividades vizinhas, mas
também concorrentes” (Fidalgo, 2005:
67). Desta forma, é possível verificar
que o surgimento do jornalismo enquanto
profissão teve como princípio básico definir
o que é jornalismo e o que não é, o que
diferencia o jornalismo dos territórios
profissionais ou ocupacionais vizinhos.
Para isso, tinha que se identificar o que
o jornalismo tem de genuíno, que pode
constituir a sua solidez profissional. Ora,
perguntaria: será que, em Cabo Verde, já
se fez esse distanciamento do jornalismo
em relação a outras profissões ou ainda
temos uma amálgama de coisas ligadas
à escrita que cuja fronteira ainda não
foi bem definida?
Iniciámos com o regime de Partido
Único, depois da independência nacional,
e em certos sectores de actividade demos
continuidade à forma de procedimento
perdurante no sistema colonial. Assim
como não se trabalhou no sentido de se
empreender uma ‘ruptura profissional
no jornalismo’ do colonialismo para a
independência, também do Partido Único
para o multipartidarismo, as coisas foram
deixadas ir ao sabor do vento. É claro que, da
parte dos jornalistas, houve novas atitudes,
mas não conseguiram correspondências
com a natureza formal do regime, não
chegando a estar a par daquilo que se exigia
com tudo o que a isso se associava. Não
se trata de culpabilizar eminentemente
a classe dos jornalistas, mas o processo
de democratização do país teve os seus
problemas e a falta de cultura democrática
no seio dos partidos fez com que houvesse
algum percurso pouco abonatório para
a afirmação da profissão de jornalismo,
como a multiplicação de processos judiciais
contra os profissionais do sector.
Se, nos primórdios do jornalismo, a
definição profissional de jornalista passava,
antes, por saber o que era jornalismo e o
que não era, em Cabo Verde, a regulação
profissional do sector da comunicação social
impõe que se procure saber exactamente
quem é jornalista e quem não o é. Em
poucos países de Desenvolvimento Médio,
democráticos e organizados em Estados
de Direito, a profissão do jornalismo está
tão ‘abandalhada’ como se verifica em
Cabo Verde. Qualquer um que decide
escrevinhar o seu texto é considerado
de jornalista, independentemente da sua
preparação, formação académica, experiência
profissional ou mesmo capacidade para
distinguir o que é um texto jornalístico –
essencialmente informativo, de tendência
neutra, com possibilidade de fazer análise
a partir de correlação de informações e
de factos – do que é um texto opinativo,
bastante subjectivo, por vezes nada factual,
tendenciosa certas vezes e que não está
ancorada à obrigatoriedade de informar
as pessoas, podendo estar voltada para
a defesa de pontos de vista, objectivos
ideológicos, pessoais, políticos ou de outra
ordem.
A classe jornalística do ‘Cabo Verde
independente’ começou a compor-se depois
da independência nacional, quando grande
parte da população nacional tinha fraca
instrução académica. Portanto, não era
só em jornalismo que se encontrava
pessoas com formação deficiente, se for
comparada com a exigência do cargo.
Durante o Partido Único, em algumas
situações – com salvo o respeito para
alguns profissionais competentes que
entraram nos órgãos e fizeram uma
carreira de louvar – o sector do jornalismo
não passava de um local de ‘desterro’
de profissionais inabilitados para fazer
tudo o resto. Quando alguém não sabia
fazer mais nada e era complacente com
as investidas do poder instalado, era-se
36
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
‘despromovido’ para o jornalismo. Ou
seja, o jornalismo começou por ser uma
espécie de FAIMO, uma grande Frente
de Alta Intensidade de Mão-de-Obra, que
fez com que os órgãos entrassem para a
democracia com um excesso de gordura em
termos de recursos humanos, padecendo
de duas situações conflituantes: excesso
de pessoal e, ao mesmo tempo, falta de
pessoal produtivo. A esses problemas, veio
juntar-se mais o do aumento do pessoal,
quando um novo partido chegou ao poder
e uma avalanche de pessoas voltaram a
entrar para o jornalismo: daí os anos 90
terem sido conflituantes entre a própria
classe, já que havia uma discussão enorme
entre os profissionais com formação e os
profissionais sem a desejável formação. Hoje
parece que esse problema foi ultrapassado,
mas ainda não. É basta se começar a
falar com profissionais formados para
se perceber que se sentem incomodados
quando vêem pessoas sem a formação
adequada na área à frente dos órgãos.
Portanto, uma das soluções é pegar
na situação que temos, em Cabo Verde,
e construir uma saída, que passa por
disciplinar a profissão do jornalismo: ou
seja, a tal regulação profissional de que
falamos. Ela tem como base a atribuição
da Carteira Profissional, coisa que teima
em não acontecer. Em 2004, o Governo
criou o Regulamento para o funcionamento
da Comissão de Carteira Profissional do
Jornalista. Sendo a comunicação social
tomada como o ‘parente pobre’ da nossa
sociedade, facilmente decidiu-se transferir
a magistrada que já tinha sido destacada
para presidir a Comissão da Carteira
para a Comissão Nacional das Eleições,
deixando a primeira desfalcada. Resolveu-se
o problema, recentemente, com a eleição
de um novo representante e inclusive a
Comissão de Carteira Profissional já tem
instalação na Casa da Imprensa, mesmo
ao lado da Secretaria da Associação dos
37
Jornalistas de Cabo Verde. Mas, até ainda,
não se vê nenhuma carteira profissional
atribuída. Ora, isso não deve continuar
assim. O jornalismo não deve continuar
a ser a ‘terra de ninguém’. Há que dar
alguma protecção e dignidade à classe
dos jornalistas porque, caso contrário, o
avanço harmonioso da nossa sociedade
fica adiado. Não há qualquer dúvida que,
numa democracia em que a comunicação
social funciona de forma indigna, a própria
democracia está condenada à indignidade. A
verdade é que a imprensa livre e funcional
é o oxigénio de qualquer democracia que
quer ser plural e funcional. Não podemos
deixar a comunicação social na rua da
amargura, transformando-a em ‘terra de
ninguém’, onde qualquer um pode entrar
e operar sem prestar contas a ninguém.
Educar a ‘composição psíquica’ das pessoas
é uma atribuição demasiado importante
para ser deixado ao critério de ‘quem
sabe mais conta melhor’.
Ruellan (1997) – citado por Fidalgo
(2005) – ajuda-nos a determinar quatro
momentos de evolução da profissão do
jornalismo. O autor estudou especificamente
o caso da França, mas o seu modelo aplicase em grande parte dos países da Europa
Ocidental, cuja trajectória da imprensa
teve as suas especificidades de país para
país, mas também tem os seus pontos
concordantes.
1. Os primórdios da actividade, que
antecedeu o surgimento da imprensa
industrial – que ocorre a partir dos meados
do século XIX;
2. O período da capitalização dos
efeitos da industrialização, que provou
incremento da actividade económica dos
media, marcado essencialmente pelo
surgimento da imprensa privada;
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
3. O lapso de tempo que mediou as
duas Grandes Guerras, em que houve
ganhos significativos a nível da definição
de um quadro legal e institucional para
a profissão;
4. E o período que se seguiu à
Segunda Guerra Mundial, enquanto etapa
de consolidação dos ganhos anteriores.
No entanto, quanto a nós, é momento
de perguntar, em que período a nossa
imprensa se encontra, quais são os
ganhos que ela já conheceu, onde é que
pretendemos chegar com ela, o que teria
que ser feito para chegarmos à meta
desejada e quanto tempo mais temos
que esperar para ver a comunicação
social a dar um passo significativo? Num
país onde não há carteira profissional,
onde todos entram arbitrariamente na
profissão, onde os conselhos de redacção
não funcionam, onde praticamente não
há regulação institucional, onde muitas
vezes a lei não passa de ‘letra morta’, onde
não há uma política séria para o sector
da comunicação social, quem conseguir
responder a todas as questões que acabamos
de levantar, praticamente, encontra a
chave para o desenvolvimento do sector
da comunicação social em Cabo Verde.
4. Síntese conclusiva
A comunicação social é uma das
principais áreas da sociedade na qual se
pode investir para a solidificação do sistema
democrático. Trabalhando a formação das
consciências, ela ajuda a criar condições
para a abertura da mentalidade e para
a emancipação ideológica dos cidadãos.
Para isso, necessita de estar ancorada na
liberdade de imprensa, que não se deve
ficar pela sua acepção jurídico-formal,
mas deve também manifestar-se de forma
material. Só havendo uma liberdade efectiva
no sector da comunicação social se cria
condições para que o jornalismo seja um
elemento muito importante na promoção
da construção democrática do país.
Por outro lado, as políticas de comunicação
são bastante importantes, na medida em
que, da forma como elas forem definidas
e funcionarem, poderão contribuir para
que haja uma maior ou menor esfera para
a prática da liberdade de imprensa e de
um jornalismo que, efectivamente, pede
conta aos poderes públicos, estando ao
serviço dos cidadãos, do bem comum, da
sociedade e das suas aspirações colectivas.
O panorama dos media cabo-verdianos
é marcado por um gritante fracasso da
regulação: a auto-regulação é incipiente,
os dispositivos da regulação sectorial são
ineficazes e a ausência da regulação
profissional e, por conseguinte, da atribuição
da carteira profissional têm transformado
o jornalismo numa ‘profissão a céu aberto’
ou ‘terra de ninguém’, onde qualquer um
pode escrever e assinar como jornalista
sem que para isso tenha que prestar
contas à classe, à sociedade ou ao próprio
país. E assim a democracia continua a
reclamar de uma comunicação social mais
interventiva, de um jornalismo menos
amorfo, de uma liberdade de imprensa
efectivada e uma regulação, quer em
termos formais, profissionais ou sectoriais.
38
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Referências
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39
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
40
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
CIDADE VELHA, PATRIMÓNIO MUNDIAL E
MEDIDAS ARQUITECTÓNICAS
Flávia Lenira Gomes Marques dos Santos1
Resumo/Abstract
Trabalhando a candidatura de Cidade Velha a Património Mundial e as medidas
arquitectónicas, analisa-se a forma como diferentes actores encararam a candidatura
de Cidade Velha a património mundial, tendo em conta as suas expectativas, e como
os moradores se posicionam perante as medidas arquitectónicas impostas, que estão
sendo geradoras de tensões e conflitos.
Palavras-chave: património cultural; candidatura a património mundial; medidas
arquitectónicas; turismo.
Working the application of the Cidade Velha to be a World Patrimony and the
architecture measures behind, the way how different actors perceived the application
of the Cidade Velha as a World Patrimony is analyzed taking into account their
expectations and how the residents are positioned to the architectural measures
imposed, which are generating some tensions and conflicts.
Keywords: cultural patrimony; application for a world patrimony; architectural
measures; tourism.
1 Flávia Marques dos Santos é Licenciada em Sociologia pela Universidade de Évora (2002), com PósGraduação em Políticas e Práticas do Turismo pela Universidade de Évora (2003), Mestre em Ciências Sociais
pela Universidade de Cabo Verde (2009) e doutoranda em Ciências Sociais (UNICV). No âmbito do Mestrado
desenvolveu um trabalho intitulado “A Construção patrimonial no contexto da expansão turística na Cidade Velha,
Cabo Verde”. Actualmente é redactora da Assembleia Nacional de Cabo Verde e docente na Universidade de Cabo
Verde a tempo parcial. As áreas de investigação a que se tem dedicado prendem-se com identidade, património,
turismo, territorialidade, conflitos socioambientais.
41
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Situada a 12 km da Cidade da Praia,
Cidade Velha1 aparece em diferentes
brochuras de promoção turística, em
discursos oficiais e no documento de
candidatura a Património Mundial, junto
à UNESCO, como sendo a primeira capital
eclesiástica e civil de Cabo Verde, sede
do primeiro bispado da Costa Ocidental
Africana e a primeira construída, em 1462,
pelos europeus na África Subsaariana.
Dessa época sobreviveram, entre outras
ruínas, algumas construções históricas,
entre elas, religiosas e militares, que
foram alvos de restauros, como a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos (1495), a Igreja e Convento de
São Francisco (1640), as ruínas da Sé
Catedral (1700), o Pelourinho ou “Picota”
(1512) e a Fortaleza Real de São Filipe
(1591), entre as demais ruínas.
De alguns edifícios sobraram apenas
poucas ruínas, algumas vítimas da destruição
local que passam despercebidas ao olhar
de quem por lá passa, algumas casas
deterioradas, outras com fachadas sem
pinturas, algumas ruas estreitas com
pouca ou nenhuma iluminação, mas que,
os que por lá passam atribuem diferentes
sentidos. Muitas casas não autorizadas
foram sendo construídas dando origem
a um espaço que não se enquadrava nas
práticas discursivas de cidade histórica,
que se pretendia turística, com base nos
monumentos. A partir dos anos 60 do
século XX, por altura da comemoração
do meio milénio da morte do Infante D.
Henrique e do meio milénio da descoberta
do arquipélago, há um reconhecimento
patrimonial, pelo que procedeu-se ao restauro
de algumas construções representativas de
uma época gloriosa na história portuguesa,
perspectivando a valorização turística
da cidade.
1 Nome usado para designar o centro histórico
após a decadência da Ribeira Grande.
No pós-independência e ao longo da
década de 80 do século XX até aos nossos
dias, a mais antiga urbe de Cabo Verde
vem sendo apropriada enquanto património
por diversos actores, o que culminou com
a publicação do Decreto n.º 121/90, B.O
n.º 49 de 8 de Dezembro, que declara o
sítio histórico da Cidade Velha património
nacional de Cabo Verde. Por essa ocasião,
a antiga Ribeira Grande evidenciava-se
como uma referência e um dos pontos
turísticos da Ilha de Santiago e de Cabo
Verde em geral, sendo divulgada pelas
agências de viagens.
O apelo à história da Cidade Velha
para legitimar a ideia do património
cultural tem sido utilizado ao longo dos
tempos, em que os seus elementos são
considerados representativos do passado,
com várias opções políticas e sociais e, mais
recentemente, com vários esforços, tendo
em vista a legitimação da candidatura
da Cidade Velha a Património Mundial
da Humanidade junto à UNESCO,
apresentada em Janeiro de 2008, e que
teve um resultado favorável conhecido
em Junho de 2009.
São visíveis as várias mudanças
ocorridas em decorrência dessa candidatura
a património mundial, que estão gerando
tensões e conflitos na Cidade Velha. É
desta forma que parto para a análise do
processo de candidatura de Cidade Velha
a património mundial e a sua relação
com as medidas arquitectónicas.
Esse artigo resulta de uma dissertação
de mestrado, na qual fez-se uma etnografia,
utilizando a técnica da observação
participante, registos fotográficos e
entrevistas a diferentes actores locais,
de diferentes faixas etárias e a outros
agentes intermediários no processo de
construção patrimonial, analisando o sentido
42
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
que os actores dão aos acontecimentos
em que estão envolvidos, confrontando
diferentes pontos de vista.
Apesar da maioria dos moradores locais2
ter autorizado o uso de suas identidades, optei
por protegê-las, utilizando nomes fictícios.
Este tratamento somente foi utilizado em
relação aos moradores locais, excluindo
dessa selecção autoridades nacionais, cujas
posições e posicionamentos são públicos.
1. A candidatura a património
mundial da humanidade
Decorria o ano de 1972 quando a
Organização para a Educação, Ciência
e Cultura das Nações Unidas (UNESCO)
redigiu a Convenção Geral para a Protecção
do Património Mundial, Cultural e Natural,
estabelecendo um sistema de protecção
mundial do património cultural e natural
de valor universal, considerado excepcional.
Esta convenção estabeleceu o tipo de locais
a serem classificados como património
natural ou cultural e que podem ser
inscritos na lista de Património Mundial,
criando o Fundo de Património Mundial
e o Comité do Património Mundial.
Desta forma, os países que assinaram
a referida convenção comprometeram-se a
identificar os potenciais locais, proteger e
preservar o património mundial, cultural
e natural, bem como os locais classificados
como património mundial localizados no
seu território e a proteger o respectivo
património nacional. São eles que indicam
os bens culturais a serem inscritos na
Lista do Património Mundial.
Para conseguir a inscrição na lista de
património mundial da humanidade, a
candidatura deve representar uma obra2 Utilizo esse termo para as pessoas que
vivem na Cidade Velha há mais de 10 anos.
43
prima de genialidade criativa do ponto
de vista artístico e humano; demonstrar
um importante intercâmbio de valores
humanos num dado período ou numa
zona cultural do mundo, progressos na
arquitectura e tecnologia, artes monumentais,
planeamento urbanístico e design paisagístico;
representar um testemunho único, ou
pelo menos excepcional, de uma tradição
cultural ou de uma civilização ainda viva
ou já desaparecida; ser um exemplo
extraordinário de um tipo de edifício,
conjunto arquitectónico e tecnológico ou
paisagem que ilustre uma ou várias fases
significativas na história da Humanidade;
ser um exemplo extraordinário de ocupação
humana tradicional ou utilização de
terras que representem uma cultura
ou culturas, especialmente quando se
tornarem vulneráveis ao impacto de
uma alteração irreversível; ser directa
ou tangivelmente associado a eventos ou
tradições vivas, a ideias ou crenças ou a
obras literárias ou artísticas de importância
universal incalculável (um critério apenas
utilizado em circunstâncias excepcionais
e, em conjunto com outros critérios).
As informações sobre cada candidatura
são avaliadas pelo Comité do Património
Mundial, composto por representantes
de 21 países, que aprova anualmente
as candidaturas. Já a protecção e a
conservação dos bens declarados Património
da Humanidade, são compromissos do
país onde se localizam. A participação da
UNESCO reporta-se no apoio de acções
de protecção, pesquisa e divulgação, com
recursos técnicos e financeiros do Fundo
do Património Mundial.
Segundo Dias e Aguiar (2002), mais
do que benefícios directos originários da
UNESCO, os governos de todo o mundo,
ao incluírem monumentos e sítios na Lista
do Património Mundial, obtêm prestígio
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
e projecção internacional, valorizando
culturalmente esses locais e incluindoos no circuito do turismo internacional.
A declaração do que é património da
humanidade deve conseguir a concordância
dos governos nacionais e das comunidades
próximas ao sítio a ser preservado, mesmo
quando o património não se identifica
com a cultura da comunidade naquele
momento histórico.
2. O processo de candidatura
de Cidade Velha a património
da humanidade
Após vários preparativos e um pedido
recusado, Cidade Velha voltou a candidatarse a património mundial da humanidade.
“Na década de 90 houve uma tentativa de
classificação de Cidade Velha como património
mundial. Se quisermos, a apresentação de
2008 é reincidente, uma segunda vez. Da
primeira vez, com a falta de experiência, o
governo incidiu mais sobre a história da
escravatura, o povoamento, a contribuição
que Cabo Verde deu no surgimento de um
novo mundo, sobretudo as Américas e as
ilhas atlânticas. Entendeu, na altura, e ainda
entende, que essa contribuição de Cabo Verde
no surgimento do crioulo no mundo deve
ser reconhecida a nível mundial. É neste
quadro que desde 2006 a esta parte temos
trabalhado afincadamente para tentarmos
obter essa classificação formal” (Martinho
Brito, Director de Salvaguarda do Património,
IIPC, 2008).
O dossier da candidatura de Cidade
Velha a património da humanidade começou
a ser preparado em 2006, foi apresentado
em Janeiro de 2008, e o resultado ficou
conhecido em Julho de 2009, decidido
pelo Comité do Património Mundial da
Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).
Este dossier encontra-se estruturado
em quatro pontos que versam sobre a
vantagem do sítio, o processo de inscrição,
argumentos e desafios que este sítio impõe
ao Estado, como também à população.
“Para conseguirmos este documento tivemos
que fazer vários encontros com a população
local. Mostramos todos os documentos que
fizemos, com fotografias que documentam a
sua realidade” (Charles Akibodé, Coordenador
Científico da Comissão de Preparação do
Dossier de Candidatura de Cidade Velha
a Património Mundial, 2008).
A análise desse dossier deixa evidentes
os discursos sobre o passado, nos quais
diferentes actores legitimam a Cidade Velha
enquanto cidade histórica, turística e lugar
de memória. No documento de inscrição
encontra-se sumariada que Cidade Velha
se destaca “como uma escala importante
na rota do Atlântico, entre a África e a
Europa e, seguidamente, as Américas;
sítio de realização do tráfico negreiro e do
comércio triangular, dois séculos antes das
grandes deportações; lugar de encontro de
povos distantes, promotores de uma nova
cultura fundada na miscigenação; sítio
com um património material e imaterial
expressivo das relações que unem a África,
a Europa e as Américas” (MINISTÉRIO DA
CULTURA, 2008: 3), com apresentação das
várias construções históricas. Apresentam
análise comparativa com outros lugares
considerados património mundial. Nesta
candidatura, perspectiva-se o aumento
do fluxo turístico. O plano de gestão3
tenta dar voz às necessidades locais,
embora oculte os conflitos, confrontos
e disputas que estão ocorrendo. A este
3 É um instrumento de gestão que programa a
preservação do sítio e dos seus valores culturais, no
qual pretende melhorar as condições de vida dos
moradores locais (saneamento e rede de esgotos,
acesso à água potável, capacitação dos responsáveis
locais, investimento nas infra-estruturas escolares, etc)
(MINISTÉRIO DA CULTURA, 2008a).
44
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
respeito, Charles Akibodé, coordenador
científico da comissão de preparação do
dossier de candidatura da Cidade Velha
a património mundial refere nos termos
seguintes:
“Agora a UNESCO considera que ao apresentares
o sítio a património mundial, na qual o
sítio terá grande visibilidade, a população
local terá que ser beneficiada. É por isso que
temos um plano de gestão da Cidade Velha
de 2008-2012. Para conseguirmos este plano,
temos quatro pilares: o primeiro pilar é a
gestão participativa da Cidade Velha. É a
implicação da sociedade civil na gestão da
Cidade Velha, isto é, para salvaguardarmos
o património construído, se a população não
estiver implicada nessa gestão do sítio, pode
danificar à noite, as pessoas podem urinar
nos monumentos. Então, se tiveres gestão
participativa, vão-se unir os interesses. O
segundo pilar é sobre a luta contra a pobreza.
Temos que melhorar a vida da população
da Cidade Velha, a partir da recuperação
das casas mais antigas e a criação de um
foco de desenvolvimento. O terceiro pilar
versa sobre a melhoria de vida da população
e a sua participação em programas de
desenvolvimento cultural. Temos ideia de
organizar feiras tradicionais na Cidade
Velha. O quarto pilar é a salvaguarda do
património imaterial. Para conseguirmos
um plano de gestão tivemos que ter vários
encontros com várias camadas da população,
desde empresários, estudantes, todos aqueles
que fazem parte da vida activa da Cidade
Velha, tendo uma estratégia de diálogo,
para retirar o fundamental do encontro”
(Charles Akibodé, Coordenador Científico
da Comissão de Preparação do Dossier de
Candidatura de Cidade Velha a Património
Mundial, 2008).
O processo de candidatura de Cidade
Velha a património mundial da humanidade
fez com que a Cidade Velha aparecesse, em
45
vários momentos, no centro do debate político
e na imprensa nacional e internacional.
Com esta candidatura pretendeu-se atrair
o turismo internacional. Os moradores
locais posicionaram-se, diferenciadamente,
sobre esta candidatura. Vários moradores
locais somente ouviram dizer que Cidade
Velha era candidata a património mundial,
mas sem saber o que isso queria dizer.
Houve outros que ficaram sabendo da
candidatura pelos meios de comunicação
social. Outras pessoas, as mais idosas,
chegaram mesmo a dizer que não ouviram
falar, embora se encontrasse anunciada a
nível local, através de uma grande placa
que se encontra afixada à frente do posto
de turismo.
Um grande número de pessoas nem
sequer se informou a esse respeito. Outros
ainda demonstraram a sua importância,
mas ao mesmo tempo percebe-se que
partilham do que lhes é dito.
“O país passa a ser conhecido, entra mais
dinheiro para a Cidade e para o País” (Paulo,
estudante, 17 anos, 2008).
“Cidade Velha será mais conhecida, o
que aumentará o fluxo turístico, entrarão
receitas. Disseram-nos que se passarmos
na candidatura, não nos vão dar dinheiro,
mas com isso entra-se em roteiros turísticos”
(Sérgio, funcionário público, 33 anos, 2008).
“A partir de agora as pessoas vão passar
a conhecer Cidade Velha. Brava pode se
desenvolver rapidamente, Santo Antão com
turismo de montanha, São Vicente com turismo
urbano, Sal e Boa Vista com turismo de
mar. Não é somente a Cidade Velha que
vai se beneficiar com isso. Haverá um fluxo
turístico enorme. Por isso, também temos
estratégia de tentar fazer com que o turista
compre mais peças de Cabo Verde. Estamos
pensando em voltar para a nossa tradição,
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
voltar ao artesanato cabo-verdiano. Temos
que pensar numa política artesanal virada
para o turismo. Tudo isso é benefício para a da
economia cabo-verdiana, não somente da de
Cidade Velha” (Charles Akibodé, Coordenador
Científico da Comissão de Preparação do
Dossier de Candidatura de Cidade Velha
a Património Mundial, 2008).
Verificou-se o interesse na geração
de rendimento que a candidatura pode
trazer, nomeadamente, com o aumento do
fluxo turístico. A Proim-tur, empresa que
explora a manutenção e o desenvolvimento
do turismo cultural na Cidade Velha,
também perspectiva o aumento de turistas
e uma maior projecção do local, assim
como o Presidente da Câmara:
“Só a novidade da nossa candidatura
elevou o nome de Cidade e fez com que
a valorizássemos. A candidatura trouxe
mais valor, promoveu o turismo. Podemos
transformar o nome de Cidade Velha numa
marca e tudo pode vir a desenvolver-se à
volta disso. No fundo, somos Cidade do
mundo, passaremos a ser no mundo. É um
título que nos dá grandeza”( Manuel de
Pina, Presidente da Câmara Municipal de
Ribeira Grande de Santiago).
Um dos moradores locais, durante a
entrevista, definiu o que entendia pela
candidatura: “candidatura a património
mundial é lançar a Cidade no mundo, fazer
a Cidade ser reconhecida no mundo: com
o seu passado, presente e futuro” (Sérgio,
funcionário público, 33 anos, 2008).
Alguns moradores locais, assim como
o coordenador científico da comissão de
preparação do dossier de candidatura de
Cidade Velha a património mundial, são
conscientes de algumas perdas.
“Cidade Velha vai ter ganhos com essa
candidatura, mas no fundo vai ter, também,
algumas perdas. Desde o início não fomos
informados para sabermos o que vai sair com
essa candidatura a património mundial”
(Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008).
“Temos que proteger a população da Cidade
Velha. Com a vinda de diversas pessoas, com
a pressão do espaço, a população da Cidade
Velha é capaz de sofrer muito e se não tivermos
um bom plano de melhoramento das suas
vidas, é melhor não apresentarmos a Cidade
Velha a património da humanidade, porque
temos vários outros exemplos no mundo.
Se não tomarmos medidas importaremos
violência para Cidade Velha. Há também
a SIDA. Um outro perigo que chamamos
atenção, são pessoas que vão pedir esmolas.
Neste momento, vais a Cidade Velha, as
crianças sabem dizer dinheiro em várias
línguas: francês, inglês. Este é um grande
perigo porque se pedirem e receberem dinheiro,
ficarão a pedir e abandonarão a escola. Em
vez de fazerem uma formação, as pessoas
vão achar que indo atrás de turistas irão
ter mais ganhos de que ser carpinteiro ou
ter outro tipo de emprego. Será um novo
tipo de escravatura porque em vez de
terem um trabalho, ficarão dependentes
da vinda de turistas. Este também é um
dos grandes focos da pobreza, de perigos, e
pessoas sairão da Praia, São Vicente, Fogo,
para se instalarem na Cidade Velha, cada
um à sua sorte. Este é um perigo para a
população local, a invasão de pessoas, não
somente de turistas. Não teremos nenhum
lugar para transitar porque todos quererão
ir vender aí” (Charles Akibodé, Coordenador
Científico da Comissão de Preparação do
Dossier de Candidatura de Cidade Velha
a Património Mundial, 2008).
É de salientar que houve algumas
preocupações por parte do Governo em
fazer reuniões com a população, com sessões
de esclarecimento sobre a candidatura da
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Cidade Velha a património da humanidade.
Mas, conversando com os moradores locais,
verifica-se que havia muito desinteresse.
As pessoas não compareciam e depois
debatiam entre si, mas sem procurar obter
informações, o que poderá ser uma forma
de mostrarem desinteresse.
“Parece que não foi só eu que não compareci.
Posso te dizer que Cidade inteira também”
(Joaquim, 25 anos, desempregado, 2008),
“todos pensam que não vão ganhar nada e
nem beneficiar com o património, que lhes
importa se a candidatura vai passar ou não?”
(Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008).
Essas opiniões denotam o fraco
envolvimento e participação dos moradores
locais nos pedidos de declaração patrimonial
da Cidade Velha. Os moradores locais
justificam a sua fraca participação no
processo da candidatura por considerarem
que não foram ouvidos, não deram a sua
voz, o que demonstra alguma insatisfação
na forma como o processo foi conduzido,
e realçam que devia servir e agradar a
população, para que ela possa contribuir
para a sua preservação. Por outro lado,
os que foram às sessões disseram-me que
colocaram perguntas, mas que ficaram
sem respostas.
“Tive que ir a duas ou três reuniões na Sé
Catedral. Estou de acordo que Cidade Velha
se candidate a património mundial, mas
também quando ganhar esse estatuto não
seremos geridos de novo como o espanhol
tem feito, que disse que nos deu algo e está
a nos gerir. Queria ter mais oportunidades
de fazer mais perguntas às pessoas que
estão relacionadas com essa candidatura
da Cidade Velha a património, para um
melhor esclarecimento” (Carla, funcionária
pública, 40 anos, 2008).
“Fui mas não fiquei muito esclarecido. As
minhas dúvidas não foram respondidas.
Não ficou claro qual é o envolvimento da
população nisso. Fizeram as coisas do fim
para o início. Deviam começar por sensibilizar
as pessoas e depois continuar” (Sérgio,
funcionário público, 33 anos, 2008).
“Fizeram encontros, mas não com a população
massiva, somente com alguns representantes de
zonas, de associações, depois com governantes,
com pessoas que não são da Cidade para
falarem do que Cidade Velha sente. Quando
vais a essas reuniões e colocas a tua opinião,
pedes sugestão e ignoram a pergunta que
colocas. Penso que os nossos governantes, antes
deles organizarem todo esse processo, deviam
“Em 2007 fizemos reuniões com pessoas mais
próximas de conflitos, com choro, mágoa,
desentendimento. Temos que mostrar os ganhos
e perigos da Cidade Velha não ser inscrita
como património mundial. Surgiram várias
questões e sensibilizamos a população para
mostrarmos a eles que não queremos mais
do que a sua compreensão, participação
na gestão da cidade, do sítio. Mesmo que
Cidade seja património, se não tivermos apoio
da população, é capaz de sair da lista do
património da humanidade. Fizemos com que
todo o sector da população aparecesse para
ouvir a nossa comunicação. Para além das
reuniões que fizemos no Convento, na Câmara
Municipal, fomos às suas casas falar com
eles. Às vezes são eles que chegam até nós.
Já fizemos reuniões alargadas, mas temos
que ter encontros informais com a população,
com pessoas que não estão contentes e nós
temos que tomar nota de tudo o que querem e
ouvir a população, porque nós queremos ser
património mundial, mas também temos que
nos sentir seguros” (Candinha, professora,
35 anos, 2008).
não querem e depois iremos ver, porque não
podemos individualizar as necessidades”
(Charles Akibodé, Coordenador Científico
da Comissão de Preparação do Dossier de
47
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Candidatura de Cidade Velha a Património
Mundial, 2008).
Algumas preocupações devem ser
tidas em conta:
“Penso que se conseguirmos, dará um
grande avanço para nós, mas também
caso ganharmos, tem que ser passo a passo,
ponto por ponto, com toda a definição da
população da Cidade Velha para saberem
o que é, de onde vieram e a sua utilidade no
futuro. Já falaram muito dessa candidatura
a património mundial, mas se desde o início
tudo andasse nos seus passos reais, penso que
hoje seria a própria população da Cidade
Velha a gritar à UNESCO que a hora já
tinha chegado” (Carla, funcionária pública,
40 anos, 2008).
Contudo, muitos são os que consideravam
a candidatura positiva e importante,
perspectivando as vantagens para a
Cidade Velha e Cabo Verde, pois, quer
do ponto de vista económico, cultural,
académico, político e social, a Cidade
Velha tem muito a ganhar, ajudando
na expansão económica do município.
“Essa candidatura primeiro tem que beneficiar
a Cidade Velha e, posteriormente, Cabo
Verde pode vir a ser beneficiada” (Candinha,
professora, 35 anos, 2008).
Um outro facto realçado por muitos
moradores locais é de que essa candidatura
poderá atrair mais turistas. Está-se, assim,
a reproduzir o que lhes foi transmitido.
“Não precisamos concorrer, já somos património”
(Joaquim, 25 anos, desempregado, 2008).
“O reconhecimento da Cidade Velha como
património da humanidade é importante, mas
mais importante não é o reconhecimento, mais
importante para nós é saber que a Cidade
Velha já é um património da humanidade
e, disto eu não tenho dúvidas, isto ninguém
precisa vir me dizer. Para quem já conhece
a história da Cidade Velha, para quem já
sabe que anteriormente a 1460 Cabo Verde
não existia, essa história de cinco séculos
não existia, o Povo e Nação de Cabo Verde
não existiam, nossa cultura viva, dinâmica
que antes não havia e hoje existe e se com a
existência da Cidade Velha tudo isso passou
a existir, o património da humanidade ficou
mais rico, e a forma como este património
foi construído. Houve cruzamento de povos,
várias etnias que vieram da África, elementos
de povos que vieram da Europa, sobretudo
de Portugal que cruzaram e resultou algo
novo de tal maneira que o crioulo que estou
falando agora não havia. Sem Cidade Velha,
o Brasil não seria como é hoje, do ponto de
vista económico, antropológico, plantas e
animais que foram levados para lá. A Cidade
Velha foi uma ponte que ligou o mundo, que
ligou o continente africano ao continente
europeu, americano e asiático. A Cidade
Velha contribuiu para a história e cultura
da América, Antilhas, Ásia. Tudo isso é
importante para a história da humanidade,
contribui para a importância patrimonial
da humanidade. Este reconhecimento só vem
valorizar quem o vai reconhecer” (Manuel
Veiga, Ministro da Cultura, 2008).
Muitos foram os fóruns feitos na Cidade
Velha como forma de encontrar apoios para
a candidatura. Poucos moradores locais
participaram. A crítica desses moradores
dirigia-se às autoridades:
“Convidam somente estrangeiros para
os fóruns para falar da Cidade, como se
ninguém daqui soubesse nada, como se nós
não pudéssemos participar para apresentar
algo sobre Cidade. Em tudo somos colocados
à parte, só nos apresentam o facto consumado,
depois de decidirem. Não me canso de levantar
a minha voz para dizer o que está mal”
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
(Pedro, funcionário público, 30 anos, 2008).
“Eu estava numa reunião na qual o Zé Maria
(Primeiro-Ministro) disse que não vamos
ganhar nada com património mundial porque
património não tem dinheiro para dar. É
uma placa que vai ser colocada aqui que vai
dizer que Cidade é reconhecida a património
mundial. Mas, eu penso que se for somente
uma placa, porquê tanto sacrifício, porquê
tanta contradição, guerra entre o Ministério
da Cultura, a população e a Câmara na
construção? Se for somente a colocação da
placa, vale a pena tanto sacrifício?” (Candinha,
professora, 35 anos, 2008).
“As pessoas não sabiam o que era património
da humanidade. Pensaram que a UNESCO
chegaria aqui com um automóvel cheio de
dinheiro e dividia com eles, que cada um
iria receber e fazer o que bem entender.
Explicámos que não era assim que iria
funcionar. Disseram que se Cidade Velha
conseguir o título de património mundial
não vão se interessar, que querem casa com
telha, betão e não respeitam os padrões”
(Charles Akibodé, Coordenador Científico
da Comissão de Preparação do Dossier de
Candidatura de Cidade Velha a Património
Mundial, 2008).
Algumas construções clandestinas e a
destruição dos monumentos, no passado,
foram considerados, na altura, entraves
para os especialistas da UNESCO.
3. As medidas arquitectónicas
e as acções de reabilitação de
casas do centro histórico
As casas degradadas da Cidade Velha
integram o sítio histórico, algumas com
acções de reabilitação e conservação,
assim como os arruamentos do centro
histórico, de forma a legitimar essa
candidatura. Pretende-se recuperar as
49
fachadas, substituir o betão armado pela
colocação de telhas de barro que foram
substituídas por betão armado, com o
financiamento da cooperação espanhola.
Destaca-se que desde a década de 90
proibiu-se fazer reformas nas casas da
Cidade Velha, que não seguiam o estilo
tradicional, cujos edifícios de dois ou mais
andares vão contra o ambiente histórico
que se quer criar e a política preconizada
pela UNESCO que analisa as condições
de candidatura a património mundial da
humanidade.
De facto, a Câmara Municipal da Praia,
em 1993, publicou um Edital n.º 4/93 de
27 de Abril de 1993, que define as normas
de construção civil respeitantes às áreas
que integram o património nacional de
Cidade Velha e a zona tampão. A partir
desse momento, delineava-se um campo
conflitual.
O facto de se ter essa limitação das
construções faz com que a população local
esteja apreensiva com essas medidas
arquitectónicas impostas. De acordo
com o Edital n.º 4/93 “são proibidas
construções novas e ampliações nas
localidades de São Sebastião, São Roque,
Largo, São Brás, Misericórdia, Rosário,
Laranjinha, Figueira, São Pedro e na
zona tampão” (CÂMARA MUNICIPAL
DA PRAIA, 1993). Determinam, ainda,
que “todos os edifícios construídos, no
âmbito destas normas, terão o nível de
rés-do-chão, independentemente da zona
da sua localização, com a excepção dos
prédios de comprovado valor histórico
e arquitectónico, nomeadamente os
sobrados” (CÂMARA MUNICIPAL DA
PRAIA, 1993).
Embora uma boa parte dos moradores
locais cumpra as normas de não ampliação
das casas (em altura e profundidade), o
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
que demonstra que as pessoas estão mais
sensibilizadas, elas não concordam com
essa proibição, visto que existe alguma
tensão entre o desejo de construir mais
casas e essa imposição, em contraponto
ao aumento do número dos membros da
família. Segundo o INE (2001) “os agregados
familiares da Cidade Velha vivem em
unidades de alojamento relativamente
exíguas. A este título importa referir que,
de cada 100 unidades de alojamento dessa
zona, cerca de 23 têm apenas uma única
divisão, 25 têm duas divisões, 20 têm
3 divisões e apenas 6 tem seis ou mais
divisões, quando os agregados familiares
dessa zona têm, em média, 5,2 pessoas.
Consequentemente, o número de divisões
utilizadas para dormir é reduzido. Cerca
de 44% dos agregados familiares utilizam
apenas uma divisão do alojamento para
dormir, e cerca de 53% utilizam 2 a 3
divisões para esse fim. Quase metade
(48.4%) das unidades de alojamento dessa
zona tem coberturas de betão armado,
cerca de ¼ é que tem cobertura de telha e
22,1% são de fibrocimento”. Os moradores
locais elaboram interpretações sobre a
sua situação:
“Não permitiram aumentar as casas para
fazer 1º andar. Sou contra a proibição de
construção porque os meus filhos não têm
como fazer mais obras. Reclamei mas não
deu em nada. Disseram-me que tapava a
vista do mar lá de Fortaleza” (D. Felisberta,
doméstica, 76 anos, 2008).
“Penso que antes de exigirem deviam criar
condições, com a criação de uma zona de
expansão ou para Santa Marta ou para
Achada Forte. Poderiam dizer que em baixo
na vila ninguém poderia construir para cima.
Tudo bem, se não puder fazer aqui, então
te dou um outro lugar para construíres.
Nascemos e encontramos nossos pais com esta
casa. Naquele tempo tudo era dentro desta
casa. Mas agora estamos a acompanhar o
desenvolvimento. Não é porque esta casa é
pequena e estamos a concorrer a património
mundial que devemos ficar aí, porque antes
esse espaço era sala de visita, quarto, sala
jantar, casa de banho, mas agora não dá.
Como Cidade Velha não tem terreno, deviam
dar às pessoas oportunidades de fazer 1º
andar e colocar telha. Não posso fazer em
cima para arrendar aos turistas, não tenho
assim espaço para restaurante. Desta forma,
só os espanhóis é que ganham” (Candinha,
professora primária, 35 anos, 2008).
“As pessoas dizem, é minha casa, o terreno é
meu, faço 2º e 3º andar. Há pessoas que estão
a fazer isso, basta ires lá e veres. Continuam
ainda. Há outras que querem transformar
Cidade Velha como Palmarejo. Um belo
dia verás a transformação de Cidade Velha
como Palmarejo. Estão mesmo a fazê-lo”
(Charles Akibodé, Coordenador Científico
da Comissão de Preparação do Dossier de
Candidatura de Cidade Velha a Património
Mundial, 2008).
Pretende-se ter ganhos com a vinda de
mais turistas, apostando em estruturas
de apoio ao turista caso lhes seja dada a
oportunidade de construir, tendo algum
benefício com o turismo. Contudo, a ideia
de se pensar numa zona de expansão é
recente:
“Só há pouco tempo tivemos a ideia de
criar uma zona de expansão e essa zona
é problemática por causa do lugar onde
será feita, mas a atribuição também será
problemática para quem se atribuir uma
casa nessa zona. Houve uma tentativa na
Cidade de tentar melhorar esta situação.
Demos às pessoas terrenos por aforamento,
terrenos que não podem vender. Essas mesmas
pessoas a quem demos terrenos, fizeram sua
50
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
casa, em dois dias vimos que eles venderam
o terreno para pedirem outro. Se não lhes
dermos outro, vão fazer prédio. O que é
engraçado é que damos o terreno, vendemno e com o dinheiro da venda fazem um 2º
andar na sua casa. Este é um caso. Não
é toda a gente que o faz. Há uns que não
pediram o terreno, tiveram dinheiro e fizeram
andar. Agora, com a zona de expansão será
uma política mais de distribuição de lote,
por isso tem que ser feito, rapidamente, o
recenseamento de quem vive lá. É por isso
que já fizemos várias reuniões, temos que
identificar casas problemáticas, pessoas que
precisam de um lote de terreno e pessoas
que precisam comprar um lote. Gerir uma
necessidade dessas é complexa” (Charles
Akibodé, coordenador científico da comissão
de preparação do dossier de candidatura de
Cidade Velha a património mundial, 2008).
“Há um interesse político quer do Governo,
quer da Câmara, no sentido de arranjar
zonas de expansão. Tendo esse espaço, sinto
que a pressão vai diminuir” (Martinho Brito,
Director de Salvaguarda do Património,
IIPC, 2008).
A esse respeito, um morador local
alerta que:
“Se fizerem uma zona de expansão para a
zona do Salineiro as pessoas vão dizer que
lhes tiraram de Cidade Velha para lhes
colocarem em Achada Salineiro. O único
lugar tão perto que as pessoas da Cidade
poderiam sair para ir é para Achada Forte.
Se forem aí, ainda, vão se sentir que são
da Cidade Velha. Para um outro lugar não
vão querer ir e ainda por cima ficarão com
raiva quando se lhes aborda sobre questões
patrimoniais” (Nilton, estudante, 24 anos,
2008).
A Câmara Municipal de Ribeira Grande
de Santiago participa neste debate, dizendo:
51
“As pessoas querem construir, mas esta
Câmara vai-se manter firme para defender
e preservar. É claro que temos que arranjar
alternativas. Não podemo somente impedir
as pessoas de construir e não lhes dar
alternativas. Temos que definir uma zona
de expansão. Aí, também o Governo tem
um papel importante porque a Câmara
em si, não possui terreno para dizer que
vai fazer expansão para uma determinada
zona. Há que ter expropriação ou negociação
com proprietários para poderem garantir a
expansão da Cidade. Tens que dar alternativas
para construírem num outro lugar, para
poderem preservar aqui. (Manuel de Pina,
Presidente da Câmara Municipal de Ribeira
Grande de Santiago, 2008).
Outros moradores locais criticam a
pouca fiscalização na construção das
casas. Outros partilham do discurso de
agentes estatais para fazer concessões
para se ver aprovada a candidatura a
património mundial.
“Somos conscientes que para entrarmos
a património temos que abrir mão, mas
teremos contrapartidas, mas isso não entra
na cabeça das pessoas” (Sérgio, funcionário
público, 33 anos, 2008).
A colocação de telhas4 constitui um
custo que, muitas vezes, não é suportado
pelas autoridades oficiais, mas por ela
exigida. Os moradores locais criticam essa
imposição. Por outro lado, no cenário das
casas, muitos são os que não se limitaram
a fazer, somente, mais um piso. Mesmo
com proibição, fazem mais um andar, o
que contraria a imagem do lugar que tanto
se quer construir. Outros casos revelam
4 Segundo o Edital n.º 4/93, “todos os edifícios
deverão ser cobertos de telha vermelha ou de palha.
Todos os prédios serão pintados ou caiados de branco
devendo as portas e as janelas serem pintadas com
cores tradicionais” (CÂMARA MUNICIPAL DA
PRAIA, 1993).
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
o não cumprimento da imposição.
“Pedi ampliação mas a câmara demorou a
responder-me, mas autorizaram-me. Quando
me deram a autorização, o Ministério
da Cultura mandou proibir, mas fiz na
mesma, mas recuando 10 metros. Fiquei
descontente, 10 metros de terreno é muito”
(Sérgio, funcionário público, 33 anos, 2008).
Embora com a divulgação das medidas
arquitectónicas, paralela à Rua Banana,
na Rua Carreira, encontra-se uma casa
de construção recente (2008), com cave,
que vai contra a arquitectura do local e
as normas impostas pelo Ministério da
Cultura. Não houve nenhum impedimento
dessa construção, tanto é que esta casa
já está quase pronta.
“Ao fazer a cave, porque na zona só havia
sobrados, se calhar destruíram os vestígios
históricos que estavam aí, que era a parte
mais rica da Cidade Velha, porque o pedreiro
não é formado em arqueologia para fazer
esse trabalho e ninguém diz nada” (Charles
Akibodé, Coordenador Científico da Comissão
de Preparação do Dossier de Candidatura de
Cidade Velha a Património Mundial, 2008).
Muitos são os moradores locais que
se unem contra a imposição de não se
fazer mais construções no centro histórico.
“Eles não se apercebem que o que tem mais
valor é sentir que a população está contente.
As pessoas contentes preservam para não
danificar. O Governo, na Praia decide e não
ouve a população” (Candinha, professora,
35 anos, 2008).
O discurso que aí se delineia prendese com a expectativa em melhorar as
suas condições habitacionais. As críticas
dirigem-se aos agentes estatais. Os
moradores locais estão conscientes de
que as proibições devem-se à atribuição
do estatuto de património mundial da
parte de agentes estatais:
“Devemos ter um discurso responsável, para
melhorar a situação e não colocar-lhe fogo.
Esta é uma tarefa de cada um de nós, é tarefa
de todo o cabo-verdiano porque se Cidade
Velha passar a património de humanidade
não será ganho daquele que estiver fazendo
1º andar, 2º andar ou 3º andar. Quer dizer,
beneficiará todos. Por isso, cada um de nós
tem que fazer um sacrifício. Há pessoas que
têm ideias de que todos os moradores sairão
da Cidade Velha para alugarem as suas
casas para os turistas, vão viver na zona de
expansão. A alma sairá da cidade e depois é
impossível transformar a Cidade Velha no
Hotel Praia Mar ou Hotel Trópico! Depois,
as suas raízes estão lá. Não poderás vender
a tua alma, tens que ficar aí, pertences ao
lugar, tens que viver aí e o ganho não acontece
num só dia, o ganho é milenar. Pensa nos
teus filhos, netos, bisnetos. É que se tiveres
um espaço e saberes que é teu, verás que
estarás num sítio histórico, milenar e tens
que ficar aí e respeitar os seus padrões. Temos
a realidade de Cabo Verde, de pessoas que
vivem fora, na Holanda, França, Suiça, que
querem fazer o mesmo estilo de casas do lugar
onde habitam. Estão pessoas na Cidade
Velha que vivem fora, que têm dinheiro e
que querem reproduzir essas casas, pouco lhes
importa a nossa estratégia de recuperação e
melhoramento de casas. Algo engraçado é que
umas batucadeiras cantaram uma música
dizendo que as pessoas de Cidade Velha são
poucas aí, as restantes são pessoas que foram
aí e, neste momento chamam muita gente
de rusga” (Charles Akibodé, Coordenador
Científico da Comissão de Preparação do
Dossier de Candidatura de Cidade Velha
a Património Mundial, 2008).
Se para Charles Akibodé a alma da
Cidade Velha encontra-se nas pessoas,
52
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
para o Presidente da Câmara Municipal
de Ribeira Grande de Santiago:“ Alma
da Cidade está nos seus monumentos”
(Manuel de Pina, Presidente da Câmara
Municipal de Ribeira Grande de Santiago,
2008).
Por outro lado, Charles Akibodé
percepciona que as pessoas devam ficar
nas suas casas. O então Presidente da
Câmara considera o seguinte:
“A solução é arranjar uma zona de expansão,
dar a todos um lote, dar aos idosos um lote,
dizer-lhes para construir aí, ajudá-los a
construir e fazer com que usem essa parte
antiga da cidade, em vez de usarem para
morarem, usarem para fazer negócio, alugar
aos turistas, etc. Isso faz com que libertem
suas casas que têm na Cidade” (Manuel de
Pina, Presidente da Câmara Municipal de
Ribeira Grande de Santiago, 2008).
Algumas são as transformações na
arquitectura dita tradicional local com o
intuito de dar resposta à procura turística
e, consequentemente, conforto ao turista.
Essas mudanças são percepcionadas,
positivamente, por alguns moradores
locais que beneficiaram de reabilitações,
embora outros critiquem as reabilitações
nas suas casas, o que tem gerado algumas
tensões e conflitos. Embora, ainda, sejam
poucos os que beneficiaram com obras
de requalificação5 em suas casas, muitos
ainda anseiam que, nas suas casas, sejam
feitas algumas reformas.
“Foram feitas obras na minha casa. Penso que
foi bom porque não tínhamos possibilidades
de fazer essas obras e agora vivemos melhor.
5 Apesar das normas de construção, segundo
o Edital n.º 4/93, “são autorizadas as obras de
remodelação, manutenção e conclusão das casas de
banho, cozinha, quartos interiores e de protecção de
zonas perigosas, dentro do perímetro das construções
já existentes” (CÂMARA MUNICIPAL DA PRAIA,
1993).
53
Ajudaram-nos a colocar betão, reboque e
deram-nos novas portas” (Rogério, estudante,
19 anos, 2008).
“Preciso arranjar esta casa porque preciso
tirar a telha, para colocar betão armado ou
uma outra cobertura porque a madeira já
está podre” (José, desempregado, 65 anos,
2008).
Se por um lado, o discurso oficial tende
para a preservação e salvaguarda, com
restrições arquitectónicas locais, muitos
moradores locais anseiam a modernização
das suas casas. Nessa linha de pensamento,
a contribuição de Pastor Alfonso (2003:
107, tradução minha) é importante no
sentido de que para este autor “em muitos
lugares diversos elementos patrimoniais se
estão modificando em função do turismo”,
apresentando assim exemplos da restauração
de antigas fachadas, que podem ser positivas
para a população local e para os turistas.
Contudo, outros reclamam a forma como
as primeiras intervenções foram feitas:
“Na minha casa eu já tinha feito parede, vieram
e colocaram a parte de fora de pedra. Só que
ficou para uma terceira fase a construção
da casa de banho, cozinha, disseram que
arranjavam a casa, colocavam água nas casas
que não a tinham, mas não fizeram nada.
Fizeram somente aquela parede, colocaram
quatro telhas, de longe as pessoas pensam
que fizeram alguma coisa” (Candinha,
professora, 35 anos, 2008).
Perspectiva-se que os moradores
locais tenham casa de banho e deixem
de defecar em lugares públicos, o que
constitui uma tentativa de higienização de
comportamentos, hábitos, impondo padrões
de urbanidade. Numa visita a casa de
um morador, pedi para utilizar a casa de
banho, mas disseram-me que infelizmente
não poderiam satisfazer o meu pedido
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
porque não o tinham, embora o número
de moradias com casa de banho venha
aumentando. De acordo com os dados do
INE (2001), “quase 2/3 dos alojamentos
não possuíam casa de banho, retrete ou
latrina e menos de 30% possuíam casa
de banho com retrete”. O QUIBB de 2007
diz que no concelho de Ribeira Grande de
Santiago, 25,7% das pessoas possuíam
casa de banho com retrete, enquanto 59,9%
não tinham casa de banho e utilizavam
latrinas. Segundo Charles Akibodé (2008),
“foram eles que pediram casa de banho
nas suas casas. Todos possuem latrinas.
À noite vão deitar o seu conteúdo no mar.
Já há muito tempo que pessoas estavam a
pedir isso”. Contudo, para os moradores
locais:
“Fui a uma reunião com pessoas do IIPC,
uma delas me disse que a população não
deve defecar na rua, que dá má imagem
e cria lixo. Imagina só, se as pessoas não
têm condições para terem casa de banho e
nem água, não lhes fazem casa de banho,
eles não têm outra solução a não ser fazer
necessidade onde costumam fazer. É preciso
que se lhes criem condições para depois exigir”
(Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008).
Para aqueles que vivem em condições
precárias, anseiam uma mudança na sua
condição de vida. Enquanto não lhes for dada
a possibilidade de ter uma casa de banho,
as suas práticas diárias, possivelmente,
continuarão a verificar-se.
“Existem conflitos por causa da proibição
de fazer varandas na parte de fora, porque
perde-se o que queremos, que não devemos
colocar betão nas casas. Eu espero que quem
dá essa ordem, Ministério da Cultura, IIPC,
ok, faz como bem entenderes, constrói tu! Já
coloquei betão, coloquei telha! Se tu queres
ver as casas bonitas com telhas, coloque
telha. Eu coloquei o que posso. Se não posso
colocar telha não coloco. Se posso colocar
betão que toda a gente me ajuda com uma
lata de areia, brita, eu coloco betão. Não
impeço que depois de eu colocar betão que
coloques telha porque o teu programa é
de colocar telha para todos verem bonito,
vermelho, coloque telha tu que precisas. É
isso que penso que devia ser a realidade
para todos verem porque se tu estás a querer
beneficiar a população, tens que a ajudar
com a sua pobreza. Exiges e não contribuis
para a exigência que estás a fazer. Dizem
que quem dá pão dá castigo, mas se tu não
dás pão não dês castigo! Está bem que não
quero que ninguém venha cá colocar mosaicos
em minha casa. Também o que digo? Eu
construo a parte de dentro, minhas amigas
e amigos vêem. De fora que me importa? Eu
não vivo na parte de fora da casa” (Carla,
funcionária pública, 40 anos, 2008).
No Bairro de São Sebastião 17 casas estavam
sendo alvo de um projecto de reabilitação
urbana e melhorias habitacionais, numa
primeira fase. Consta que o dono da obra
era o Ministério da Cultura, foi financiada
pela Agência Espanhola de Cooperação
Internacional para o desenvolvimento e,
que está orçada em 33.488.744$02 CVE.
A gestão da execução dessa obra estava
a cargo do IIPC. As casas beneficiadas
estavam numeradas a tinta, nas paredes,
antes de serem novamente pintadas no
decorrer das obras.
“Para que as suas casas fossem arranjadas,
as pessoas assinaram um papel. Querem
colocar telha vermelha em todas as casas.
Se Cidade conseguir entrar na lista do
património mundial vai ajudar muito,
penso que é bom, mas se não formos lutar
para entrar na lista do património mundial
também vamos perder, penso que não vale
a pena assinarmos algo e depois ficarmos
com a nossa casa empatada” (Joaquim,
desempregado, 25 anos, 2008).
54
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Alguns dos beneficiários não estavam
satisfeitos com as obras que estavam
sendo realizadas. Por isso, dirigiram
críticas ao Ministério da Cultura pela
forma como essas obras de reabilitação
estavam sendo feitas.
“Tiraram-me a cobertura da casa. Eu tenho
somente um filho que tem seis filhos. Vivemos
todos juntos aqui. Quando vieram mostrar,
o arquitecto começou bem, falou bem. Agora,
como querem fazer a minha casa? Tiraram
a cobertura, a parede está quase a cair e
não querem tirar. Querem só dar um jeito
para fazer a cobertura, que também não
quero. Estava degradada, mas não chamei e
nem pedi favores a ninguém. Disse-lhes isso.
Se for à casa de parentes pedir ajuda, vou
conseguir para fazer a cobertura. Deramme um grande atraso e os poucos bens que
possuo estão na casa de pessoas que estão
fora do País, mas quando vierem o que faço?
Onde encontrar dinheiro para a renda? Se
não vão arranjar a minha casa como quero,
para deixarem assim como encontraram.
Agora é tempo das chuvas, não posso esperar
mais porque se a chuva vier não tenho para
onde ir. Estou com esperanças neles. Agora
essa parede não dá para fazer um jeito e
colocar a cobertura por cima. É uma parede
que meus pais já encontraram assim. Já
danificaram a minha casa, estou na rua”
(D. Isabel, doméstica, 78 anos, 2008).
“Deviam arranjar a casa mais de raiz porque
tiram somente o reboco e o tecto, não estão
a ver as paredes que estão quase a cair”
(Rogério, estudante, 19 anos, 2008).
“Escolheram material de baixa qualidade,
colocaram pessoas exageradamente no trabalho
e sem nenhum controlo. Dizem que já não
podem ser feitas mudanças na casa, mas
como não fazer se utilizaram material de
baixa qualidade e tiveram que retirar a
parede e o reboco? Devem usar material
55
que perdure no tempo, para não terem que
fazer mais mudanças” (Nilton, estudante,
24 anos, 2008).
Devido a essa candidatura para o
reconhecimento da Cidade Velha como
património mundial, perspectivaramse vários projectos, nomeadamente, a
melhoria do centro de saúde, construção
de uma estrada que não passe pelo meio
da cidade, evitando que a população corra
riscos resultantes do aumento do fluxo
turístico caso venha a ser considerada
património mundial. Perspectiva-se, ainda,
a melhoria da escola e a criação de um
mercado funcional.
“Temos que ter um mercado para venda
de artesanato, devemos ter um mercado de
venda de produtos como verduras, muito bem
localizado para as pessoas. Tudo isto tem
que ser muito bem pensado e organizado.
Mas isso só poderemos fazer com a ajuda da
população” (Charles Akibodé, Coordenador
Científico da Comissão de Preparação do
Dossier de Candidatura de Cidade Velha
a Património Mundial, 2008).
“A nível da cultura vamos reivindicar que Cidade
Velha seja um palco cultural por excelência
na ilha de Santiago. Isso depende de nós, do
que formos capazes de movimentarmos, de
mobilizar. Quer dizer, de recuperar todos os
grupos tradicionais como batuque, tabanca,
teatro. A nível do artesanato é uma fonte
de renda e entendemos que com a visita de
turistas várias pessoas podem desenvolver
artesanato local. Queremos produtos daqui.
Então, há alguns projectos neste sentido
de promover cooperativas para desenvolver
o artesanato. Ainda ontem recebemos um
empresário aqui que quer trazer pessoas
do Brasil para vir dar formação, para que
as pessoas aproveitem as pequenas coisas,
para pintar as pedras do mar, por exemplo,
escamas de peixe, pele de animais, todos os
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
produtos para transformar em artesanato”
(Manuel de Pina, Presidente da Câmara
Municipal de Ribeira Grande de Santiago,
2008).
Agentes estatais apelam à produção
artesanal como sendo uma mais-valia
para o turismo, para a rentabilidade
local e uma forma de mercantilização
da cultura, denotando a sua dimensão
económica e cultural. Essa produção poderá
vir a potenciar o desenvolvimento local.
Considerações finais
No decorrer do processo de candidatura
de Cidade Velha a património mundial,
as expectativas eram positivas. Esperamse alguns ganhos, tanto materiais como
simbólicos. Se por um lado, o discurso oficial
tende para a preservação e salvaguarda,
com restrições arquitectónicas locais que
originaram construções clandestinas, muitos
moradores locais anseiam a modernização
das suas casas.
Embora uma boa parte dos moradores
locais cumpra as normas de não ampliação
das casas (em altura e profundidade), o
que demonstra que as pessoas estão mais
sensibilizadas, ele mostraram-se apreensivas
com essas normas, discordando delas por
não se lhes apresentarem alternativas.
Neste particular, notou-se alguma tensão
entre o desejo de construir mais casas e
essa imposição, em contraponto ao aumento
do número dos membros da família. Essa
tensão tem gerado alguns conflitos, que
poderão se intensificar. Essa proibição,
impede também que essas famílias possam
ter nas suas casas alguma estrutura de
apoio ao turista.
habitacionais, ter um espaço para os filhos,
porque a casa é pequena e a família é
alargada, e ter em suas casas alguma
estrutura de apoio ao turista, podendo
também ter ganhos com a vinda de mais
turistas.
Sugerem a criação de uma zona de
expansão para Santa Marta ou Achada
Forte, que não seja na zona de Salineiro
porque vão sentir que saíram da Cidade
Velha.
Critica-se que uns constroem e não
se faz nada e outros que não constroem
ficam prejudicados. Mesmo com proibição,
fazem mais um andar, o que contraria
a imagem do lugar que tanto se quer
construir.
Sugere-se que a população deve estar
satisfeita, para poderem valorizar e
conservar a cidade. Os moradores locais
estão conscientes de que as proibições
devem-se à inscrição da Cidade Velha
na lista do património mundial.
As pessoas esperam soluções e algumas
estão mais convictas que essas soluções
estão a demorar muito a chegar e que
a população não é ouvida, mas alguns
também estão desinteressados. Uns
valorizam o património cultural, enquanto
outros pensam mais nos benefícios daí
advenientes do que com a preservação.
As críticas dirigem-se aos agentes
estatais. Os moradores locais, o que
querem, é melhorar as suas condições
56
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Referências
DIAS, Reinaldo e AGUIAR, Marina Rodrigues (2002). Fundamentos do Turismo Conceitos, Normas e Definições. Campinas, São Paulo: Alínea.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA DE CABO VERDE (2001). Censo 2000.
Praia, INE.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA DE CABO VERDE (2008). Questionário
Unificado de Indicadores Básicos de Bem-estar. Praia: INE.
PASTOR ALFONSO, María José (2003). El Património cultural como opción turística,
in Horizontes Antropológicos n.º 20, Porto Alegre: PPGAS.
Publicações Periódicas – Publicações Oficiais
CÂMARA MUNICIPAL DA PRAIA (1993), Edital n.º 4/93, de 22 de Abril de 1993, que
define as normas de construção civil respeitantes às áreas que integram o património
nacional de Cidade Velha.
Decreto n.º 121/90, de 8 de Dezembro de 1990, B. O. N.º 49, declara o sítio histórico
da Cidade Velha património nacional de Cabo Verde. Praia: Imprensa Nacional.
Documentos
MINISTÉRIO DA CULTURA DE CABO VERDE (2008), Cidade Velha, Inscrição
no Património Mundial, 2009, Praia.
UNESCO (1972), Convención sobre la Protección del Patrimonio mundial, cultural
y natural.< http://www.cubaarqueologica.org/document/carta8.pdf >, acesso em 27
de Outubro de 2008.
57
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
EXPERIÊNCIAS ATLÂNTICAS: AFRICANOS E CRIOULOS
NA DINÂMICA DE CONSTRUÇÃO DOS QUILOMBOS DO
BORRACHUDO- BARRA DO RIO DE CONTAS, 1835
Valdinéa de Jesus Sacramento1
Resumo/Abstract
Nesta pesquisa, busca-se analisar a trajetória histórica dos Quilombos do Borrachudo,
durante a década de 1830, destacando a natureza das relações sociais, econômicas
e políticas, criadas nos universos dos quilombolas e partilhadas por outros agentes
sociais. O estudo desses mocambos permitiu examinar padrões de rebeldia escrava no
sentido mais amplo e aponta de maneira empírica para a gestação de uma organização
socioeconômica construída por comunidades de fugitivos e compartilhada por escravos,
libertos e livres das vilas de Camamu, Ilhéus e Maraú, no século XIX. Imprimindo
tons, cores e lógicas próprias à sociedade local e adjacências, africanos e crioulos,
na condição de fugitivos, conseguiram modificar as vidas daqueles que continuavam
no cativeiro.
Palavras-chave: quilombos; Barra do Rio de Contas; Bahia; economia quilombola;
resistência escrava.
This research analyzes the historical trajectory of the maroon communities the
Borrachudo, during the 1830, pointing out the nature of social, economical and
political relationships created in the universe of runaways and shared by the other
social agents. The research on maroon societies allowed to examine standards of
slave’s rebellion in a broad sense and denotes, in an empirical form, the gestation
of a social-economic organization built by fugitives communities and shared with
slaves, released and freemen coming from the small towns of Camamu, Ilheus and
Marau, in the 19th century. By printing shades, colors and logics as proper to the
local society, Africans and Creoles, Africans, in the condition of fugitives, achieved
to change the life of those who continued in captivity.
Keywords: maroon societies; Barra do Rio de Contas; Bahia; maroon economy;
slave resistance.
1 Valdinéa de Jesus Sacramento é historiadora (UESC), Mestra em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e
bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
59
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
1. Nota introdutória
Os estudos atinentes à rebeldia escrava
baiana têm apontado o sul da Bahia como a
região que mais experimentou a formação
de quilombos. Contudo, essa riqueza de
experiência não se traduziu numa farta
literatura sobre o assunto. Muito pelo
contrário, a historiografia sul-baiana
sempre deu destaque à figura dos coronéis
do cacau, vistos como desbravadores e
responsáveis pela ascensão econômica
da região.
Mitos e realidades à parte, é possível
dizer com ênfase que a escravidão negra
foi importante na Comarca dos Ilhéus, e
que a participação dos africanos e seus
descendentes foi muito ampla, não se
limitando apenas a compor a mão-deobra local. Nesse sentido, o presente texto
traz algumas reflexões desenvolvidas ao
longo da dissertação, por mim defendida
na Pós-Graduação em Estudos Étnicos
e Africanos, intitulada “Mergulhando
nos Mocambos do Borrachudo – Barra
do Rio de Contas, séc. XIX”. Trata-se de
um estudo apoiado, em grande parte, em
fontes inéditas, acerca da mobilização
quilombola a partir da experiência dos
Quilombos do Borrachudo, em Barra do
Rio de Contas, atual Itacaré, nas primeiras
décadas do século XIX.
Neste artigo centralizo a discussão
nas práticas repressivas empregadas
pela classe senhorial e autoridades sulbaianas na destruição dos quilombos
que surgiram ao norte da Comarca de
Ilhéus. Na sequência procuro ressaltar as
principais representações dos Quilombos
do Borrachudo presentes nos discursos
oficiais, retroalimentada pelo haitianismo
e pelo Levante dos Malês. Constitui-se,
portanto, de uma reflexão histórica acerca
da mobilização quilombola levando em
consideração a natureza das relações
sociais, econômicas e políticas criadas
nos universos dos fugitivos e partilhada
pela sociedade envolvente.
2. A Comarca de Ilhéus e seus
mocambos
Enquanto em Salvador e Recôncavo
a rebeldia era marcada principalmente
pela grande presença de cativos africanos,
geralmente através de revoltas organizadas
a partir de filiações étnicas; no sul da Bahia,
a face rebelde da escravaria significou a
continuidade de uma prática de formação
de mocambos/quilombos iniciada em
séculos precedentes. As vilas que mais
experimentaram a incidência dessas
instituições foram os distritos sulinos
de Camamu, Ilhéus, Cairu e Barra do
Rio de Contas (vide mapa 1).
Nas matas de Cairu, de Camamu, Rio de
Contas e de Ilhéus nunca deixaram de existir
tais coios de escravos fugidos, apesar de,
por muitas vezes, serem eles destruídos e
aprisionados os seus moradores. Logo se
refaziam, e entravam os negros de novo
a apavorar as vilas, fazendas, engenhos e
roças. Nas matas do distrito de Barra do Rio
de Contas existia agora, por alturas do ano
retrocitado, grande número de quilombolas,
que emparceirados com desertores andavam
hostilizando os moradores dos lugares mais
ermos, assaltando os viandantes, e os escravos
(CAMPOS, 2006: 217).
Nessas localidades, o problema parecia
incomumente grave, superando até os
distritos açucareiros do Recôncavo com
seus plantéis de médio e grande porte e
com maiores exigências de trabalho, vistas
como propulsoras de resistência escrava.
Diversas expedições foram enviadas para
a região sul-baiana, como as de 1663,
1692, 1697, 1723, 1806 e 1835, a fim de
60
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
destruir e/ou exterminar as atividades
de comunidades de fugitivos. De fato,
esse número é significativo e sugere a
dificuldade de tal empreitada.
Paralelamente ao crescimento e
proliferação de mocambos na Comarca
de Ilhéus, foram organizadas políticas
voltadas à construção de um aparato
policial-militar, datado do final do século
XVII, cujo objetivo era o de combater e
perseguir escravos fugidos. Essas ações
coincidiram com o desfecho das atividades
expedicionárias de paulistas – pelas quais
se dispersaram os índios do sertão da
capitania aos quais os quilombolas algumas
vezes poderiam pedir apoio e proteção. Em
Camamu, esse aparato pode ter-se iniciado
61
em 1669, quando a Câmara emitiu um
documento pedindo ao Governo-Geral a
criação de uma “Companhia de mulatos
forros, mamelucos, mestiços e índios” com
o intuito de combater “gentios bravos” e
mocambos. Na vila de São Jorge dos Ilhéus
foi criado, em 1696, o posto de “Capitãomor das entradas dos mocambos e negros
fugidos”, que sinalizava explicitamente
a presença de fugitivos e quilombos nos
arredores da vila e a intenção de darlhes combate1.
1 Estes e outros aspectos relacionados ao surgimento
de aparelhos de repressão com o intuito de coibir e
perseguir escravos fugitivos e quilombos, na Comarca
de Ilhéus, podem ser encontrados no seguinte
documento: APEB, Ordens Régias, v. 4, 1696–1697,
doc. 50, 19.11. 1696.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
À medida que aumentava o número de
escravos fugidos e de mocambos, vários
postos de combate e repressão foram
criados e cartas-patentes emitidas. Ainda
assim, na prática efetiva esse aparato
repressor parecia muito mais constituir
uma “Militância de bobagem. Os Corpos, os
terços ou regimentos só existiam em nome,
em esboço; sem sombra de disciplina, se
conseguiam alguns soldados, nas sedes
das vilas. Simples pretexto para nomeação
de oficiais” (CAMPOS, 2006: 276-277).
Apesar das medidas de repressão,
os quilombos continuaram a pontilhar
em diversas partes da comarca. Em
1692, Camamu foi atacada por fugitivos
aquilombados, causando pânico em
toda a região. Esse levante contou com
a participação de mais ou menos cem
negros e foi liderado por cinco mulatos,
que adentraram a cidade, mataram alguns
homens brancos, sequestraram mulheres
e crianças e fizeram várias pilhagens nas
roças. Lara de Melo dos Santos concluiu
que fatores conjunturais e específicos à
região podem ter criado condições favoráveis
para o levante, tais como: “permanente
instabilidade militar na região, além de
rotineiras desavenças entre proprietários
locais – opondo jesuítas e lavradores pelo
controlo e uso dos índios e das terras e o
aumento do trabalho escravo” (SANTOS,
2004: 92).
A década de 1820 parece ter sido
um momento propício para as fugas e
formação de novos mocambos, pois notícias
a respeito destes eram constantemente
direcionadas à capital da província. Em
1827, a câmara de Camamu, argumentando
em defesa dos interesses de lavradores e
da comunidade em geral, informava sobre
o “iminente perigo de ser invadido por
bando de escravos fugidos, aquilombados
nas matas desta vila” e a necessidade
premente de armas para combatê-los.
Neste documento, enviado ao governador,
também era explicitada a ocorrência de
insultos, roubos e mortes perpetrados
pelos quilombolas a alguns residentes
daquela vila. O lavrador e capitão-mor
Arcângelo teria tido sua fazenda saqueada
e vivenciado confrontos físicos com os
fugitivos; o senhor Manuel Ferreira Borges,
da vila de Santarém, teria tido 14 de
seus escravos em fuga; José Fascio, de
Camamu, 12 escravos fugidos, e na mesma
vila, as outras fugas podiam variar entre
três e quatro. Como a Câmara não obteve
auxílio do governo, as autoridades locais
teriam arregimentado, na Comarca de
Ilhéus, um grupo de sessenta homens
conduzidos por um oficial miliciano para
o combate aos quilombos, na mata.
Os poucos registros dessa expedição
afirmam que “alguns [fugitivos] procuraram
a casa de seus senhores, e por algum tempo
cessaram os roubos e as mortes”. Depois,
registra-se que “não durou, porém, muito a
dispersão dos fugitivos: eles se congregam:
o quilombo se povoa e torna um asilo”,
conforme opinavam os vereadores de
Camamu. Nesse sentido, a documentação
acaba sinalizando a pouca eficiência da
repressão, uma vez que, com seus ritmos,
direções e estratégias próprias de resistência,
os quilombos subsistiam e podiam ampliar
suas formas de organização2.
Para além de considerar a dinâmica, a
intensidade e a extensão desses quilombos,
não se pode subestimar o poder de articulação
dos fugitivos e a leitura própria sobre
o melhor momento ou contexto para
empreenderem suas fugas. João Reis
pontua que pelo menos os primeiros anos
da década de 1820 foram caracterizados por
“revoltas de caserna e tumultos populares
2 APEB, Atas da Câmara de Camamu, maço 1282,
Doc. 28/04/1827.
62
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
antilusitanos, além das divisões dentro da
classe dominante sobre o encaminhamento
político da descolonização e criação do
Estado Nacional” (REIS, 1979: 289).
Em Barra do Rio de Contas, a
emergência de quilombos foi registrada
em 1736, portanto, quatro anos após a
fundação da vila. Uma outra experiência de
resistência escrava foi registrada em 1806,
quando o governador da Bahia, o Conde da
Ponte, enviou uma tropa punitiva contra
quilombolas e acoitadores de escravos
fugitivos. A trajetória histórica dessa
vila – assim como das vilas contíguas –
seria marcada pela presença constante
de mocambos, ao mesmo tempo que se
dava a expansão da agricultura.
3. Mergulham mocambos nos
mangues molhados: na trilha do
Borrachudo
Em 1835, enquanto na capital da província
baiana todos os esforços estavam dirigidos
para os interrogatórios e medidas punitivas
aos integrantes do Levante Malê, no Sul
da Bahia e em particular na Comarca de
Ilhéus, as autoridades se empenhavam
em desbaratar uma aglomeração de
quilombos nas florestas da vila da Barra
do Rio de Contas. Uma grande expedição,
composta por oitenta praças sob o comando
do Alferes Guilherme Frederico de Sá
Bittencourt e Câmara, dava cabo dessa
aglomeração – núcleos de resistência,
sob as denominações de Colégio Novo,
Colégio Velho, Sabura, Retiro Alegre,
Santo Antônio do Bom Viver, Corisco e
Coronel –, denominada de “Quilombo do
Borrachudo”, ou “Quilombos do Borrachudo”,
como se encontra registrado em alguns
documentos da época.
Problematizando em torno de possíveis
significados do vocábulo “Borrachudo”
63
verifica-se algumas conexões plausíveis.
A primeira refere-se ao nome de um
mosquito simuliídeos, muito comum na
Mata Atlântica, principalmente, em terras
baixas e alagadiças. Ora, uma simples
averiguação sobre a situação geográfica
dos mocambos, notaria, de imediato, que
pântanos e mangues, juntamente com o
rio de Contas e seus afluentes, margeavam
os acampamentos dos fugitivos. Mas se
tal relação não for significativa, encontrase nas características do mosquito um
apanhado de acepções que, no mínimo, são
curiosas, quando associadas às diversas
formas de atuação dos quilombolas. De cor
negra, sorrateiro e dado à invisibilidade,
o borrachudo, costuma pegar de surpresa
as pessoas desavisadas. Assim como o
borrachudo-mosquito, os membros do
borrachudo-quilombo costumavam agir
obedecendo a algumas regras práticas –
tais como imprevisibilidade, discrição e
agilidade – quando praticavam razias
nas fazendas, roças e engenhos da Vila
e adjacências.
Durante a década de 1830, as câmaras e
os juízes da vila da Barra do Rio de Contas
e de outras vilas vizinhas emitiram dezenas
de ofícios aos sucessivos governadores,
exigindo medidas efetivas para destruir os
quilombos próximos às margens do Rio de
Contas. Ainda assim, a medida punitiva
que chegou àquela vila não logrou êxito
total, resultando tão-somente na prisão de
39 fugitivos e na morte de alguns, tendose a maioria dos revoltosos dispersado.
Não se tem conhecimento de quando
se iniciou o processo de formação dos
Quilombos do Borrachudo. Contudo, a
ocupação quilombola nessa localidade
pode ser constatada a partir de dois
documentos contemporâneos: o primeiro
de 1823, quando a Câmara de Ilhéus
participava e ao mesmo tempo pedia
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
ajuda para apreender nas matas do Rio
de Contas “um lote de escravos fugidos”,
que andavam atacando as pessoas que
transitavam por terra das vilas do Norte;
o outro data de 1824 e, dessa vez, seria
a Câmara da Vila de Barra do Rio de
Contas que informava ao Presidente
da Província sobre a atuação na vila
de aquilombados oriundos de diversas
partes da Comarca, a maior parte deles
pertencentes ao plantel do Engenho de
Dona Ana, da vila de Ilhéus3.
Nota-se que as florestas próximas às
margens do Rio de Contas se tornaram,
desde longa data, um espaço propício
para a atividade quilombola. Além da
configuração geográfica composta de morros
e mangues, existiam alguns poucos engenhos
e lavradores de mandioca que, muitas
vezes, eram fundamentais para as trocas
mercantis efetuadas pelos quilombolas.
Os documentos não permitem afirmar de
maneira explícita, mas não é impossível
que as experiências de ocupação quilombola
de 1823 e 1824, nas margens do Rio de
Contas, já representassem as bases dos
quilombos do Borrachudo.
Nos primeiros anos da década de 1830,
tornaram-se conhecidos das autoridades das
vilas da Comarca de Ilhéus, e principalmente
da vila em questão, os lugares onde se
estabeleciam os quilombos do Borrachudo.
Em 1833, o juiz de paz Rafael José Setúbal
informava que
Há tempo, que tem constatado na Villa da
Barra do Rio de Contas do sul, onde exerço
o lugar de Juiz de Paz, que aparece uma
imigração de escravos fugidos crioulos e
Africanos, que se tem introduzido nas matas
da Villa para o distrito de Ilhéus, e eu,
quanto em mim tem estado, tenho feito as
3 APEB, Atas da Câmara de Barra do Rio de
Contas, maço 1254, Doc. 13/03/1824.
diligências precisas para obstar todos os
males, que pudessem causar tais salteadores,
e para conseguir a certeza dos lugares, em que
eles existam [...] Com efeito, fui certificado e
informado de que eles, em número maior de
cem, existem em três mocambos em diferentes
lugares distantes uma ou duas léguas, e
outro uma e mais [...] (APEB, Judiciário,
Barra do Rio de Contas, cx. 744, maço 2246,
Doc.21/03/1835 ).
Neste ofício, o discurso empregado
pelo juiz de paz projeta-se no intuito de
estabelecer a ordem na vila da Barra do
Rio de Contas. Não se sabe se a distância
apontada no ofício se refere à de um
quilombo para o outro ou à localização
dos quilombos em relação à sede da vila.
Apesar de algumas imprecisões, estas e
outras informações sobre os Quilombos
do Borrachudo, destinadas à capital da
província, tornaram-se frequentes. Isso
deveu-se principalmente à dificuldade de
destruir tais mocambos.
Em 09 de agosto de 1834, nas sessões da
Câmara de Ilhéus, não se falava em outro
assunto: os quilombos do Corisco, Colégio
Novo, Colégio Velho, Sabura, Retiro Alegre,
Santo Antônio do Bom Viver e Coronel já
se tornavam um problema que merecia
medidas efetivas. Nesse intuito, a Câmara
elaborou uma representação exigindo do
governo providência emergencial. Consta
no documento que esses mocambos estavam
organizados a ponto “de haverem formado
entre si juízes de paz” e que para efetuar
as investidas sobre eles era necessário o
auxílio de oitenta botocudos domésticos,
que estavam sob a liderança do Padre
Manuel Fernandes da Costa, vigário da
Missão da Conquista da Ressaca, e de
vinte “bugres” sob a administração do
Frade Ludovico de Leorne4.
4 APEB, Câmara de Ilhéus, maço 1316, Doc.
09/08/1834.
64
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
A guerra promovida pelas autoridades
municipais contra os Quilombos do
Borrachudo parecia não ter fim; as várias
tropas punitivas domésticas enviadas
não logravam êxitos. Agora era preciso
ajuda de fora da Comarca. Meses depois,
o Presidente da Província informava à
Câmara de Ilhéus que as providências
já tinham sido tomadas levando em
consideração as medidas apontadas pela
dita câmara. No entanto, as medidas não
foram consolidadas naquele mesmo ano.
Mas a vila de Barra continuou a enviar
ofícios para o governo, informando sobre
arrombamentos de propriedades, furtos,
roubos e abandono de fazendas pelos seus
proprietários, assim como o fizeram Dona
Ignácia de Loyola e Menezes, Antônio de
Villas Boas e Moraes, Bernardino José
de Magalhães e seus irmãos, dentre eles,
Alexandre de Villas Boas.
Em abril de 1835, dados mais precisos
sobre rotas de fugas de escravos das vilas
do Norte, que seguiam em direção aos
Quilombos do Borrachudo, foram fornecidos
por autoridades locais, que, ao perceberem o
envolvimento da escravatura, já começavam a
temer uma possível “insurreição quilombola”
na região. Assim parecia constatar o juiz
de Paz de Maraú Manuel Pereira:
Pesando sobre mim o dever de cooperar a
bem da segurança e tranquilidade desta Vila,
e vendo-a [...] todo o dever acometido pelos
insurgentes reunidos não só nas matas da
Vila da Barra do Rio de Contas, [...], em o
Quilombo do lugar denominado o Borrachudo,
mas ainda pelos de outros situados nos de
outras Vilas desta Comarca, e dispostos, por
já terem recente mesmo aparecido em grupos
atacando as casas de alguns fazendeiros
[...] aquela corporação inimiga pela fuga
de avultado número de escravos desta e
mais vilas da Comarca, e mesmo a aparição
de um saveiro indo de quatro remos, mas
65
encontrado já sem eles [...] e barcos que todos
dentro da barreta do Rio Piracanga que deve
prestar [para as fugas de escravos] da Vila
sobredita [...]. (APEB, Juízes, Maraú, cx.
808, maço 2476, Doc.20/04/1835).
O juiz informou com detalhes, ao governo
da capital baiana, que os escravos fugidos
de Maraú e de outras vilas seguiam o
curso do Rio Piracanga - uma das vias
naturais de acesso à desembocadura do
Rio de Contas – partindo em direção
aos quilombos presentes nas matas
da vila da Barra, num lugar chamado
Borrachudo. Através de saveiros e barcos,
com a cumplicidade de barqueiros ou com
embarcações roubadas, muitos escravos
desembarcavam e seguiam suas rotas
de fugas.
Essas informações corroboraram
com as constatações feitas, em 1834,
pelo juiz Rafael José Setúbal sobre a
existência de possíveis ligações desses
fugitivos com outros escravos da região
e com pessoas livres. Consternado com
tais relações, o sobredito juiz não deixou
de mencionar, em sua narrativa, o que
para ele efetivamente representava essa
dinâmica entre quilombolas e sociedade
envolvente, no que diz respeito à quebra
da manutenção da ordem escravista: de
um lado, os quilombos, na condição de
inimigos “externos e declarados”; do
outro lado, a presença de pessoas livres
ou cativas, que, fornecendo todos os bens
necessários para o bem-estar dos fugitivos
se enquadravam na condição de inimigos
“internos e occultos”, informando, assim,
a natureza clandestina e ilegal dessas
ligações.
Da fluidez com que ocorriam as relações
sociais estabelecidas entre os setores escravos
e livres, depreende-se, em parte, a crítica
mordaz do juiz Rafael e, por extensão, de
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
seus pares no cenário da escravidão. A
política estatal, desde o início do processo
colonizador, foi realmente projetar uma
sociedade em que os setores sociais fossem
hermeticamente fechados, e para efetivar tal
projeto, recorreu-se “à criação de sistemas
sociais marcados por diferentes patamares
de status, diferentes códigos de conduta
e diferentes representações simbólicas
em cada setor.” (MINTZ, 2003, p. 23) A
questão fundamental é que a sociedade
tal como foi projetada através de leis,
códigos e condutas, não se consolidou.
Esse ideal de sociedade fazia provocar uma
série de contradições sociais perceptíveis
e vivenciadas por pessoas livres, escravos
e libertos.
4. A Expedição de 1835: os
sentidos e significados de uma
repressão
A prática de repressão aos mocambos,
no Brasil e em várias regiões da América,
incluía, dentre outros elementos, a reunião
de uma tropa e de meios necessários para
sua atuação e manutenção. O grande
problema é que essa preparação não era
uma tarefa fácil. Para se efetivar uma
diligência dessa natureza, era preciso
obter recursos para prover a tropa e o
pagamento dos soldados. Outro obstáculo
dizia respeito à mobilização da tropa, pois,
normalmente, os destacamentos locais
eram diminutos. No entanto, esse era o
preço com que senhores e autoridades
teriam que arcar.
O apoio do governo provincial, que chegou
à vila da Barra do Rio de Contas no mês
de maio, consistiu no envio de quarenta
armas, mil e duzentos cartuchos, além
do comandante da expedição – o alferes
Guilherme Frederico de Sá Bittencourt e
Câmara. Os senhores da vila – alguns deles
com escravos aquilombados contribuíram
com um total de 337$000 (trezentos e
trinta e sete mil réis). Com este valor
se compraria em 1820 um escravo, e, em
meados de 1830, pagaria um aluguel de
um casebre. No mais, foi requisitada ajuda
das vilas de Ressaca, Ferradas e Maraú, e
da sede da Comarca de Ilhéus. Resolvidos
esses problemas, outros apareceram5.
Um dos entraves vivenciados pelas
autoridades na consolidação da expedição foi
a ausência de tropas auxiliares constituídas
por indígenas. Estava claro, para os senhores
da vila e para seus pares, a importância
de arregimentar “de preferência mateiros
de Ilhéus, vinte bugres de Ferrada e vinte
mestiços e dois índios da Ressaca” para
que a expedição, desta vez, lograsse êxito.
Segundo Schwartz (2003), a mobilização
de indígenas aldeados para engrossar
as tropas militares fazia parte de uma
política colonial de acentuar as hostilidades
entre comunidades indígenas e africanos
e seus descendentes.
De acordo com Freitas & Paraíso
(2001), na Comarca de Ilhéus, ao longo
do período colonial, vários aldeamentos
foram formados e mobilizados no intuito
5 Esses valores foram calculados tomando como
referência os estudos realizados por João Reis. In.
REIS, J.J. Rebelião Escrava no Brasil: a história do
levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense,
1987, sobretudo a primeira parte do texto que
retrata a conjuntura econômica e política da Bahia
Oitocentista. Para suprir as tropas repressivas,
cooperaram as seguintes pessoas: Rafael José Setúbal,
com mil réis; Manuel Martins de Lima, oitenta mil
réis; João Martins de Lima, cinquenta mil réis; Dona
Ana Joaquina do Espírito Santo, cinquenta mil réis;
Gonçalo Antônio da Soledade, quinze mil réis;
Estevão Pereira Nobre, mil réis; Vicente Martins,
dez mil réis; João Lourenço e sócios, trinta mil réis;
Manuel Ferreira de Almeida, dez mil réis; André Jose
de Sousa, vinte mil réis; Miguel Travassos de Lima,
vinte mil réis; Alexandre de Villas Boas, vinte mil réis;
Anselmo Gomes da Fonseca, dez mil réis; Francisco
dos Santos Borges, dez mil réis; José Gomes de
Barros, dez mil réis (APEB, Juízes, Maço 2246, Doc.
21/03/135).
66
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
“de fornecer mão-de-obra aos colonos”
e, sobretudo, “usar os aldeados como
combatentes dos índios dos sertões”. É
nesse sentido que se pode entender o pedido
do Marquês de Valença ao ouvidor de
Ilhéus, o desembargador Francisco Nunes
da Costa, para que se restabelecesse o
aldeamento de Nossa Senhora da Conceição
dos Índios Grên, no rio Funil. Esse pedido
foi feito em 1782 e visava proteger os
transeuntes dos ataques dos Pataxós na
nova estrada que ligava Barra do Rio de
Contas a Cairu e Camamu.
Na Bahia e em Pernambuco, a
prática de mobilizar aldeamentos contra
quilombos começou no século XVI e nos
séculos XVII - XVIII já era constituída por
uma tropa regular. De modo, que, com o
passar do tempo, as tropas antiquilombos
ganhariam outras feições, incluindo além
de indígenas, também negros, mulatos e
brancos. Constituíram, portanto, tropas
mais mestiças. Um dos exemplos mais
conhecidos foi o do batalhão composto
por homens pardos, mulatos e indígenas,
comandado por Henrique Dias, com intuito
de combater holandeses e, mais tarde,
operar na destruição dos Quilombos de
Palmares (GOMES, 2003; SCHWARTZ,
2003).
Em Barra do Rio de Contas, na expedição
de 1835, a tropa auxiliar formada por
indígenas foi requerida pelas autoridades
municipais e pelo governo da capital.
Entretanto, através do oficio do Juiz
Miguel Travasso, vê-se que esse pedido
de ajuda não foi acatado:
Tendo eu oficiado em vinte seis de Agosto ao
Frade Ludovico de Leorne requisitando-lhe da
parte desse Governo o auxílio de vinte Bugres,
ou indígenas sob sua administração, não me
foram fornecidos, sob o pretexto privado de
receios da [...] dos aquilombados, ou de algum
67
que no caso de não serem vencidos, ou de
algum que no caso contrário escapulisse [...].
Igualmente me não foram prestado os vinte
Mestiços e Dois Índios que exc. Antecessor
de Vossa Excelência ordenara ao Juiz de
Paz da Ressaca de nos conferir em auxilio
da Força e nem até hoje tive o desengano.
(APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, cx
744, maço 2246, Doc. 15/06/1835).
A ausência de auxiliares indígenas e
a justificativa do frade Ludovico Leorne
de que os nativos sob sua administração
temiam represália dos aquilombados
suscita algumas considerações6. Não
se tem certeza se, de fato, o discurso de
Leorne expressou o receio dos aldeados.
De todo modo, como foi visto, não há como
desconsiderar as rivalidades existentes
entre índios e negros. Evidências menos
ambíguas sobre a atitude do frade frente
aos indígenas parece esclarecer, ou talvez,
apontar os reais motivos da ausência dos
aldeados em fazer parte da tropa punitiva:
Solicitando arrecadar não só paramentos e
alfaias religiosos, como restos de ferramentas,
roupas e quinquilharias já bem danificadas
que tendo recebido um frei João Evangelista
Potrier uma aldeia que não se realizou no
lugar chamado Bouqueirão ficaram por sua
ausência em poder de um crioulo Jacinto,
que nem garantia oferecia. Entregues a
aquele Reverendo Missionário esse resto de
ferramentas, roupas e quinquilharia para
6 A aldeia a que o juiz se referiu no ofício
foi a de São Pedro de Alcântara, no sítio das Ferradas.
Sua criação, em 1816, pelo capuchinho Ludovico de
Leorne fazia parte de um projeto de integração da
Comarca de Ilhéus com as áreas centrais e às regiões
limítrofes da Província da Bahia. Os aldeados ao
se dedicarem à cultura de produtos de subsistência
acabavam atendendo às reais necessidades de
tropeiros e viajantes que circulavam entre a estrada de
Ilhéus e a Vila Imperial da Conquista, hoje, Vitória da
Conquista, o que possibilitaria a ligação da Província
da Bahia com a de Minas Gerais. Vide (WIEDNEUWIED, 1940:.357)
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
distribuir com os indígenas da aldeia. (APEB,
Juízes, Comarca de Ilhéus, maço 2395-1).
A correspondência enviada à capital
da província pelas autoridades de Ilhéus
parece evidenciar os sérios problemas
que o capuchinho e os aldeados estavam
enfrentando. Assim, continuou até meados
de 1840. Nesse sentido, é muito provável
que a negação do pedido de ajuda fosse uma
resposta à política do governo que exigia
produção no aldeamento, mas não atendia
às reais necessidades dos indígenas no
que diz respeito aos recursos financeiros
e de segurança, condições imprescindíveis
para a fixação do homem à terra.
Outros fatos ocorridos e documentados
em Barra do Rio de Contas mostram que
a postura de indígenas em não querer
fazer parte das tropas repressoras pode
ter procedência se forem considerados
os conflitos entre as autoridades e os
aquilombados. Em maio de 1835, o Juiz
Bernardino José de Magalhães e Aragão,
enviou uma expedição de dez homens
contra os membros do Quilombo do Corisco,
uma investida que resultou na prisão
tão somente de “um negro, uma negra
e uma cria”. A atitude inconsequente do
juiz – assim foi vista pelos seus pares
– custou-lhe muito caro. Numa postura
de represália, o dito juiz teve sua casa
arrombada, saqueada e, vivenciou momentos
de enfrentamento físico com os quinze
negros, dos aquilombados. O outro caso
de desagravo ocorreu, em 1834, quando
um grupo de aquilombados invadiu a casa
que funcionava como cadeia resgatando
alguns companheiros presos, além de atos
de hostilidades às autoridades presentes.
É possível, também, entender a
ausência dos indígenas de Ferradas e
Ressaca como uma expressão silenciosa
de solidariedade com os quilombolas do
Borrachudo, já que a vida destes e daqueles
não se resumia a hostilidades. Naquela
altura, esses indígenas aldeados, tal como os
quilombolas, eram camponeses envolvidos
com a produção de alimentos e, de certa
forma, como salienta Gomes (2005, p.
23), “a luta dos quilombolas enquanto
resistência escrava pode ter significado
a continuidade da resistência indígena”.
A escolha de auxiliares indígenas nas
campanhas contra os quilombos se dava pelo
seu conhecimento e destreza em adentrar
em campo inimigo, desvendando o seu
sistema de defesa.
Sem índios e sem mestiços, a solução
encontrada pelas autoridades de Barra foi
utilizar as informações do escravo de Dona
Ana Joaquina do Espírito Santo – por sinal,
antigo morador de um dos quilombos – o
crioulo Joaquim, que ajudou na localização
dos quilombos e das armadilhas (estrepes
e fojos) construídos pelos quilombolas.
Outros problemas surgiram durante o
processo de formação da tropa, inclusive
envolvendo desordens de militares que
resistiam em cooperar com a expedição.
Notificado pelos juízes do 1º e 2º distrito da
Vila, o Presidente da Província ordenava
que pessoas da localidade com idade acima
de dezoito anos fossem recrutadas e, se
necessário, era-lhes permitido “empregar
a força” em relação aos Guardas Nacionais
que se negassem a prestar auxílio a tal
empreitada.
Muitas vezes a apatia desses militares
estava diretamente ligada ao baixo soldo,
que, em muitas campanhas antiquilombos,
nem mesmo existia. Mas também podia
representar uma atitude de repulsa à
atividade de perseguir escravos fugidos.
Um fato ocorrido em Ilhéus permite pensar
nessa possibilidade. Em 1824, quando
houve a insubordinação da escravaria
do Engenho de Santana, o Presidente da
68
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Província enviou uma força composta por
oficiais e milicianos de Valença e Santarém,
resultando na prisão de alguns poucos
escravos e na dispersão de outros nas
matas. Diante da exigência do ouvidor
Mascarenhas, de que se dessem batidas
no mato, os militares se insubordinaram
e, entre os desaforos que disseram ao dito
ouvidor, estava o de que “não eram capitãesdo-mato para prender negros fugidos”
(CAMPOS, 2006: 333)7. Outra hipótese,
bastante apropriada para este caso, é a
de que militares tivessem envolvimento
com os quilombolas ou fizessem “vistas
grossas” ao comércio clandestino que estes
realizavam. Não se pode esquecer que,
no momento da batida das tropas nos
quilombos do Borrachudo, alguns escravos
foram recapturados e por eles se soube
que um “certo Sargento-mor de Ilhéus”
e seus escravos estabeleciam comércio
com os aquilombados.
Ultrapassados os problemas ligados à
formação da tropa, nos meses seguintes,
quer dizer, entre maio e o início de agosto, as
autoridades juntamente com o comandante
da expedição, o alferes Guilherme Frederico
de Sá, preocupar-se-iam em traçar uma
estratégia militar favorável à sua acção. A
primeira medida estava diretamente ligada
ao desarmamento dos quilombolas. Sobre
este fato noticia o juiz Miguel Travassos,
ao Presidente da Província:
Estas mesmas requisições de fazer sustar a
venda da pólvora em geral, e o desarmamento
dos escravos, fiz ao Juiz de Paz do 1º Distrito
daquela Vila de Ilhéus, João Dias Pereira
Guimarães e o da Vila de Maraú, José
7 Em 1834, a Guarda Nacional de Barra do Rio de
Contas era composta pelo capitão-mor José Antônio
de Sousa, o tenente Rafael José Setúbal, o alferes
Bernardino José de Magalhães e Aragão, o 1º Sargento
Fortunato Joaquim de Magalhães, o 2º Sargento
Basílio Luiz da Cruz e o furriel Sebastião Bonifácio de
Magalhães.
69
Manuel da Costa Bonilha, e foram de
pronto satisfeitas, conforme os ofícios em
resposta, requisitando-o também este último
ao da Vila de Barcelos; e como tivesse eu
dado estas providências na vila, foi isso
bastante vantajoso (APEB, Juízes, Barra
do Rio de Contas, cx 744, maço 2246 Doc.
06/08/1835).
A estratégia de desarmar os negros
do Borrachudo, impedindo-os de comprar
pólvora e armas, contribuiu parcialmente
para o êxito da expedição e, ao mesmo
tempo, serviu para desvendar o raio de
ação dos quilombolas, que, por sua vez,
não estava circunscrito à Barra do Rio
de Contas. Desta medida, parecem ter
sido informados também os próprios
aquilombados, pois, segundo relatou o
juiz, os mesmos ameaçaram interceptar a
embarcação que viria de Salvador com as
munições e invadir o termo da Vila para
exigir a suspensão das medidas punitivas.
As ameaças não foram concretizadas, mas,
na dúvida, as autoridades ficaram em
alerta.
A segunda fase da estratégia ocorreu nas
vésperas da saída da expedição e consistiu
“na reclusão de todos os moradores no
Termo da Vila”, e aos poucos lavradores
que residiam na zona rural, fez-se com que
“deixassem as suas fazendas e moradas
destituídas de mandiocas e víveres” para
que no momento da batida os quilombolas
não lograssem sequestrar moradores, nem
obtivessem apoio e meios de sobrevivência
ao procurarem refúgio nas fazendas. Foi
despovoada temporariamente toda a região
em torno do Rio da Cachoeira e ao sul da
vila da Barra do Rio de Contas8.
Entre os meses de agosto e setembro
8 APEB, judiciário, maço 2246 “Relatório da Força
Expedicionária comandada pelo alferes Guilherme
Frederico de Sá Bittencourt e Câmara”, 24/08/1835.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
de 1835, foram enviadas duas expedições:
A primeira saiu em 09 de agosto e durou
15 dias e a segunda deu entrada na mata
a partir da primeira metade do mês de
setembro. Poucos quilombolas foram presos
nessas expedições, mas nos intervalos
entre elas muitos se entregaram, “alguns
pela fome, pela falta de recursos para
sobreviver, outros por medo e, finalmente,
pela falta de pólvora que já não podiam
adquirir pelas providências tomadas a
respeito”, uma clara demonstração da
eficácia das duas medidas levadas a cabo
pelas autoridades da Vila.
Além da configuração geográfica e o
sistema de defesa dos quilombos, poderia
concorrer para a desvantagem da tropa
repressiva, a longa rede de relações entre
quilombolas, escravos e outros agentes
da sociedade. Em muitas situações era
difícil manter o tão almejado segredo
sobre as expedições. Assim, investigação e
repressão andavam juntas. A expedição de
1835 não encontrou apenas um quilombo,
mas vários quilombos articulados entre
si e com os escravos das senzalas. Numa
medida investigativa, o comandante da
expedição tomou conhecimento de como
os residentes do Quilombo Colégio Novo
ficaram sabendo do avanço da tropa.
Inquirida, uma habitante de um dos
quilombos – a escrava Maria Bahia –
respondeu que “tinha sido pelo aviso” que
tivera do escravo do Capitão-mor Estevão
Pereira Nobre, o cabra João.
A Força Expedicionária comandada
pelo alferes Guilherme de Sá contava com
a participação de 80 praças, alguns da
Guarda Nacional. Em nove de agosto, a
tropa partiu de Pancada, um local que
funcionava como porto de escoamento de
produtos, dentre eles, farinha de mandioca.
Para “guia” da tropa serviu o crioulo
Joaquim, recém-saído do quilombo, que
fora conduzido pelo alferes Bernardino
José de Magalhães. Relatando em ofício ao
Presidente da Província sobre a atuação
da tropa, o juiz Travassos revelara que
“tudo se fez com vantagem”, por conta
da ajuda do dito crioulo. De fato, a tropa
logrou êxito, mas essa vantagem deve ser
relativizada por conta de certo exagero do
dito juiz em querer causar boa impressão
à autoridade da capital da província.
No relatório da Força Expedicionária,
ficou bastante evidente que o auxílio de
Joaquim não foi suficiente para evitar que
os soldados e o comandante da expedição
fossem surpreendidos com armadilhas
deixadas pelos quilombolas na floresta.
O impacto das duas expedições resultou
na prisão de 38 escravos e uma africana
liberta. Alguns destes escravos pertenciam a
pessoas da localidade e vilas circunvizinhas.
Embora se tenham algumas informações
desse processo, não foi encontrada
documentação sobre as investigações e
interrogatórios que poderiam fornecer mais
detalhes a respeito da dinâmica desses
quilombos e a relação destes com a sociedade
envolvente. À medida que os fugitivos iam
chegando à vila, os interrogatórios eram
efetuados em público e com a presença de
testemunhas e curadores. Cento e trinta
pessoas – entre livres e escravos – do
termo da vila de Barra do Rio de Contas
e dos Ilhéus, declararam “que os negros
comerciavam com eles, fornecendo pólvoras,
armas, consertos, ferramentas, e outras
coisas que necessitavam”9. O relatório
da diligência sobre o “aniquilamento e
destruição” dos quilombos do Borrachudo,
levado em missão incumbida pelo juiz de
paz Miguel Travassos, revelou detalhes
9 APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, maço 2246.
Doc. 24/08/1835. “Relatório descrevendo a atuação da
Tropa formada para “aniquilamento e destruição” do
Quilombo do Borrachudo”. Documento redigido pelo
alferes Guilherme Frederico de Sá Bittencourt.
70
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
sobre o mundo criado pelos quilombolas no
meio da floresta. Esse documento oferece
particularidades sobre a geografia do local,
rotas de fugas, aspectos socioeconômicos,
redes de relações e sobretudo o sistema
de defesa dos mocambos.
Tendo partido no dia 9 de agosto, a
expedição só chegou ao Quilombo Colégio
Novo no dia 10, depois de superar as
armadilhas deixadas nos caminhos dos
quilombos. As vinte casas e os produtos
agrícolas encontrados foram “estragados e
reduzidos a nada”. No dia 11, a expedição
desembocou nos quilombos Colégio Velho e
Santo Antônio do Bom Viver e lá encontrou,
respectivamente, oito e três casas. Nessa
ocasião foram presos três negros que “tinham
vindo fazer farinha” no dito Quilombo de
Santo Antônio. A tropa seguiu em frente,
a desbaratar quilombos, apesar da mata
densa. Foram encontrados os Quilombos
de Sabura e Retiro Alegre, nos quais
não foram achados habitantes. Entre os
dias 13 e 15 de agosto prosseguiram no
aprisionamento de escravos nas matas.
Lauriano, africano pertencente a José
Gonçalves Ribeiro, uma vez preso, daria
informações sobre as novas “rancharias”
dos aquilombados que estavam situadas
nas cabeceiras do Almada. Não obtendo
êxito na diligência, o comandante e a
tropa pernoitaram no Colégio Novo e,
pela manhã, o alferes em comissão faria
uma grande descoberta: “todos os rastros
dos quilombolas em fuga levavam em
direção às margens do Rio de Contas”, fato
que dá a entender que muitos escravos
utilizaram canoas como meio de fuga.
Nos dias seguintes, foram destruídos
os quilombos Corisco e Coronel. Nesta
empreitada, a tropa de repressão contou
com a participação do alferes e juiz
Bernardino de Magalhães. No dia 18,
logo pela manhã, a marcha continuou
71
na floresta, mas, desta vez, o alferes
achou de bom tino dividir a expedição
em patrulhas, sendo “quatro dirigidas
para o norte e três para o sul”, sempre
em direção às margens do Rio de Contas.
Neste dia, houve tiros e mortes de alguns
quilombolas. No resto da tarde continuaram
as patrulhas perseguindo quilombolas e,
ao findar do dia, todos se recolheram no
ponto de referência, denominado Banco.
No dia 19, continuaram as diligências
e, como não achassem mais rastros de
fugas na parte norte das margens do
Rio de Contas, o alferes e as patrulhas
retornaram ao Porto de Pancada, ponto
inicial da expedição. Ali mesmo foram
interrogados alguns escravos capturados.
No final do relatório, o alferes informando
sobre o impacto dessa primeira fase da
expedição, não deixou de ressaltar que
muitos escravos se entregaram sejam por
medo ou pela grande fome. De certa forma,
não foram apenas os quilombolas que
sofreram com as investidas, a narrativa
do comandante da expedição não deixa
dúvidas: “No dia 22 vendo eu o estado em
que se achava a Tropa, uns estropiados
e outros com as pernas feridas de alguns
estrepes e mesmo eu, por me achar com as
canelas feridas das pancadas dos paus,
retirei-me com a gente para esta vila a
procurar algum descanso”10.
As inúmeras histórias de confrontos
entre quilombolas e representantes da
classe senhorial que vêm à tona, através
das fontes, revelam o quão desestabilizador
dos projetos governamentais, se tornou a
presença do Borrachudo naquele contexto.
Como seria de se esperar, as representações
dos quilombolas, que emergem dos discursos
10 APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, maço
2246. Doc. 24/08/1835. “Relatório descrevendo a
atuação da Tropa formada para “aniquilamento
e destruição” do Quilombo do Borrachudo”.
Documento redigido pelo alferes Guilherme Frederico
de Sá Bittencourt.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
das autoridades de Barra do Rio de Contas
e das demais Vilas da Comarca de Ilhéus,
possibilitaram a construção de um “outro”
baseado na oposição entre a barbárie e
a civilização, entre o Mal e o Bem, entre
o Caos e a Ordem. Os mocambos eram
adjetivados de “asilos”, “espeluncas”,
“theatro da desonra” e seus habitantes
caracterizados como seres dotados de
ausência de humanidade. Assim relatou,
em 26 de dezembro de 1834, o juiz de
direito da Comarca de Ilhéus Francisco
Primo Coutinho de Castro ao Presidente
da Província da Bahia:
Eu não posso deixar em silêncio o total
atrasamento em que se acha esta comarca, cujo
logo que tomei posse, tive a honra de participar
a V. Exc. rogando algumas providências
conducentes ao adiantamento dela, mesmo a
segurança interna, por achando-se cercada
de quilombos, ou para melhor me exprimir,
espeluncas de assassinos, depósitos de roubos,
e asilos de malvadeza. Necessário se tornava
um golpe, que definhando tais monstros de
espécie humana ressurgisse a paz às famílias,
e segurança nos agrícolas, já que chegava
a ousadia a um ponto tal de atacarem as
fazendas máximas em Camamu onde sem o
menor receio, e certos na escassez de forças
coercitivas invadem os recintos das famílias,
deixando-as em estado de tudo abandonarem
(APEB, Juízes, Comarca de Ilhéus, maço
2395, Doc. 31/03/1835).
O supracitado trecho do ofício do juiz de
direito, em Ilhéus, constitui-se num exemplo
claro da histeria senhorial perante a classe
subalterna. Isto não quer dizer que, as
alegações de “insultos”, “roubos” e outros
crimes cometidos contra a propriedade
e pessoas pelos fugitivos se tratassem
apenas de uma falácia da classe senhorial.
De fato, muitos lavradores e autoridades
tiveram suas propriedades invadidas11,
11 Pelo oficio de 22 de fevereiro de 1832, o juiz de
e, quando isso acontecia, os senhores não
poupavam tinta e costumavam caprichar na
retórica. Vê-se o trecho da correspondência
do juiz de paz Rafael Setúbal expedida
para a autoridade máxima da Província,
em 1834:
Tenho a honra de levar ao conhecimento
de Vossa Excelência os acontecimentos
seguintes, afim de V. Exc. acudir com as
prontas providências, que o caso exige.
[...] quando no dia 4 do passado mês de
fevereiro indo juntamente com o Capitão Mor
Estevão Pereira Nobre para as nossas fazendas,
que ficam vizinhas, eis que ao saltarmos
no porto, vimos ela ocupada por quinze ou
dezesseis dos ditos escravos salteadores, que
tendo roubado e saqueado a casa do dito
Capitão Mor, para nos avançar com ânimo
de nos ofender, e decerto seríamos vítimas,
se não valesse a fidelidade dos escravos do
Capitão Mor, que indo sobre eles os fizeram
recuar a fugir pelos matos (APEB, Juízes,
Barra do Rio de Contas, cx. 744, maço 2246,
Doc.22/03/1833).
Com efeito, não foi desprezível o poder
dos quilombolas na disseminação de um
clima de medo entre membros das elites
dominantes principalmente num período
em que a onda negra e/ ou africana parecia
representar, de maneira real ou simbólica,
o principal inimigo dos segmentos livres
da sociedade brasileira. Em 1835, quando
houve o Levante dos Malês na cidade de
Salvador, autoridades de diversas regiões
do Brasil temeram uma insurreição geral
da escravatura. A repercussão desse levante
na Comarca de Ilhéus também se fez
presente, servindo como argumento para
paz José Antônio de Souza, do Primeiro Distrito de
Barra do Rio de Contas informava ao Presidente da
Província sobre o arrombamento da propriedade do
Capitão Pedro do Espírito Santo e Aragão e do Major
Francisco Prudente de Eça e Castro, nesta propriedade
os “Pretos fortificaram-se” (APEB, maço 2246).
72
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
convencer a autoridade provincial - Francisco
de Sousa Martins – a tomar as medidas
efetivas para destruir os quilombos do
Borrachudo e outros presentes nas matas,
já que a repressão não fora consolidada
pelos seus antecessores.
Os inúmeros oficios expedidos pelos
juízes do interior da Comarca de Ilhéus ao
Presidente da Província fizeram engrossar,
ainda mais, a fileira de pedidos de ajuda
que partiam de outras áreas da Bahia.
Em 18 de abril de 1835, o juiz de paz do
segundo distrito de Camamu, João José
Fascio, anunciava as possibilidades reais
que o fenômeno de Salvador pudesse se
instalar na região tomando como referência
a falta de instrumentos coercitivos e a
incidência de escravos fugidos nas matas.
A recente rebelião dos Africanos nessa cidade,
além de outras tais tentativas já por vezes
aí mesmo praticados são fatos bastantes e
sobejos para chamar à atenção as autoridades
constituídas e amigas da ordem e por isso
não me parece ociosa toda a vigilância
tão melindroso, e de tanta ponderação.
Marchando deste principio na qualidade
de Juiz de Paz do 2º Distrito da cabeça do
Termo desta Vila, e pela incumbência que
me faz a lei de 15 de outubro de 1827, passo
a ponderar a V. Exc.
Que um não pequeno número de escravos
foragidos devagam as matas desta Vila e
suas adjacências. Que estes bandidos e saídos
criminosos têm perpetrado por muitas vezes
os mais cruéis assassínios, além de roubos,
(e seus vícios), de que não tem resultado a
mais pronta e enérgica repulsa. Que muitos
agrícolas têm abandonado as suas lavouras
procurando recinto do povoado para se
escaparem às fúrias deste malvado bando,
que frusta-se toda e qualquer tentativa para
agredir estes pestes da sociedade pela falta
de contingente preciso para as despesas que
73
se haja de fazer (APEB, Juízes, Camamu,
maço 2298, Doc. 18/04/1835)
Aliás, a supracitada correspondência
não foi a única expedida pelo dito juiz.
Nos meses de abril e junho continuou a
relatar, dentre outras coisas, o aumento de
fugas de escravos em direção aos quilombos
das matas adjacentes, o abandono das
lavouras pelos agricultores e muitos furtos
e roubos cometidos pelos fugitivos. Com
um aparato policial-militar ineficiente e
a ausência de uma atitude mais firme do
governo central, João José Fascio, num
tom provocador, alertou o Presidente da
Província:
Que no interior das matas desta Vila existe
um quilombo de escravos foragidos, e que de
dia em dia engrossa mais. Que estes bandidos
e sanhudos criminosos tem perpetrado os
mais cruéis, e nefandos assassínios, como
há três dias, mataram um homem, além de
continuados roubos que fazem que muitos
agrícolas tem abandonado as suas lavouras,
procurando o recinto do povoado, para assim
escaparem às fúrias deste malvado bando.
Que vaga a notícia que eles até prometem vir
a Vila. Sim, Excelentíssimo Senhor, se em
face de tantas autoridades policiais, tropa,
boca de fogo, e das mais prontas enérgicas
providencias aparece uma tal insurreição
qual a dos Africanos nessa Capital, o que se
não pode tão bem supor de tantos criminosos
impunes, que com uma tal noticia se podem
encorajar, porem em execução o mesmo plano,
conhecendo a nenhuma defesa que aqui há;
pois que nem armamento nem munição
chegou ainda para esta Vila (APEB, Juízes,
Camamu, maço 2298, Doc.24/06/1835).
Medo, pânico e histeria tomaram
conta do pensamento das autoridades
e do povo da região que, naquela altura
da situação, temiam que a escravaria
local pudesse seguir os mesmos passos
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
dos escravos insurretos da capital. Isto
não se concretizou, mas as crenças e os
boatos não pararam por aí. Renascia
também o fantasma haitiano. O Juiz de
Paz do 3º distrito de Camamu, Marcelino
Gomes, oficiando ao governo da Província
salientava a emergência de ações e revoltas
comandada pela escravatura africana na
capital e na região.
Apesar dos tão funestos acontecimentos
que têm tido, e agora tiveram lugar nessa
capital, e que aqui há muitos anos quase
diariamente há, com insultos, roubos, mortes,
perpetrados estes crimes por um temível e
grosso envolvimento da escravatura desta e
outras comarcas emboscadas nos centros das
matas sobranceiras a esta Vila já com toda
as autoridades em uma notável indiferença,
a vista mesmo de tão desgraçados exemplos
se tivessem servido de lição as trágicas cenas
noutra ora representadas com sangue e
fogo na Ilha do Aiti [Haiti], talvez não se
repetisse no nosso País, e em quase todos,
o que admitem o comércio de escravatura
Africana (APEB, Juízes, Camamu, maço
2298, Doc. 31/03/1835).
Nesta correspondência há uma tentativa
do juiz Marcelino Gomes colocar em pé de
igualdade os acontecimentos de Salvador
com aqueles que ocorriam constantemente
nas Comarcas do sul da província baiana.
A menção ao fenômeno haitiano parece
constituir um grande mote para atacar o
que realmente o juiz não via com muita
tranquilidade: o comércio da escravatura
africana. Nessa atmosfera de desconforto
encontravam-se políticos, intelectuais e
membros da classe dirigente, provincial
e nacional, que, passaram a criticar o
tráfico de escravos e a escravidão com
mais frequência nas décadas de 20 e 30
do século XIX, fomentada no contexto
das discussões que giravam em torno
das pressões inglesas contra o tráfico
transatlântico de escravos. Embora não
houvesse consenso quanto às opiniões
sobre o tráfico e a escravidão africana
no Brasil, dirigentes nacionais passaram
a encarar os nascidos em África como
inimigos da ordem estatal (REIS, 2003).
O haitianismo e o Levante Malê
cruzaram mares e fronteiras. Em Barra do
Rio de Contas e adjacências, insurreição
dessa natureza, não se efetivou, mas,
na dúvida e na possibilidade de sua
existência, o Presidente da Província da
Bahia, finalmente, não hesitou em enviar
a ajuda tão requisitada pelas autoridades
sul-baianas12.
Com as ordens de ataque em mãos, a
repressão era esperada de imediato, mas
veio a ocorrer somente em agosto de 1835,
quase quatro meses depois de recebida
a ordem do governo. A experiência do
Quilombo do Borrachudo e sua repressão
tornaram mais evidentes a fragilidade
dos instrumentos de coerção e a série de
conflitos e de interesses que impediam
a coesão dos setores dominantes nessa
região.
Durante a década de 1830, registros
de invasões de engenhos efetivados
pelos quilombolas denotam que, além
de representarem um real problema
que as autoridades deveriam enfrentar,
esse protesto negro acabou por desafiar a
hegemonia dos senhores, na medida em que
retirou-lhes um pouco do poder simbólico
que mantinham sobre seus escravos. Por
isso, a onda de saques e a subtração de
aves, gados, aguardentes e farinhas nos
engenhos – por sinal produtos que faziam
parte da dieta alimentar dos fugitivos
– refletiam as tensões sociais vigentes
12 Vide a discussão feita por GOMES (1995/1996)
sobre repercussões do Levante Malê e do
“haitianismo” no Brasil.
74
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
entre a classe senhorial e a comunidade
escrava local. Decerto que era uma briga
entre desiguais, mas o resultado dessa
tensão poderia ter consequências materiais
(THOMPSON, 1998: 25-85).13 Era o preço
da escravidão que as elites locais tinham
que arcar.
Os discursos construídos, em torno da
atuação dos fugitivos, pelo legislativo e
judiciário, traduzia-se numa real necessidade
de manter o controlo não apenas da escravaria
como do espaço que se pretendia colonizar.
Parte considerável das reivindições das
autoridades de Barra do Rio de Contas,
que foram encaminhadas à capital da
Província da Bahia, buscavam subsídios
para a construção de estradas e, exigiam
uma participação mais efetiva do poder
central na vila a fim defender os reais
interesses dos habitantes. Tratava-se,
na lógica dos dirigentes locais, de levar
para os locais mais recônditos os ideais
de civilidade.
Talvez, o teor desses discursos indicasse
de todo modo, uma preocupação em
conter o avanço dos quilombolas sobre
terras devolutas e reduzir o poder de
sedução que a presença dos quilombos
pudesse representar, como uma espécie
de atrativo, para fugas de escravos;
posto que, se a escravidão significou
uma desterritorialização dos africanos
e seus descendentes, o quilombo, enquanto
instituição subjacente a realidade escravista
denotou uma forma real de territorialização.
Isto permitiu a criação de um território
marcado por códigos e referências que
orientavam social e culturalmente seus
residentes. Menciona-se como exemplo,
o quilombo Colégio Novo. A distribuição
13 Recorreu-se, nessa discussão, ao argumento de
Eduard Thompson sobre o significado do protesto
plebeu, principalmente o segundo capítulo, “Patrícios
e Plebeus”.
75
espacial das casas formava uma grande
praça, sobre a qual orientavam-se os
quilombolas, em caso de fuga. No fundo
das habitações destacavam-se o cultivo
de diversos produtos, fossem esses para
consumo interno, trocas ou vendas. Uma
clara demonstração da ocupação e do uso
que os fugitivos faziam do solo.
Se o território subjaz conflitos, disputas
e formas de controle social, isto pode ser
traduzido, em parte, nas diversas formas de
luta dos quilombolas em defesa daquilo que
consideravam como seus domínios. Estes,
por sua vez, permitiram provavelmente,
formações de unidades familiares,
preservação de laços comunitários e um
grau de privacidade, garantidos longe dos
olhares dos senhores. Certamente, essas
leituras sobre a liberdade não ficaram
desconectadas dos nomes atribuídos
aos mocambos Retiro Alegre, Santo
Antônio do Bom Viver e Sabura. Este
último evidencia muito bem esse propósito
quilombola. Expressão de origem crioula,
sabura significa “apreciar aquilo que é
bom; tempos aprazíveis.”14
Visto por este prisma, o pano de fundo
desta inquietação senhorial recaía-se sobre
um território que escapava o controlo
do poder institucional. Deste modo, “as
instituições criadas pelos escravos para
lidar com o constituía, ao mesmo tempo, os
aspectos mais comuns e mais importantes
da vida assumiram sua forma característica
dentro dos parâmetros do monopólio de
poder dos senhores, mas separados das
instituições senhoriais” (MINTZ, 2003,
p. 60). Em vez de ser um enclave isolado
14 Recorreu-se inicialmente aos dicionários de
língua portuguesa do século XIX em busca de uma
palavra semelhante, mas a tentativa foi malograda. De
todo modo, foi apenas no Dicionário Crioulo Caboverdiano (www.priberam.pt/dcvpo/dcvpo.asp. Acesso:
22/08/2008) que o termo sabura e seu significado
foram encontrados.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
no meio da floresta, o Borrachudo, no
decorrer do tempo, mobilizou-se obedecendo
a critérios de produção, manutenção de
seus membros e de laços de solidariedade
e familiar com a comunidade escrava local
e adjacente. Além disso, preocupar-se-ia
em construir diversas formas de proteção
contra possíveis investidas de pessoas que
não fossem bem-vindas por ali, sobretudo,
tropas antiquilombos. Caso as formas reais
de salvaguarda não lograssem êxitos,
poder-se-ia recorrer à proteção de Santo
Antônio. Esta parece ser uma explicação
razoável para o nome do mocambo Santo
Antônio do Bom Viver.
Se bem que dado a muitas controvérsias
e funções, o santo casamenteiro, também
em terras brasílicas teve receptividade nos
diversos segmentos sociais. Senhores em
busca de escravos fugidos lançavam mão
dos serviços do divino capitão-do-mato no
intuito de manter a ordem social. Contudo,
era nas camadas mais populares, sobretudo
entre os negros livres e escravos, que o
culto ao Santo António ganhava feições
antiescravistas. A associação do santo com
a tranquilidade e a segurança revela não
ter sido apenas anseio da classe senhorial,
mas também de setores racializados e
desclassificados socialmente, dentre eles
escravos fugidos. (MOTT, 1996).
Hesitações e medo à parte, as práticas
senhoriais de destruição dos refúgios dos
fugitivos não se davam apenas no plano
do discurso. Assentava-se, também, no
plano mais amplo do simbólico. Como não
evidenciar o grau de simbologia conferido às
mortes de alguns habitantes dos mocambos.
No intuito de prevenir a incidência de
episódios desse tipo, a política pedagógica
dos dirigentes locais baseava-se na punição
e na prevenção. A exposição das cabeças
dos escravos, no cemitério do Termo, que
foram mortos “em ato de resistência” tinha
o objetivo de desmitificar a figura do líder,
como alguém imbatível; demonstrar o
futuro de quem procedesse de maneira
semelhante. Foram destinados à morte,
os quilombolas Basílio, Faustino, Roque,
respectivamente propriedades dos senhores
Rafael José Setubal, Estevão Pereira Nobre
e da senhora Ana de Magalhães. Esta
moradora de Ilhéus.
A repressão aos quilombos era algo
esperado e inerente ao cenário escravista,
porém, tinha como filha bastarda, a
rebeldia dos fugitivos. Uma das histórias
de resistência individual que, emerge das
fontes, sob a pena do alferes comandante da
expedição, manifesta de maneira inequívoca,
a indisciplina obstinada de um fugitivo.
Era 18 de agosto, numa tarde de terçafeira, quando, segundo o alferes Guilherme
de Sá, a patrulha comandada pelo cabo
Bernardo Teles chegara com a cabeça do
escravo Chagas. As circunstâncias que
rodearam a morte do escravo misturam
heroísmo e tragédia. Retornando de
mais uma diligência nas matas -atrás
de fugitivos, os soldados encontraram, na
fazenda de Ignácia de Loiola e Mendes,
Chagas acompanhado de outros escravos
fugidos. Cercados pela patrulha, a atitude
da maioria foi se entregar, exceto o dito
escravo. Chagas numa atitude de impedir
sua reescravização tentou, sem êxito, o
suicídio, sob a alegação de que “era mais
fácil morrer do que se entregar.” Desse
ato decorreu sua morte, após receber
dois tiros.
Foi sob a alegação de resistir à prisão
e de cometer crimes contra a propriedade
e pessoas que a morte de Chagas foi
legitimada. Contudo, deve-se salientar
que a legislação que se seguiu após a
onda de conspirações e revoltas escravas
realizadas, na Bahia oitocentista, fez
pesar sobre os corpos africanos e, por
76
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
extensão aos negros, livres ou escravos,
uma série de mecanismos de controlo e de
violência coletiva. A lei de 10 de junho de
1835, na qual determinava em seu artigo
primeiro, uma série de penas, inclusive
de morte, para os cativos que andasse
praticando crimes contra pessoas é um
exemplo do endurecimento das práticas
coercitivas projetadas sobre o quotidiano
das “populações de cor”.15
Serão punidos com a pena de morte os escravos
ou escravas, que matarem por qualquer
maneira que seja, propinarem veneno, ferirem
gravemente ou fizerem outra qualquer grave
ofensa física a seu senhor, a sua mulher,
a descendente ou ascendentes, que em sua
companhia morarem, administrador, feitor
e ás suas mulheres, que com eles viverem.
Num sugestivo artigo intitulado “Tambores
e temores: a festa negra na Bahia”, João
Reis discutiu como, em nome dos ideais de
civilização europeus, dirigentes baianos
esforçaram-se para manter um controlo
maior sobre a população livre mas também
e sobretudo sobre a população escrava,
a partir de leis provinciais e posturas
municipais. Também esclareceu como
a cultura africana foi alvo de diferentes
políticas governamentais, principalmente,
as festas e os batuques, que, quando não
foram vistas como a antessala da rebeldia
negra, passaram a ser interpretadas como
válvula de escape da escravaria (REIS,
2008).
De modo algum poder-se-ia saber o que
realmente Chagas possuía em termos de
sonhos e projetos de vida, mas por certo
que não era a escravidão. A liberdade
15 Índices das Decisões de 1835, Lei n. 04,
10.06.1835, p.5. In. Coleção das Leis do Império do
Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 18311840, disponível em www2.camara.gov.br/internet/
legislação/ publicações/do imperiocoleçao3.html.
Acesso em 22/09/2008.
77
– tão almejada pela escravaria e, em
particular pelo escravo fujão – se não
fosse possível neste mundo, talvez, na
ótica de Chagas, pudesse ser efetivada
após sua morte. Diante do quadro de terror
pintado pelas autoridades da Comarca
de Ilhéus, acerca da mobilização escrava
da região, era inevitável que a repressão
sobre os mocambos do Borrachudo fosse
adiada.
Considerações finais
Neste artigo propus-me, inicialmente, dar
uma visão panorâmica das agências quilombolas
no sul da Bahia, não obstante as práticas
historiográficas que as invisibilizam dando
lugar aos feitos coronelistas. No momento
seguinte procurei situar o leitor acerca das
práticas repressivas e das representações
senhoriais presentes na experiência dos
Quilombos do Borrachudo em meio a
conjuntura política, social e econômica
da Bahia Oitocentista.
Ao longo do texto destaquei o papel
desempenhado pelo haitianismo e o Levante
Malê na consolidação da “destruição” dos
quilombos Colégio Novo, Colégio Velho,
Sabura, Retiro Alegre, Santo Antônio do
Bom Viver, Corisco e Coronel, procurando
desvelar a relação existente entre repressão e
representação. Assim, as denominações “Theatro
da Desonra” e “Quilombos do Borrachudo”
para designar as aglomerações de escravos
fugitivos, são terminologias que permitem
incursionar sobre o imaginário da sociedade
colonial trazendo à superfície as regras de
conduta social, medos, anseios, ideais sociais
e, sobretudo suas contradições temporais.
Se os sentidos de honra e vergonha “são
valorizações sociais e partilham portanto da
natureza de sanções sociais (PERISTIANY,
1965: 3)”, o “Theatro da Desonra” emerge
como aspecto valorativo das agências escravas
de maneira sistemática e negativa e que
encontrou na repressão sua validação. Na
contrapartida escrava, pode-se afirmar
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
que o movimento contínuo da presença de
comunidades de fugitivos esclarece, em
parte, a forte tradição de rebeldia cativa
sobre a qual assentou significativamente as
experiências de africanos e crioulos frente aos
padrões de controle e de opressão senhorial
da Comarca de Ilhéus e, em particular, da
Vila do Rio de Contas.
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78
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79
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
80
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
BATUKU: DE DIVERTIMENTO DE ESCRAVOS
A PATRIMÓNIO IMATERIAL1
Gláucia Nogueira2
Resumo/Abstract
O batuku, género musical cabo-verdiano baseado na percussão e no canto, tem
hoje na sociedade cabo-verdiana um estatuto bem diferente do que teve no passado.
É valorizado; grupos novos estão sempre a surgir; artistas de sucesso têm na sua
sonoridade a matéria-prima para a sua obra, reelaborando-o. Fica claro que hoje
o batuku é visto como um património de Cabo Verde. Mas nem sempre foi assim.
Relatos históricos, textos de jornais antigos e mesmo a literatura, na prosa e na poesia,
mostram com abundantes registos como em outros tempos o batuku, um “divertimento
de escravos”, era apenas tolerado; mais tarde, foi um divertimento dos camponeses
no interior de Santiago, também apenas tolerado, e, em certos momentos, mesmo
reprimido. Este artigo procura mostrar o quão diferentes são as atitudes face a esta
expressão musical-coreográfica antes e depois da independência de Cabo Verde. A
luta de libertação é um divisor de águas nesta história.
Palavras-chave: Cabo Verde; património cultural; património cultural imaterial;
música; batuko.
Batuku, Cape Verdean musical genre based on percussion and singing, is today in
Cape Verdean society a very different status than it had in the past. It is valued; new
groups are constantly emerging; artists inspired by the rhythm of batuku recreating
it. Batuku today is seen as cultural heritage of Cape Verde. It was not always so.
Historical reports, texts of old newspapers and even literature show as in other times
batuku, a “fun of slaves” was only tolerated; later, it was a fun of the peasants in
Santiago, also only tolerated, and at times even repressed. This article shows how
different are the attitudes towards this musical-choreographic expression before and
after the independence of Cape Verde.
Keywords: Cape Verde; cultural heritage; immaterial heritage; music; batuko.
1 Este artigo é uma adaptação da dissertação de mestrado em Património e Desenvolvimetno defendida pela autora na Universidade de Cabo Verde em
Março de 2011, intitulada “Batuku, património imaterial de Cabo Verde. Percurso Histórico-Musical”.
2 Gláucia Nogueira é jornalista e antropóloga, mestre em Património e Desenvolvimento pela Universidade de Cabo Verde. Bolseira do Instituto de
Investigação e do Património Culturais (2011/2012) para produção do Dicionário de Personagens da Música de Cabo Verde. No âmbito de pesquisas sobre
a música em Cabo Verde, é autora de: O tempo de B.Léza, documentos e memórias (IBNL, Praia, 2006); Notícias que fazem a história – A música de Cabo
Verde pela imprensa ao longo do século XX (ed. autor, Praia, 2007); B.Léza, um africano que amava o Brasil (Ministério da Educação, Brasília, no prelo); e
Batuko, património imaterial de Cabo Verde - percurso histórico-musical (no prelo).
81
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Introdução
O poema Batuko1, de Kaoberdiano
Dambará , que faz parte do livro Nôti,
publicado pelo PAIGC em Paris em 1964,
pode ser visto simbolicamente como um
momento zero da mudança de estatuto do
batuku2, no período da luta de libertação.
O poema, que termina com o verso “Batuko
e nos aima”3, aparece na voz de Armando
Dupret no LP Poesia Cabo-Verdiana
Protesto e Luta, também editado pelo
PAIGC, na Holanda, por volta de 1969,
como instrumento de consciencialização
e mobilização política no interior das
comunidades cabo-verdianas na Europa.
Enquanto isso, em Cabo Verde, o
batuku era reprimido, tal como outras
manifestações culturais populares, como
os bailes de funaná4, de acordo com vários
depoimentos. Corsino Fortes, que viveu
na Praia na década de 60, afirma em
entrevista a Michel Laban que havia
em Santiago “muito mais violência [do
que em S. Vicente] pelo menos de ordem
cultural”, e refere:
Os batuques, a tchabeta , as finaçons e
a tabanka eram expressamente proibidas,
sendo necessário ir para o interior onde,
em ambiente de sigilo e de secretismo,
se podia participar ou assistir. Toda a
manifestação cultural de cariz africana
era pura e simplesmente reprimida. Em
1 Kaoberdiano Dambará é pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes,
advogado que em finais dos anos 60 e início dos 70 defendeu militantes da
luta de libertação caídos nas mãos da PIDE e que é o poeta que “inventa
a Negritude Crioula” (HOPFFER ALMADA. In VEIGA, 1998, p. 143).
2 Será utilizada a grafia batuku (a adoptada pelo ALUPEC) para
diferenciar o tema deste artigo de outras manifestações culturais que nos
países de língua portuguesa se convencionou denominar “batuque”. Nas
citações, contudo, mantém-se a grafia original. Optou-se também por
não utilizar itálico em nomes de géneros/estilos musicais, sejam caboverdianos ou de outros países.
3 Tradução: “batuku, a nossa alma”. O texto original e traduzido para
português por M. Freitas encontra-se em
http://www.umassd.edu/
SpecialPrograms/caboverde/cvkriolp.htm Consultado em 07.02.2010.
4 Funaná: género musical tradicional do interior de Santiago, cuja
história tem semelhanças com a do batuku, uma vez que também era
menosprezado no período colonial e depois da independência foi
recriado e adoptado pelo público urbano.
São Vicente, que é praticamente uma cidade
onde não há uma clara distinção entre os
meios rural e urbano, a repressão incidiu
quase apenas sobre as serenatas, o toque
de tambores nas festas de São João e Santo
António, mas nunca com a violência, como
em Santiago. (LABAN, 1990, p. 392).
Mas chegava-se ao fim de uma era.
Às vésperas da independência, quando
já surgiam na Praia e arredores eventos
organizados pelo próprio Ministério da
Educação e Cultura levando ao palco grupos
de batuku, os leitores do Novo Jornal de
Cabo Verde – publicação criada em 1974
logo após a extinção de O Arquipélago
– puderam ler um artigo intitulado
“Apontamento – Batuco” (DELGADO,
sob o pseudónimo Wanga, 2009, p.17),
em que o autor afirma, após ter assistido
ao evento: “O batuco só ganhou o direito
de subir a um palco de teatro com a subida
ao palco da História do povo que o criou”.
E prossegue, de forma entusiasmada, na
efervescência que se vivia a menos de um
mês da proclamação da independência:
“Apetece perguntar quem foi aplaudido: o ritmo
desenfreado e as palavras entre dentes ou o
povo que dançou? O momento de libertação
é um momento de orgulho e o orgulho de um
povo tem que ser traduzido em arte: canto,
dança ou palavras ou mesmo uma simples
estrela negra pintada em qualquer parte”
(DELGADO, 2009, p. 17).
A partir da independência, como será
demonstrado adiante, o batuku – tal como
outras expressões culturais tradicionais e
populares, que se encaixam no que a Unesco
define como património cultural imaterial
(ver quadros) passa a a ser encarado de
outra maneira, passa a ser valorizado
de várias formas, assim como a própria
ideia, aliás, de património cultural, que é
divulgada pelos formadores de opinião da
82
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
época, procurando sensibilizar a opinião
pública para estas questões. Mas antes de
chegar a esse período, e com a intenção de
revelar o contraste entre a colónia e Cabo
Verde independente no que diz respeito
ao tema em questão, é interessante recuar
no tempo cerca de dois séculos.
de Setembro de 1772. Trata-se de um
bando mandado publicar e afixar pelo
governador Joaquim Salema de Saldanha
Lobo proibindo o batuku (ALMEIDA,
Horizonte, 19.09.2006, p. 4). No texto,
lê-se que “zambunas” propiciam desordens
à noite “com tanto excesso, que chega a
ser por todos os fins escandalozos a Deus,
e de perturbação às Leys, e ao sucego
público, prencipalmente por effeito da
intemperança dos que se deichão esquecer
delles”. Refere ainda que a essas sessões
“costumão concurer pessoas estranhas,
ou que não pertencem a família de
qualquer caza”, numa alusão àqueles que
frequentam as sessões de batuku – ou
seja, os badios, no sentido que então se
dava ao termo: “Classe de pretos livres e
libertos que viviam à margem da economia
e sociedade escravocratas” (CORREIA E
SILVA, 1995, p. 70-71). O castigo para
quem desobedecesse era, da primeira vez,
quatro meses de prisão.
“Zambuna” ou “sambuna” é o nome
dado a uma parte da sessão de batuku.
É de crer que, no que diz respeito ao
documento citado acima, pode-se tomar
o termo “zambuna” como equivalente a
uma sessão de batuku. O texto refere
ainda que esta proibição não é a primeira
e podemos inferir que a anterior proibição
não era cumprida, já que as zambunas
acontenciam naquele momento, levando
à publicação do bando em questão.
Período colonial
1.1 - Século XVIII - Século XIX
A mais antiga referência ao batuku
encontrada na pesquisa para a dissertação
em que se baseia este artigo data de 16
83
Prosseguindo cronologicamente, temos
vários registos sobre o batuku em meados do
séc. XIX, época que corresponde ao período
final da escravatura (1876) e ao início da
imprensa editada em Cabo Verde (1842).
Quase um século depois do documento
citado, o batuku continua a ser alvo de
disposições legais que determinam a sua
não realização. Através de um edital datado
de 7 de Março de 1866 e publicado no BO
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
nº 13, de 31 de Março, o administrador
do Concelho da Praia, José Gabriel
Cordeiro, proíbe as sessões de batuku
em “toda a área da cidade” e, tal como no
documento do século anterior, determina
a prisão de quem desobedecer. O aspecto
moral é também aqui evidenciado – “um
divertimento que se opõe à civilização actual
do século, por altamente inconveniente e
incómodo, ofensivo da boa moral, ordem
e tranquilidade pública” – e os seus
participantes são referenciados como
“povo menos civilizado” (SEMEDO &
TURANO, 1997, pp. 127-128).
Além dos textos legais, há desse período
relatos de viajantes e textos de diferentes
tipos em que se pode encontrar referências
ao batuku, em publicações editadas em
Cabo Verde, Portugal e outros países.
Por exemplo, no romance O Escravo
(considerado a primeira obra de temática
cabo-verdiana, escrito em 1856 e cuja
acção se passa em 1835), de José Evaristo
de Almeida, lê-se que o batuku era “uma
das poucas distracções concedidas aos
escravos” (ALMEIDA, 1989, p. 52). Ao
longo desta obra encontraremos várias
alusões a estas reuniões musicais. Um
dos capítulos intitula-se “Reunião de
Escravos – Uma história”, e descreve,
na Praia do século XIX, uma casa onde
vai se realizar uma sessão de batuku:
A pequena porção de candeeiros, cuja luz
era absorvida em parte pelo escuro das
paredes, revestidas somente do preparo
para o reboco – preparo a que a areia
preta, com que traçam aqui a cal, dá uma
cor triste – tornava sombrio este local, e
pouco próprio a uma partida de prazer.
(ALMEIDA, 1989, p. 61).
Noutro capítulo da mesma obra, intitulado
“O Torno”, encontra-se a cena de uma sessão
de batuku, e o autor inicia a descrição
referindo “os sons pouco harmoniosos
de três guitarras – que estavam em
completo desacordo entre si” (ALMEIDA,
1989, pp.77-78). O texto prossegue com
a descrição do torno, o momento em que
uma dançarina solista vai para o meio da
roda. Os seus movimentos são referidos
como lúbricos, a sua performance é descrita
como a “lascívia personificada”.
É com minúcia que o batuku aparece
descrito pelo naturalista e etnógrafo
austríaco Cornelio Doelter y Cisterich,
que a caminho do continente africano
passou uma temporada em Cabo Verde.
Na ilha de Santiago, por exemplo, a
dança mais popular é o batuko, uma
dança reminiscente das danças africanas
encontradas entre os papeis, mandingas,
etc. O batuko consiste num grande círculo
formado pelos participantes. Ao som de fortes
gritos, um homem e uma mulher emergem
do meio do círculo, a dançar em contorções
selvagens, que são acompanhadas por gestos
tão extremos que dificilmente poderiam ser
descritos com palavras. Ao mesmo tempo, os
outros participantes marcam o ritmo com
as mãos e os pés, enquanto entoam cantos
monótonos. Assim como no continente,
tais danças podem durar horas, ao longo
de toda a noite. Mesmo em casamentos e
rituais fúnebres, muitos costumes africanos
prevalecem sem ter tido muita influência
do Cristianismo. (DOELTER, 1888 apud
HURLEY-GLOWA, 1997, pp. 171-172),5
É bastante evidente, mesmo numa
rápida leitura destes trechos, uma atitude
negativa e de reprovação perante o
batuku, patente no emprego de termos
e expressões como “dezordens”; “excesso”;
“escandalozos”; “intemperança”; “que se
5 Tradução do alemão para o inglês por Susan e Josef Glowa. Tradução
do inglês para o português feita pela autora com o apoio de Robert
Sarwark.
84
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
opõem à civilização actual”; “altamente
inconveniente e incómodo”; “ofensivo da
boa moral, ordem e tranquilidade pública”;
“campo da imoralidade e da embriaguez”;
“pouco decente”; e “lascívia personificada”.
Percebe-se também nesses trechos a
alusão a quem pratica o batuku, ou seja,
a camada mais baixa na escala social:
“escravos”; “pessoas estranhas, ou que
não pertencem a família de qualquer
caza”; “classe de pretos livres e libertos”;
“povo menos civilizado”, entre outros. Um
trecho de Francisco Travassos Valdez, é
explícito ao referenciar os “vadios”, ou
“badios”, “gente que mais se entrega ao
uso de bebidas espirituosas, do que resulta
o famoso batuque, e mil dissoluções e
molestias” (VALDEZ, 1864, p. 251).
Os locais de realização das sessões
de batuku são também reveladores:
uma casa pouco decente; o “escuro das
paredes, revestidas somente do preparo
para o reboco” e às quais a areia preta
utilizada dá “uma cor triste”; o facto de
o local ser “sombrio”…
Por sua vez, a música é apresentada com
expressões como: “sons pouco harmoniosos”;
“guitarras em desacordo entre si”; “infernal”;
“sem cadência, sem harmonia e sem gosto”;
“o mais desarmonioso possível”; “cantos
monótonos”. Trata-se, pois, de descrições
claramente negativas e marcadas por
várias ausências: de harmonia, de acordo,
de cadência, de gosto, de diversidade
de tons. Com a excepção, é verdade, do
texto de Almeida, que refere “um outro
acompanhamento mais positivo, mais igual
e mais conforme ao canto (…) a fazer
esquecer velhos pesares (…) uma espécie
de rufo, que é onde está toda a delicadeza
do xabeta” e ainda a referência às vozes,
“que elas possuem de uma extensão a
causar inveja ao mais abalizado barítono”
85
(ALMEIDA, 1989, pp. 77-78).
1.2 - Século XX - últimas
décadas do regime colonial
Ao longo do século XX, várias alusões
ao batuku pela imprensa e outros textos
contribuem para o que se pretende mostrar
neste artigo: as atitudes face ao batuku
ao longo do tempo. Reveladores da
mentalidade vigente na época colonial
entre a elite letrada, ou seja, formadores
de opinião, a maior parte dos trechos
aqui apresentados estão carregados de
ideias e sentimentos negativos, contrários
à normalidade, inferiorizantes ou, ao invocar
a proximidade do batuku com a África,
não o assumindo como característico de
Cabo Verde.
Um trecho da imprensa de 1917,
resposta a um artigo anterior, em meio
a uma polémica do momento, contesta
um comentário do autor desse primeiro
texto: “Lembrou-se o batuque com o
propósito de desprestigiar (…) Quiz o
crítico deprimir com mais [ilegível] os
povos de Cabo Verde, afirmando que
dançavam o batuque, parecendo-nos que
seja o mesmo que chamar-lhes selvagens?”
(LAGE, 1917, p. 2)
“Pobres selvagens.” Esta expressão
aparece no poema de António Pedro6 que
causou celeuma na altura. Consta que
o seu livro Diário, publicado em 1929,
foi rasgado por um grupo de estudantes
liceais e os pedaços remetidos ao autor,
criticado pelo seu alheamento à realidade
cabo-verdiana. Vivendo em Portugal desde
a infância, depois de uma visita a Cabo
Verde, aos 20 anos, António Pedro escreveu
um poema sobre o batuku com pinceladas
6 António Pedro da Costa (1909-1966), poeta, dramaturgo e artista
plástico que revolucionou o teatro português no seu tempo, tido como o
introdutor do surrealismo em Portugal, nasceu na localidade de Laranjo,
arredores da Praia.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
de cores vivas, em que destaca o aspecto
erótico que dele reteve, com termos como
“bacanal!”; “dança doida”; “mole e sensual
/ meneio de ancas e de ombros”; “cópula
carnal”; “passo da dança dela / que me
extasia…”; “a negra nua e macia…” 7
(COSTA in FERREIRA, 1997, p. 78-79).
Pedro Cardoso, por sua vez,
aproximadamente na mesma época, dedica
ao tema várias páginas do seu livro Folclore
Caboverdeano. Recordando que quase nada
está feito, “nada escrito com método e
seriedade” sobre o folclore cabo-verdiano,
critica que por vezes as notícias que aparecem
em jornais e almanaques prendem-se ao
insólito de certos hábitos, reduzindo-os ao
anedótico, quase sempre com “o propósito
de ridicularizar a ‘selvagidade’ indígena”.
Prosseguindo: “No Folclore caboverdeano
deparam-se, é certo, reminiscências de
crenças e ritos gentílicos, notoriamente na
ilha de Santiago (batuque, tabanca, etc.),
onde predomina ainda o elemento etíope
sem mescla” (CARDOSO, 1983; 1933, p.
18). O autor dedica algumas páginas ao
batuku, à cimboa8 e a algumas cantigas
de finaçon, que reproduz e sobre as quais
escreve: “Finaçon, versos soltos, muitas
vezes sem unidade métrica, improvisados
ao sabor da fantasia, podiam chamarse ‘confusão’. Algumas há não de todo
destituídas de graça, e outras até envolvendo
sentenças” (CARDOSO, 1983; 1933, p.
88). Referindo-se a uma das cantigas cuja
letra reproduz, escreve em nota de rodapé:
“O santiaguense, sendo como fica dito, o
menos evoluído dos seus irmãos, excede-os,
no entanto, em dedicação e gratidão para
7 Talvez seja interessante referir que o descontentamento que Diário
causou nos jovens cabo-verdianos não foi, provavelmente, devido
especificamente ao poema sobre o batuku, mas ao livro de modo geral.
Até porque o poema sobre a morna – “já velha sem ser antiga”, “um semicivilizado lasso balanço” – possivelmente também não lhes terá agradado.
8 Cimboa, ou cimbó: instrumento musical cordofone encontrado em
vários países da África, com diferentes denominações. Tem uma única
corda, feita com fios de rabo de cavalo. A sua caixa de ressonância, de
cabaça ou coco, é recoberta com pele de cabra. Utilizado durante as
sessões de batuku. Mais pormenores em Nogueira (2007, pp 175-183).
com a mãe. Nunca a esquece. Admirável!”
(CARDOSO, 1983; 1933, p. 95).
Pode-se notar aqui que Pedro Cardoso,
embora fosse um intelectual com agudo
senso crítico, que valorizava as tradições
culturais da sua terra, assinava textos
com o pseudónimo Afro e era “um
ardente defensor do continente negro
e da dignificação do homem africano”
(BRITO-SEMEDO & MORAIS, orgs.,
2008, p. 9), não estava imune às ideias
eurocêntricas do seu tempo. Critica os que
ridicularizam a “selvagidade” indígena
mas não a contesta, associando, tal como
faz João Lopes, como se mostrará a seguir,
Santiago às reminiscências da África,
ambos (Santiago e a África) distantes
do mundo a que o jornalista pertence –
uma elite ideologicamente “branca”, ainda
que os aspectos etnográficos “africanos” o
fascinem. É assim que, do finaçon, Cardoso
salienta a falta de unidade métrica e o
facto de ser improvisado, aspectos que
associa à “confusão” (contrário de ordem,
organização). Algumas cantigas, refere,
não são totalmente destituídas de graça,
o que faz pensar que, na sua opinião, a
maior parte o seja.
1.2.1 - Batuku e os claridosos
Ao surgir em 1936, Claridade revela
já no seu primeiro número o interesse dos
seus responsáveis por aspectos etnográficos
de Santiago (de que serão exemplos textos
de Félix Monteiro sobre a tabanca e de
Baltasar Lopes sobre batuku e finaçon),
com duas cantigas de finaçon na capa.
Baltasar Lopes voltará a estes temas nos
números 6 e 7 da revista, e também em
Cabo Verde visto por Gilberto Freyre.
Nesta brochura, o escritor claridoso, que
defendia a proeminência da componente
portuguesa da cultura de Cabo Verde
86
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
sobre a sua componente africana, ao
fazer um comentário sobre as tabancas
da ilha de Santiago – únicas manifestações
cabo-verdianas, segundo ele, em que “se
podem ainda notar ecos esbatidos de cultos
africanos…” –, diz ser possível que ela
“despindo-se do seu carácter ritual, viesse
a confundir-se com o batuque; isto é, vir a
especializar-se numa forma de expressão
dionisíaca da vida”. No mesmo texto, faz
referência à população de origem africana
das Antilhas e outras regiões das Américas,
afirmando: “é animada e conduzida na
música, no folclore novelístico, na dança,
no aproveitamento de valores africanos
para a orquestração típica, por apelos
que já não actuam por cá.” (sublinhado
da autora) (LOPES DA SILVA, 1958,
pp. 19-20)
A intenção de Lopes da Silva era
mostrar a maior proximidade cultural
de Cabo Verde com a Europa do que com
a África. Contudo, a ilha de Santiago não
se encaixa nesse padrão, como reconhece
o autor ao referir que o terreiro de batuku
é o meio que a herança cultural africana
proporciona ao santiaguense para definir a
sua atitude perante a vida. Ou como escreve
a propósito do processo de aculturação:
Já a ilha de Santiago, com suas manifestações
culturais típicas – o batuque (…) a tabanca,
o cimbó, a magia negra, o tamborona, o
folclore novelístico, o seu catolicismo especial,
a maior ocorrência de vocábulos de origem
africana – ainda se encontra em fase de
adaptação. (LOPES DA SILVA, 1947, p. 19)
A mesma postura encontramos em João
Lopes, que considera a ilha de Santiago
como “em parte um compartimento
estanque em Cabo Verde”, que guarda
“maior fidelidade às origens africanas, aos
seus ritmos originários”. Ainda Lopes, a
respeito desta ilha: “Seus batuques evocando
na insistência monocórdica do cimbó o
que ficou lá longe, em África” (LOPES,
2007, p. 80, sublinhado da autora). Por
outro lado, ao escrever sobre a morna, nas
suas palavras “a primeira embaixatriz do
mundo espiritual de Cabo Verde”, este autor
afirma: “A nossa morna como elemento
folclórico tem profundas raízes na nossa
psicologia e todo o seu andamento traduz
um sentir próprio do nosso povo” (LOPES,
idem, p. 114).
Ressalta destes trechos que, à parte o
interesse etnográfico destes autores pelas
manifestações culturais de Santiago, a
atitude predominante é de considerá-las
algo distante: a África com seus batuques,
“lá longe”; aqui, a “nossa morna” com
a sua melancolia suave. Esta tendência
revela-se também nas representações de
Cabo Verde nas exposições coloniais em
Portugal nesse período.
1.2.2 - A participação de Cabo Verde
nas exposições coloniais
As representações da colónia de Cabo
Verde nas exposições coloniais nunca incluem
o batuku. As expressões musicais que
levam este nome e que aparecem nesses
eventos – com grande sucesso de público,
aliás, pelo seu exotismo e exuberância –
são as da Guiné, Angola, Moçambique.
Estes músicos e dançarinos das colónias
portuguesas mereceram, durante a realização
da Primeira Exposição Colonial Portuguesa
(Porto, 1934) e da Exposição do Mundo
Português (Lisboa, 1940), grande destaque
nas páginas da imprensa de então. Durante
todo o Verão de 1940, os jornais trazem
anúncios e artigos sobre espectáculos de
batuques africanos que se realizam, a
partir do início de Julho, semanalmente,
para mais tarde entre Agosto e Setembro
serem praticamente diários9. Veja-se um
9 Pesquisados para encontrar referências à participação cabo-verdiana
87
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
comentário publicado na imprensa após
um desses espectáculos:
O europeu acolhe, assim, sempre, com delícia,
o espectáculo dos costumes e das curiosidades
de outros povos que (...) conservam estranhezas
e pitorescos.
O que é um batuque? O termo, por si só, é
uma trepidante evocação da dança exuberante
e colérica, em que palpita a própria alma
e o mistério doloroso e frenético da selva.
Há ali como que uma repercussão temível
das arremetidas e dos uivos das feras,
precipitadas através da floresta deusa na
ânsia vertiginosa e feroz do ‘stuggle for
life’ (...) e os arrebatamentos do amor, as
contorções ciosas e brutais que preludiam o
êxtase; a submissão dolente do homem sob
os raios ardentes de um sol que fustiga (...)
Que fantástica orquestração de ritmos, de
brados, de apelos, de espasmos se traduz
no batuque! (PAMPULHA, 1940)
Quem representa Cabo Verde nestes
eventos, do ponto de vista musical, é
sempre a morna, com a sua melancolia
e sentimentalismo. São reveladores
os trechos a seguir, extraídos de uma
conferência sobre a morna proferida no
âmbito da Exposição Colonial de 1934. Para
o seu autor, o escritor Fausto Duarte, o
batuku praticamente não existe, tendo sido
destronado pela morna, que aparece como
uma evolução da barbárie / sensualidade /
voluptuosidade africana para a suavidade
/ melancolia / sentimentalismo romântico
que se pretende ser a característica do
cabo-verdiano. Uma clara intenção de
branqueamento da cultura cabo-verdiana
emana deste texto, como se pode inferir de
trechos como: “Os seus cantares não têm
aquela alegria esfuziante que caracterizam
os batuques do continente negro”; “O batuque
os jornais Diário de Lisboa (01.05.1940 a 06.12.1940); O Século
(04.04.1940 a 06.12.1940) e República (01.05.1940 a 06.12.1940).
é toada ruidosa a ritmo desconcertante”;
ou “O batuque apaga-se ante a modalidade
da nova dança onde não existe qualquer
reminiscência da ancestralidade negra”. A
conclusão do conferencista é que “a feição
típica” de Cabo Verde do ponto de vista
musical reside na morna e no violão, pois a
primeira destronou o torno e o instrumento
introduzido pelos europeus fez esquecer
a cimboa e o tambor. (DUARTE, 1934,
pp. 11,13,16-17)
1.2.3 - A repressão do batuku
Várias pessoas que sentiram na pele
a repressão ao batuku e outras formas de
festejos populares, como o tradicional baile
de gaita10, deixaram os seus depoimentos,
como Codé di Dona (1940-2010), que
contava ter sido multado por tocar uma
noite inteira no baptismo do seu filho,
nos anos 60,
Não tinha cama para toda a gente poder
se deitar, não tinha carro, então peguei a
gaita e toquei. No outro dia mandaram
intimação. Fizeram queixa de mim no regedor
(…) 300 mil réis de multa, naquele tempo era
como 600 contos hoje. Eu não tinha aquele
dinheiro. (Codé di Dona, entrevista, 1998)
Nácia Gomi (1925-2011), por sua
vez, dizia recordar-se que, à data do seu
casamento, em 1959, o batuku estava
proibido desde 1941 (havia quase 20
anos); que os catequistas eram instruídos
a denunciar as festas com batuku; e que
os padres se recusavam a casar pessoas
em cujas casas havia batuku (entrevista a
Orlando Rodrigues, Agência Lusa, 2004,
apud GONÇALVES, p. 28).
Hurley-Glowa refere na sua tese que,
ao questionar pessoas em Cabo Verde
10 Gaita: acordeão diatónico, utilizado habitualmente para tocar o
funaná no contexto tradicional.
88
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
sobre o batuku já ter sido proibido, a
geração mais velha de batukaderas tendia
a responder que a repressão não era do
governo, mas da Igreja Católica, e que os
sacerdotes se opunham à livre expressão da
sexualidade e do tom de desafio encontrado
no batuku. A batukadera Tchim Tabari
respondeu-lhe que as autoridades, embora
não gostando muito do batuku, nunca
impediram o povo de o praticar nos seus
próprios bairros. Não podia era subir ao
Plateau (HURLEY-GLOWA, pp. 184-185).
Os documentos da Administração do
Concelho da Praia referentes aos anos 40
e 50 existentes no Instituto do Arquivo
Histórico Nacional revelam alguns aspectos
desta questão. Para já, a existência de
normas que exigiam a solicitação de uma
autorização ou licença para a realização
de bailes, ainda que fossem em casas
privadas, e de outras festas, como por
exemplo a tabanca, à qual a música do
batuku está associada. (AHN, Cx. 26).
Numa autorização de 1947 especificase que são proibidos “cânticos e gritos
desordenados”. Sabendo-se que a música
de baile nessa época era tocada por grupos
compostos basicamente por violas e outros
instrumentos de corda, sendo o violino
quase sempre o instrumento solista, cabe
questionar se não era ao batuku que se
referia a proibição dos referidos cânticos
e gritos.
Sobre a acção da Igreja Católica no
combate aos folguedos populares e profanos,
vários documentos são reveladores. Em
1956, eclesiásticos pedem às autoridades
administrativas que proíbam os bailes por
ocasião das festas religiosas, tendo aquelas
autoridades agido de acordo com essas
solicitações. Para a festa de S. Lourenço, a
10 de Agosto, o pároco de Órgãos pede ao
administrador do concelho da Praia para
“não dar licença para baile em nenhuma
89
parte dos Órgãos, por ocasião da mesma
festa de S. Lourenço, quer dias antes, quer
no dia, quer nos dias seguintes”. Como
resultado, o administrador do concelho
escreve ao regedor da freguesia dos Órgãos
incumbindo-o de tomar “as medidas
necessárias para evitar a realização de
festas e bailes” naqueles dias. O mesmo
se passa em Pedra Badejo por ocasião do
dia de Santiago Maior, patrono daquela
freguesia (IAHN Cx. 58).
Esses documentos não fazem referência
explícita ao batuku, mas é possível inferir
que incidiam sobre ele, entre outros itens
dos bailes, já que esta modalidade de
música e dança é até hoje uma das formas
mais frequentes de comemoração no
interior de Santiago. Quanto mais não
seriam então naquela época, em que as
influências musicais exógenas eram muito
mais limitadas.
Cabo Verde independente
A nova atitude perante o batuku,
anunciada pelo poema de Dambará
e o artigo de Delgado às vésperas da
independência, revela-se já em Setembro
de 1975, com o grupo de teatro amador
Korda Kaoberdi, dirigido por Francisco
Fragoso. O próprio nome do grupo (que
significa “acorda Cabo Verde”) é por si só
um chamado para que os cabo-verdianos
despertassem para a sua própria realidade
e cultura. Neste grupo, o batuku teve um
papel de destaque através daquela que
liderava essa parte dos espectáculos: a já
citada Tchim Tabari (Cipriana Tavares,
1922-2003). Com o Korda Kauberdi, o
batuku será levado em 1981 para o Festival
Internacional de Teatro Ibérico, no Porto,
como parte da peça Rai de Tabanka mas
antes disso o grupo já actuara nas ilhas
de S. Vicente e Fogo e na Guiné-Bissau
(Bissau e interior), nas comemorações do
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
aniversário da independência, em 1976.
Nesse período, verificam-se deslocações
de grupos de batuku para actuarem em
diferentes municípios e ilhas, organizadas
por entidades como a OMCV e outras
ligadas ao partido – único – no poder.
Ntóni Denti d’Oru, por exemplo, conta
que viajou para S. Vicente, Santo Antão
e Fogo, e participou da inauguração do
Palácio da Assembleia Nacional (Ntóni
Denti d’Oru, entrevista, 1998).
Naqueles primeiros tempos do pósindependência, “pouquíssimos conheciam
o batuku. Foi uma descoberta para eles”
diz Fragoso (NOGUEIRA, 2011, p. 74),
referindo-se ao grande número de profissionais
e militantes do PAIGC que se transferem
do estrangeiro ou de outras ilhas para a
capital, nessa altura, o que mostra que
o batuku era praticamente desconhecido
fora do seu contexto de origem.
É interessante notar que vários dos
artigos em periódicos dessa época parecem
procurar divulgar o batuku para aqueles
que não o conhecem e convencer os leitores
do seu valor: “Uma das mais genuínas
manifestações culturais do povo de
Santiago”; “a oportunidade de ver em acção
autênticos artistas populares, muitos deles
praticamente desconhecidos do público
da capital e arredores” são enunciados
presentes num artigo que dá conta de
um concurso de batuku presenciado pelo
primeiro-ministro e altas autoridades
nacionais (VP, 19.05.1984, p. 5).
A Organização das Mulheres de
Cabo Verde (OMCV) teve um papel
importante na valorização do batuku,
seja ao dinamizar grupos e ao organizar
concursos e apresentações como também
através da sua revista mensal, Mujer. Em
1982, Dulce Almada Duarte, na época
directora geral da Cultura, publica um
artigo nesta revista e justifica o tema com
o facto de o batuku ser “desconhecido por
grande parte da população cabo-verdiana”.
Trata-se de uma minuciosa explanação
histórica sobre o batuku, baseado em grande
parte nos escritos de Baltasar Lopes da
Silva, e a autora conclui afirmando que,
após anos de repressão colonial, “a sua
vitalidade de hoje é a prova de que, como
disse Cabral, a luta de libertação nacional
foi, antes de mais, ‘um acto de cultura’”
(DUARTE, Mujer, 7, 1982, pp. 15-16).
A publicação da OMCV abriu espaço
para o batuku outras vezes, ao longo do
ano de 1984: um poema de Vera Duarte
intitulado Mulheres batucadeiras (DUARTE,
Mujer, Fevereiro, 2, p. 16);11, um perfil
(com duas páginas!) de uma menina
batukadeira de 13 anos (Mujer, Junho,
6, p. 12-13); e na secção “Puzia & Mujer”,
coordenada por Oswaldo Osório, dois textos
sobre Bibinha Cabral: “Finação de Bibiña
Kabral, cantadeira de Santiago”, com os
versos de uma das suas cantigas (Mujer,
Novembro, 11, p. 20) e “Ainda Bibiña
Kabral, apresentação de divisa” (Mujer,
Dezembro, 12, p. 14).
Passada uma década da independência,
podemos constatar que a luta por uma nova
mentalidade do ponto de vista cultural
– de que o batuku beneficia, passando
a ser valorizado – é uma realidade. Em
1985 realiza-se uma Semana de Defesa
do Património Histórico. O então ministro
da Educação, Corsino Tolentino, na sua
intervenção durante o evento e referindo-se
à identidade cultural e à luta de libertação,
afirma que a primeira “foi um dos pilares
da segunda, como elemento galvanizador
das forças de ruptura com o colonialismo”
11 Refira-se, no que diz respeito à sensibilização para as questões do
património de modo geral, que esta mesma edição traz um artigo de
Dulce Almada Duarte (na época directora geral do Património Cultural)
intitulado “Preservemos o nosso Património Cultural” e ostenta na
contracapa uma foto da Cidade Velha.
90
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
(VP, 30.10.1985, p. 4).
Em 1987, um comunicado do Ministério
da Cultura na sequência de uma reunião
dos responsáveis e técnicos do sector com
o ministro David Hopffer Almada, consta
uma série de determinações para acções
prioritárias neste domínio, no qual se
lê: “Apoio sistematizado e planificado às
manifestações culturais do nosso povo,
com particular realce para a Tabanca,
o Carnaval e as Festas de Bandeira e
Apoio às festas tradicionais e aos grupos
culturais” (VP, 31.01.1987, pp. 2-3).
Na mesma época, um artigo de Arcília
Barreto questiona:
Como fazer que todo o cabo-verdiano, em cada
ilha, em cada canto do mundo, conheça a sua
cultura, em toda a sua extensão, não apenas
como coisa morta, esquecida na memória de
alguém ou no novo livro duma estante, mas
sim através de manifestações permanentes
que serão os nossos cantos, teatros, danças,
cinemas, literatura, construídos da nossa
vivência e que evoluirão com o tempo e as
coisas no quotidiano? Como fazer que todo o
cabo-verdiano conheça e se orgulhe de cada
uma das manifestações culturais específicas
de cada ilha, de cada comunidade, como
elementos ou células do Corpo Cultural que
é a Nação Cabo-Verdiana? (BARRETO, VP,
07.02.1987, p. 6)
Por sua vez, em entrevista a Michel
Laban, o jornalista Manuel Delgado
afirmará:
A independência política de Cabo Verde não
teria sido possível nos moldes em que foi
se o PAIGC não tivesse tido a ‘sagesse’ de
desenterrar e fazer explodir toda a cultura
popular cabo-verdiana. A tabanka, o batuque,
tiveram um papel catalisador, fundamental
no processo de consciencialização em Cabo
Verde (LABAN, s/d, p. 746).
91
Percebe-se nesses trechos que a nova
mentalidade baseada nos princípios
nacionalistas favorece claramente os
aspectos culturais antes menosprezados
ao mesmo tempo que se vale deles para
a sua própria afrmação.
Em termos práticos, pode-se afirmar que
é a publicação de três livros de recolhas de
cantigas de batuku e finaçon, realizadas
por Tomé Varela da Silva12, que atesta a
valorização do batuku como elemento da
cultura cabo-verdiana, assumido como
património imaterial, ainda que, na
altura em que saem essas obras, a própria
Unesco ainda dá os primeiros passos, com
a Recomendação de 1989, do que virá a
ser a Convenção para a Salvaguarda do
Património Cultural Imaterial de 2003.
Trata-se de Ña Bibiña Kabral – Bida y
Obra (1988), Finasons di Ña Nasia Gomi
(1988) e Ña Gida Mendi – Simenti di
Onti na con di mañan (1990).
É ainda do início dos anos 80 a gravação
de um documentário intitulado Songs of
Badius pelo antropólogo norte-americano
Gei Zantzinger (1936-2007). Dado que na
altura a TVEC (Televisão Experimental
de Cabo Verde) estava a dar os seus
primeiros passos, será provavelmente
nesse documento que se encontram as
únicas imagens fílmicas de Nha Bibinha
Cabral, que morreu pouco tempo depois
e a cuja memória é dedicada a obra.
Mais recentemente, o batuku veio a ser
objecto de interesse por parte de duas
documentaristas portuguesas, Catarina
Rodrigues e Catarina Alves Costa, e do
cabo-verdiano Júlio Silvão Tavares.
2.1. ‘Batuku sta na moda’
A partir dos anos 90 do século XX,
12 Refira-se que estas recolhas constituem uma pequena parte do
trabalho deste investigador com as tradições orais de Cabo Verde, que
já rendeu, até 2011, cerca de meia dúzia de livros, excluídos os aqui
referidos.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
passa-se a encontrar com frequência na
imprensa e em outras fontes dados sobre
o batuku como representação artística de
Cabo Verde na programação oficial do país
em eventos culturais no estrangeiro, algo
que não acontecia antes. A Expo 92, em
Sevilha, Espanha; o Festival of American
Folklife, da Smithsonian Institution, em
Washington DC, em 1995; e A Expo Lisboa,
em 1998 são exemplos.
Ao mesmo tempo, começam a aparecer
gravações de batuku editadas em CD,
como no disco Music From Cape Verde,
de 1993, editado na Suécia, com cantigas
de Nácia Gomi gravadas na sua própria
casa. Seis anos depois irá sair, gravado
já num estúdio profissional, Nacia gomi
cu ses mocinhos, e em 2005 Finkadus na
Raiz, desta cantadeira com Ntóni Denti
d´Oru. Nácia Gomi teve também uma
participação no CD Rei di Tabanka, do
grupo Ferro Gaita. Estes são apenas
alguns entre vários exemplos de trabalhos
discográficos dedicados especificamente
ao batuku ou em que ele aparece. Mas já
nos anos 80 alguns artistas tinham-se
debruçado sobre este ritmo, como Norberto
Tavares, João Cirilo e o grupo Bulimundo,
cujo terceiro álbum tem justamente o
título Batuco.
Ao longo dos anos 90, aparecem outros
trabalhos de artistas provenientes de
diferentes estilos musicais que se baseiam
no batuku, nele se inspiram ou dele se
aproximam, de alguma forma, como Eutrópio
Lima da Cruz, Vasco Martins (para mais
pormenores, ver NOGUEIRA, 2011, Anexo
4) e todo o grupo que, a partir de finais
da década de 90, surgirá a trabalhar o
ritmo do batuku com instrumentos da
música urbana contemporânea, em que
se incluem Tcheka, Princezito, Vadú,
grupo Djingo, Mayra Andrade, Lura,
entre outros. Orlando Pantera, que se
tornou um ícone desta tendência, chega
mesmo a compor um tema em que afirma
que o batuku está na moda.
Considerações finais
A exposição cronológica das diferentes
atitudes, e acções delas decorrentes,
face ao batuku mostra o quão dinâmica
e marcada por questões ideológicas é
a maneira de se encarar determinada
expressão cultural, revelando a questão
de poder que lhe está subjacente: só com
o pensamento nacionalista o batuko veio
a ser valorizado.
Evidencia também como o património
cultural é algo construído a partir de
escolhas. No caso de Cabo Verde, a
morna aparecia na primeira metade do
século XX, como elemento representativo
de todo o arquipélago, ainda que, como
realça Dias ao estudar a construção do
percurso da morna enquanto símbolo
nacional, fiquem na história apenas
três localidades, a Boavista, a Brava e
São Vicente, eliminando as outras ilhas
(DIAS, 2004, p. 73). A ideia de “primeira
embaixatriz do mundo espiritual de Cabo
Verde” que “traduz um sentir próprio do
nosso povo”, como refere Lopes, (2007, p.
114) é outro exemplo que torna nítida a
escolha daquilo que podia ser representativo
de Cabo Verde, em contraposição à posição
que ocupava o batuku nesse âmbito de
ideias – a África, lá longe.
Assim, tal como outras expressões
musicais que são ícones da cultura dos
seus países – como o samba, o fado, o
tango –, originários também elas de grupos
subalternos, o batuku no seu processo de
aceitação e valorização passa também
por uma renovação, atraindo artistas
das gerações mais novas, incorporando
novas linguagens e sons e prosseguindo
92
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
o seu percurso como expressão cultural
vigorosa e marca identitária – uma delas
– do país.
Neste início do século XXI, o batuku
aparece como uma forma de arte como
várias outras em Cabo Verde. Mas como
já se afirmou no início deste trabalho,
nem sempre foi assim. Parece oportuno
apresentar, como balanço de todo esse
percurso do batuku, a visão de Franco
Crespi ao comentar o quão problemático
é o termo arte. Aplica-se, segundo este
autor,
segundo diferentes contextos sócio-culturais,
particularmente os relacionados com as estruturas
sociais (estratificação de classes e de camadas,
formação das elites, distribuição do poder,
situações de centralidade e marginalidade,
modos de produção, formas de consumo,
nível da técnica, etc.) e com características
do sistema cultural dominante, nas suas
formas e nos seus conteúdos (valores
estéticos, morais, sociais, estilos de vida,
homogeneidade e heterogeneidade, etc.).
(CRESPI, 1997, p. 171)
Seguindo esta linha de ideias, o termo
“arte” é problemático porque não existem
critérios absolutos para definir o que é
arte e o que o não é, e os critérios em
que se baseia a atribuição do adjectivo
“artístico” a determinada forma expressiva
se alteram com o tempo – algo que a
história do batuku nos últimos cinquenta
anos mostra com exemplos abundantes.
Estudar o batuku é, por outro lado, uma
forma de revelar aspectos da trajectória
do povo cabo-verdiano, do ponto de vista
histórico e cultural, já que o estatuto que
passou a ter no período pós-independência
é claramente decorrente das ideias
nacionalistas do novo poder instituído.
Mas ainda antes disso, a própria inclusão
do poema de Dambará no LP Poesia
Cabo-Verdiana Protesto e Luta, que foi
um instrumento da luta que se travava
também no âmbito cultural, mostra a
reinvindicação do batuku já como parte
desse processo de luta contra o colonialismo.
E o poeta termina dizendo que o batuko é
a alma do povo cabo-verdiano, tal e qual
já se dissera da morna.
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
98
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
A FAMÍLIA EM CABO VERDE. UMA
PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA1
Andréa Lobo2
Resumo/Abstract
O artigo tem por objetivo refletir sobre as categorias de organização e desorganização
no contexto familiar cabo-verdiano a partir de uma perspectiva antropológica.
Lançando mão dos dados coletados em pesquisa realizada na ilha da Boa Vista,
analiso a constituição de uma estrutura familiar que é informada, em larga medida,
por modelos em contraste e em composição, o modelo local e um modelo ideal de
família nuclear associado ao mundo europeu. Desta forma, pretendo relativizar as
noções de “desagregação” e “crise” recentemente associadas ao contexto familiar nesta
sociedade ao desvendar a organização social do contexto familiar em Cabo Verde.
Palavras-chave: Cabo Verde; antropologia social; organização familiar; parentesco;
género.
The article aims to reflect on the categories of organization and disorganization
in the family context of Cape Verde from an anthropological perspective. Culling the
data collected in a survey conducted in Boa Vista, I analyze the constitution of the
family structure that is informed largely by models in contrast and composition, the
local model and a model of one ideal nuclear family associated with Europe. Thus,
I intend to relativize the notions of “disintegration” and “crisis” recently associated
with family in this society to unravel the social organization of family context in
Cape Verde..
Keywords: Cape Verde, social anthropology; familiar organization; kinship; gender.
1 Uma versão deste trabalho foi apresentada na Conferência de Abertura da 3ª turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade de Cabo Verde. Agradeço os comentários dos participantes que, na medida do possível, foram incorporados na versão atual do texto.
2 Andréa Lobo é doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da
Universidade de Brasília (UnB). Hoje é professora adjunta da Universidade de Brasília. Realiza pesquisa em Cabo Verde desde o ano de 2000 sobre fluxos
migratórios e organização familiar na sociedade cabo-verdiana.
99
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
O tema da “crise familiar” tem mobilizado,
nos últimos anos, esforços de políticos,
intelectuais e ativistas do terceiro setor em
Cabo Verde. Dentre os diversos desafios
que o país enfrenta no contexto póscolonial, as reflexões sobre a “estrutura
familiar cabo-verdiana” e sua suposta
desagregação têm sido foco de debates
e de propostas de políticas públicas (re)
ordenadoras. Num país frequentemente
caracterizado por uma intensa “abertura
ao outro”1, tais processos ocorrem em meio
a um diálogo com distintos modelos de
estruturas familiares, especialmente com
o modelo de família nuclear e associado a
uma estrutura familiar ocidental europeia.
Tendo como pano de fundo este debate,
o presente artigo tem por objetivo refletir
sobre as categorias de organização e
desorganização no contexto familiar
cabo-verdiano a partir de uma perspectiva
antropológica. Lançando mão dos dados
coletados em pesquisa realizada na ilha da
Boa Vista, analiso a constituição de uma
estrutura familiar que é informada, em
larga medida, por modelos em contraste e
em composição. Desta forma, pretende-se
relativizar as noções de “desagregação” e
“crise” recentemente associadas ao contexto
familiar nesta sociedade. Inicio com a
citação de uma informante; sua perspectiva
dará o tom de minhas reflexões.
Aqui temos muito o problema da família
desestruturada, não tanto por causa do
divórcio, porque a maioria nem casada
no papel é, mas por causa da emigração.
A mulher emigra e os filhos são criados
pelas avós, não tendo a referência de pai
e mãe, e isso complica muito a questão
1 Não me refiro somente ao fenômeno migratório ao falar desta
“abertura ao outro”, mas do importante papel de instituições de países do
Norte no âmbito da cooperação internacional, dos quadros de intelectuais
e outros profissionais que estudam em universidades de diferentes países
retornando a Cabo Verde com ideias e modelos de fora; isso sem falar
da história do arquipélago, marcada por fluxos com diversos “outros” e
a capacidade dos “ilhéus” de incorporarem o de fora na constituição de
uma cultura crioula.
familiar, pois os avós fazem parte de uma
geração muito diferente da dos netos e não
conseguem ter diálogo.
A relação com as mães emigradas acaba
por ser difícil por causa da distância, pois
elas passam um ou dois meses a cada dois
anos perto dos filhos e o resto do tempo fora.
O pai boa-vistense não liga para a família
mesmo, então o peso fica todo na avó. A
emigração é o bem e o mal de nossa família.
É uma família desestruturada, não é normal
como lá na Europa, por exemplo. Lá o pai e
a mãe dividem tudo, a responsabilidade na
casa e no trabalho. , Aqui é só a mulher …
coitada … ! O homem só quer saber “de do
seu egoísmo, de da sua rua”, das pequenas
[namoradas] e do grogue [cachaça]. Daí
tem vem o problema da gravidez precoce
e da promiscuidade sexual que está pior
agora por causa de muita mistura na Boa
Vista, por causa do turismo. O problema é
assim: os jovens da Boa Vista comportamse cada vez mais de acordo com influência
de coisas ruins justamente por não terem a
referência correcta do pai e da mãe juntos,
como deve ser!
A reflexão é de uma professora do Liceu
da Boa Vista. Ela tenta explicar para
uma jovem italiana porque a Boa Vista
estaria perdendo os valores morais que
por tantos anos a distinguiu do restante
das ilhas do arquipélago de Cabo Verde:
povo pacato, simples e alegre. Onde estaria
o problema? Primeiro, na ideia de uma
família desestruturada em que a mãe se
encontra-se na emigração, o pai em qualquer
outro lugar que não a casa, e a avó, já
com idade avançada, assumindo funções
que não lhe caberiam em uma situação
de “normalidade”. Complementar a este
esse quadro, a explicação da professora
incorpora o turismo e a “mistura” como
um segundo foco de problemas para os
100
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
jovens da ilha, sendo aqui a categoriachave a de “má influência”.
A imagem construída pela professora
era compartilhada por muitos que foram
convidados pela pesquisadora ou por algum
evento cotidiano, a refletir sobre a organização
familiar boa-vistense. Por diversas vezes
fui corrigida quando explicava o sentido
da pesquisa sobre organização familiar:
você quer dizer desorganização familiar,
não é mesmo? Esta questão trazia uma
ambiguidade importante e sempre presente
no entendimento que tinham sobre os
objetivos da pesquisa: ao imaginarem
que a família nuclear e monogâmica
(e idealmente europeia) seria a única
adequada, interpretavam que factores
característicos da família boa-vistense
seriam sinais de atraso, desorganização
ou até declínio das relações familiares.
Porém, quando tais explicações eram
cruzadas com uma observação atenta
e continuada das práticas em torno da
família, a ambiguidade ficava mais aparente,
inspirando minha curiosidade com os
entendimentos sobre a desorganização
na família da Boa Vista.
Desde os primeiros dias de trabalho
de campo impressionou-me o valor dado
à mobilidade e à circulação de homens,
mulheres e crianças no universo familiar
boa-vistense e logo percebi que tais
famílias “espalhadas” não eram frutos
de desorganização, tal como explicava a
professora, mas de uma “outra” forma de
organização familiar. Embora os próprios
boa-vistenses pontuem suas conversas
com frases e afirmações que valorizam
a moralidade da família cristã europeia
enquanto situação ideal, suas práticas e
atitudes diante de fatos concretos revelam
orientações que pouco têm a ver com ela.
Tal contexto desafiava dois pressupostos
metodológicos básicos da antropologia;
101
o primeiro, de que não existem valores
irracionais que sejam mantidos e atualizados
pelas culturas e, o segundo, de que devemos
levar a sério o que nossos informantes
nos dizem. Ora, a fala que abriu esta
apresentação me colocava-me numa situação,
à primeira vista, complicada – como lidar
com a categoria desorganização quando
ela estava colocada no discurso de meus
próprios informantes? Minha saída foi,
portanto, conjugar duas faculdades muito
utilizadas no trabalho de campo: o ouvir
e o ver. Conjugando discurso e prática
busquei encontrar uma saída para este
dilema inicial.
A coesão familiar na sociedade boavistense depende da força dos mecanismos
para solucionar os riscos de uma estrutura
que se especializou em ejectar alguns
de seus membros, prioritariamente
mulheres adultas, do sistema social.
Neste contexto, o pressuposto de que “a
família tem que viver junta” dá lugar a
outra ideia de família. Trata-se de um
contexto familiar que guarda características
fortes da matricentralidade, normalmente
associada à família cabo-verdiana, mas
que ao mesmo tempo empurra as mulheres
para a emigração na Europa; de famílias
que percebem o binômio mãe-filho como o
vínculo mais importante, porém separamnos em nome da reprodução familiar;
famílias que têm a criança como um valor
fundamental, mas que as colocam para
circular entre casas e localidades; famílias
que constroem a ideia de parentesco por
relações de partilha e proximidade, mas
vivem os relacionamentos familiares à
distância. Seriam estes valores ambíguos?
Contraditórios?
A análise que se segue vai demonstrar que
o sentimento de pertença pertencimento ou
quebra nas relações familiares depende de
um equilíbrio na manutenção dos diversos
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
princípios de filiação social que mantêm
as pessoas unidas. Um princípio emerge
de maneira especial, a unidade mãe-filho.
Então, a estrutura familiar encontrada na
Boa Vista opera, em suas ambiguidades,
como um sistema de princípios que fornece
a base para que indivíduos e grupos sejam
capazes de reproduzir práticas e relações
fundamentais ao sistema (Bourdieu, 1991).
Em que a antropologia pode
contribuir para este debate
Estudos sobre a organização familiar
são tradicionais em nossa disciplina. Desde
os clássicos, nós nos vemos envolvidos em
debates sobre consanguinidade, filiação,
descendência, parentesco, universalidade
da família, a dicotomia entre o biológico e o
social, conflitos geracionais, conjugalidade,
entre outros. Tais conceitos tornaram-se
indispensáveis ao pensamento antropológico
e toda a terminologia de parentesco acabou
por se constituir como a área de estudos
que mais caracterizava a antropologia
como disciplina independente (Pina
Cabral, 2003).
Com o desenvolvimento dos estudos na
área, pesquisadores foram sendo desafiados
a redefinir os conceitos clássicos e novos
debates surgiram à luz dos materiais
fornecidos pelas sociedades estudadas.
No período que vai dos anos 60 até meados
dos anos 80, as teorias da antropologia do
parentesco do período clássico sofreram
críticas profundas. Edmund Leach (1961)
e Needham (1971) foram os primeiros
a lançar críticas radicais à teoria do
parentesco, instalando-se uma crise na
antropologia da época que ficou latente
ainda por alguns anos. Foi somente em 1984,
com David Schneider, que se reapresentou
uma crítica ao eurocentrismo do conceito
de parentesco que, anos mais tarde, iria
gerar uma discussão da problemática do
parentesco em novas linhas, bem como
o deslocamento da atenção para outras
temáticas, como género, casa e outros.
O trabalho de Schneider (1984)2 nos
conduz-nos à desconstrução da categoria
parentesco fundada em laços genealógicos.
O autor critica o caminho pelo qual, desde
Morgan, os antropólogos aplicaram ideias
e valores ocidentais para a análise do
parentesco em outras sociedades. Ele
argumenta que nem todas as sociedades têm
algo chamado de parentesco ou que possa
ser definido nestes termos. Afirmando que
a centralidade na procriação é assumida
a priori em tais teorias, Schneider propõe
que a categoria não tem valor para a
análise de outras culturas porque sua
definição está construída por noções
ocidentais e limitada a elas. A única solução
seria, então, ou abandonar a categoria
completamente ou estabelecer uma agenda
mais limitada: “dada esta definição de
parentesco, este povo particular a possui
ou não?” (1984:200).
Na mesma linha de Schneider, autoras
que tratavam de estudos de género e de
estudos feministas, Collier, Rosaldo e
Yanagisako, lamentam3 o facto de que,
na área da família e do parentesco,
pesquisadores tenham descartado o caráter
histórico e contextual das diversas formas
familiares. No desenvolvimento de seus
argumentos sobre as distinções estanques
entre natureza e cultura, mostrando que
a noção de natureza é tão socialmente
construída quanto qualquer outra, uma
distinção deixa de fazer sentido, aquela
que separa parentesco de gênero em
2 Segundo Pina Cabral (2005), o estudo de parentesco de Schneider é
hoje considerado o texto mais influente na área de estudos de parentesco
pelos comentadores mais abalizados. Prezando pela pureza do conceito,
vê o parentesco como objeto de estudo, possível somente no seu sentido
mais restrito e talvez só nas culturas ocidentais. Veremos mais adiante
que Pina Cabral propõe, ao invés de abandonar a categoria, “desetnocentrificá-la”.
3 Ver o artigo “Is there a family? New anthropological views” (in:
Thorne & Yalom, 1992).
102
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
dois domínios académicos. Guardadas
as diferenças em suas análises, as autoras
dessa geração concordam na rejeição do
parentesco como um domínio particular
de estudos e reconhecem que é infrutífero
estudar o parentesco sem se emaranhar
na realidade complexa das sociedades.
Quero centrar-me num esforço analítico
que seguiu em diálogo com a perspectiva
radical de Schneider e, em certa medida,
das antropólogas feministas, e que gerou
a noção de relatedness. Carsten (2004), a
proponente desta perspectiva, tem como ponto
de partida as ideias de Fortes (1974) sobre
os laços de parentesco. Com Fortes (1974)
já se percebe que as dinâmicas familiares
só se tornam visíveis quando a análise vai
além da unidade doméstica isolada e do
momento presente. Este autor, por meio
de seu conceito de desenvolvimento do
ciclo doméstico, dimensiona a importância
do processo para se vislumbrar a lógica
de um sistema mais amplo de relações
sociais.
Observa-se uma mudança no eixo
teórico das categorias de parentesco,
descendência e aliança, o que leva a um
deslocamento das discussões. Instigada
por este deslocamento para uma visão
processual do ciclo de desenvolvimento do
grupo doméstico, Carsten critica a abordagem
fortesiana por esta ter dado pouca atenção
à intimidade dos arranjos domésticos, e
aos comportamentos e às afectividades
ligados a eles. Porém, influenciada por
sua perspectiva processualista, soma a
atenção às práticas cotidianas e apresenta
a noção de relatedness para se referir
ao fato de que os laços predefinidos
pelo sangue não definem o sentimento
de proximidade, uma vez que este se
encontra em contínua construção pelos
actos cotidianos de “viver junto”.
103
Carsten (2004) revisita a crítica de
Schneider e confirma o argumento do
autor na medida em que, em seu caso de
estudo, as ideias de parentesco não são
derivadas da procriação. Porém, apesar
de concordar com o autor, ela não advoga
que se abandone o uso comparativo do
parentesco enquanto categoria analítica.
Propõe, então, que se utilize a ideia de
relatedness para indicar as formas nativas
de agir e conceituar as relações entre as
pessoas. É vivendo e consumindo juntos,
convivendo no mesmo espaço – a casa
– que alguém se torna parente. Apesar
da substância central do parentesco na
percepção local ser o sangue, a maior
contribuição ao sangue é a comida. Esta
relação entre as duas substâncias faz do
sangue uma categoria sempre mutável
e fluida. Nesse sentido, ela opta por
uma noção mais flexível de parentesco.
Tenta demonstrar, primeiro, como as
pessoas definem e constroem suas noções
de relatedness e, então, que valores e
significados elas dão a estas noções. Com
base em dados etnográficos, ela mostra
como a separação do social e do biológico,
que Schneider demonstrou ser o centro
da definição histórica de parentesco na
antropologia, é culturalmente específica.
No entanto, enfatiza que isto não é
suficiente, pois há um espaço que precisa
ser preenchido por signos de proximidade:
dar e receber, dependência mútua, trocas
recíprocas de materiais, cognitivas e
emocionais. Na perspectiva da autora, o
domínio do parentesco precisa ser praticado
em solidariedade. Mais do que isso, se as
relações de proximidade não acontecem
dentro do universo do sangue, buscamse caminhos em outras vias, criando-se
relações de parentesco onde antes não
existia.
No universo por mim estudado
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
operam formas de organização familiar
caracterizadas por um contexto social em
que indivíduos e grupos não têm acesso aos
meios necessários para a realização dos
valores que consideram importantes, não
chegando a alcançar o modelo ideal. Nele,
as relações familiares são profundamente
marcadas por laços sociais construídos
cotidianamente pela partilha e pelas
trocas de coisas, valores e pessoas, e o
sentimento de pertencimento está vinculado
a um conjunto de referências comuns e à
participação numa comunidade de prática.
Neste contexto, “viver junto”, ser criado
na mesma casa, partilhar experiências e
coisas são as principais fontes de identificação
pessoal de um indivíduo. Sua posição na
sociedade está marcada não só pelos laços
de família, mas também pela relação com
as pessoas que acompanharam seu processo
de socialização. Dada a importância da
mobilidade – entre casas, povoados, ilhas e
países – que acaba por gerar o que denomino
de “famílias espalhadas”, as formas de
criar , a “proximidade à distância”, são
os instrumentos aos quais os indivíduos
recorrem, na tentativa de lidar com as
inseguranças, resultantes da mobilidade
que caracteriza esta sociedade.
A casa assume importância central para
estas pessoas, é uma marca de pertencimento.
As casas são como âncoras que prendem o
indivíduo a um grupo num contexto percebido
como inseguro e de difícil actualização
dos laços familiares. São pelas relações
intradomésticas, entre as casas, que se
constrói um sentimento de identidade
familiar. A experiência partilhada de viver
junto é de fundamental importância, já
que se opera uma intensa cooperação
entre os membros. O interessante, neste
caso, é que isto ocorre mesmo que alguns
destes membros estejam ausentes e se
vejam a cada dois ou três anos (é o que
denomino de “proximidade à distância”).
O fato de terem dormido, comido e vivido
juntos durante um período de tempo cria
uma relação que se mantém pela vida e
que pode ser mais forte do que os laços
genealógicos.
A perspectiva de relatedness parece
dar conta do sistema de reprodução do
tipo que encontramos na Ilha da Boa
Vista, onde a ênfase central se coloca na
experiência de coabitação e cooperação
doméstica entre pessoas relacionadas,
tais laços dependendo da perpetuação
de estratégias de proximidade. A ideia
de família seria então um projecto,
sempre construído e reavaliado por seus
membros a depender de sua capacidade
de actualizar estratégias de proximidade
(entendida aqui como relatedness). Estar
presa a conceitos como o de conjugalidade,
paternidade, maternidade, descendência,
como entendidos pelos clássicos de nossa
disciplina, poderia implicar percepções
distorcidas e até equivocadas da realidade
estudada. É preciso, portanto, procurar
instrumentos que ajudem a pensar as
diferentes formas familiares numa perspectiva
comparativa – perspectiva esta que recusa
hierarquias etnoceêntricas e, ao mesmo
tempo, resgata a especificidade de cada
configuração social. Além de descrever
formas e padrões, regras culturais de
residência e sucessão, padrões de ciclo
do grupo doméstico, é preciso dar atenção
aos modos pelos quais as relações entre
parentes são vividas no cotidiano.
Opto, então, pela ênfase dada pelas
novas etnografias às práticas cotidianas e à
concretização das substâncias compartilhadas
entre parentes. Tais perspectivas trazem
questões importantes para um novo debate
nas teorias de parentesco, em que se percebe
que as relações são mais construídas que
dadas por uma natureza imaginada ou a
104
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
existência formal de laços de parentesco.
Sobre as famílias: um pouco
de etnografia
A organização familiar que foi
objeto deste estudo apresenta as seguintes
características gerais: há uma priorização
dos laços consanguíneos à relação conjugal;
a mobilidade de homens, mulheres e,
especialmente, crianças entre várias
casas faz parte da dinâmica familiar; o
conceito de maternidade é mais social do que
biológico, sendo que é preciso a combinação
de duas gerações de mulheres para que
se realize a maternidade social plena; a
casa é a unidade central, sendo fortemente
associada à mulher e às crianças; o homem
tem uma relação marcada pela ausência
física e a distância no cotidiano dos filhos
e das mães de seus filhos, contribuindo
financeira e socialmente de maneira
esporádica; para o caso mais específico da
Boa Vista, as mulheres adultas emigram
deixando familiares, filhos e os pais de
seus filhos na ilha.
As unidades domésticas são fortemente
centradas na figura da mãe ou avó. As
mulheres têm um importante papel
económico e, além disso, os arranjos
conjugais que predominam estimulam
a instabilidade e a circulação dos homens
por várias unidades domésticas durante
a vida adulta. Tudo isto opera no sentido
de dar maior peso às mulheres no interior
das famílias. A centralidade feminina
é reforçada pelas redes familiares que,
devido à ausência relativa do homem,
operam entre as casas por meio da troca
e da partilha de coisas, valores e pessoas.
Neste contexto, partilhar é uma categoria
fundamental para se entenderem as relações
familiares e isto não está restrito aos laços
genealógicos. Pela análise das práticas de
105
partilha, ajuda mútua e solidariedade entre
pessoas e grupos domésticos, percebe-se o
conceito fundamental de “fazer família”,
ou seja, fortalecer laços entre parentes
e criar parentesco onde este não existia.
Dadas as características da realidade
da Boa Vista, o enfoque deve recair no
sistema familiar enquanto um processo
que é construído cotidianamente.
Acontece que, enquanto parte de uma
sociedade crioula – e, portanto, resultado de
uma dinâmica social em que se misturam,
chocam e interpenetram forças, processos,
valores e símbolos oriundos de duas
vertentes civilizatórias, a africana e a
europeia, dando luz a uma entidade terceira
(Trajano Filho, 2006:1) – a organização
familiar em Cabo Verde revela práticas e
modelos em competição, que ora enfatizam
uma vertente (a africana), ora outra (a
europeia). Sendo assim, paralelamente
às práticas que reproduzem um sistema
familiar como o descrito acima, operam
também valores calcados num modelo de
família nuclear, um casal em co-residência
e seus filhos, de, matriz europeia, e que
é considerado ideal, especialmente pelas
mulheres. Temos, por um lado, práticas que
reproduzem formas tradicionais (coerentes
com o que se entende por uma matriz
africana) de organização familiar e, por
outro, a existência de um modelo ideal e
vislumbrado que não se realiza plenamente,
dando luz à ideia de desorganização.
As formas pelas quais a proximidade
é construída em Cabo Verde podem ser
percebidas pela amplitude do sistema de
parentesco. Em teoria, aqueles que fazem
parte da família não estão, necessariamente,
restritos a laços genealógicos, ou seja,
quando estamos no domínio do conceito
amplo de família, um dado importante
a se levar em conta é o tipo de relação
construída cotidianamente por indivíduos
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
ou grupos domésticos.
De acordo com o padrão ideal, as
relações familiares se caracterizam por
um comprometimento mútuo, contactos
sociais regulares e um fluxo constante de
benefícios materiais e não materiais. O
interessante aqui é que esses requisitos,
fundamentais para a construção do conceito
de proximidade, atuam tanto para fortalecer
laços preexistentes quanto para ampliar
o campo de relações assumidas como de
parentes.
A ideia de família é associada a um
ideal de unidade e harmonia, e aquele
que fala sempre ressalta sua contribuição
individual para isto. Definir-se como solidário
e generoso em relação aos familiares é
um modo comum de se representar como
uma boa pessoa. Por extensão, o mesmo
acontece quando são feitas referências às
relações na comunidade, esta constituindose enquanto uma extensão da família4.
Fica claro que, tanto interna quanto
externamente às casas, existe uma rede de
solidariedade que perpassa a organização
doméstica e interdoméstica. A participação
das mulheres em actividades geradoras
de renda depende, em grande parte, da
possibilidade de contar com parentes
(idealmente a mãe) que aguentem as
crianças. As crianças, por sua vez, se
sentem-se pertencendo tanto às unidades
onde passam o dia quanto àquelas onde
passam a noite. De forma muito clara, os
limites da organização doméstica ultrapassam
não só as fronteiras da casa, mas também
os limites das relações consanguíneas.
A rede de solidariedade entre mulheres
está associada ao princípio de “viver
junto” e às regras de reciprocidade que
isto implica. Tem-se um tratamento de
parente em relação àquela pessoa com
quem se pode contar, aquela que está
perto no dia a dia e que sabe trocar bens,
favores e informações, como se fossem
parentes próximos.
É possível observar um fluxo contínuo de
bens, serviços e informações em circulação
recíproca entre casas vizinhas. Bons
vizinhos, assim como parentes, trocam
refeições, ajudam com os filhos uns dos
outros ou ajudam uns aos outros a cuidar
dos filhos, cedem crianças para auxiliar
nos mandados5 e, uma vez que não são
parentes de verdade, podem casar os filhos
entre si (arranjo altamente preferencial).
Há uma espécie de fidelidade especial
entre os habitantes de uma mesma zona,
um tipo de tratamento que se aproxima
do sentimento que se tem para com um
parente.
Todo esse sistema é operacional, pois,
ao ampliar as regras de reciprocidade
àquelas que vivem próximas, e em uma
relação de vizinhança, as mulheres de uma
mesma localidade garantem um aumento
de suas possibilidades ocupacionais, uma
vez que têm sempre a garantia de que
alguém a ajudará na criação dos filhos
ou em casos de necessidade. Segundo,
como afirma a professora ao se referir aos
maridos que estão sempre na rua, a rede
de solidariedade também é fundamental
no sentido de diminuir a dependência da
mulher em face do companheiro, porque,
conforme ouvi de muitas mulheres, com
o homem não se pode contar.
4 É claro que esta é uma imagem idealizada. Quando os contatos
ficaram mais próximos, de forma que comecei a entrar no campo das
confidências, uma pintura mais complicada emergiu. Nas relações
familiares há uma realidade dinâmica que, ao mesmo tempo em que é
marcada por relações de cooperação, é também um campo de hierarquia
e competição. Isto se estende para a comunidade em geral.
A ideia de viver junto é tão forte na
definição de família que é comum que
os conceitos de proximidade e distância,
mesmo entre irmãos, sejam associados à
5 Esta categoria será devidamente explicada neste trabalho.
106
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
relação mantida entre eles. Fica claro aqui
que os laços predefinidos pelo sangue não
determinam, necessariamente, o sentimento
de proximidade, pois ele encontra-se em
contínua construção por intermédio das
acções e das relações cotidianas. Como afirma
Carsten (2000:20), os laços de proximidade
são criados pela procriação, mas também
pelos actos de cuidar, partilhar, viver
juntos. Tais laços são tão importantes
que podem diluir relações baseadas no
parentesco, ou criar parentesco onde este
não existia.
É preciso observar que “viver junto” tem
um sentido amplo, não sendo necessariamente
sinónimo de morar junto. É importante
estar próximo fisicamente, mas nos casos
em que isto não é possível, a manutenção
da proximidade social pelo cumprimento
de obrigações recíprocas é um factor de
manutenção da relação.
Ter sido criado numa mesma casa
fortalece laços. Histórias de experiências
compartilhadas na infância e o caráter
da relação que é desenvolvida são, por
vezes, mais importantes que os laços
genealógicos. Normalmente, a proximidade
entre irmãos é definida pela maternidade,
ou seja, meios-irmãos pelo lado materno
têm maior possibilidade de viver juntos
do que aqueles relacionados pelo lado
paterno. Isto porque é mais comum filhos
de pais que não vivem juntos morarem
com a mãe e pessoas mais próximas da
família extensa desta.
Os estudos que tratam da organização
familiar em Cabo Verde (Solomon, 1992;
Dias, 2000; Monteiro, 1997; Akesson,
2004) salientam o laço fundamental e
constituinte do conceito de família: a
relação mãe-filho. Na Boa Vista, esse laço
é a base para a formação das redes de
reciprocidade entre parentes e não parentes
107
e provê a estabilidade, a continuidade e
a amplitude das relações de uma pessoa.
Porém, mais uma vez precisamos estar
atentos ao conceito de maternidade. O
laço entre mãe e filho não está, também,
restrito às relações entre mães e filhos
biológicos, mas envolve as chamadas
“mães sociais”.
Por comparação, os laços entre pais e
filhos são mais difusos ou frouxos e, em
grande medida, dependem da capacidade
que o homem tem de estar próximo dos
filhos quando estes são crianças. Ser um
bom pai, ou seja, dar suporte económico,
material e emocional, é culturalmente
aprovado e valorizado. Porém, o mais
comum é que eles sejam caracterizados
pelos próprios filhos como figuras distantes
e que justifiquem sua ausência em função
de dificuldades económicas.
Paternidade e maternidade
A relação entre mãe (não necessariamente
a biológica) e filhos tem um caráter
muito especial. Se há alguma relação
percebida como duradoura e estável
na esfera familiar boa-vistense, é esta
que liga as mães aos filhos. Além disso,
defendo que a relação de filiação tende
a predominar sobre a relação conjugal
na constituição do grupo familiar, e isto
é percebido pelas mulheres da ilha. Cito
o exemplo de uma informante, que me
afirmou que não aceitava desrespeito
do pai-de-filho porque na hierarquia do
gostar, em primeiro, segundo e terceiro
lugar estava sua filha, depois sua mãe
e, só muito depois, em último lugar, é
que viria seu pai-de-filho.
Ainda na infância, o papel do pai varia a
depender do padrão de residência adotado.
De forma geral, a relação entre pai e filho
será mais ou menos intensa conforme
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
os pais vivam ou não juntos. Nos casos
em que o pai vive separado fisicamente
da mãe, seu papel restringe-se a visitas
periódicas aos filhos. Quanto à ajuda
económica, isto dependerá de diversos
factores e não são raros os casos em que as
mães reclamam de não receber qualquer
apoio financeiro do pai-de-filho. Mesmo nos
casos em que pais e filhos residem numa
mesma casa, o laço emocional com o pai
é frouxo, a relação é caracterizada pela
distância enquanto, no que diz respeito à
mãe percebe-se uma grande proximidade
e um grande calor afectivo.
Ter um filho é um valor importante no
universo masculino, assim como ter uma
mulher (ou várias). Ambos são símbolos de
masculinidade exibidos constantemente
“nas rodas de conversas” entre homens.
Enquanto as mulheres valorizam a ideia
de estar próximo, os homens se envolvem
com o universo doméstico por meio de um
pertencimento distante. O homem deve ter
uma família (e isto significa ter filhos), mas
seu relacionamento com esta, marcado
pelo distanciamento.
É importante salientar que não há
uma ausência de relação entre pai e filho,
esta relação existe e é mediada por um
sentimento de respeito à autoridade paterna,
pois é ele quem impõe autoridade e os
filhos devem respeitá-lo. Porém, entre os
filhos, também há um sentimento muito
próximo daquele relatado pelas mulheres
quando se referem à presença do marido
na casa, como uma figura com quem não
se pode contar – não apenas no sentido
financeiro, pois geralmente é a mãe ou a
avó que assumem as despesas escolares
e de alimentação dos filhos, mas também
na esfera psicológica e na transmissão de
saberes, domínios em que o pai mostrase distante, especialmente na fase em
que os filhos ainda são crianças. Nessas
circunstâncias, a centralidade da mulher
e de sua rede de relações ganha força e
os laços emocionais entre esses membros
estáveis da unidade doméstica tendem a
fortalecer-se de tal modo que a situação
do homem enquanto marido e pai fica
cada vez mais marginal.
Após a apresentação do quadro social
das famílias, quero chamar a atenção
para a questão da maternidade social,
trazendo à cena um actor fundamental:
a figura da avó e seu importante papel
na construção deste universo familiar.
Essa relação de distância não retira
do pai a vontade de ter filhos. Na maioria
dos casos, a mulher engravida a pedido do
namorado ou companheiro e ele espalha a
boa novidade a todos, com orgulho e alegria.
Considerações finais
Num contexto em que as relações
entre parentes são mais construídas do
que dadas biologicamente, o conceito de
maternidade também é mais social que
biológico. A relação entre mãe e filho, apesar
de central, é apenas um elemento dentro
da esfera familiar. Cada indivíduo está
envolvido numa rede consanguínea que exige
constante demonstração de solidariedade
(laços de sangue têm precedência sobre
relacionamentos contratuais) e as crianças
são partes importantes nessas relações.
A mulher que dá à luz conta com uma
rede de solidariedade para criar o filho,
pois raramente uma pessoa cuida sozinha
de uma criança.
A figura da avó materna é o principal
foco de apoio de uma jovem mãe e,
idealmente, tal avó tem o direito e o dever
de compartilhar a maternidade da filha.
Isto implica que não necessariamente é
a mãe quem vai criar o filho, mas que
ambas, tanto a mãe biológica quanto a
108
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
avó materna (ou, eventualmente, outra),
podem compartilhar a identidade social
de mãe.
A depender do contexto, este fato é
fonte de disputa entre as envolvidas, em
particular nos casos de emigração da mãe,
situação em que (apesar dos esforços e
das estratégias de manter proximidade
à distância) ela corre o risco de ver sua
influência diminuída no dia a dia dos
filhos.
Há, porém, outra fonte de tensão entre
mãe e filha: a demanda por definições de
papéis decorrente do choque entre os dois
modelos que permeiam essa sociedade e
que foi expresso na fala da professora no
início desta apresentação: de um lado, temos
a prática social local na qual (1) uma só
geração não dá conta da maternidade; (2)
as relações conjugais são marcadas pela
ideia de instabilidade; e (3) não há grupos
corporados; de outro, temos a percepção
do modelo de família nuclear ocidental
como ideal de organização familiar. Vamos
entender cada um desses níveis de forma
mais detalhada.
Estudos sobre a sociedade africana
mostram que as pessoas são muito valorizadas
e, mais do que isso, são percebidas como
uma espécie de “capital” social e político,
cada indivíduo trazendo diversas vantagens
para o grupo. Sendo a pessoa um valor
fundamental, os direitos sobre pessoas
(rights in persons) adquirem, neste contexto,
um lugar de destaque, o próprio status
de cada indivíduo podendo ser pensado
como o conjunto de direitos que este possui
sobre outras pessoas ou coisas, acrescido
de seus correspondentes deveres.
É importante lembrar que os direitos
sobre pessoas podem ser transferidos,
implicando compensação ou indenização.
109
No âmbito do parentesco, há possibilidade
de manipular tais direitos para aumentar
o número de pessoas sob o domínio de um
indivíduo, e as formas como as transferências
de direitos são realizadas são de importância
fundamental no contexto africano (sobre
este assunto ver Kopytoff & Miers, 1979;
Parkin & Niamwaya, 1987; RadcliffeBrown, 1952).
Trazendo tal discussão para o tema das
famílias cabo-verdianas e percebendo o
valor das pessoas dentro de uma sociedade
caracterizada pela escassez de recursos,
a característica de exportação de seus
membros e a importância da vida familiar,
percebemos as crianças como um valor
fundamental. A mulher que tem um filho
sabe que ele tem um valor imediato e
outro a longo prazo: um bebê está no
centro da reprodução das relações entre
parentes e vizinhos, estimula visitas, é
motivo de festas e agrega as mulheres
da família da mãe e do pai ao seu redor;
a criança, a partir de 6 ou 7 anos, faz
serviços domésticos, faz companhia e
circula entre as casas; já adulto, ajuda
a sustentar seus velhos.
Diante da impossibilidade de aguentar
uma criança sozinha, dada pelo próprio
sistema familiar, a pessoa ideal com
quem uma mãe pode partilhar o valor
dos filhos é sua mãe, a avó materna da
criança. Para a avó materna, o neto é
um bem que garante sua centralidade
dentro da esfera doméstica. Para a mãe da
criança, deixar o filho com a avó materna
pode ser a garantia de que ela sempre
será lembrada como boa mãe, mesmo
em casos de distância física prolongada.
O valor da criança estende-se também
geograficamente, sendo ela um vínculo
fundamental entre as famílias do pai e
da mãe, outros parentes e vizinhos.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Num sistema de matrifocalidade, toda
a produção feminina é criadora, mantém
as relações, e a mobilidade das crianças é
uma componente dessa prática: reproduz a
centralidade feminina e aumenta o número
de mulheres às quais um indivíduo deve
lealdade. Por sua vez, crianças e jovens
têm, pela relação com as mulheres (da
família paterna e materna), fonte segura
de conforto emocional e de transmissão
de bens materiais e valores.
As principais tensões que emergem
desse esquema social têm a ver com o
choque entre um modelo tradicional com
todas as características aqui analisadas e a
referência constante a um ideal de família
nuclear ocidental presente no discurso dos
indivíduos. As avós, quando questionadas
sobre a relação com os netos, salientam
que “mãe é quem pariu”, contrariando,
ao nível do discurso, a característica
da maternidade compartilhada que
observei no dia a dia das famílias. Os
netos, especialmente os jovens, começam
a valorizar o que chamam de “família
normal” e a perder o interesse pelo que
as avós têm a oferecer. As mães, cada vez
mais cedo, buscam opções para construir
seu espaço seguindo padrões europeus de
residência e organização familiar.
A centralidade feminina é, portanto,
uma característica fundamental deste
modo de organização familiar e a dispersão
das funções entre duas ou mais mulheres
não leva, como se poderia pensar, a um
enfraquecimento dos laços entre mães
e filhos ou mesmo entre os membros
da família. Neste contexto, a partilha
– de bens, alimentos e até crianças –
não enfraquece, pelo contrário, só vem
a fortalecer a reprodução do sistema. A
mobilidade e o compartilhamento são
valores que criam e recriam relações
familiares.
Por fim, há toda a dimensão migratória
que, por falta de espaço, não foi tratada
nesta caracterização aqui retratada. A
emigração, enquanto característica marcante
desta sociedade, é tanto produto deste
sistema familiar quanto o actualiza e o
reforça. Além disso, coloca novos desafios
para este sistema familiar, dado o seu
caráter sempre dinâmico.
Concluindo, espero ter contribuído
para uma sistematização deste modelo
familiar que tentei aqui descrever. Como
salientei no início, a base dos meus dados
restringem-se à Ilha da Boa Vista, mas
muitas destas características foram
encontradas e salientadas por diversos
autores que dedicaram seus estudos ao
arquipélago de Cabo Verde. O que cabe
ressaltar como contribuição da antropologia
a partir de seus métodos de estudos é que
a ideia de uma estrutura familiar “normal”
ou “organizada” é um construto social
que raramente se atualiza nas práticas
cotidianas. O que costumamos encontrar são
inúmeros modelos e práticas que operam
nesta ou naquela sociedade e que, só em
seu contexto, fazem sentido. Dentre estes
modelos possíveis, o estereótipo da família
ocidental moderna europeia (de uma mãe,
pai e filhos vivendo numa unidade familiar
em separado) é apenas mais um e, como
os demais, também não actualiza seu
ideal de forma plena. Volto, portanto, ao
discurso que abriu esta fala no sentido de
lembrar que ele deve ser contextualizado
e inserido no sistema cultural local. Ao
fim e ao cabo, o dilema inicial se dilui.
É certo que a organização familiar
da sociedade cabo-verdiana apresenta
problemas, conflitos, ambiguidades e
desafios que devem ser enfrentados por
esta sociedade (e imagino que serão tratados
pelos demais palestrantes desta mesa)
– afinal, não há sociedade existente que
110
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
apresente suas instituições em equilíbrio
e harmonia absolutos. O que tento chamar
a atenção com as reflexões que apresento
neste artigo é que tais desafios devem ser
entendidos e enfrentados em seu contexto,
e não a partir de modelos emprestados
que aqui não se encaixam.
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
O LUGAR DA SÍNTESE NA ÉTICA KIERKEGAARDIANA
Jasson da Silva Martins e Jacqueline Oliveira Leão1
Resumo/Abstract
A vida ética, segundo Søren Kierkegaard, encontra seu princípio na paixão. Nesse
sentido, o pensamento kierkegaardiano, conhecido como filosofia da dualidade e da
disjunção, pode ser caracterizado como filosofia da síntese, à medida que a interioridade
do indivíduo e a exterioridade do mundo alcançam o seu termo na ética. No entanto,
uma das funções da ética como expressão do geral, é proibir. Como o indivíduo
articula o geral em si mesmo? A ética é uma tarefa individual que deve ser expressa
na generalidade?
Palavras-chave: ética; indivíduo; existência; escolha; exceção.
The ethical life, according to Søren Kierkegaard, finds its origin in the passion.
In this sense, the kierkegaardian thought, known as the philosophy of duality and
disjunction can be characterized by the philosophy of synthesis, as the interiority of
the individual and exteriority of the world reaches its end in ethics. However, one of
the functions of ethics as an expression of general is to prohibit. How the individual
articulates the general himself? Is ethics an individual task that must be expressed
in general?
Keywords: ethics; individual; existence; choose; exception.
1 Jasson da Silva Martins é professor assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Licenciado
em Filosofia pelo Centro Universitário La Salle (UNILASALLE). Mestre em filosofia pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (UNISINOS). Atualmente, como bolsista PROSUP/CAPES, desenvolve pesquisa em nível de Doutorado
nessa mesma Universidade.
Jacqueline Oliveira Leão é graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte - FAFIBH (1995). Mestre em Estudos Literários, Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
(2002). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2008). Atualmente
desenvolve pesquisa em nível de Pós-doutorado em Estudos Literários/UFMG, sob a supervisão da Profª Drª Leda Maria
Martins. Atua como pesquisadora, nos seguintes grupos/projetos de pesquisa: a) Espaços na Literatura Contemporânea,
vinculado ao CNPq e coordenado pela Profª Drª Maria Zilda Cury; b) Estudos sobre a obra de Kierkegaard, vinculado
ao CNPq e coordenado pelo Prof. Dr. Álvaro L. M. Valls.
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
1. Introdução
O conjunto da obra multiforme de Søren
Kierkegaard pode ser resumido partindo
desta interrogação: o que significa para o
homem existir como indivíduo singular?
Essa é a retomada kierkegaardiana da
questão socrática da consciência de si, que
é renovada em função de uma referência ao
tornar-se cristão. Como é possível pensar
a subjetividade de maneira rigorosa, após
Kant e Hegel, levando em conta a existência
individual? O propósito de Kierkegaard,
ao tematizar a dualidade existente entre o
indivíduo e a sociedade, é reconstruir um
pensamento da existência como diferença,
mas também como identidade.
É na existência do indivíduo singular,
na qual se entrecruzam a exterioridade
e a interioridade, que está colocado o
paradoxo do tornar-se si mesmo em meio
aos demais e, igualmente, o regressar a
si mesmo como interioridade absoluta.
Realizar essa dialética, no aqui e no agora
da existência, é a tarefa do indivíduo. O
aprofundamento na intimidade, à medida
que o indivíduo é capaz de voltar-se a si
mesmo, não escapa ao hermetismo da
relação com alguma coisa exterior. Nesse
sentido, a negatividade, que está presente
tanto no exterior como no interior, produz
e mantém uma relação de reciprocidade
entre o indivíduo singular e o mundo
exterior, transformando a dialética de
ambos no aqui e no agora da história.
Qual é o papel da ética no caminho
da realização dialética? É notório que tratar
da existência do indivíduo singular é colocar
em questão a capacidade mediadora da
ética, esfera de passagem do singular ao
geral, necessariamente ligada às demais
esferas da existência. Nesse sentido, o
pensamento kierkegaardiano, conhecido
como filosofia da dualidade e da disjunção,
pode ser caracterizado como filosofia da
síntese, à medida que a interioridade do
indivíduo singular e a exterioridade do
mundo alcançam o seu termo na ética. A
singularidade do indivíduo existente é o
lugar decisivo onde ocorre a reflexão e a
interação da interioridade e da exterioridade
existencial.
2. Vida ética como existência
apaixonada1
A vida ética encontra o seu princípio
em uma paixão. A paixão implica, para
existir enquanto amor e afirmação de si,
que alguém tome a dimensão normativa da
ética. A questão levantada aqui é aquela
do estatuto ético em sua relação com o
indivíduo. Como o indivíduo engendra
em si a esfera ética enquanto modo de
existir? Feita a pergunta, na resposta
está implicada a relação de circularidade
entre o estatuto ético e o ato originário de
afirmação de si, do eu individual. Contudo,
não é sob o ponto de vista ético que o
indivíduo se interroga quanto à paixão
originária do existir, bem como não espera
que a reciprocidade dessa paixão possa
explicar a ética.
Partindo da ética ascendente –
ética que surge da realidade sem descurar
a idealidade – o problema a ser encarado,
neste estudo, é o de pensar a natureza
da relação entre a paixão e a vida ética.
O mundo ético é constituído a partir da
paixão, organizado sob normas gerais,
idênticas para todos os indivíduos de uma
determinada sociedade. A ética é a esfera
determinada da existência com caráter
completo e auto-suficiente. Além disso,
1 O presente estudo refere-se ao texto O equilíbrio
do estético e do ético na formação da personalidade,
constante na segunda parte de A alternativa [EntenEller], publicada originalmente em 1843. A questão
pseudonímica da obra kierkegaardiana não é objeto de
discussão deste texto.
116
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
é reconhecida através de alguns traços
específicos na existência do homem comum,
que plenamente assimilou as normas de
sua sociedade. Para Kierkegaard, a ética
é apenas uma das etapas no caminho
da vida, mas, nela, precede, sobretudo,
o ato individual da decisão. É nesse
exato momento da reflexão, que surge o
paradoxo: como a ética, enquanto disciplina
normatizadora da sociedade, encontra
o seu princípio no indivíduo? A ética se
eleva da singularidade à generalidade
através da escolha.
O enfoque da discussão não é mais o
da ética enquanto generalidade, mas sim
a natureza das escolhas individuais. Se a
escolha é essencialmente subjetiva, deve,
pois, portar um elemento de generalidade
para transcender a particularidade de
cada um, constituindo-se como lei. Por
outro lado, a escolha individual não
pode fundamentar a ética, dado que esta
pressupõe certas condições, por exemplo,
trazer junto a si a possibilidade da relação
com o geral. Uma outra possibilidade é
pensar a vida ética como efeito de uma
escolha individual, em que o indivíduo
é convocado a decidir entre dois ou mais
bens. A solução, inicialmente indicada
por Kierkegaard, aponta a síntese entre a
generalidade da lei e a singularidade da
norma, ambas colocadas em movimento
pelo indivíduo singular e portador do
universal. Esse dilema é abordado pelo
Juiz Wilhelm:
Meu dilema [Enten-Eller] não significa,
no entanto a escolha entre o bem e o mal;
designa a escolha pela qual alguém excluiu
ou escolheu o bem ou o mal. Trata-se aqui
de saber sob quais categorias alguém quer
considerar toda a vida e viver o si-mesmo
[selv leve]. É bem verdade que, em escolhendo
o bem e o mal, alguém escolhe bem, mas isso
não aparece de imediato; a estética não é o
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mal, mas a indiferença, por isso eu disse
que a ética constitui a escolha. Não se trata,
portanto, de escolher entre querer [ville] o
bem ou o mal, mas de escolher o querer
[ville], aí o bem e o mal se acham colocados.
(KIERKEGAARD, 1970: 154)
O dilema, a alternativa [Enten-Eller]
pronunciada pelo Juiz Wilhelm é, por si
mesma, uma escolha originária e um ato
reflexivo que procura fazer a síntese entre
a generalidade e a singularidade, colocando
o indivíduo diante de seu próprio querer.
Kierkegaard chama atenção para o fato
de que não se trata de uma decisão entre
o bem ou o mal, mas é a possibilidade
de escolher que impele a vontade do
indivíduo, levando-o a optar por uma
dessas duas instâncias. Ao contrário
de uma simetria, Kierkegaard aponta
a dissimetria da ética, onde o indivíduo
é confrontado com a lei (generalidade) e
a norma (singularidade). O bem e o mal
não possuem sentido absoluto, sendo, pois,
determinados negativamente na esfera
ética, dado que a escolha primordial do
indivíduo não está entre escolher o bem
ou o mal, mas, sobretudo, em escolher.
Decidir por escolher algo já é a escolha
acertada. Nesse ato singular de escolha,
instaura-se a ética ascendente, determinando
o modo de vida do indivíduo: o modo de
vida na esfera ética. Viver eticamente
não significa, para Kierkegaard, ato de
escolha ou eleição, ao contrário, escolher
o querer é o ato de autoafirmação. Tal ato
da vontade põe em movimento o destino do
indivíduo singular e da história, perpassado
pelo modo de vida ético. A possibilidade
de escolher o “querer escolher” difere do
ato de escolher algo em detrimento de
outro, pois transforma a escolha individual
em algo único e singular: poder escolher.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Daí surge outra questão que deve ser
respondida: como a ordem ética determina
o homem ou como o homem atinge a esfera
da ética? O dilema da escolha, notadamente
de teor eidético, é apresentado pelo Juiz
Wilhelm como pressuposto que antecede
à própria escolha.
Meu dilema [Enten-Eller] faz surgir a ética.
Não existe ainda a questão da escolha de
uma coisa, nem da realidade da realidade
escolhida, mas da realidade do ato de escolher.
Isto é o decisivo, e é aí que eu me esforçarei
para despertar a tua vontade. Até esse ponto,
um homem pode ajudar a outro; mas, a
importância que ele precisa ter para o outro
é secundária. (KIERKEGAARD, 1970: 161)
Nesse trecho, é possível notar o quanto
o sentimento e o ato da vontade realizam a
função originária da escolha ética. Realizá-la,
contudo, não é a mesma coisa que realizar
a vida ética a partir do seu pathos. No
fundo, a escolha original de si é o amor
a si mesmo, pois a escolha primordial é
pura e pode ser comparada com o primeiro
amor ou o amor verdadeiro. Escolher a si
mesmo não leva o indivíduo a tornar-se
outro, mas reafirma a sua individualidade,
a sua subjetividade singular e ética, a
sua capacidade de escolher. O tornar-se
si mesmo é o resultado de uma constante
atualização, sendo executada como ato de
constante repetição. O indivíduo singular
faz a passagem do mesmo ao mesmo2
através do movimento dialético e gradual,
do possível ao real.
A escolha efetua, por sua vez, dois movimentos
dialéticos: o objeto possível da escolha não
2 Nessa perspectiva, podem ser lidos os estádios no
caminho da vida (estético, ético, religioso). O objetivo
é o mesmo, o indivíduo é o mesmo, o que modifica
é o momento vivido. Isso significa igualmente que o
absoluto é escolhido, mas não é a escolha do absoluto
que conduz à passagem de um estádio a outro, é o
indivíduo que modifica a si mesmo.
é, advém da escolha; esse objeto é, senão a
escolha não seria possível. Se, com efeito, a
coisa que eu escolhi não fosse, mas surgisse
absolutamente da escolha, eu não a escolheria,
eu a criaria; mas, eu não crio a mim mesmo,
eu escolho a mim mesmo. Assim, do mesmo
modo que a natureza é criada do nada,
do mesmo modo que eu sou como pessoa,
imediatamente criado do nada, eu mesmo
sou como espírito livre, criado pelo princípio
de contradição ou criado pelo fato de ter
escolhido a mim mesmo. (KIERKEGAARD,
1970: 194)
No entendimento do Juiz Wilhelm, a
escolha é o móbil que funda o mundo da
eticidade, conduzindo a problemática da
ética ao mais elevado paradoxo. Para o
indivíduo, o início da vida ética não coincide
somente com a escolha do querer, mas
também com a escolha de si mesmo. Essa
é a crítica endereçada pelo Juiz Wilhelm,
pseudônimo ético por excelência, aos místicos,
acusando-os de fuga do mundo concreto.
Fugir não significa escolher-se a si mesmo
ou afirmar a sua singularidade, a fuga
do místico é uma escolha abstrata, que
não o leva à responsabilidade de tornarse si mesmo:
O místico, fazendo em geral pouco caso da
realidade, vê-se porque não encara com a
mesma desconfiança o momento da realidade,
onde sofre o contato com uma ordem superior
de coisas. [...] O erro do místico, na escolha,
é de não tornar-se concreto nem diante dele
mesmo nem diante de Deus; ele se escolhe
abstratamente e carece assim de transparência.
(KIERKEGAARD, 1970: 222-223)
Uma escolha ética é uma escolha egoísta,
pois a singularidade escolhe a si mesmo ao
escolher o querer. A consequência dessa
noção de ética coloca em xeque a sua
própria dialética interior. Decidir escolher
o querer é atitude genuína, em sintonia
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
com a singularidade do indivíduo. A
decisão ética pela generalidade é diferente.
Quando inteiramente assumida, não deixa
espaço para a singularidade. Em termo
kierkegaardiano, a tarefa do indivíduo
não é tornar-se tão somente ético, mas
escolher a si mesmo: “... a escolha faz
dele um indivíduo preciso, a saber,
ele mesmo; visto que ele se escolheu”.
(KIERKEGAARD, 1970: 226)
O dever ético está implicado no próprio
ato de escolher. Dever, como o próprio
Kierkegaard reconstrói etimologicamente na
sua língua, remete ao termo dinamarquês
Pligt (dever), derivado do verbo paaligge
(incumbir), ligado à interioridade. Não
remete, contudo, ao termo Paaloeg
(imposição, ordem), pois este diz respeito
à exterioridade. Logo, o dever nada mais
é do que a tarefa pessoal de tornar-se si
mesmo, como incumbência da própria
singularidade.
É muito curioso que, pela palavra dever,
alguém possa pensar em uma relação exterior,
visto que a etimologia dessa palavra designa
uma relação interior; e dado que incumbe a
mim, não a título de um indivíduo qualquer
que eu sou, mas conforme a minha essência
verdadeira, isso se encontra de todo modo na
relação mais íntima comigo mesmo. Com efeito,
o dever não é uma coisa imposta, mas uma
coisa que incumbe. Quando o dever é visto
assim, é então o sinal que o indivíduo está
orientado em si-mesmo. (KIERKEGAARD,
1970: 228-229).
Como visto, Kierkegaard equipara
a escolha pessoal ao dever ético. Daí, o
pseudônimo Climacus, no Post-scriptum,
retomar a expressão do Juiz Wilhelm quando
este afirma que a distinção entre o modo
de vida ético e o estético é, principalmente,
que a ética exige de “... todo homem o
dever de se manifestar claramente aos
119
olhos de todos”. (KIERKEGAARD, 1977:
235). É sabido que a ética se debate com
a fundamentação entre escolher o modo
de vida singular (norma) ou o modo de
vida geral (lei). Em Kierkegaard, esse
problema torna-se mais agudo, dado
que a única realidade é a existência
do indivíduo singular. Então, podem
as ações individuais ser condicionadas
por um critério que lhes seja exterior? O
confronto que se estabelece entre a vida
ética, que tem por fim a realização do
indivíduo na interioridade, exige por si
mesmo referir-se a um princípio geral. A
síntese, ao menos em termos especulativos,
deve levar em conta a generalidade e a
normatividade na escolha primordial do
indivíduo. Ou seja, o que está em questão,
agora, é a ligação entre o indivíduo, o
dever e a sociedade.
Se, para cada um, há a exigência
estrita de publicidade da escolha, como
preconiza a ética de Kant e Hegel, a saída
encontrada por Kierkegaard foi reformular
a necessidade de explicitar publicamente
a conduta ética do indivíduo. Problema
que aparece como dilema: se por um lado,
a necessidade de publicização está em
conformidade com a ética ordinária,
por outro, esta não possui efeito para o
indivíduo excepcional. Para o indivíduo
excepcional (veja o exemplo de Abraão), à
medida que a sua ação transcende a ética
ordinária, a lei geral torna-se insuficiente
e, no entanto, ele não pode tornar pública
a norma de sua ação. O dilema ético está
justamente no hiato entre a regulação
da ação individual e a necessidade de
universalizar o princípio da ação ante
o geral. Kierkegaard, ao fundamentar
a ética na singularidade, nega o geral,
fundamentando a ética na exceção. (Cf.
VERGOTE, 1982: 546).
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Como a escolha excepcional molda
a existência? Como a interioridade se
manifesta na vida social? Em síntese,
como a escolha efetuada na interioridade
pode conter em si mesma a medida da
existência ao se desdobrar na generalidade
da vida ordinária? Sem dúvida, este é
o problema da relação entre a norma e
a lei. Contudo, trata-se de derivar essa
relação, de explicar como a escolha primitiva
passa a ser a escolha de viver segundo
determinada lei, descoberta e reconhecida
pelo indivíduo em si mesmo. Nesse sentido,
o significado do primeiro amor, descrito
por Wilhelm, ilustra o princípio da vida
ética, que se desdobra no casamento.
Através da retomada reflexiva da ética,
o homem atualiza o modo de vida ético,
sintetizando o geral e o particular:
Portanto, a ética é ainda muito abstrata e
se encontra fora do indivíduo, não se presta
a uma realização interna. Para que a ética
possa se realizar é preciso inicialmente que o
indivíduo seja ele mesmo e o geral. O segredo
da consciência moral, da vida individual é que
uma e outra é, por sua vez, a vida individual
e o geral, senão, imediatamente, ao menos,
segundo sua possibilidade. (KIERKEGAARD,
1970: 229-230)
A finalidade da vida ética consiste na
realização da existência singular do indivíduo.
Contudo, a vida do indivíduo, à medida que
este não é um ser isolado, somente ganha
sentido na sociedade, na generalidade. Por
outro lado, é a paixão de existir que dá
sentido à generalidade. O indivíduo expressa,
através da síntese entre a singularidade e a
generalidade, características universais que o
constituem como singularidade. A generalidade
é a expressão da singularidade, pois exige do
indivíduo a manifestação do princípio ético,
escolher ser si mesmo em meio aos demais.
3. A singularidade e
generalidade ética
A generalidade possui um elemento
decisivo para a ética, a proibição. Contudo, a
ética é, enquanto princípio geral válido para
todos os indivíduos, proibitiva. A proibição
ética está incluída na generalidade, da
qual deriva. O simples fato de um princípio
ser apresentado como geral, corresponde
ao conjunto de obrigações e proibições
que delimitam a ação dos indivíduos.
Isso ocorre porque existe a relação de
subordinação entre a generalidade e a
normatividade. Por isso, a norma não
pode ser apresentada como imperativo
ou mandamento de uma determinada
vontade, mas como resultado de uma
vontade geral. Segundo André Clair:
A vida moral, totalmente separada da existência
comum, torna-se estranha ao homem. Mas
então, reenviar à ética o inefável ou o místico
é adotar uma posição, não é uma questão
verdadeiramente rigorosa, mas, totalmente,
particular e restritiva, que ela corre o risco de
carecer da vida moral. (CLAIR, 1989a: 34).
Então, como compreender a passagem
da generalidade à singularidade? Para
Kierkegaard, esta é uma relação intrincada,
uma relação dialética, na qual a vida
singular do homem é fruto de determinações
gerais e circunstâncias particulares. O
indivíduo singular é a síntese do geral e do
particular. Ou, como afirma Kierkegaard,
em O conceito de angústia: “... o indivíduo
é ele mesmo e a espécie” (KIERKEGAARD,
1973: 131). Nesse aspecto, o projeto
ético-existencial de cada indivíduo é
reafirmar-se enquanto ser particular e
único, assumindo características gerais
da espécie, que igualmente constituem a
sua natureza. Ao realizar essa tarefa, o
indivíduo se re-apropria da vida moral.
120
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Este constitui o lugar a partir do qual podem
ser conduzidas efetivamente as investigações
éticas. Nesse lugar, importa antes de tudo
reencontrar a subjetividade. Com efeito, aquilo
que faz pensar é a apropriação (Tilegnelse)
das noções éticas por uma subjetividade
existente. Sem esta apropriação, que é o
mesmo que uma reapropriação, a vida
moral (no sentido dos costumes de uma
comunidade humana) e o discurso ético
(como discurso de análise e reflexão sobre
os costumes) permaneceriam estranhos ao
sujeito como existente singular (den Enkelte).
(CLAIR, 1989b : 225).
Se cada indivíduo é o geral e o
particular, trata-se, pois, de precisar as
funções da generalidade (e igualmente da
normatividade) entre todos os homens.
Expressar a universalidade só é possível na
unicidade de cada um, no aqui e no agora
da existência individual. Por outro lado, a
singularidade, através da normatividade,
reafirma os princípios éticos universais.
Portanto, o sentido ético não existe por si
só, mas é a expressão da singularidade.
Concretizar o aqui e o agora é a tarefa
de cada indivíduo e, nela, encontra-se o
princípio ético. O indivíduo é, conforme
André Clair, o princípio e o fim da ação
ética: “É o próprio agente que reenvia
à atividade racional do homem, aquilo
que é propriamente o agir que é causa
eficiente e causa final de sua ação” (CLAIR,
1989a: 20). No entanto, para afirmar a
existência de uma tarefa particular,
individual, é necessário supor que haja
a consciência dessa tarefa, bem como a
forma de realizá-la:
O ético sabe que o importante é a maneira
de encarar toda a situação, a energia
então demonstrada, e qualquer um que se
discipline assim nas circunstâncias mais
insignificantes pode viver mais intensamente
121
o testemunho ou mesmo como herói dos mais
notáveis acontecimentos [...] A ética não fará,
portanto do indivíduo outra pessoa, mas ele
mesmo; ele não aniquilará o estético, mas o
transfigurará. Para viver segundo a ética,
é necessário que o homem tome consciência
dele mesmo, de uma maneira tão enérgica
que nenhuma circunstância lhe escape.
(KIERKEGAARD, 1970: 227)
A consciência de que o indivíduo tem
por tarefa - tornar-se si mesmo - bem
como a maneira de encará-la, põe a
disjunção entre a vocação e a profissão.
Vocação, aqui, é entendida como chamado
à responsabilidade e, além disso, significa
trabalho ou profissão. No indivíduo singular,
essas duas significações são convergentes
e concordantes, porque existem a vocação
e a atribuição de determinada função
ou profissão. Essa função é atribuída a
todos e, igualmente, todos são chamados
a responder: “Quando um homem tem
uma vocação, ele tem ordinariamente
fora dele uma norma que, sem fazer
dele um escravo, lhe ensina, todavia,
em qualquer espécie de tarefa, regular
o seu tempo, dando-lhe frequentemente
a opção de começar”. (KIERKEGAARD,
1970: 262-263)
Assim, aquilo que é considerado vocação
completa a função normativa da ética. É
isso que confere o caráter de objetividade,
mas também de exterioridade à norma.
Nesse sentido, a vocação é a retomada
subjetiva daquilo que é exigido pela ética.
Se não se trata, certamente, de uma
ética da autonomia, visto que a tarefa a
completar é atribuída ao exterior, a reapropriação subjetiva realiza-se naquilo
que é interior, no que é o constitutivo
do ser de cada um. A vocação não é o
particular em cada um ou aquilo que o
distingue dos outros, mas uma reunião do
geral (humanidade) e do particular. Em
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
síntese, assumir a vocação é assumir a
própria singularidade que, por sua vez, se
expressa na universalidade ética. Com isso,
a oposição entre heteronomia (diferença) e
autonomia (identidade) perde sua valência,
muito embora Kierkegaard afirme:
Mas a ética reconcilia o homem com a vida,
afirmando que todo homem tem uma vocação.
[...] Essa sentença do ético, que todo homem
tem uma vocação exprime, portanto, que existe
uma ordem das coisas razoáveis onde cada
um, se ele quer recobrar seu lugar de tal
modo que traduza, por sua vez, o humano
em sua generalidade e individualidade.
(KIERKEGAARD, 1970: 261)
Esse dever significa, simplesmente, que
cada indivíduo tem que tornar-se si mesmo,
e não poderá fazer isso, assumindo apenas
aquilo que lhe é inicialmente designado
por natureza. O indivíduo tem que se
escolher, quer dizer, responder de uma
maneira única à realidade única que ele
é, ou seja, àquilo que faz com que sua
singularidade seja transformada pela
reduplicação de sua unicidade natural.
Assumindo-se assim, como ser singular,
frente ao geral, o indivíduo torna-se
excepcional. Kierkegaard, na obra A
repetição, mostra que a exceção assimila
o geral e é compreendida através dessa
assimilação:
A exceção assimila o geral, ao mesmo tempo,
que se submete a uma análise completa;
trabalha em benefício do geral em se
elaborando ela mesma, explica o geral em
explicando a si mesma. A exceção explica,
portanto, o geral e ela mesma; e se alguém
quer exatamente estudar o geral é suficiente
procurar à sua volta uma exceção fundada:
esclarece tudo melhor que o geral. A exceção
fundada se encontra reconciliada no geral; o
geral é essencialmente atingido no combate
e recusa para mostrar sua predileção por ela
antes que tenha, por assim dizer, forçado
a confessar. (KIERKEGAARD, 1972: 93)
A exceção, o princípio normatizador da
vida ética, justifica a si mesma e o geral.
Como pode o indivíduo realizar a ética? Isso
só é possível mediante uma ruptura, um
salto, quer dizer, o indivíduo excepcional,
realiza a tarefa ética e torna secundária a
generalidade. Antes de ser desdobramento
da generalidade dos costumes, a vida
ética, para o indivíduo, é afirmação de si
e igualmente afirmação da generalidade.
Portanto, a exceção é o meio de criar,
modificar e afirmar a generalidade. Isso
supõe que o indivíduo deve ser o portador
da instância moduladora da ética e não
a generalidade. Sendo assim, a invenção
existencial do indivíduo suspende a escolha
de um outro, no que diz respeito à sua
realização, quando esta se reporta ao
mundo social normatizado.
O princípio ético é transmutado em
situação de exceção. Nessas situações,
onde normas e valores são desrespeitados
ou pervertidos, apenas os indivíduos
excepcionais podem denunciar a ilusão
e testemunhar a verdade. Um indivíduo
excepcional não é fruto de sua própria
decisão, porque, através da prova estrita
de eleição, elege a si mesmo, em meio ao
sofrimento e tribulações. Nesse sentido, a
exceção é pensada como síntese originária
segundo a qual aquilo que é estritamente
único traz em si o mais geral. A exceção
é a união dela mesma e do geral para
transformar a tarefa ética em tarefa
pessoal.
4. Conclusão
Para compreender a existência individual,
a vida ética tem função diretriz. A doutrina
kierkegaardiana da ética apresenta a escolha
originária como princípio da vida singular
122
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
e geral, contudo há certa primazia da
decisão sobre a generalidade e as normas.
Igualmente, por um movimento circular,
a primazia se inverte, à medida que a
decisão primeira é a repetição daquilo
que o indivíduo singular tem de universal
e que transcende a sua particularidade.
A decisão do indivíduo singular não é
normativa, no sentido de que as normas
por ele engendradas são atualizações da
normatividade inscrita em todo o homem.
Por isso, a sua decisão é o meio e o princípio
da normatividade.
A vida ética é a síntese, síntese que se
expressa de diversos modos: na decisão
e na norma, no particular e no geral, no
individual e no social, na moralidade e nos
costumes. Se todas essas questões acentuam
a dualidade, ainda assim permanecem
distintas, não se repetindo através de
uma dualidade exacerbada. Do ponto de
vista da ética, é precisamente, na síntese,
que a situação concreta e particular do
indivíduo singular fixa a decisão através
do querer. No entanto, esta decisão não
seria ética se efetuasse a abertura pela
generalidade e pelos costumes apenas
através da espécie.
Os fundamentos de uma ética da
existência pressupõem a exceção. Tal
ética não descura que, na vida ética,
o indivíduo com sua liberdade e sua
finitude seja sempre o foco da discussão.
Kierkegaard busca fundamentar uma ética
prática, centrada no indivíduo enquanto
ser singular, capaz de fazer a síntese
entre a lei da generalidade e a norma
da singularidade em seu existir através
da exceção.
Referências
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segunda parte)
KIERKEGAARD, Sören (1972). La répétition. Paris: Éditions de l’Orante. (v. 5)
KIERKEGAARD, Sören (1973). Le concept d’angoisse. Paris: Éditions de l’Orante. (v. 7)
KIERKEGAARD, Sören (1977), Post-scriptum définitif et non scientifique aux miettes
philosophiques. Paris: Éditions de l’Orante. (v. 11, segunda parte)
VERGOTE, Henri-Bernard. (1982) Sens et Répétition: Essai sur l’ironie kierkegaardienne,
Paris: Cerf/Orante. (2 volumes)
123
124
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
AS REFORMAS ADMINISTRATIVAS DE JOSÉ DA COSTA RIBEIRO1:
CABO VERDE, 1ª METADE DO SÉCULO XVIII
Bertelina Maria do Rosário de Brito
2
Resumo/Abstract
A administração pública nas ilhas de Cabo Verde na primeira metade do século
XVIII, vivia um momento de estagnação, em parte por causa da crise comercial e
financeira que atingia o arquipélago desde o século XVI. O abandono a que estava
remetido as ilhas do arquipélago, com excepção de Santiago e Fogo, também colocava
entraves à implantação do funcionalismo régio nas mesmas ilhas. Com a entrada do
ouvidor José da Costa Ribeiro em cena esta política vai sofrer alterações, desenvolvendo
um projecto que tinha como objectivo principal dotar todas as ilhas de órgãos capazes
e que as permitia se auto-governarem.
Palavras- chave: Cabo Verde; século XVIII; reformas administrativas; ouvidor
José da Costa Ribeiro; administração pública.
Public administration in the islands of Cape Verde in the first half of the eighteenth
century, there lived a moment of stagnation, in part because of the commercial and
financial crisis that struck the archipelago since the sixteenth century The abandonment
that was sent the other islands of the archipelago, especially in this group only
the islands of Santiago and Fogo, also posed obstacles to the deployment of royal
officialdom in the same islands. With the entry of Judge José Costa Ribeiro on the
scence will change this policy by developing this project which aimed to provide all
the maim islands of organs capable and allowed to self-govern.
Keywords: Cape-Verde; eighteenth century; administrative reforms; Judge José
da Costa Ribeiro; government.
1 José da Costa Ribeiro era “natural da Madeira, cavaleiro da Ordem de Cristo, licenciado e desembargador. Foi o primeiro togado de Santiago. Devia
tomar residência ao seu antecessor e para sindicar o governador Francisco da Nóbrega Vasconcelos, no que toca ao assassinato de Sebastião de Bravo
Botelho; é o grande responsável pela implantação de um aparelho administrativo nas ilhas do Barlavento, Maio e Brava, em 1731/32, conforme lhe fora
sugerido pelo Conselho Ultramarino, em 1727. Percorreu várias ilhas em correição, nomeadamente Santo Antão, S. Nicolau e Boavista, bem como a
Guiné, para fiscalizar a acção do capitão-mor de Cacheu, João Perestrelo. Teve conflitos com o governador Bento Gomes Coelho, chegando a refugiar-se
no Convento S. Francisco. Em 1738, tratou da arrecadação dos rendimentos da ilha Brava e informou das irregularidades do feitor de Santo Antão e das
suas tentativas para submeter S. Vicente à sua Jurisdição.”, Iva Cabral e Maria João Soares, «Ouvidores de Cabo Verde», publicada na HGCV, vol, III, coord.
de Maria Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e Cartografia Antiga; Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia; Direcção Geral do
Património de Cabo Verde, 2002, p. 422.
2 Bertelina Brito é mestranda em História Moderna e da Expansão Portuguesa na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
É estagiária no projecto “Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco” no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.
125
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Conjuntura
Na primeira metade do século XVIII,
o arquipélago de Cabo Verde sentia os
efeitos do agravamento de uma crise, que
afectava o desenvolvimento económico,
financeiro e comercial do território. Este
fenómeno vinha sendo desenvolvido desde
o século XVI e consolidou-se no século
XVII quando Cacheu assumiu o lugar de
Cabo Verde como entreposto comercial
de mercadorias que circulavam entre
África e a Europa.
Nesta época, o comércio de escravos
passou a ser feito em grande parte não
por intermédio de Santiago, mas sim
por Cacheu e, portanto os rendimentos
do quarto1 e da vintena2 e os direitos
sobre outros géneros deixaram de ser
arrecadados em Cabo Verde para o ser,
consequentemente em Cacheu.
Esta alteração explica-se pela
concorrência cada vez mais apertada dos
ingleses, franceses e holandeses na costa
da Guiné, colocando a Coroa portuguesa
sobre aviso nesta região, onde corria o
risco de perder o monopólio do comércio
de escravos3. Configura-se como natural
que a Coroa, neste contexto, canalizasse
os seus esforços na manutenção da praça
de Cacheu.
Os negociantes ricos de Santiago
e Fogo amealhavam todas as moedas
valorizadas ou investiam o seu capital
em negócios fora das ilhas. Os rendimentos
recolhidos dos tributos da Fazenda Real
não chegavam para o pagamento dos “filhos
1 Imposto régio, cujo valor de 25% recaia sobre todas as mercadorias
resgatadas pelos moradores de Santiago nos rios da Guiné.
2 Imposto régio cujo a cobrança correspondia a um de cada vinte
unidades; era cobrado depois de retirado o quarto e recai também sobre
os mesmos artigos que o quarto.
3 Ilídio Baleno, «Reconversão do Comércio Externo em Tempo de
Crise e o Impacto da Companhia de Gão-Pará e Maranhão, in HGCV,
op. cit, vol. III, p. 159.
da folha”, muito menos para sustentar
toda a estrutura administrativa.
A administração atravessava uma fase
caótica pelos sucessivos desentendimentos
entre as autoridades civis, judiciais
e eclesiásticas das ilhas. Além disso
a “nobreza da terra” começou a “ditar
leis”, sobrepondo-se às autoridades régias
devido a falta de numerário, “que d’ali
desaparecera completamente, fazendose os pagamentos por meio de vales”4.
Foi precisamente neste contexto
que ocorreram as divergências entre o
ouvidor-geral Sebastião Bravo Botelho5 e
o governador Francisco Miguel de Nóbrega
Vasconcelos6, iniciadas em 17267. Foram
vários os pontos de discórdia entre Bravo
Botelho e Nóbrega Vasconcelos, mas o
processo atingiu o ponto máximo quando
Miguel Caetano de Barros, irmão do ouvidor,
que servia como capitão-mor de São Filipe,
na ilha de Santiago, ausentou-se do seu
posto, sem a devida autorização, com vista
a acompanhar o ouvidor na sua deslocação
à ilha de Santo Antão8.
Em consequência deste acto, Miguel
Caetano de Barros foi suspenso do seu cargo
4 Cristiano José de Sena Barcelos, Subsídios para História Geral de
Cabo Verde e Guiné, parte II, Imprensa Nacional, Lisboa, 1899, p. 186.
5 Sebastião de Bravo Botelho era “licenciado e meirinho dos pinhais
de Leiria. Foi nomeado para o cargo de ouvidor-geral de Cabo Verde em
1723, tomou posse a 25 de Janeiro de 1724 e foi assassinado em 1728”,
Iva Cabral e Maria João Soares, “Ouvidores de Cabo Verde”, publicado na
HGCV, vol. III, coord. de Maria Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro
de Estudos e Cartografia Antiga; Instituto de Investigação Cientifica
Tropical; Praia; Direcção Geral do Património de Cabo Verde, Lisboa,
2002, p. 422.
6 Francisco Manuel Nóbrega de Vasconcelos “serviu no estado do
Pará e Maranhão. Foi nomeado para o posto de governador-geral de
Cabo Verde em 1725, tomou posse a 24 de Janeiro de 1726 e em 1728
fugiu para a Guiné por culpas por ter assassinado o ouvidor Sebastião de
Bravo Botelho.”, Iva Cabral e Maria João Soares, “Governadores de Cabo
Verde: 1640-1781” publicado na HGCV, vol. III, coord. de Maria Emília
Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e Cartografia Antiga; Instituto
de Investigação Científica Tropical; Praia; Direcção Geral do Património
de Cabo Verde, Lisboa, 2002, p. 417.
7 António Carreira, «Conflitos Sociais em Cabo Verde no século
XVIII», separata da Revista de História Económica e Social, nº16, 1985, p.
71; Cristiano José de Sena Barcelos, op. cit., p. 252.
8 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 6, 5 de Maio de 1728,
Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino.
126
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
pelo governador, no entanto a câmara de
Ribeira Grande foi contra esta suspensão,
desautorizando e desrespeitando Nóbrega
Vasconcelos9.
Com vista a resolver esta questão,
o Conselho Ultramarino anunciou em
5 de Maio de 1728 a substituição de
Sebastião Bravo Botelho e a nomeação
do seu sucessor10, ignorando-se no Reino
que no dia 19 de Fevereiro do mesmo
ano Sebastião Bravo Botelho havia sido
assassinado, juntamente com o seu irmão
e o seu tio, Sebastião Pereira da Silva,
na sequência da tentativa de prender os
dois últimos11.
A escolha do Conselho Ultramarino
para ocupar o posto de ouvidor-geral de
Cabo Verde recaiu sobre José da Costa
Ribeiro, figura central do nosso estudo
no que toca às propostas que apresentou
no que concerne à administração do
arquipélago.
Dados bibliográficos e nomeação
São escassos os elementos bibliográficos
disponíveis acerca de José da Costa Ribeiro12.
Nasceu em 1683, na ilha da Madeira13,
existindo suspeitas da sua legitimidade
por não ter recebido nenhum dos apelidos
do seu pai, Jerónimo Teixeira de Góis14.
9 Cristiano José de Sena Barcelos, op. cit, pp. 254-255.
10 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 6, 5 de Maio de 1728,
Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino.
11 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 8, 28 de Abril de
1729, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade
de Ribeira Grande.
12 Sobre a acção deste indivíduo ver o citado artigo de Alexandra
Pinheiro Pelúcia, «José da Costa Ribeiro, um madeirense ao serviço da
Ouvidaria-Geral das Ilhas de Cabo Verde (1728-1740), Islenha, nº 21,
1997, pp. 124-144.
13 Os dados sobre a idade e a origem foram obtidos através de várias
referências: em 15 de Outubro de 1728, Costa Ribeiro, é apresentado com
a idade de 45 anos. Ver ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra
J, maço 96, doc. 26, fl.6 vº, 15 de Outubro de 1728, Lisboa. Parecer da
Mesa da Consciência e Ordens dirigido ao rei. O próprio diz ter já com
50 anos; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 15, doc. 47, 5 de Março
de 1734, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade
de Ribeira Grande.
14 ANTT, Registo Geral de Mercês, D. João V, Livro 20, fl. 20.
127
A partir de 1702 encontrava-se em
Lisboa a fim de prosseguir os estudos15,
tendo frequentado a Universidade de
Coimbra a fim de obter o grau de bacharel
aprovado na leitura do Desembargo do
Paço16. Em 1712 ingressou na carreira
de magistratura17, altura em que foi feito
mercê do cargo de juiz de fora de Mértola,
pelo prazo de um triénio, eventualmente
prorrogável até que lhe fosse inquirido
residência. O segundo cargo que ocupou foi
o de juiz de fora da cidade Beja , antes de
ser nomeado para servir em Cabo Verde.
Esta nomeação ocorreu a 4 de Outubro
de 1728, por um período de 6 anos18.
José da Costa Ribeiro, como ouvidorgeral de Cabo Verde, era a autoridade de
superintendência de todos os assuntos
judicias, assim a este estava associado
o exercício das funções de provedor da
Fazenda Real e de provedor das Fazendas
dos Defuntos e Ausentes, Capelas e
Resíduos, do qual José da Costa Ribeiro
recebeu alvará de serventia no dia 5 do
mesmo mês19. A tomada de posse ocorreu,
na câmara da Ribeira Grande, em 5 de
Fevereiro de 172920.
15 ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra J, maço 96, doc. 26,
fl.6 vº, 15 de Outubro de 1728, Lisboa. Parecer da Mesa da Consciência e
Ordens dirigido ao rei,
16 ANTT, Chancelaria de D. João V, Ofícios e Mercês, livro 38, fl. 133,
3 de Novembro de 1712. Carta régia de mercê do cargo de juiz de fora da
vila de Mértola a José da Costa Ribeiro.
17 ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra J, maço 96, doc. 26,
fl.6 vº, 15 de Outubro de 1728, Lisboa. Parecer da Mesa da Consciência e
Ordens dirigido ao rei; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 15, doc. 63,
5 de Outubro de 1734. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei.
18 ANTT, Chancelaria de D. João V, Ofícios e Mercês, livro 75, fl. 146,
4 de Outubro de 1728, Lisboa, carta régia de mercê do cargo de ouvidorgeral de Cabo Verde; AHU, Cabo Verde, Papeis Avulsos, cx. 16, doc. 38,
[ant. 28 de Setembro de 1736]. Requerimento de Artur Aoldovort ao rei.
19 ANTT, Chancelaria de D. João V, Ofícios e Mercês, livro 75, fl. 152
vº, 5 de Outubro de 1728, Lisboa. Alvará régio de serventia do ofício
de provedor das fazendas dos defuntos e ausentes, capelas e resíduos
outorgado a José da Costa Ribeiro.
20 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 60, 2 de Maio de
1729, Santiago. Certidão elaborada por Domingos Soares da Cunha,
escrivão da câmara.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Administração da
Fazenda Régia
favor do almoxarifado de Cabo Verde e
não do Conselho da Fazenda25.
O ouvidor geral e desembargador de
Cabo Verde José da Costa Ribeiro escreveu
a 16 de Abril de 1731 ao rei, D. João V,
expondo-lhe “o estado em que se encontrava
a governação das ilhas, a liberdade em que
viviam os seus moradores e a necessidade
de se mandar dar remédio a tudo isso,
tanto no espiritual como no temporal”21.
Concomitantemente indicava as medidas
por ele consideradas necessárias para o
bom governo das ilhas22.
Data da mesma época a aplicação de
outras medidas no que concerne a tributação
pelo mesmo ouvidor: em 1730 institui o
pagamento de direitos sobre o sal que
os estrangeiros adquiririam na ilha do
Maio26 e um imposto sobre as provisões
que os navios estrangeiros buscavam na
vila da Praia27.
Para além disso, em 1729 e em 1731
queixava-se da falta de navios nos portos
de Cabo Verde, aconselhando a imposição
de castigos aos prevaricadores23, uma vez
que foi abolido o direito de ancoragem, de
modo a atrair os navios para os portos do
arquipélago, como forma de combater a
crise. Tendo em conta os graves problemas
nas finanças e a situação precária das
ilhas, o provedor achou por bem não
reintroduzir o direito de ancoragem.
Normalmente o lucro das mercadorias
que eram remetidas para Santiago
e que estavam sujeitas a tributação,
ficavam em depósito, aguardando ordens
régias24. Possivelmente, tendo em conta
este rendimento, em 1730 e 1731 o dito
ouvidor recorreu ao rei, solicitando que
as receitas da Boavista revertessem a
21 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27, 16 de Abril de
1731. Relatório do desembargador e ouvidor geral de Cabo Verde, José
da Costa Ribeiro para o rei [D. João V], sobre as reformas administrativas
que estavam sendo implantadas nas ilhas de Santiago, Santo Antão, São
Nicolau, Boavista, Maio e Brava.
O direito sobre o sal acima mencionado,
cobrado na ilha de Maio e também na de
Boavista, assim como os artigos que os
estrangeiros traziam para vender em Cabo
Verde, eram os únicos produtos tributados
em géneros, enquanto os direitos de saída,
fixados em 5%, eram cobrados em dinheiro,
registando excepções nos momentos em
que os estrangeiros estavam desprovidos
de numerário e pagavam a taxa devida
em produtos, estimados pelo seu valor
intrínseco e não comercial28.
O corpo institucional proposto para as
ilhas em 1731, referente a organismos da
Fazenda, era o mais diminuto possível:
a nomeação de três feitores, um para
a ilha de São Nicolau, outro para a de
Santo Antão e outro para Boavista, todos
estritamente dependentes da feitoria
instalada na Ribeira Grande de Santiago.
“Quando a fazenda se deve conservar em
cada Ilha destas hum feitor como agora
há com o seo escrivão próprio, este feitor
seja trienal e leito por este governo com
fiança ou nomeado pelos officiais da Camara
22 Idem.
23 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 29, 30 de Abril de
1731. Parecer do Conselho Ultramarino sobre o ofício de José da Costa
Ribeiro.
25 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 7 e 29, 10 de Maio de
1730 e 30 de Abril de 1731 . Parecer do Conselho Ultramarino sobre os
ofícios de José da Costa Ribeiro.
24 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 9, doc. 42 A; AHU, Conselho
Ultramarino, códice 478, fls 156 – 156 vº. Carta do cabido do bispado de
Cabo Verde para o rei [D. João V), de 26 de Fevereiro de 1706. Diziam
as suas dignidades que, depois daquela morte, “ficarão as obras do
seminário por acabar, e sem consignação alguma para se adiantar a dita
obra”. A 23 de Outubro do mesmo ano, o Conselho Ultramarino remeteu
requerimento para o Conselho da Fazenda, negando jurisdição sobre o
caso.
26 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos cx. 17, doc. 15, 19 de Fevereiro de
1734, Santiago. Carta do ouvidor José da Costa Ribeiro ao rei escrita na
cidade de Ribeira Grande.
27 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos cx. 16, doc, 39, 28 de Setembro
de 1736, Santiago. Carta do ouvidor geral das ilhas de Cabo Verde José da
Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade de Ribeira Grande.
28 Idem.
128
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
que nesse caso abonão, e se lhe deva dar
a copia do regimento da Fazenda que há
nesta Ilha pelo que tocas ao despacho dos
navios e aos almoxarifes e feitor com as
obrigações que agora bem como he não
fazerem lá pagamentos nem despesas sem
conhecimento e mandados desta Provedoria
remeterem a ella o rendimento de cada anno
a entregar a este almoxarife que asigna o
conhecimento da entrega para abono da
sua conta.
Quanto á fazenda nas Ilhas de Mayo e Ilha
Brava se não necessita de feitor ao mesmo
juízes se lhe deve carregar o que houver
pertencentes a elle porem na Boavista deve
haver feitor com seo escrivão como agora
lhe e como bem e devem ter as duas Ilhas
de S. Antão e S. Nicolau” 29.
Na época apontada na proposta, 1731,
os feitores de São Nicolau e Boavista já
vinham exercendo, por acumulação, o
cargo de capitão de cada uma daquelas
ilhas e cabia ao “ ouvidor geral passar
uma vez no seu triénio à Boa Vista e São
Nicolau para pôr em forma a administração
da justiça”30. De resto continuariam os
feitores dos rendeiros destas ilhas, em
caso de insubordinação ou crime de algum
morador, a dar “parte ao governador ou
ouvidor de Cabo Verde, para castigarem
como merecer o seu delito”31.
As observações feitas pelo ouvidor geral,
em 1731, assinalavam uma realidade
administrativa desigual entre as ilhas
periféricas, elevando algumas delas ao
patamar de segundo grupo dotado de condições
para implantar órgãos administrativos.
Na liderança deste grupo, encontravamse Santo Antão, São Nicolau e Boavista.
Atrás trilhando o mesmo caminho mas
29 Idem.
30 Cristiano José de Sena Barcelos, op.cit, parte II, p. 170.
31 Idem
129
guardando alguma distância apareciam
Maio e Brava.
Assim, em 30 de Agosto desse mesmo
ano o Conselho Ultramarino aprovava
o regulamento civil e militar que o
desembargador Costa Ribeiro dera às
ilhas de Santo Antão, Boavista e São
Nicolau e este foi publicado em 1732 no
Livro de registo da ilha da Boavista32.
Na provisão que consta deste documento
referente à Fazenda Real, reafirmava-se
a escolha para as ilhas de Santo Antão,
São Vicente e Boavista de um feitor (um
para cada ilha) como seu escrivão próprio
e que a escolha desse feitor fosse trienal,
eleito pelo governador-geral, com fiança,
depois de ouvidos os oficiais da câmara
municipal de Santiago.
Os feitores eleitos para São Nicolau
e Santiago governariam de acordo com
regimento da Fazenda da ilha de Santiago.
Não podiam fazer pagamentos nem despesas
sem o conhecimento e mandado da provedoria
de Santiago e eram obrigados a remeterem
para o almoxarifado de Santiago todos
os rendimentos de cada ano. O mesmo
juiz deveria continuar responsável pelos
assuntos da fazenda das ilhas de Maio
e Boavista33. Segundo aquela provisão,
Santo Antão devia ser a cabeça do governo
das ilhas de São Nicolau e São Vicente34.
No primeiro ponto do citado livro de
registos encontra-se estabelecido o seguinte:
32 Provisão de José a Costa Ribeiro de 11 de Abril de 1732, publicado
in António Carreira, «Alguns aspectos da administração pública em Cabo
Verde no século XVIII», separata do nº 105 do Boletim Cultural da Guiné
Portuguesa, 1972, pp. 168-191.
33 Idem.
34 Idem; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27 e 28, 16 de
Abril de 1731 . Consultas do Conselho Ultramarino; AHN, SGG, A1/0001,
fld. 72 v- 74 v e 101-103, 16 de Abril de 1731, Santiago. Informação de
José da Costa Ribeiro, feita na cidade de Ribeira Grande, citada na obra
de André Pinto de Sousa Dias Teixeira, A ilha de São Nicolau de Cabo
Verde nos séculos XV a XVIII, dissertação de mestrado em História dos
Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Faculdade de Ciências Sociais,
Universidade Nova de Lisboa, 2004, p. 78..
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
“A forma por que o Feitor deve dar despacho
a todos os navios de qualquer nação que
forem e que venham comerciar a esta Ilha»,
da Boa Vista”35.
Previa-se neste capítulo o processo prático
de como devia ser feito o fornecimento
aos navios, a título de refrescos, livros de
direitos, das frutas da terra, gado, perus
e coisas semelhantes. Estipulou-se que
o mantimento requerido pelos navios,
caso constassem de milhos, feijão, porcos,
vacas e cabras, o vendedor estava sujeito
ao pagamento da taxa de 5 %. Porém a
compra dos mesmos géneros alimentícios
e de gado pelos capitães dos navios, ficava
condicionada à licença da Câmara, a fim
de evitar o esgotamento das provisões
necessárias aos habitantes36.
Outro aspecto que se debruçou o respectivo
documento foi a cobrança do dízimo do
gado. Efectivamente, no arquipélago desde
o início do seu povoamento assinalou-se
a existência de gado, utilizado como meio
de troca nas transacções comerciais.
Após os governadores terem sido
proibidos de participar directamente no
comércio com a Guiné em 169837, estes
acabam por recorrer ao comércio de gado,
alegando possuírem direitos reais que lhes
atribuíam primazia na venda de gado aos
navios que aportava em Santiago, como
forma de melhorar os seus rendimentos.
Todos queriam deter o controlo do
comércio de gado com os estrangeiros,
gerando tensões e conflitos entre as várias
autoridades, até ao ponto do ouvidor José
da Costa Ribeiro, de modo a por termo
ao clima de tensão, propor em 1732 a
existência de um almoxarife38 próprio
para a receita do gado e que este deveria
ser eleito pela câmara, presidindo para a
sua eleição o ouvidor geral, o qual seria
obrigado a dar contas trienalmente e
que teria de ordenado 10%, das vacas
vendidas, isto é, de cada dez vacas que se
vendessem, uma seria para o almoxarife.
Ao seu escrivão se pagaria 200 réis por
dia, com excepção dos feriados39.
A questão da cobrança do dízimo
do gado seria outra vez realçada em
1736, quando em 20 de Dezembro, o rei
atendeu ao pedido do governador sobre a
fortificação da vila da Praia, feito em 20
de Junho de 1732. Este solicitava que a
fortificação fosse custeada pelo produto
da venda das vacas concedida ao povo e
à câmara. Consultando, primeiramente
o ouvidor geral e depois os oficiais da
câmara, a nobreza e o povo, que votaram
favoravelmente pela construção de fortes
com o rendimento das vacas, o rei em
carta de 30 de Janeiro de 1737 deu o seu
parecer favorável40.
A mesma provisão permitia o negócio
com os estrangeiros, excepto na venda
de “panos da terra” e por consequência o
algodão e determinava que as fazendas
vendidas, ou dadas contra géneros da terra,
pelos navios, pagavam 10% de direitos
de entrada41. Reafirmava, também, a
proibição de os oficiais da Fazenda Régia de
participarem em todo o trato e comércio42.
35 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos cx. 15, doc . 8, 11 de Março de
1733, Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino sobre a urzela.
38 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 78, 20 de Junho de
1732, Santiago. Carta do ouvidor, José da Costa Ribeiro ao rei, escrita na
cidade de Ribeira Grande; Cristiano José da Sena Barcelos, op. cit., parte
II, p. 276.
36 Provisão de José a Costa Ribeiro de 11 de Abril de 1732, publicado in
António Carreira, op. cit., «Alguns aspectos…», p. 169.
39 Provisão de José da Costa Ribeiro de 11 de Abril de 1732, publicado
in António Carreira, op. cit., «Alguns aspectos…», p. 169.
37 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 8, doc. 101, 18 de Novembro
de 1698. Carta régia proibindo a participação dos oficias régios no
comércio com os rios da Guiné; Cristiano José da Sena Barcelos, op.
cit.,parte II, p. 145.
40 Idem.
41 Idem, p. 175.
42 Idem.
130
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
No entanto, a reforma empreendida
por José da Costa Ribeiro, não teve o
alcance desejado em todas as ilhas
mencionadas no seu relatório, ficando a
ilha de São Nicolau aquém do desejado, ao
contrário da Boavista que sobrevalorizada
em deferimento da ilha de São Nicolau
no que se refere ao domínio da fazenda
como no governo político, dado que aquele
aspecto foi sobretudo trabalhado na ilha
da Boavista43.
Também devemos ter em conta que o
sistema de administração das finanças
públicas estava numa fase incipiente e
consequentemente apresentava grandes
insuficiências, uma vez que as autoridades
centrais do arquipélago não conseguiam
controlar a arrecadação dos tributos devidos
à Coroa. De acordo com a opinião do
governador de Cabo Verde na época, Bento
Gomes Coelho, seria mais proveitoso para
a Coroa, de modo a recolher os rendimentos
das ilhas de Barlavento, proceder ao seu
arrendamento a um privado. Bento Gomes
Coelho também realçava a situação de
grande promiscuidade vivida entre os
oficiais da Fazenda Real daquelas ilhas44.
Administração da justiça
O ouvidor e desembargador geral das
ilhas de Cabo Verde, no seu relatório
referente às reformas administrativas
que estavam a ser implantadas nas ilhas
de Santo Antão, São Nicolau, Boavista,
Maio e Brava, elaborado no ano de 1731,
afirmava o seguinte:
“São sinco Ilhas povoadas que há sem
administração sem administração da justiça
nem forma dellas pertencentes ao Governo
e Correição desta de S. Tiago a Ilha de S.
43 André Pinto de Sousa Dias Teixeira, op. cit., p. 78.
44 AHN, SGG, A1/ 0002, fl. 254. Carta do governador de Cabo Verde,
Bento Gomes Coelho, feita na cidade da Ribeira Grande de 26 de Outubro
de 1736 citado por André Pinto de Sousa Dias Teixeira, op. cit, p. 79.
131
Antão, a Ilha de S. Nicolau e da Boavista,
Ilha de Mayo, e a Ilha Brava.
A Ilha de S. Antão que se compreende mais
de 360 fogos, todos dentro na povoação
apelidada Cidade da Ribeira grande e
a Ilha de S. Nicolau que com o nome de
vila da Ribeira Brava consta o lugar de
mais de 260 vizinhos, ambas tem suficiente
capacidade de se crearem villas com juízes
ordinários, vereadores, e mais oficiais de
Camara, e outros a elle concenentes, pois
em o numero de moradores de cada huma
das duas Ilhas não hé possível deixar de
haver vinte e quatro capazes de servirem
doze em cada três annos e se tirarem delles
os mais officios” 45
Da proposta esboçada é possível extrair
o seguinte: primeiro, que da descoberta
até os anos 30 do século XVIII, apenas
as ilhas de Santiago e Fogo tinham sido
dotados de estruturas administrativas
camarárias e régias; e segundo, que, do
conjunto das restantes ilhas, somente
duas, São Nicolau e Santo Antão estariam
no segundo quartel de setecentos, aptas a
constituírem câmaras e albergar um certo
número de órgãos de administração régia.
Este defendia que as povoações da
Ribeira Grande de Santo Antão e da
Ribeira Brava de São Nicolau deviam
ser elevadas a vilas e que nelas fossem
instituídos concelhos, com juízes eleitos,
tal como existia no Fogo em Santiago.
Estes governar-se-iam pelas leis gerais do
Reino, não necessitando de um regimento
especial, e funcionando como qualquer
município da Metrópole, no entanto,
aconselhava José da Costa Ribeiro, que
seria conveniente que alguns oficiais
camarários acumulassem cargos, como
acontecia em algumas vilas do Reino46:
45 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27, 16 de Abril de
1731, Santiago. Exposição de José da Costa Ribeiro.
46 Idem.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
- O escrivão da câmara seria
simultaneamente do público, judicial,
notas e almotaçaria, sendo renumerado
pela autarquia.
- O alcaide exerceria as funções de
carcereiro, devendo o salário ser pago
igualmente pelo concelho.
- Um dos juízes deveria se também
dos Órfãos, optando-se, no entanto, que
o cargo de escrivão destes, constituísse
um oficial separado.
Pela primeira vez, se preconizava a
separação das administrações da fazenda,
da guerra e da justiça. A administração
da justiça caberia às recém instituídas
câmaras municipais, mantendo-se, no
entanto, com uma frequência trienal.
Estas seriam feitas quando o ouvidor-geral
se deslocava a cada uma das ilhas, para
fazer inquéritos dos casos mais graves,
as chamadas devassas47.
Para as ilhas de Boavista e Maio, com
populações reduzidas, foi proposto a criação
de “lugares” com um juiz anual em cada
uma delas, “com seu alcaide e escrivão do
judicial e notas”. Evidentemente estariam
submetidos à Ouvidoria sito em Ribeira
Grande, para onde seriam remetidos todos
os autos de devassas realizados nas ilhas
“para se pronunciarem e passarem as
ordens necessárias contra os culpados48”
Estas propostas de José da Costa Ribeiro
foram bem aceites pelos procuradores da
Coroa e Fazenda e pelo Conselho Ultramarino,
sendo sancionadas favoravelmente a 30 de
Agosto de 1731 pelo Conselho Ultramarino
47 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27 e 28, 16 de Abril
de 1731. Consultas do Conselho Ultramarino. Nas suas cartas anexas nas
consultas, José da Costa Ribeiro manifestou a opinião de que as ilhas da
Boavista, Maio e Brava, não estavam preparadas para receber câmaras
municipais, pelo que a nomeação, a partir de Santiago, de um juiz, que
na primeira ilha seria acompanhado por um feitor, bastaria para a sua
administração.
48 Idem.
Assim, sabemos que as visitas do
ouvidor terão iniciado no ano seguinte
partindo para as ilhas de Barlavento a
25 de Abril, a fim de pôr em prática as
reformas, dirigindo-se primeiro a Santo
Antão e prevendo depois passar em São
Nicolau e Boavista50.
49
Em 1733, o rei confirmou o regimento
dado por José da Costa Ribeiro, o qual foi
inscrito nas câmaras das vilas criadas,
por ordem do governador-geral Bento
Gomes Coelho51.
Com as alterações inseridas, o governador
das novas câmaras funcionou sem grandes
sobressaltos nos anos seguintes. Por exemplo,
em 1736, deu-se uma feliz articulação de
poder, ao nível da aplicação da justiça,
entre os juízes da câmara de São Nicolau
e o ouvidor-geral; nesta altura, foi enviado
da vila da Ribeira Brava para a ilha de
Santiago um preso acusado de ter morto
um capitão de um navio inglês. José da
Costa Ribeiro considerava que o único
obstáculo ao normal funcionamento das
instituições era o próprio governadorgeral do arquipélago, com quem estava
então em litígio pessoal52.
Administração militar
Anterior ao ano de 1731, foi ensaiada a
intuição de um capitão regional, que deteria
jurisdição sobre as ilhas de Barlavento.
49 AHU, Conselho Ultramarino, códice 486, fls. 251-251 v. Consulta
do Conselho Ultramarino; AHN, SGG, A1/000Um, fls. 72.72v e v00v-10,
12 de Julho de 1731, citado por André Teixeira, op. cit., p. 34. Parecer
favorável do Conselho Ultramarino.
50 AHU, Cabo Verde. Papéis Avulsos, cx. 14, doc, 68, 5 de Junho de
1732, Santiago. Carta do governador Francisco de Oliveira Grans ao
rei escrita na cidade de Ribeira Grande. Desconhecem-se os episódios
ligados à visita às ilhas de São Nicolau e Boavista.
51 AHU, Conselho Ultramarino, códice 486, fl. 277, 10 de Março de
1733. Provisão régia que confirmava os regimentos de José da Costa
Ribeiro; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 15, doc. 12, 6 de Junho
de 1733, Santiago. Carta de Bento Gomes Coelho escrita na cidade de
Ribeira Grande.
52 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 16, doc. 53, 31 de Outubro
de 1736, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade
de Ribeira Grande.
132
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
O nomeado foi Sebastião de Mendonça e
Zuniga que em 1729 recebeu a patente de
“capitão-mor da ilha de Santo Antão, São
Nicolau e São Vicente” por um período
de três anos53.
A quando da nomeação de Sebastião
de Mendonça e Zuniga para o posto de
capitão-mor da ilha de Santo Antão, São
Nicolau e São Vicente, este argumentando
que o regimento lhe conferia capacidade
para governar nos aspectos militar, civil e
político, como na administração da justiça
e Fazenda Real, tentou assumir o posto
de feitor e capitão das ditas ilhas.
Realmente no sexto ponto do seu
regimento existia a indicação para o dito
capitão ter “ cuidado nos rendimentos das
Ilhas de São Nicolau, e Boavista, tocantes
a fazenda Real”, ou seja, ao nomeado
capitão-mor de Santo Antão, foi atribuída a
competência de vigiar os feitores das ilhas,
ficando estes sob a alçada de Mendonça
e Zuniga, que assim desempenharia um
lugar intermédio entre o governador-geral
de Cabo Verde e os capitães feitores
daquelas ilhas do Barlavento. A fim de
confirmar esta posição, o rei estabeleceu
que fosse passada a Zuniga a patente já
mencionada de capitão-mor das ilhas de
Santo Antão, São Nicolau e S. Vicente.
Em cartas dirigidas ao rei o ouvidor
e o governador acusavam o dito capitão
de roubar a Fazenda Real, recusando
enviar os rendimentos para Santiago e
falsificando certidões dos réditos que ele
remetia; de desrespeitar e desobedecer ao
poder superior do governador, ignorando
as cartas que este lhe enviava; de permitir
aos estrangeiros comerciar sem pagar
os devidos da alfândega ordinário e de
53 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 21, 30 de Março
de 1729, Lisboa. Provisão nomeando Sebastião de Mendonça e Zuniga
para o posto de capitão-mor das ilhas de Santo Antão, São Nicolau e São
Vicente por três anos.
133
usurpação da jurisdição sobre as ilhas que
não lhes estavam confiadas, nomeadamente
Boavista, Santa Luzia, São Vicente e São
Nicolau54.
Sebastião de Mendonça e Zuniga
acabaria por ser destituído do posto e
face à prematura falência do modelo
experimental de capitão-regional, José
da Costa Ribeiro projectou para São
Nicolau, tal como para Santo Antão, a
criação do cargo de capitão-mor com função
exclusivamente militar e circunscrito à
defesa de cada uma dessas ilhas55.
Este deveria ser eleito pelos oficiais do
município, aprovado pelo governador-geral
e confirmado pelo soberano; os providos
podiam igualmente ser afastados do posto
em qualquer momento, por ordem superior.
Nestas determinações voltara a insistir-se
que a defesa das ilhas deveria obedecer
ao regimento das ordenanças do Reino,
uma vez que todos os moradores eram
considerados soldados.
O capitão-mor tinha como função realizar
o alistamento dos capazes de servir na
defesa da ilha, propor os oficiais que lhe
parecessem mais adequados e organizar a
sua vigilância, nomeadamente nos portos
e zonas da costa de desembarque mais
fácil56.
No entanto, tendo em conta as queixas
em 1733 do governador-geral do arquipélago
sobre a tentativa que fez para cobrar os
direitos referentes ao trato da urzela e
54 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 43, 24 de Abril de
1730- 2 de Maio de 1732. Pareceres, consultas e informação do Conselho
Ultramarino sobre os excessos que estavam sendo praticados pelos
capitães-mores da praça de Cacheu, João Perestrelo e ilha de Santo Antão,
Sebastião de Mendonça e Zuniga,
55 AHN, SGG, A1/000um, fls. 72-72v; AHN, SGG, A1/0001, fls.
72v-74v e 101-103, Abril de 1731, Informação de José da Costa Ribeiro,
citado por André Teixeira, op. cit, p. 54; AHU, Cabo Verde, Papéis
Avulsos, cx. 14, doc 27 e 28, 16 de Abril de 1731. Consultas do Conselho
Ultramarino.
56 Idem.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
de outros bens na ilha de São Nicolau,
alegando que se afigurava difícil, porque os
agentes da Coroa na ilha diziam ter falta
de artilharia para o impor57, concluímos
que a nomeação do capitão-mor e a criação
de companhias de ordenança não resolveu
eficazmente o problema da segurança da
ilha.
Em termos práticos a aplicação do
projecto no campo da administração militar
traduziu-se na criação nas ilhas de São
Nicolau e Santo Antão de companhias de
ordenança, “nomeando capitães, tenentes
e alferes”; e mandou fazer eleição em São
Nicolau, para o posto de capitão-mor58.
Para Santo Antão foi nomeado o segundo
capitão-mor, Cláudio Roquete da Silva59,
mas já sem os amplos poderes que usufruía
o seu antecessor. Foi-lhe atribuído um
Regimento que lhe consagrava apenas
um governo militar e estava declarado
que pertencia exclusivamente à câmara o
governo político da ilha “ e que esta seria
isenta da jurisdição do capitão-mor, como
também o feitor60. O novo capitão-mor
também perdeu a jurisdição que detinha
o anterior capitão sobre as ilhas de São
Nicolau e São Vicente.
Para as restantes ilhas do Barlavento
seriam nomeados capitães-cabos, instituídos
para “exercer as mesmas obrigações que
naquelas duas devem ter os capitãesmores”61.
57 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 65, 6 de Abril de
1732, Santiago. Carta de Francisco de Oliveira Grans para o rei, escrita na
cidade da Ribeira Grande.
58 Cristiano José de Sena Barcelos, op. cit., parte II, p. 272. Sobre a
criação, cerimónia de empossamento e reunião de José da Costa Ribeiro
com o corpo de oficiais camarários ver Maria José Lopes, «A câmara
municipal de Santo Antão: criação e evolução (1732-1870), Africana, nº
5, 1988, p. 111.
59 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 67, Maio de 1732.
Ofício de Cláudio Roquete da Silva informando a sua chegada a Cabo
Verde e tomada de posse.
60 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 23 de 30 de Março de
1729. Requerimento de Cláudio Roquete da Silva, capitão- mor da ilha
de Santo Antão.
61 Zelinda Cohen, «A Administração das ilhas de Cabo Verde Pós-
Nomeação de oficiais
No relatório apresentando pelo ouvidor
e desembargador, este debruçou-se
também sobre o quadro de pessoas que
considerava necessárias para ocuparem as
funções administrativas do arquipélago,
argumentando que uma das razões
fundamentais para que na altura não
houvesse ainda instituições administrativas
nas outras ilhas, era o facto de a Coroa
Portuguesa não nomear os moradores
das ilhas, composto essencialmente por
mestiços e negros, para os mesmos postos62.
A resistência em nomear os mestiços
e pretos explica-se pela mentalidade, leis
e pelos critérios utilizados para a escolha
dos que deveriam ocupar os postos da
administração pública. No Antigo Regime
os critérios, ao contrário dos actuais que
primam pela competência, baseavam-se
na ascendência familiar, pureza de sangue
e a religião63.
“Ser branco, cristão e sem qualquer indício
de ascendência de outras cor ou religião
eram, sem sombra de dúvida, condições
elementares para se pretender algum oficio
no quadro do oficialato régio” 64.
Qualquer suspeita sobre a origem étnica
do candidato ou oficial podia comprometer
a sua nomeação ou ascensão na carreira.
Os judeus, os cristãos-novos e os negros,
eram os considerados inaptos para tais
União Ibérica: Continuidades e Rupturas, in HGCV, op. cit., vol, III, p.
150.
62 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14,doc. 27, 16 de Abril de
1731, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro para o rei, escrita na cidade
da Ribeira Grande.
63 Mafalda Soares da Cunha, «Governo e governantes no Império
português do Atlântico (século XVII)», in Modos de governar: ideias e
práticas politicas do Império português: século XVI a XIX, org. Maria
Fernanda Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini, 2ª edição. São Paulo,
Alameda, 2005, pp. 69-87.
64 Zelinda Cohen, «Entre os proscritos e os seleccionáveis: contribuição
para o estudo do perfil do funcionalismo régio insular (Cabo Verde:
do século XV a meados do século XVIII)», Africana, dir. João da Silva
Cunha, nº 6, 2001, p. 79.
134
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
ofícios, visto serem de outra religião e de
outra raça, ou seja não tinham o sangue
limpo e lhes faltava qualidade.
Os critérios acima mencionados aplicados
às ilhas de Cabo Verde apresentam-nos
um contra-senso, visto que a sociedade
cabo-verdiana da época era constituída
essencialmente por mestiços (designados
brancos da terra), sendo pouco os brancos
oriundos do Reino. Daí que se entenda que
nestas ilhas, devido às suas condições e a
recusa de os portugueses ali se fixarem,
existir uma certa flexibilidade por parte
da Coroa na escolha das pessoas para
o oficialato local, principalmente nos
de menor prestígio social e de menor
responsabilidade, como os de porteiro,
meirinho65.
Enfim a presença e relativa tolerância
dos brancos da terra era uma realidade,
sobretudo a partir de 1608, quando foi
promulgada a lei que reconhecia o direito
aos naturais a ocuparem os postos vagos
na sua própria terra66.
Evidentemente que nos casos dos postos
de governadores, ouvidores-gerais, feitores
e provedores, ou seja o topo da hierarquia
assente em Cabo Verde, o acesso dos
naturais foi sempre muito mais dificultado.
Estes eram cargos que de certa maneira
ainda exigiam uma experiência bastante
consolidada e, principalmente a confiança
do monarca; confiança, esta que só era
possível estabelecer com pessoas que já
tinham prestado à Coroa determinados
serviços e que já tinham dado prova das
suas competências.
65 Zelinda Cohen, Controle e resistência no quadro do funcionalismo
régio insular, (Cabo Verde – século XV a meados do XVIII), tese de
mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa,
Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de
Lisboa, 1999, p. 120.
66 Zelinda Cohen, op. cit., «Entre os proscritos …», p. 79-80.
135
Conclusão
O relatório do ouvidor e desembargador
José da Costa Ribeiro nos comprova que
todas as intenções manifestadas nos anos
anteriores, de dotação àquelas ilhas dos
seus próprios organismos de administração,
não se haviam realizado até então. Fora a
constituição da capitania de Santo Antão,
São Nicolau e São Vicente (e mesmo assim
sem regimento próprio), pouco se havia
avançado nos planos de consolidação da
administração régia nas outras ilhas do
arquipélago.
Os diversos cargos que foram sendo
criados em Cabo Verde eram, em grande
medida semelhante aos existentes no Reino.
O objectivo principal era transplantar
a estrutura institucional do Reino para
Cabo Verde, respeitando a especificidade
do arquipélago.
A multiplicação de postos administrativos
anuncia uma tentativa, por parte da
Coroa, de prover o arquipélago de meios
organizativos próprios, capazes de controlar
as crescentes trocas comerciais que se
iam registando e restringir os poderes
e a influência dos donatários e de outros
indivíduos poderosos que haviam chamado
a si, ilegalmente, privilégios e regalias,
cientes do afastamento do Reino.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Abreviaturas
AHN- Arquivo Histórico Nacional (Cabo Verde).
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal).
ANTT- Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Portugal).
HGCV – História Geral de Cabo Verde.
AHCV-CD- História Geral de Cabo Verde, Corpo Documental.
AUC – Arquivo da Universidade Coimbra.
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ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo.
ANTT, Registo Geral de Mercês.
AUC - Os Livros da Matricula e os Livros dos Autos e Graus.
Impressas
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136
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
140
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
EVANGELIZAÇÃO DE CAPUCHINHOS
ESPANHÓIS NA ILHA DE SÃO NICOLAU
Carlene Recheado1
Resumo/Abstract
Em 1666, dois capuchinhos espanhóis da província da Andaluzia naufragaram
na ilha de São Nicolau, Cabo Verde. Os dois religiosos pertenciam à missão dos
reinos dos negritas que, desde do ano de 1647, assistiam na diocese de Cabo Verde a
mando da Congregação para a Propaganda Fide, um organismo da Igreja de Roma,
que “disputava” a missionação no além-mar com os padroados dos países ibéricos.
Através da análise dos relatos dos missionários entendemos o estado da igreja em
São Nicolau e das demais ilhas do arquipélago, na segunda metade do século XVII.
Palavras-chave: século XVII; São Nicolau; evangelização; capuchinhos; Propaganda
Fide.
In 1666 two Capuchin Spanish province of Andalusia were shipwrecked on the
island of Sao Nicolau, Cape Verde. The two belonged to the religious mission of the
kingdoms of the bold since the year 1647, attended the diocese of Cape Verde, at the
behest of the Congregation for the Propaganda Fide, a body of the Church of Rome,
that “disputed” in the missionary overseas with the standards of the Iberian countries.
By analyzing the reports of missionaries understand the state of the church in São
Nicolau and other islands of the archipelago but in the second half of the seventeenth
century.
Keywords: seventeenth century; island of São Nicolau; evangelization; capuchin;
Propaganda Fide.
1 Carlene Recheado é doutoranda em História da Expansão Portuguesa pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e
investigadora do Centro de História e Além Mar - Universidade Nova de Lisboa / Universidade dos Açores (CHAM).
141
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
A Evangelização das
ilhas de Cabo Verde
Neste artigo, pretendemos analisar a
assistência religiosa na ilha de São Nicolau,
na segunda metade do século XVII, através
do relato de dois capuchinhos1 espanhóis
da província da Andaluzia, enviados pela
Congregação para a Propaganda Fide2
para a missão da costa da Guiné, acabando
por viver por mais de um ano na ilha,
na sequência de um naufrágio, quando
regressavam ao continente europeu.
A ilha de São Nicolau3, uma das dez
ilhas que compõem o arquipélago de Cabo
Verde4, tal como as restantes ilhas do
arquipélago, com a excepção das ilhas
de Santiago e Fogo, permaneceu, ainda
durante o século XVII, sem a presença
de estruturas políticas, económicas e
militares, sendo a única autoridade da ilha,
o feitor do donatário. A ilha não conheceu
grandes iniciativas de povoamento e teve
como principal actividade económica, a
criação de gado. Até 1696, data que findou
o regime senhorial na ilha passando a
mesma para a administração do Conselho
da Fazenda, ela esteve na posse dos condes
de Portalegre, depois dos marqueses de
Gouveia. Só após este período passou a
ter um pároco permanente.
1 A ordem dos frades menores capuchinhos, surgiu por volta de 1525,
na província das Marcas, Nordeste italiano, junto ao Adriático e constituiu
uma das maiores reformas surgidas no seio da Ordem Franciscana. O seu
fundador foi Mateus de Bascio, um jovem sacerdote que na Província das
Marcas, fazia parte dos observantes, grupo que reclamava a faculdade de
observar à letra a regra franciscana.
2 A Propaganda Fide, organismo criado em Junho de 1622, encarregado
de dirigir a acção apostólica, como uma certa independência dos poderes
leigos.
3 Ver André Pinto de Sousa Dias Teixeira, A ilha de São Nicolau de
Cabo Verde nos séculos XV a XVIII, Centro de História de Além - Mar,
Universidade Nova de Lisboa, 2004.
4 Ver História Geral de Cabo Verde, vol. I, coordenação de Luís
Albuquerque, vol. II e vol. III, coordenação de Maria Emília Madeira
Santos; Lisboa, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga,
Instituto de Investigação Cientifica Tropical; Praia, Direcção Geral do
Património de Cabo Verde - Instituto Nacional de Cultura de Cabo Verde,
1991, 1995 e 2002; Christiano José de Senna Barcellos, Subsídios para a
História de Cabo Verde e Guiné, Lisboa, Academia Real das Ciências,
1899.
A assistência religiosa no arquipélago
começou em 1466, com a presença de
dois religiosos, frei Jaime e frei Rogério5.
Ambos franciscanos do Convento de São
Bernardino da Atouguia em Lisboa. Essa
assistência foi efémera, terminando no
decorrer de um conflito entre os frades e
o capitão Bartolomeu de Noli6, que teria
mandado matar frei Rogério e prender
o seu companheiro.
Sendo o arquipélago geograficamente
próximo das áreas de resgate e, ao contrário
da “terra firme da Guiné”, os portugueses
não encontraram resistência à fixação dos
mecanismos de gestão comercial. Santiago
funcionou como a sede da “feitoria do trato
da Guiné”. Esta associação Guiné - Cabo
Verde serviu de base para a formação da
diocese de Cabo Verde7.
A pedido de D. João III, o papa Clemente
VII, em 31 de Janeiro de 1533, criou a
diocese de Santiago e confirmou o seu
primeiro Bispo, D. Brás Neto. Para acolher
a diocese, a vila de Ribeira Grande de
Santiago foi elevada a cidade e nasce
o projecto da construção da catedral de
Ribeira Grande8.
O bispado, para além de abranger as
ilhas do arquipélago, estendia-se por uma
faixa territorial de cerca de 320 léguas,
que iniciavam no rio Gâmbia e iam até
ao rio de Santo André, actualmente
Sassandra, situada na Costa do Marfim.
A área abrangida pela ampla diocese
ultrapassava os limites de influência
portuguesa, principalmente a sul, onde
5 Christiano José de Senna Barcelos, Ob. cit. Parte I, p. 28.
6 Bartolomeu de Noli foi o primeiro capitão donatário de Ribeira
Grande de Santiago, fixou-se aí em 1466, constituindo o primeiro núcleo
de povoamento do arquipélago.
7 Maria Emília M. Santos, Maria João Soares, “Igreja, missionação
e sociedade” in História Geral de Cabo Verde, Lisboa, Vol. II, Junta de
Investigação Científica Tropical: Direcção Geral do Património Cultural
de Cabo Verde, 1995, p.371.
8 cf. António Brásio, Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, vol II,
Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1958. pp. 232 – 234.
142
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
abrangia territórios como a Serra Leoa,
e uma parte do Golfo da Guiné9.
Dada a vastidão do território continental do
bispado, a sua heterogeneidade física, étnica,
religiosa e cultural, (onde se encontravam
povos animistas, islamizados e depois
alguns grupos de cristianizados), os bispos,
muitas vezes não conseguiam cumprir
com as visitas anuais10 estipuladas pelo
Concílio de Trento, pelo que a assistência
religiosa não era igual em todo o território.
A actividade religiosa do bispado era
semelhante à praticada na Europa cristã
quinhentista. Este modelo foi transportado
também para as restantes ilhas do atlântico
e para o Brasil. Deste modo, a diocese de
Cabo Verde encontrava-se organizada numa
rede de paróquias. A expansão da igreja
no arquipélago esteve intimamente ligada
às vicissitudes do processo de povoamento.
A ilha de Santiago foi a primeira a ser
habitada, uma vez que possuía bons
portos e boas nascentes de água doce.
As ilhas de Santo Antão e São Nicolau
também encontravam-se dotadas de boas
nascentes de água, mas em contrapartida,
não usufruíam de grandes portos. Nas
restantes ilhas, excepto a ilha da Brava,
praticamente não havia água. A segunda
ilha a ser povoada foi a do Fogo, dada a
proximidade de Santiago e por ser uma
grande produtora do algodão.
As ilhas de Santo Antão e São Nicolau, já
na década de 70 do século XVI, ostentavam
pequenos núcleos populacionais. As restantes
ilhas do arquipélago, só tardiamente, já no
século XVII, foram devidamente povoadas,
embora estivessem a ser aproveitadas
para a criação de gado, como nos dá a
conhecer Valentim Fernandes11.
O sargento mor da ilha de Santiago,
Francisco de Andrade, no seu relatório sobre
a vida económica e social do arquipélago
de Cabo Verde, datada de 26 de Janeiro
de 1582 informa que “ […] En todas estas
ylhas nomeadas há ygrejas, tirando a ylha
do Sal, Santa Luçia, Sant Vicente […]”12.
Em 1595, o tesoureiro-mor da Sé de
Santiago, Fernando Novais de Queiroga,
encontrava-se em Lisboa para solicitar
a construção de uma igreja na ilha de
São Nicolau e a colocação de um pároco
à custa dos dízimos da ilha, à semelhança
do que já acontecia em Santo Antão. Esta
informação consta de um documento de
7 de Setembro do mesmo ano e entra
em total contradição com a relação do
sargento-mor. A solicitação do tesoureiro
deixou bem patente o problema da falta
de clérigos, que se fazia sentir na diocese,
a excepção das ilhas de Santiago e Fogo
- “ […] na ilha de San Nicolau pasava de
três annos que se não confesavam nem
admistravam os sacramentos por falta
de cura […]”13.
Para além de ser em número reduzido,
o corpo clerical de Cabo Verde recebia
com irregularidade os seus ordenados.
Para solucionar este problema o monarca
português, em carta régia de 28 de Setembro
de 1571, ordenou que se “ […] lhes fizesem
aos tempo e da maneira que comtinha e
era declarado em suas cartas e provisões
[…]14.
Em inícios da década de setenta do
século XVI, os capelães das igrejas do
bispado com menos de duzentos fogos
por freguesia viram os seus ordenados
aumentados em mais 30 mil réis por
9 Maria Emília M. Santos, Maria João Soares, ob. cit. p. 371.
12 Relação de Francisco de Andrade publicado in António Brásio,
Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, vol III, Lisboa, Agência Geral
do Ultramar, 1968, p. 98.
10 Emília Madeira M. Santos, Maria João Soares, ob. cit., p.266.
13 MMA, 2ªsérie,Vol. III, p.381.
11 Valentim Fernandes, ob. cit.,pp.741-745.
14 MMA, 2ªsérie,Vol. III, p.21.
143
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
ano, com a condição de ensinarem a
doutrina cristã ao povo, quando o bispo
determinasse15. Notamos uma certa
preocupação no que toca a evangelização
na diocese. Também, preocupado com a
evangelização das ilhas, André Álvares
de Almada, o autor do Tratado Breve dos
Rios da Guiné do Cabo Verde, de 1594,
recordou nesta obra as diligências que
fez em Lisboa e Madrid, para que fosse
fundada, em Santiago, uma casa para
religiosos da Companhia de Jesus ou de
outra ordem16. Lopo Soares de Albergaria,
fidalgo da casa real e membro do Conselho
de Estado, na sua relação sobre a Guiné
e Cabo Verde, datada do ano de 1600,
lamentava a falta de assistência religiosa
na Guiné e o descuido na conversão dos
gentios17.
A ilha de Santiago, que segundo
Francisco de Andrade18 contava em 1582
com 508 vizinhos, possuía já oito paróquias,
sendo elas, a de S. João Baptista (Ribeira
de António), Santa Catarina do Mato,
Santo Amaro (Ribeira do Tarrafal), São
Miguel (Ribeira dos Flamentos), Santiago
(Ribeira Seca), São Lourenço (Ribeira dos
Órgãos), São Nicolau Tolentino (Ribeira
de São Domingos), e a de Nossa Senhora
da Luz (Ribeira de Alcatrazes), com os seus
curas, que administravam diariamente
o sacramento da Eucaristia. Para além
dessas freguesias, a ilha estava dotada
de uma série de ermidas de devoção onde
também se rezava a missa.
Na ilha do Fogo havia duas paróquias
com as respectivas igrejas, a primeira
de invocação a Santiago e São Filipe, e
a igreja de São Lourenço, com os seus
15 MMA, 2ªsérie Vol. III, pp.28- 31.
16 MMA, 2ª série, Vol. III, p. 303.
17 Relação de Lopo Soares de Albergaria sobre a Guiné do Cabo Verde
in António Brásio, Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, Vol. IV,
Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1968, p. 4.
18 Relação de Francisco de Andrade publicado in MMA, 2ª série, Vol.
III, p.98.
respectivos vigários. As ilhas de Santo
Antão, Boavista, Maio e Brava, ainda
não estavam organizadas segundo o
sistema de freguesias, mas já possuíam
igrejas e um capelão que administrava
os sacramentos temporariamente ou
em momentos mais importantes do ano
litúrgico, como a Quaresma. Em 1582 as
pequenas comunidades das ilhas de São
Nicolau19, São Antão, Boavista e Maio
dispunham de uma igreja, enquanto as
ilhas de São Vicente e do Sal, as últimas
a serem povoadas, permaneceram até
o século XVII, sem nenhuma estrutura
religiosa.
No período compreendido entre as
últimas décadas do século XVI e meados
do Século XVII, a história das ilhas de
Cabo Verde foi marcada por uma crescente
desaceleração da economia, pois a sua
importância como entreposto comercial
foi diminuindo, o que culminou, em
1647, na perda a favor de Cacheu da
sua função de centro de controlo de todo
o tráfico português nos Rios dá Guiné20.
Esta medida resulta da necessidade de
Portugal assegurar a continuidade dos
seus interesses na costa africana, fazendo
face às investidas francesas, inglesas e
holandesas21. Ao longo da segunda metade
do século XVII o tráfico foi administrado
a partir de Cacheu.
O século XVII cabo-verdiano foi marcado
pelo crescente empobrecimento das ilhas.
O arquipélago continuou a ser um ponto
de escala no Atlântico, de embarcações de
várias nacionalidades, mas à excepção de
alguns produtos, como a urzela, o sal, e os
19 André Pinto de Sousa Dias Teixeira, ob. cit. p. 181.
20 André Teixeira, “A Economia - O Comércio do Regaste no Litoral
Africano ao Comércio Transatlântico. A Recolecção, A Pecuária e a
Agricultura. A Tributação e as Finanças” in Nova História da Expansão
Portuguesa, tomo 2 dir. de Joel Serrão e A. H. Oliveira Marquês, coord. de
Artur Teodoro de Matos, Editoral Estampa, 2005, p 111.
21 Ver: Filipe Nunes Carvalho, “A disputa pelo domínio dos portos e
ilhas de África” in Portugal no Mundo, dir de Luís de Albuquerque, Vol.
V, Publicações Alfa, pp. 125 -138.
142
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
panos da terra, já não tinha muito para
oferecer. Aquela que fora uma sociedade
mercantil, nos séculos XV e XVI voltou-se
lentamente para uma economia agrária
escravocrata centrada nas fazendas do
interior das ilhas de Santiago e Fogo22.
De 1604 a 1642 estabeleceu-se na diocese
uma missão jesuítica23, que tinha como
principal objectivo a missionação nos rios
da Guiné. O padre Baltazar Barreira
foi escolhido para superior da missão,
com ele chegam às ilhas de Cabo Verde,
os padres Manuel de Barros e Manuel
Fernandes, e o irmão Pedro Fernandes.
No arquipélago a missão ficou restringida
às ilhas de Santiago e Fogo.
Franciscanos
capuchinhos espanhóis
na ilha de São Nicolau
Entretanto, a partir da década de 30 do
século XVII, frades da família franciscana,
capuchinhos franceses da Província da
Normandia, capuchinhos espanhóis da
Província da Andaluzia e os Capuchos24
portugueses da província da Piedade, bem
como capuchos da recém-criada província
da Soledade, missionaram na diocese de
Cabo Verde, correspondendo ao apogeu
da evangelização principalmente nos
Rios da Guiné. Os religiosos portugueses
foram enviados pelo Padroado Português,
enquanto os capuchinhos estrangeiros
foram enviados pela Propaganda Fide.
A missionação dos capuchinhos
espanhóis da província da Andaluzia
22 Cf. António Leão Correia e Silva, “A Sociedade Agrária, Gentes das
Águas: Senhores, Escravos e Forros” in HGCV , vol II. p. 275 – 357.
23 Cf. Nuno da Silva Gonçalves, Os Jesuítas e a Missão de Cabo Verde
(1604 -1642), Lisboa, Brotéria, 1996.
24 A ordem dos frades conhecidos por Descalços, Alcantarinos ou
Capuchos, surgiu em 1561. Os frades da estrita observância em Espanha
recebem o nome de “Descalços” (porque os mais rigorosos nem usavam
sandálias), “Alcantarinos” (por influencia marcante de São Pedro de
Alcântara no movimento) e em Portugal “Capuchos” ou membros do
“Instituto Capucho” (devido ao formato pontiagudo do capelo).
145
iniciou-se em 1647, em plena da Guerra
da Restauração (1640 - 1668) e perdurou
por um período de 40 anos. O objectivo
desta missão era a conversão dos rios da
Guiné e da Serra Leoa, onde durante o
tempo de missionação desembarcaram
dezenas de religiosos espanhóis.
Em 1666, dois dos religiosos que
permaneciam na missão da Serra Leoa,
frei Teodoro de Bruxelas e frei Basílio
Cabra, saíram de Cacheu com destino
à Europa, naufragaram acidentalmente
na ilha de S. Nicolau, no arquipélago
de Cabo Verde, onde foram obrigados a
residir por mais de um ano.
Estes religiosos faziam parte da leva
de missionários espanhóis que chagaram a
Guiné25 em 1664. O grupo era constituído
por 8 religiosos, sendo eles, frei José de
Málaga, frei Teodoro de Bruxelas, frei
Paolo Jerónimo de Fregenal, frei Inácio
de Canárias, frei Basílio de Cabra, frei
Eusébio de Granada, Frei Diego de Rute
e o Irmão, frei Jerónimo de Antequera.
A experiência desses dois capuchinhos
nesta ilha chegou até nós, através do relato
de Teodoro de Bruxelas, em carta de 1 de
Janeiro de 1670, quando o missionário
já se encontrava em Sevilha. Através
do documento apercebemo-nos da vida
espiritual da ilha, bem como, das restantes
ilhas do arquipélago.
A ilha de São Nicolau que ele descreveu
como tendo cerca de 900 a 1000 habitantes
na época do naufrágio não dispunha de
um sacerdote para a administração dos
sacramentos mais importantes na vida de
um cristão, como era o caso da preparação
para a morte. Durante o tempo que os
religiosos ficaram retidos na ilha, cuidaram
25 António Brásio, Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, Vol VI,
Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1991, p.309.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
da assistência religiosa da população
administrando-lhes os sacramentos,
ensinando a doutrina cristã, uma vez
que “por faltar-lhes sacerdotes estava
com grande ignorancia de las cosas de la
dotrina christiana, la qual se les enseno
y explico com la mayor claridad que há
sido possivel”26
Frei Teodoro de Bruxelas diz que para
além da ilha de São Nicolau, as ilhas
de Boavista e Maio não tinham nenhum
sacerdote, que contavam com 500 e 200
habitantes respectivamente. Enquanto
que a ilha de Santo Antão, com cerca de
5 000 habitantes, tinha um “sacerdote
viejo y muy sordo”, a ilha do Fogo, a
segunda a ser povoada, contava com
cerca de 10 000 habitantes e tinha dois
sacerdotes. Não se referiu à ilha Brava
que, tanto quanto sabemos, no século XVII
já se encontrava povoada. A assistência
espiritual das ilhas que não tinham os
seus próprios párocos, ficava a cargo
dos visitadores, que eram geralmente
nomeados pelo bispo, entre o cabido de
Santiago, e deslocavam anualmente para
as ilhas, normalmente na época pascoal,
auferindo uma ordinária de 10 000 réis,
segundo o caderno das ordinárias pagos
na ilha de Santiago, de 161327. Em 165228
pagaram-se 28 000 réis ao cónego Francisco
Correia de Alvarenga, pela visita que
fez às ilhas de São Nicolau, Boavista e
Maio. Frei Teodoro de Bruxelas chegou
à ilha de São Nicolau no ano de 1666. Na
sua carta informava que os visitadores
só se dirigiam à ilha, quando para ela
deslocavam-se os navios para ir buscar
couro, criticando a sua curta estadia,
de cinco a seis dias, a sua má conduta
e acusando-os de extorquir dinheiro à
população.
26 Idem, p. 282.
27 AHU - Cabo Verde, Cx. 1, doc. 26.
28 Folha de ordinária dos sacerdotes, feita em Santiago, a 26 de Junho
de 1652, AHU - Cabo Verde, Cx. 4, doc. 39.
Em 1670 os dois capuchinhos já
haviam regressado a Sevilha, onde,
junto dos seus superiores, procuraram
obter licença para voltar ao arquipélago
de Cabo Verde, com a intenção de criar
uma missão com vista à evangelização
daquelas ilhas, que ao contrário da ilha de
Santiago, onde se verificava uma grande
concentração de clérigos, continuaram,
ao longo do século XVII, com uma fraca
assistência religiosa. Entretanto, frei
Teodoro de Bruxelas faleceu em 167229,
não cumprindo o desejo que alimentava
de voltar ao arquipélago.
É interessante notar este desfasamento
em relação ao avanço da igreja católica
nas ilhas. Este desfasamento estava
relacionado com o processo de povoamento
e da dinâmica das actividades económicas
que aí se desenvolviam. Desta forma, a
igreja encontrava-se mais implementada
nas duas principais ilhas (Santiago e Fogo),
deixando as restantes ilhas remetidas
a uma fraca existência do clero secular.
As periféricas ilhas do Oriente, Norte
e Brava, não tiveram nesta época uma
grande assistência religiosa, como as
ilhas de Santiago e Fogo, na medida
que o fenómeno da evangelização estava
intimamente associada à conjuntura política
e económica dos territórios colonizados.
Um outro factor que contribuiu para
esta disparidade, foi o facto do grupo
clerical ser durante estes séculos muito
reduzido, o que era agravado pela regular
falta de bispos na diocese, devido ao corte
das relações entre Portugal e a Santa Sé
(1460 - 1668), pelo não reconhecimento da
Restauração da Independência Lusa por
parte da Igreja de Roma, e, a partir de
inícios de Seiscentos, quando a emigração
do reino diminuiu significativamente, fezse também notar no número de clérigos.
29 MMA, vol. VI p. 317.
142
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Uma vez que a promoção de clérigos às
ordens sacras e ordenações sacerdotais era
uma prerrogativa exclusiva do prelado30,
foi impossibilitado aos nativos a ordenação
sacerdotal na diocese, durante o período
da Guerra da Restauração (1640 -1668).
A ilha de São Nicolau, bem como
as restantes ilhas do Oriente, Norte e
Brava, ocupavam uma posição periférica
no bispado de Cabo Verde. No que toca
30 Maria Emília Santos, Maria João Soares ob. cit. p. 414.
ao século XVII, é pela carta de frei
Teodoro de Bruxelas que temos
conhecimento do estado espiritual
da ilha. Neste sentido, a presença,
ainda que acidentalmente destes
religiosos, levantou a questão da falta
de clero nas ilhas do Barlavento. As
missões dirigidas para o arquipélago
tinham como principal foco a costa
africana. Para a ilha de Santiago, cabeça
administrativa do arquipélago e sede
da diocese, afluíam muitos clérigos.
Fontes e Bibliografia
Fontes Manuscritas
Arquivo Histórico Ultramarino
Cabo Verde, Papeis Avulsos, caixas 1 a 9
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manuscritos inéditos publicados com introdução e anotações históricas de Damião
Peres, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1953
Notícia Corográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde, dos Exmos. Bispos,
Governadores e Ouvidores, e os sucessos mais memoráveis e verídicos, tirados dos
livros e papéis antigos. E assim mais algumas insinuações dos meios mais conducentes
para o restabelecimento deles por se achar na última decadência, apresentação, notas
e comentários por António Carreira, Lisboa, Instituto Cabo-Verdiano do Livro, 1985.
Monumenta Missionária Africana, (coligida e anotada por António Brásio), II série,
Vols. I; II; III; IV; V, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1952-1971.
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Editorial Estampa.
149
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
142
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
O POTENCIAL DO E-LEARNING PARA ALÉM DA
TECNOLOGIA: UM DESAFIO EMERGENTE NA UNI-CV
Maria Luisa Soares Inocêncio, Marcel Pereira e Elisabeth Alves Andrade1
Resumo/Abstract
Numa altura em que os ambientes de aprendizagem virtual ganham relevância e
actualidade, os dispositivos tecnológicos que têm na Internet o seu principal suporte
surgem como uma alternativa inovadora por contraposição às metodologias de
aprendizagem prioritária e meramente assentes no ensino presencial.
Este artigo, que tem como objectivo apresentar os resultados de uma experiência de
utilização da plataforma Moodle na Uni-CV, insere-se numa perspectiva de demarcação
metodológica de utilização da plataforma apenas como complemento e reforço das
aulas ministradas em regime presencial.
Com este texto pretende-se fornecer subsídios para uma reflexão sobre novas estratégias
de aprendizagem na Uni-CV e contribuir para o incentivo à adopção de trajectórias
de implementação de práticas bem sucedidas no processo de ensino-aprendizagem.
Palavras-chave: ensino a distância; plataforma Moodle; modelos de aprendizagem
a distância.
At a time when virtual learning environments are becoming increasingly relevant
and topical, technological devices, whose main support is the Internet, are emerging
as an innovative alternative as opposed to learning methodologies primarily and
merely based on classroom teaching.
This paper aims to present the results of an experiment in using the Moodle
platform at Uni-CV as part of a new approach to the teaching-learning process and
a methodological demarcation from traditional educational processes. It reports on
the experiment carried out as a complement and reinforcement of classroom-based
teaching.
This text aims to provide tools for reflection on new learning strategies at Uni-CV
and to be an incentive for the implementation of successful practices in the teachinglearning process.
Keywords: distance learning, Moodle platform, ICT, distance learning models.
1 Elisabeth Alves Andrade é Licenciada em Informática - Vertente Ensino e Mestre em Engenharia Electrónica e Telecomunicações – Vertente Sistemas
de Informação pelas Universidades de Cabo Verde e de Aveiro – Portugal, respetivamente. É membro efetivo do Conselho Pedagógico do Departamento de
Ciências e Tecnologias na Uni-CV e desempenha, desde 2011, as funções de Vogal – área administrativa do Conselho Directivo do DCT.
Maria Luísa Soares Inocêncio é Mestre e Doutora em Ciências da Educação pelas Universidades Federal de Campinas – Brasil (em 1999) e de Aveiro –
Portugal (em 2008), respetivamente. É membro efetivo dos Conselhos Científico e Pedagógico do Departamento de Ciências Sociais e Humanas na Uni-CV
e docente do DCSH. Desempenha, desde 2009, as funções de assessora de Ensino a Distância na Uni-CV.
151
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Introdução
As rápidas transformações que se
vêm operando nos domínios científico,
tecnológico, social e cultural num mundo
em acelerada mutação globalizante têm
originado desajustes na integração de
inovações nos processos educativos
provocando alterações no modus operandis
das comunidades educativas e organizações.
Os métodos e as estratégias de ensino
e aprendizagem, antes largamente
pautados em estruturas convencionais de
aprendizagem, têm conhecido transformações
profundas decorrentes da necessidade de
se adaptarem aos novos modelos e práticas
de aprendizagem baseados na Web e nos
serviços que lhe estão associados, o que
coloca às instituições de formação e aos
formadores perante novos e complexos
desafios.
Os Sistemas Interactivos de Comunicação
(SIC), cuja complexidade e riqueza
extrapolam a mera visão tecnológica de
processos e procedimentos (CORREIA
& TOMÉ, 2007), e o potencial de que
lhes está associado têm dado origem a
um intenso e continuado debate que,
hoje em dia, está a acontecer em torno
da problemática das novas abordagens
do processo educativo testemunhando
a evidência teórica e empírica da sua
relevância e actualidade.
A necessidade de se alargar o acesso à
informação, formação ao longo da vida e ao
desenvolvimento de novas competências
capazes de assegurar o necessário e
adequado crescimento sócio-económico
das sociedades estáão a implicar novas
formas de organização dos sistemas
educativos e, a integração e convergência
da realidade e da virtualidade que, por sua
vez, conduzem a “novas conceptualizações
e modelos organizacionais do ensino
superior (MIRANDA, 2007, p.162). Daí
que, actualmente, das instituições do ensino
superior esperam-se respostas atempadas
e ajustadas às expectativas das sociedades
em permanentes mudanças, determinadas
pelo crescimento exponencial do volume
de informação e pelo reconhecimento da
importância que os recursos cognitivos
assumem em relação aos recursos materiais
(DELORS et al., 1996, p.119 citado por
MIRANDA, 2007).
Num mundo cada vez mais tecnológico
e informacional, marcado pelas novas
exigências educativas, o e-Learning,
intrinsecamente assente e mediatizada
pela Internet, consubstancia um modelo
de ensino a distância (EaD) que tem
assumido uma relevância crescente ao
nível das políticas educativas. A aposta
neste novo veículo e suporte de informação
e comunicação, que está a revolucionar
o processo de ensino e aprendizagem,
apresenta vantagens extraordinárias
no acesso, produção e distribuição de
conteúdos, assim como na criação de
comunidades virtuais de aprendizagem.
Desta forma, a educação a distância e
a emergência de novas formas de ensino
baseadas nas TIC´s têm vindo a revelar-se
como importantes estratégias dos sistemas
de educação de grande parte das instituições
educativas de nível superior actuais e
futuras. (MIRANDA, 2007, p.168)
A ubiquidade das tecnologias do e-Learning,
uma das formas de praticar o ensino a
distância, permite aos intervenientes do
processo educativo usufruir de uma vasta
diversidade de ferramentas e serviços de
comunicação que lhes facilitam o acesso aos
repositórios de informação e uma comunicação
em tempo útil, independentemente da
descontinuidade espácio-temporal entre
eles existente (GOMES, 2005).
152
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Com a emergência do e-Learning, cujo
conceito foi cunhado “precisamente para
referir todas as formas de aprendizagem
via web” (DAMÁSIO, 2007, p.244),
surge a possibilidade de ocorrência de
verdadeiras mudanças de paradigma de
ensino a distância que passa a conhecer
uma nova fase da sua evolução, referida
por GOMES (2008) de 4ª geração.
Marcado pela utilização de serviços
e ferramentas como os blogues, wikis,
podcasting e outras Web sociais, o EaD
ganha novo dinamismo graças às tecnologias
que lhe estão subjacentes permitindo,
como sustenta a mesma autora,
conceber cenários de formação em que a
disponibilização da
informação deixa
de ser um apanágio exclusivo do professor/
formador e da instituição de ensino/formação
para poder incluir as produções dos próprios
alunos/formandos, quer individuais quer
colectivas (…) (Ibidem, p. 191)
As exigências da sociedade em permanente
transformação e a dinâmica da evolução
dos conteúdos de ensino-aprendizagem
(TAVARES, 2005) e da sua mediatização
quer através da produção e distribuição,
quer por meio da interacção educacional
(GOMES, 2008, p.182) desafiam a
comunidade educativa a alterar os seus
comportamentos, posturas e mentalidades
face ao conhecimento. O recurso à Web
e às tecnologias digitais passam a exigir
dos agentes intervenientes no processo
educativo não só competências tecnológicas
instrumentais como também, um conjunto
de e-competências nos domínios de produção,
distribuição e comunicação de conteúdos
didácticos e da sua transacção educacional.
Convém notar, no entanto, que a
interiorização de inovações na praxis
educativa é um processo que não ocorre
153
de imediato e nem é isento de atropelos,
já que as novas ideias, conceitos e formas
de saber necessitam de tempo para que
possam ser apropriados e consolidados.
Se por um lado, é por demais lembrado
que resistências e bloqueios à mudança
fazem parte do processo, não é menos
verdade que a interiorização e generalização
do novo requer dos actores envolvidos
reconhecimento das vantagens e benefícios
que a inovação é capaz de lhes agregar à sua
prática educativa e vida profissional. Por
outro lado, para que as inovações tenham
o impacto esperado e sejam efectivamente
integradas na praxis educativa, impõe-se
que se apresentem precedidas por um
processo de acompanhamento, monitorização
e avaliação imprescindíveis ao sucesso
de qualquer processo de integração de
inovações na prática educativa.
As TIC´s, ao potenciarem uma nova
geração de serviços Web com capacidade de
integrar, num único espaço, um conjunto de
funcionalidades antes dispersas, por várias
interfaces (PIMENTA & BAPTISTA (2004),
abrem novas perspectivas geradoras de
oportunidades de aprendizagens flexíveis
numa utilização plena das TIC´s e do
seu potencial. Actualmente, apresentados
numa única interface coerente e integrada,
essas funcionalidades acrescentam valor
tanto à mediatização de conteúdos como à
organização do trabalho colaborativo que se
sustenta em ferramentas de comunicação
síncrona e assíncrona com capacidade de
transmissão pela Internet de som, vídeo
e texto. Imprescindíveis ferramentas de
mediatização de conteúdos e da relação
pedagógica entre sujeitos envolvidos em
situações de ensino a distância - (GOMES,
2008, p.231), as TIC´s, diríamos com
SANTOS, (2000, p.25) promovem padrões
de comunicação e de difusão da informação
susceptíveis de serem mediados por sistemas
virtuais de aprendizagem e comunicação
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
com capacidade de agregarem elementos
inovadores aos sistemas estabelecidos.
Efectivamente, os métodos de acesso ao
conhecimento e de aquisição de competências
nos contextos de EaD configuram-se
radicalmente diferentes dos utilizados
nos sistemas formativos tradicionais
em que o processo educativo ocorre em
presença. A influência das potencialidades
e características das TIC´s exercida sobre
a arquitectura pedagógica dos eventos de
formação on-line, a economia de recursos
e de procedimentos que a utilização das
ferramentas tecnológicas são capazes de
agregar à prática educativa e a flexibilidade
espácio-temporal com que estas tecnologias
permitem aos estudantes gerir de forma
autónoma o seu percurso formativo constituem
elementos que marcam a diferença e conferem
eficiência ao processo educativo. Tanto
assim é verdade que, com o surgimento
da Web no final da década de 90, emergiu
um novo paradigma de aprendizagem
impulsionado pela comercialização de
sistemas integrados como Blackboard,
WebCT FirstClass, e-Classroom, Web-4M
e Groupware (MOORE & KEARSLEY,
2010, p. 94). Assiste-se, com frequência,
à utilização da comunicação síncrona por
voz (áudio-conferência), por conferência via
textual (chat) e/ou por vídeo-conferência
e ao recurso aos Fóruns de Discussão e do
Correio Electrónico enquanto modos de
comunicação assíncrona por excelência.
As ferramentas de escrita colectiva (wikis,
glossários, blogues), as comunidades e redes
de aprendizagem virtuais que promovem
a partilha e construção colaborativa
de saberes e a produção e publicação
colaborativa de conteúdos surgem como
outras estratégias capazes de potenciar
e estimular a construção colaborativa
do conhecimento, tendo subjacente as
tecnologias da Web e outras redes sociais.
É enquadrado nesta linha de pensamento
que a Uni-CV, empenhada num projecto
de construção de uma universidade em
rede, aspira ao que de mais moderno
existe tanto na vertente mediatização de
conteúdos e de recursos didácticos digitais
como na de mediatização de processos
interactivos e transaccionais, através
de criação de comunidades e redes de
aprendizagem on-line.
1. Enquadramento
teórico-conceptual
O modelo de ensino a distância em
processo de implementação na Uni-CV
encontra o seu fundamento em teorias de
ensino/aprendizagem que incorporam os mais
modernos pressupostos teórico-metodológicos
da aprendizagem significativa de que são
exemplos as abordagens construtivista
e sócio-construtivista, cujos principais
precursores são J. Piaget e L. Vigotsky
que balizam o conhecimento pedagógico
actualmente. Analisadas à luz do EaD,
estas teorias de aprendizagem encaram o
conhecimento como algo que é construído
na interacção social, através de uma gestão
flexível espácio-temporal do processo
formativo e orientam-se pelo respeito ao
ritmo de aprendizagem individual dos
envolvidos. Nesta linha de pensamento,
GOMES (2008) considera como um traço
de supremacia o desenvolvimento de
práticas do EaD que se fundamentem em
princípios das teorias sócio-construtivista
de aprendizagem, quando comparado com
outros modelos que não têm subjacentes
tais pressupostos teóricos. Sustentamos,
com a mesma autora que, as tecnologias
que suportam o e-Learning estão, pela
primeira vez na história do EaD, a permitir
aos ambientes virtuais de aprendizagem
colocar em prática essas teorias. Contudo,
a prática tem mostrado que a opção por
uma ou outra teoria de aprendizagem
154
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
depende muito mais do contexto onde
se pretende realizar o evento formativo
e de outros factores ligados às condições
existentes do que da actualidade da teoria
em si. Dependendo das situações, torna-se
recomendável a complementaridade de
várias teorias ao mesmo tempo.
Reportando-se à abordagem do e-Learning
utilizado na Uni-CV, diríamos que o enfoque
deste modelo incide sobre estratégias de
aprendizagem de natureza essencialmente
instrutivista (GOMES, 2007) resumindo a
actuação do docente à uma mera extensão
virtual da sala de aula presencial e de tutoria
on-line. Tais procedimentos consistem,
fundamentalmente, na disponibilização de
informações, conteúdos programáticos e de
outros recursos didácticos relacionados com
as disciplinas ministradas para consulta
pelos estudantes, privilegiando o estudo
independente em contraposição à uma
perspectiva construcionista que integra
variáveis colaborativas e transaccionais.
Do exposto decorre a importância de se
direccionar as estratégias de ensino e
formação, antes orientadas para consumo
da informação e de acesso aos conteúdos de
suporte à aprendizagem para uma cultura
de incentivo e à partilha, exposição de
perspectivas entre pares, em que a rede
constitui o motor e o objecto da construção
colaborativa do conhecimento. Ou seja, fazer
a passagem da construção individual do
saber e de auto-aprendizagem intermediada
para um processo de múltipla interacção
transaccional recorrendo-se ao diálogo
síncrono e assíncrono. A este propósito,
partilhamos do pressuposto de que é preciso
fazer “a passagem do paradigma da Web
1.0 para a Web 2.0, com a sua ênfase na
facilidade de comunicação, interacção,
cooperação, colaboração e publicação
online” (GOMES & COSTA, s/d, p.3).
1.1. Razão da adopção da
plataforma Moodle na Uni-CV
Os ambientes de gestão virtual
de aprendizagem que se encontram
disponíveis online de forma permanente e
independentemente de o utilizador estar
ou não conectado (VAGOS, et al, 2009) e de
que é exemplo a plataforma do e-Learning
Moodle1, revestem-se de grande interesse
no contexto educativo. Para a comunidade
educativa na Uni-CV, esses ambientes,
acentuados na flexibilização de acesso
aos recursos de aprendizagem, têm-se
revelado excelentes fontes documentais
de suporte às disciplinas implicadas. No
entanto, não obstante a expansão de novas
interfaces da Web que desenham novas
opções de flexibilização das aprendizagens
colaborativas e de incremento progressivo
de iniciativas de aprendizagem virtual, a
utilização das potencialidades da plataforma
Moodle como dispositivo potenciador da
interactividade entre professores e alunos
e estes entre si está, ainda, aquém das
expectativas necessidades sentidas.
Contudo, estratégias precisam ser
incrementadas numa tentativa de recentrar
o foco da aprendizagem nos processos de
comunicação e interacção em que conceitos
como publicação, comunicação em rede,
compartilhamento de informações e (re)
construção de conhecimentos, saberes e
experiências ganham relevância.
Tendo como suporte tecnológico a Internet,
a Moodle apresenta interfaces que permitem
gerir conteúdos e mediatizar transacções
educacionais com base pedagógica orientada
por abordagens sócio-constrituvistas da
educação (OLIVEIRA & CARDOSO, 2009).
Esta plataforma assume-se como uma
ferramenta de gestão que “conjuga um
1 Acrónimo de Modular Object-Oriented Dynamic Learning. Sistema
que permite assegurar a gestão, o armazenamento e a distribuição de
conteúdos, possibilita a comunicação síncrona e assíncrona entre os
actores da comunidade educativa envolvida.
155
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
sistema de administração de actividades
educacionais com um pacote de software
desenhado para ajudar os educadores a obter
alto padrão de qualidade em actividades
de educação online.” (p.58).
O Sistema de Gestão de Aprendizagem
Moodle consiste numa aplicação Web que
possibilita ao docente criar e publicar
conteúdos e informações, interagir com
os estudantes e, ainda, aceder e publicar
conteúdos curriculares bem como interagir
com os colegas facilitando a intercomunicação.
Porém, a par destas funcionalidades de
carácter pedagógico, PIMENTA & BAPTISTA
(2004) indicam outras, desta feita, de
ídole administrativa às quais o docente se
recorre para rentabilizar uma boa parte
das suas tarefas, designadamente:
(…) a gestão de turmas e calendários, a
alocação de formadores, gestão de planos
de formação (…) o planeamento e gestão de
cursos e de conteúdos de aprendizagem (pelo
formador) , o acessos dos alunos aos materiais
de formação, a actividades, a avaliações
(eventualmente automáticas) das competências
dos formandos, permitem a comunicação
entre o formador e os formandos através de
mecanismos básicos de comunicação como
e email, os fora, os chats ou salas virtuais,
etc.. (Ibidem, p.100)
De facto, a tendência está a ser
direccionada para a estruturação de
modelos de e-Learning Management
System - LMS que satisfaçam ambas
as necessidades tanto administrativa
como pedagógica, incorporando num
único sistema todas as funcionalidades
possíveis, tornando-se, assim, confortável
a utilização integrada e no mesmo espaço
de ferramentas previamente criadas.
A título de síntese, diríamos que o
processo de transferência do foco da acção
educativa do ensino transmissivo norteado
por um paradigma comportamental para
a aprendizagem construtivista passa,
necessariamente, pela potenciação de
um novo patamar de evolução do EaD
gerador, na perspectiva de DAMÁSIO
(2007), de “(…) consequências cognitivas,
comportamentais e sociais qualitativamente
positivas para o(s) sujeito(s), para a
comunidade envolvida (…)” (p. 31); isto
é, guiado para a transição de um desenho
pedagógico essencialmente instrutivista,
que desvaloriza os processos holísticos de
interacção e de construção conjunta realizados
pelos actores do processo educativo, para
uma configuração pedagógica capaz de
promover maiores fluxos de comunicação
e de interacção facilitados graças a um
conjunto de ferramentas de interacção
incorporado na própria plataforma. O Fórum
de Discussão, Chat e Correio Electrónico
são algumas ferramentas de comunicação
em rede que, associadas ao Teste, Lição,
Glossário, Referendos e Inquéritos, fazem
parte do naipe de ferramentas Web disponíveis
na plataforma Moodle. Uma boa utilização
desses recursos potencia posturas mais
activas face ao processo de aprendizagem
pelo facto de possibilitarem espaços de
comunicação de modo síncrono (em tempo
real) e assíncrono (em diferido) entre os
actores da aprendizagem.
É no contexto de grande interesse e de
aposta no “desenvolvimento mais consistente,
continuado e rentável das iniciativas no
domínio do e-Learning” (PIMENTA &
BAPTISTA, 2004, p.100) que se optou, na
Uni-CV, pela utilização da plataforma Moodle
como Sistema de Gestão da Aprendizagem
(SGA), por excelência, cujos princípios de
funcionamento se fundamentam em teorias
sócio-construtivistas de aprendizagem a
distância.
Perspectiva-se, assim, que na Uni-CV
156
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
a dimensão social seja uma componente
central do processo educativo de forma
a esperar do estudante uma postura de
co-construtor activo do conhecimento e
não de mero consumidor de repositórios.
Do estudante espera-se assunção de
responsabilidade pelo seu projecto de
aprendizagem, tornando-se autónomo
na gestão do seu percurso formativo. O
aluno deve evoluir-se de um espectador
passivo e consumidor de conteúdos para
um protagonista do processo educativo e
participante activo em ambientes construídos
num esforço de participação, partilha e
construção conjunta do conhecimento,
representações e experiências.
É nestes pressupostos que se ancora a
linha de pensamento que está subjacente
à descrição de uma experiência cuja
metodologia abaixo se refere.
2. Contribuição empírica
2.1 Considerações preliminares
No fim do ano lectivo 2009/2010, deuse início, na Uni-CV, ao estudo sobre a
implementação da segunda edição de uma
experiência piloto assente nas designadas
novas TIC´s, particularmente, com o uso
da plataforma Moodle, ferramenta que
potencia e se revela poderosa nos contextos
e aprendizagem. Embora o projecto não
represente, na verdadeira acepção do termo,
uma experiência de e-Learning, enquadrase, todavia, numa linha de aprendizagem
electrónica suportada pela Internet e de
utilização da Moodle como complemento
às aulas presenciais que tem por objectivo
criar novos contextos educativos, inovar
o processo de ensino e aprendizagem e
criar hábitos de utilização da Internet em
actividades de estudo. Trata-se do recurso
à plataforma Moodle como ferramenta de
suporte às actividades de complemento
157
à formação presencial.
Este estudo surgiu como resposta aos
novos desafios que se colocam à Uni-CV
induzidos pela premência de incrementar
a literacia tecnológica, pedagógica e
comunicacional em contexto on-line, numa
tentativa de demarcação dos limites da
sala de aula.
Ainda em pleno processo de construção,
a utilização da plataforma Moodle na
Uni-CV tem se centrado no ensaio de
estratégias orientadas para a redução
da carga presencial lectiva a favor do
aumento da carga da actividade virtual,
numa óptica de complementaridade e de
articulação entre as actividades presenciais
e a distância. Todavia, não obstante a
evolução do recurso a este novo ambiente
de aprendizagem online, o processo de
introdução de práticas inovadoras no processo
educativo na instituição tem sido gerido
com convicção de que se está perante um
procedimento cuja dinâmica requer um
percurso de interiorização gradual e uma
avaliação permanente.
2.2. Metodologia adoptada
Após o enquadramento teórico-conceptual
do projecto de implementação do e-Learning
na Uni-CV, passa-se, de seguida, a abordar
as opções metodológicas que presidiram
ao processo investigativo. Neste estudo,
utiliza-se uma abordagem epistemológica
interpretativa, reflexiva e sugestiva que se
baseia numa análise evolutiva da dinâmica
de integração do e-Learning na instituição,
tendo como suporte os resultados apurados
pela equipa que desenvolveu esse projecto.
Apoiados em traços metodológicos de
natureza quantitativa, o foco de análise
irá centrar-se na interpretação dos dados
estatísticos obtidos relativos ao processo
de adesão e utilização pelos docentes das
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
potencialidades educativas oferecidas por
este novo sistema de gestão on-line de
aprendizagem.
Enquadrado numa linha de investigaçãoacção e de cariz descritivo, o processo que
presidiu à recolha de dados teve como
objectivos essenciais: (i) identificar as
disciplinas inscritas na plataforma; (ii)
distinguir as disciplinas consideradas
activas das não activas; (iii) aferir o
grau de utilização das ferramentas de
comunicação mais utilizadas pelos docentes
e (iv) identificar estratégias potenciadoras
de dinâmicas interactivas de aprendizagem.
As hipóteses que configuraram as
finalidades e os objectivos deste estudo e
que se tentou comprovar são as seguintes:
(i) a adesão dos docentes e alunos à
utilização da plataforma encontra-se em
processo de permanente crescimento e
(ii) o desenho pedagógico subjacente ao
funcionamento da plataforma orientase, essencialmente, para a actividade de
distribuição e consumo do repositório da
informação nela disponibilizado.
De notar, que qualquer reflexão teórica
precisa de um ponto de partida ou pistas de
investigação que sustentam a abordagem
do objecto de estudo de modo a não perder
de vista o que efectivamente é essencial
esclarecer. Assim, a questão para a qual
se pretendeu encontrar resposta foi a
seguinte: “Será o recurso à plataforma
Moodle tem sido uma actividade potenciadora
de práticas educativas inovadoras? Que
estratégias devem ser adoptadas para
a promoção e integração de inovações
pedagógicas na prática docente?
Este estudo constitui-se de um públicoalvo composto por docentes pertencentes
aos Departamentos de Ciência e Tecnologia
(DCT), Ciências Sociais e Humanas (DCSH),
Engenharia e Ciências do Mar (DECM)
e da Escola de Negócios e Governação
(ENG). Integrando um total de 3118
inscritos no universo de pouco mais
de 4.000 utilizadores da plataforma, o
público-alvo, na sua maioria, beneficiou
de acções de capacitação em utilização do
Moodle, tendo sido dotado de competências
instrumentais básicas adequadas à gestão
on-line das respectivas disciplinas. Assim,
fizeram parte do estudo apenas os docentes
com disciplinas inscritas na plataforma.
Como técnica de recolha de dados
utilizou-se a análise documental que,
como sugere SOUSA (2005), consiste,
à semelhança de outras formas de
investigação, em conhecer os factos com
maior objectividade e o menor número
de distorções dentro de uma situação
particular estudada. Recorremos aos
registos electrónicos do sistema e-Learning
de gestão on-line da aprendizagem utilizado
na Uni-CV, tendo sido acedidas a todas
as disciplinas consideradas activas assim
como às participações dos docentes nas
conferências electrónicas (fóruns, chats)
e identificado o grau de utilização das
ferramentas de escrita colaborativa,
nomeadamente da Wiki. Fez-se, também,
uso de uma grelha2 de recolha de dados
previamente concebida pela equipa de
investigadores envolvidos neste estudo.
Para além de “papel electrónico” referido
por MERRIAM (1998, p.122) citado por
GOMES (2004, p.200), utilizaram-se
outras fontes de informação estatísticas,
nomeadamente, relatórios e comunicações
em Powerpoint apresentadas pela equipa
que implementou, em 2008, a primeira
experiência piloto de utilização da plataforma
Moodle, na Uni-CV.
É importante ser lembrado que, com o
2 Nesta grelha definiu-se um conjunto de critérios que nortearam
a selecção das disciplinas (consideradas activas ou não activas), os
respectivos regentes e as ferramentas de interacção colaborativa utilizadas.
158
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
advento das novas tecnologias de informação
e comunicação, para além dos documentos
escritos, a análise documental é, também,
aplicada sobre imagens, documentos
audiovisuais e conteúdos digitais. A opção
por esta técnica justifica-se por nos parecer
uma escolha acertada, já que se adequa
melhor aos objectivos formulados e aos
propósitos que se pretendia alcançar.
Paralelamente, recorreu-se à revisão da
literatura sobre a temática em estudo para
se fundamentar as análises e reflexões
articuladas.
Partindo do pressuposto advogado
por VILELA (2009) de que “(…) Quando
se usam múltiplos observadores, e ao
triangularem-se as observações, remove-se
o risco potencial que pode surgir quando é
apenas uma pessoa e, portanto, assegurase assim uma considerável fiabilidade
nas observações (…)” (p.346), procedeu-se
à triangulação de investigadores como
estratégia que nos pareceu conferir maior
fiabilidade, consistência e validade aos
dados coligidos na plataforma Moodle.
Em termos de procedimentos, é de
se referir que a recolha dos dados na
plataforma, consulta e análise dos
relatórios desenrolaram-se ao longo de
3 meses. A equipa que realizou o estudo
era constituída por 3 docentes, dos quais
2 afectos ao Campus do Palmarejo e 1
ao DECM3.
Para a análise dos dados, recorreu-se
do programa informático de tratamento
de dados – Excel, na medida em que se
trata de uma ferramenta informática que
nos pareceu mais ajustada ao tratamento
deste tipo de dados. Foi, inicialmente,
feita uma abordagem descritiva dos dados
avançando-se, posteriormente, para um
3 Departamento de Engenharia e Ciências do Mar situado no Campus
da Ribeira do Julião, em S. Vicente.
159
tratamento mais apurado, utilizando
correlações de variáveis quando este
procedimento se mostrou necessário.
Importa referir que, os resultados, que
no quadro abaixo se reproduzem, foram
obtidos a partir do tracking realizado ao
LMS que nos deu conta do número de
disciplinas criadas por cada departamento
consideradas activas e/ou não activas, de
professores e de alunos que actuam na
plataforma bem assim das ferramentas
de comunicação interactiva utilizadas.
2.3 Apresentação e discussão
dos resultados obtidos
Reportando-se ao ano lectivo 2008/20094,
altura em que se deu início o processo
de implementação do eLearning na UniCV, o número de docentes envolvidos na
experiência não ultrapassava os 30 e o
de discentes rondava os 700. Das 36
disciplinas, 17 foram registadas no DCT,
18 no DECM e 1 na ENG5. Do total das
disciplinas, apenas 23 foram activadas, isto
é, encontravam-se em plena utilização. E
o número de cursos envolvidos foi de 19.
Saliente-se, neste quadro, o modo como
as disciplinas, os cursos e os docentes
estão distribuídos por departamentos,
referindo-se, concretamente, à relação
entre disciplinas registadas e disciplinas
activas, entendidas as últimas como as
que, efectivamente, são utilizadas pelos
docentes na sua prática diária.
Outrossim, os dados deste quadro
evidenciam uma clara necessidade de
se definir estratégias que estimulem e
incentivem os docentes a não desistirem
4 SANTOS, A. M., FERREIRA A. C. & PEREIRA, M. P. (2010).
Implementação da educação a distância na Universidade de Cabo
Verde: análise de uma experiência-piloto. Revista Educação Formação &
Tecnologia 3, (2), 45.60.
5 Escola de Negócios e Governação, situado no Campus da Achada Stº
António.
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Quadro nº1 - Relação de Disciplinas/Cursos/Docentes Inscritos na Plataforma
(Ano lectivo 2009/2010)
do recurso à plataforma como espaço
capaz de trazer valor acrescentado à
sua actividade profissional. Torna-se,
deste modo, imperativo desencadear um
conjunto de acções de sensibilização e
de capacitação no sentido incentivar a
cultura de utilização da plataforma para
gestão do processo educativo.
O Gráfico nº 1, abaixo, indica a evolução
do número de disciplinas, docentes e
discentes registados na plataforma.
Fazendo uma abordagem comparativa
entre os resultados obtidos no ano lectivo
2008/2009 e os apurados no seguinte,
diríamos que as estatísticas apontam para
uma significativa evolução do número de
disciplinas e docentes inscritos - de 36 para
163 e de 30 para 113, respectivamente - e
de utilizadores registados, de 700 para
3.118.
Estes resultados levam-nos a certificar
uma evolução muito significativa do número
de utilizadores da plataforma, o que parece
siginificar o reconhecimento das vantagens
que a utilização das TIC´s e das metodologias
de ensino a distância podem trazer à
gestão do processo educativo/formativo.
Efectivamente, a emergência da educação
virtual parece imparável nesta academia.
A consciência da relevância da actividade
digital no processo educativo parece que
está a aumentar já que a não adopção
destas metodologias de aprendizagem
electrónica pode significar uma perda de
oportunidades de adequação aos tempos
modernos de cujos benefícios a academia
não pretende prescindir.
Interessa destacar ainda, que dos 3.118
utilizadores existentes na plataforma,
2.126 encontram-se na Praia (incluindo
o Campus do Palmarejo e a ENG) e 992
em S. Vicente.
Embora ainda se evidencie uma larga
percentagem dos docentes cujas disciplinas
não se encontram criadas na plataforma,
ou seja, apenas 44%, (89 docentes do
universo de 202), da leitura do gráfico nº1,
assinala-se uma inquestionável evolução das
diferentes variáveis registadas neste espaço
de aprendizagem virtual. Em contrapartida,
torna-se evidente uma preocupação para a
qual é preciso encontrar solução. A maioria
160
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Gráfico nº 1 - Evolução do Número de Disciplinas/Docentes/Discentes
(56%) dos docentes não usa a Moodle como
instrumento facilitador no processo de ensino
aprendizagem e, consequentemente, muito
menos como favorecedor de um processo
de aprendizagem construtivista, o que
não contribui para o desenvolvimento da
autonomia dos estudantes e nem estimula
uma aprendizagem colaborativa.
Se por um lado, esses resultados
são reveladores do recohecimento da
importância do recurso à plataforma
como instrumento de suporte ao processo
de ensino aprendizagem na Uni-CV, por
outro, contrariamente ao que se almeja,
este sistema de gestão da aprendizagem
on-line ainda é, preferencialmente,
utilizado como respositório de conteúdos e
recursos de suporte ao processo de ensino-
161
aprendizagem aos quais os alunos podem
aceder. Trata-se, pois, de uma prática de
ensino a distância em que os docentes
encaram o LMS como um mero veículo
informação em que a colaboração e interacção
são pouco exploradas, descurando o valor
das potencialidades que o mesmo lhes
possa oferecer. Na verdade, a plataforma,
dada sua arquitectura ergonómica, traz
incorporada um naipe de ferramentas
essenciais de comunicação que, uma
vez exploradas, podem tornar o acto
educativo numa experiência aprazível,
atraente e eficaz. Não faz sentido e nem é
pedagogicamente rentável utilizar o LMS
apenas como reservatório de consumo
passivo de conteúdos e de informações
propostos pelos docentes. É imprescindível
que os actores do processo educativo tirem
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
o máximo de partido das aplicações e
potencialidades educativas que a plataforma
lhes possa oferecer, designadamente, como
espaço de interacção, debate, exposição e
partilha de ideias, experiências e projectos
e, sobretudo de produção coloborativa
de conhecimentos e saberes. Por outro
lado, torna-se premente que sejam criados
espaços de emersão tecnológica devidamente
equipados com infraestruturas que possibilitam
aos docentes e alunos ensaiar e testar as
diferentes funcionalidades tecnológicas
de modo a incorporar as tecnologias à sua
actividade pedagógica e passem a utilizar a
Moodle como ferramenta de apoio em suas
disciplinas. À medida que as tecnologias
se tornam mais acessíveis, os professores
tendem a descobrir e explorar as novas
opções e os seus impactos e implicações na
sua actividade docente. Tornam-se mais
conscientes das oportunidades que se lhes
apresentam o que lhes permite superar as
suas limitações em contemplar actividades
que exigem dos alunos a mobilização de
capacidades cognitivas mais complexas e,
consequentemente, melhor a sua prática
educativa. A tomada de consciência das
inúmeras oportunidades e possibilidades
que as TIC´s lhes oferecem, os docentes
sentem-se estimulados e entusiasmados
na sua utilização, o que aumenta as suas
expectativas, à medida que navegam e
interagem entre si (Harasim et al, 2005).
É importante que a criação de ambientes
de emersão tecnológica seja alinhada
com a realização de acções de formação
contínua no domínio da Moodle para que
o docente seja capaz de criar ambientes de
aprendizagem com tecnologias, adaptando
os meios à metodologia de ensino e possa
implementar inovações no processo educativo
O gráfico, abaixo, aponta para a
necessidade de se imprimir dinâmicas
mais eficazes do recurso às ferramentas e
serviços disponíveis na plataforma capazes
de proprorcionar aos seus utilizadores novas
e diversas oportunidades de comunicação
digital.
As tecnologias de suporte ou ferramentas
de comunicação (fóruns e chats) e de escrita
colaborativa (wikis, glossários), continuam
a ser pouco exploradas e preteridas a favor
da mera consulta de informações, de textos
em linha (conteúdos programáticos, textos
e ficheiros para leitura e download, envio
de links sugeridos,). Assim, do total de
disciplinas criadas, apenas 23 fizeram uso
Gráfico nº 2 – Grau de Utilização das Ferramentas de Comunicação Assíncrona
162
Fóruns de Discussão, 9 Chat, 8 Glossário
e apenas 1 utilizou Wiki.
Estes resultados evidenciam uma clara
utilização da Moodle preferencialmente
como repositório de conteúdos digitais
e não como espaço de partilha e de
colaboração, tornando-se necessária a
deslocação da tónica actualmente fortemente
centrada nas funcionalidades tecnológicas
potenciadoras de facilidades de acesso
e consumo de conteúdos para aspectos
comunicacionais de transaccção pedagógica
que possibilitem o desenvolvimento de
capacidades cognitivas e metacognitivas
assim como o estabelecimento de relações
interpessoais e sociais entre os diferentes
actores do processo de aprendizagem.
Resumindo, as aplicações associadas
à Web 2.0 são, na generalidade, pouco
usadas em contexto educativo pelos
docentes o que, no nosso entender, não
favorece o desenvolvimento da autonomia
dos estudantes e nem estimula uma
aprendizagem colaborativa, considerados
cerne do processo educativo. De facto, os
softwares de apresentação e de processador de
textos são os mais utilizados, contemplando
poucas actividades que exigem dos estudantes
mobilização de capacidades cognitivas
mais complexas.
2.4. Principais conclusões e
expectativas
Deste estudo destacam-se algumas
conclusões que entendemos como pertinentes,
embora mais do que conhecimentos definitivos,
procura-se abrir novas pistas para a
reflexão em torno das novas estratégias
de integração de inovações nas práticas
educativas plasmadas nas TIC´s.
Como se pode verificar pela da discussão
dos dados obtidos ficou patente que a
163
Moodle é pouco utilizada num contexto
de aprendizagem construtivista. Desta
situação decorre a premência de se privilegiar
estratégias de mediatização da comunicação
interactiva que se fundamentem em contactos
bi e multidireccionados para o debate,
interacção, reflexão e possibilitam a geração
de conflitos sócio-cognitivos (CORREIA
& TOMÉ, 2007). A passagem de uma
utilização da plataforma e da Internet
apenas como veículo por onde circulem e
se consultem informações para ambientes
de aprendizagem activa orientadas para a
partilha informação, saberes e projectos e
construção colaborativa de conhecimentos,
conteúdos e experiências configura-se como
mais um dos desafios do NaEaD.
Outra conclusão, decorrente da ideia
anterior, prende-se com a necessidade de
formação contínua dos formadores que
integram o NaEaD com competências digitais
de inovação de práticas educativas de modo
a se sentirem confortáveis ao utilizar as
ferramentas tecnológicas e motivados a
apoiar os docentes na implementação de
práticas inovadoras com recurso às TIC´s.
São, neste sentido, elucidativas as palavras
de GOMES (2004) que defende que um
formador com experiência de formação em
regime presencial necessitará, forçosamente,
de “competências e perfis adequados ao
desenvolvimento da actividade de formador
em ambientes de aprendizagem a distância
via Internet, baseados na interacção e na
colaboração” (p.355).
Efectivamente, é da responsabilidade da
equipa dotar os docentes de competências
de modo a lidarem de forma adequada com
a Moodle centrando a aprendizagem nos
contextos, na interacção e colaboração; orientar
e acompanhar os docentes e estudantes
na produção e integração dos recursos
digitais de apoio à aprendizagem online e
off-line e prestar apoio aos intervenientes
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
do processo educativo encorajando-os e
motivando-os a prosseguir o seu percurso
formativo (INOCÊNCIO, 1999).
O apetrechamento do Núcleo com
equipamento, recursos e infra-estruturas
tecnológicas adequadas ao seu pleno
funcionamento é outra tarefa que se impõe,
já que como refere INOCÊNCIO (1999)
“(…) Só a prática de uma vivência virtual
de aprendizagem pode facilitar o processo
e transição de uma situação presencial
para uma virtual de aprendizagem.”
(p.126). Sendo o contexto tecnológico
uma condição para o sucesso do processo
de inovação, o Núcleo deve constituir-se
como centro irradiador de novas práticas
com TIC e catalizador de inovações,
razão pela qual o seu apetrechamento
com equipamentos e infra-estruturas
tecnológicas em quantidade e qualidade
assume uma enorme relevância. Outrossim,
a sensibilização dos docentes e estudantes
para a inovação das práticas educativas
com TIC, atitudes e comportamentos face
ao novo paradigma educativo enuncia-se
como mais um dos importantes desafios
que se coloca ao Núcleo, à sua equipa e à
Uni-CV. Efectivamente, as representações
dos docentes e alunos sobre as TIC é
determinante para o modo como as utilizam
na sua actividade pedagógica. Trata-se,
portanto, de implementar novas estratégias
de actuação, nomeadamente, organização
de encontros de reflexão, sessões de debate
e socialização de práticas bem sucedidas
e discussão de projectos inovadores da
prática educativa delineando-se um novo
caminho no sentido da desmaterialização e
virtualização do sistema do ensino superior
na Uni-CV, em particular, e em Cabo
Verde, em geral.
2.4.1. Conclusões finais
e implicações práticas
Numa altura em que modelos não
presenciais de ensino ganham credibilidade
no seio académico, os programas de
formação que pretendem fugir à lógica
do ensino tradicional a favor de modelos
como o e-Learning devem ser estimulados
e incentivados. A dinâmica da adesão à
utilização da plataforma traduzida em
novas tentativas de ensinar e aprender
resulta evidente neste estudo, pelo que
sugerimos a continuidade da sua evolução.
Mais uma vez, importa referir que é
preciso redireccionar o foco do processo
de aprendizagem centrado nos aspectos
ligados à distribuição e acesso aos conteúdos
digitais, para situações de uma maior
interactividade on-line entre professores/
alunos e alunos/alunos. A abordagem do
ensino transmissivo deve dar lugar à
uma abordagem facilitadora baseada a
interacção, que estimula o espírito crítico
e uma concepção da aprendizagem que
acrescente valor em termos pedagógicos.
É o nosso entendimento que o baixo
índice de interacção e colaboração entre os
docentes e alunos pode estar relacionada com
a falta de formação por parte dos docentes
para potenciar o uso das tecnologias na sua
prática educativa. Reconhece-se, contudo,
que se trata de um processo laborioso,
cuja curva de aprendizagem apenas está
a iniciar. Todavia, se queremos que ela
ganhe dinamismo e que os docentes usem
a tecnologia em prol de uma construção
colaborativa do conhecimento, saberes
e experiências, torna-se imprescindível
investir fortemente na formação dos
docentes em TIC. A definição de políticas
e de estruturas de operacionalização de
procedimentos que promovem o processo
de mudanças e de renovação de modos
de ensinar e aprender.
164
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
Concluindo, é nosso entendimento que
a divulgação destas reflexões em torno da
aprendizagem electrónica, a par de pretender
dar a conhecer à comunidade académica o
trabalho realizado no âmbito deste estudo,
objectiva despertar o interesse para o recurso
aos novos modelos de aprendizagem online. Este trabalho pretende constituir um
contributo de referência à construção de
novas representações sobre o e-Learning,
modalidade de aprendizagem que tem
vindo a conquistar adeptos na Uni-CV.
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166
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
ENTRE EUROPEIZAÇÃO E AFRICANIZAÇÃO
A CONSTRUÇÃO VISUAL DE CABO VERDE
NOS POSTAIS DO PERÍODO COLONIAL1
Roberto Zaugg2
Resumo/Abstract
Partindo da premissa que os media visuais têm um papel crucial na construção
de “identidades” e de um certo tipo de ‘imaginário’ colonial, este artigo examina
como os postais das primeiras décadas do século XX retratavam Cabo Verde e os
seus habitantes. Analisa as representações europeístas das paisagens urbanas, a
função do género na definição do “tipo étnico” cabo-verdiano e a encenação artificial
de uma cultura tribal (inexistente). E finalmente, mostra como os cabo-verdianos se
apropriaram de certos elementos iconográficos, que se manifestaram no contexto do
imaginário colonial, e as carregaram de novos significados.
Palavras-chave: imaginário colonial; media visuais; exotismo; racismo; iconografia
pós-colonial.
Assuming that visual media play a crucial role in the construction of “identities”
and of colonial imageries, this essay examines how post cards from the first decades
of the 20th century represented Cape Verde and its inhabitants. It analyses the
Europeanising depiction of urban landscapes, the function of gender in the definition
of the Cape Verdean “ethnic type” and the artificial staging of a (non-existing) tribal
culture. Further, it discusses the relation between texts and images with regard to the
subjective interpretation of post cards. And finally, it shows how Cape Verdeans have
appropriated iconographic elements, which had emerged in the context of a colonial
imagery, and have filled them with new meanings. .
Keywords: colonial imagery; visual media; exoticism; racism; postcolonial iconography.
1 Uma versão anterior deste ensaio foi publicado em língua alemã com o título: ZAUGG, Roberto (2010). “Zwischen Europäisierung und Afrikanisierung.
Zur visuellen Konstruktion der Kapverden auf kolonialen Postkarten”, in STARL, Timm; TROPPER, Eva (eds). Zeigen, grüssen, senden. Aspekte der
fotografisch illustrierten Postkarte, número monográfico de Fotogeschichte. Beiträge zur Geschichte und Ästhetik der Fotografie, vol. 30, n. 118, p. 17-28,
(www.fotogeschichte.info). Agradeço a “Fotogeschichte” pela cortês autorização concedida para a sua republicação (de forma parcialmente reelaborada
e ampliada) na “Revista de Estudos Caboverdianos”. Agradeço também à minha mulher, Francisca Rodrigues Faria, pelas estimulantes discussões que
acompanharam a redacção deste texto.
2 Roberto Zaugg é docente de história moderna na Universidade de Basileia, em Suíça. Estudou em Florença, Paris e Nápoles e foi pesquisador convidado
na Universidade do Gana. As suas pesquisas se concentram no comércio mediterrâneo e atlântico, nos fenómenos migratórios, nas escritas autobiográficas
e nas relações entre Europa e África Ocidental.
167
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
A construção da “identidade cabo-verdiana”
é uma temática que, nos últimos anos, tem
sido enfrentada por um importante filão
de estudos (veja sobretudo ANJOS 2002,
FERNANDES 2002, FERNANDES 2006,
BRITO-SEMEDO 2006). Além do mais,
estes estudos têm analisado as dinâmicas
através das quais, no tempo, os actores
sociais têm seleccionado e reunido diversos
elementos de matriz africana, europeia e
americana, que convergiram para a formação
da sociedade cabo-verdiana, evidenciando
a heterogeneidade das motivações e dos
resultados destas construções culturais. Tais
questões foram examinadas a partir de uma
multiplicidade de fontes escritas (literárias,
jornalísticas, políticas, administrativas, etc.)
e orais, e também a partir da observação
de uma pluralidade de práticas sociais.
Neste quadro analítico, rico e complexo,
as fontes visuais têm estado até agora
relativamente pouco presentes. Portanto,
elas oferecem ainda muitas pistas para
explorar. O presente ensaio, centrado
nos postais do período colonial, tenta
percorrer uma dessas pistas.
O papel da fotografia na elaboração
do imaginário colonial foi evidenciado por
numerosos estudos (por exemplo, JENKINS
1993; HARTMANN & SILVESTER &
HAYES 1998; LANDAU & KASPIN 2002;
ZELLER 2010), que mostraram que – longe
de reproduzir objectivamente a realidade
– estes media visuais tendem a criar e a
veicular juízos de valor e representações
estereotipadas. Em relação à história
colonial, a atenção dirigida à fotografia
foi focada quer nos géneros “elevados”
(fotografias artísticas e etnográficas) quer
nos produtos mais efémeros, como, por
exemplo, os postais1.
Como meio de comunicação popular,
estandardizado e munido de uma função
circulatória, o postal influenciou de forma
não marginal as imagens ocidentais de
povos e países colonizados. Ele constitui
um objecto de análise interessante e ao
mesmo tempo complexo, considerando que
o processo de produção da sua semântica
foi plasmado por uma pluralidade de
actores sociais, interesses e expectativas.
Ao escolher e retratar os seus objectos, o
fotógrafo pode exprimir as suas preferências
estilísticas, a sua sensibilidade pessoal
e mostrar as suas capacidades técnicas.
Ao mesmo tempo, porém, o seu trabalho
é condicionado por discursos visuais e
géneros estéticos e deve ter em conta os
pedidos do editor, que por sua vez são
ditados por prioridades comerciais. De
facto, para o editor trata-se de pôr no
mercado um produto capaz de satisfazer
(ou de gerar) o pedido de uma clientela,
a maior possível. Com este objectivo, ele
influencia o processo produtivo quer a priori,
aceitando certos tipos de fotografias em
detrimento de outras, quer a posteriori,
inserindo as fotografias no layout do postal
e dando-lhes títulos: duas operações que
não são meramente técnicas, mas que
contribuem para orientar a interpretação
das imagens. No que diz respeito ao
comprador do postal, este serve quer
de consumidor quer de produtor da sua
semântica. A nível colectivo, o comprador
faz parte de um público cujas expectativas
o produtor procura intuir e satisfazer.
A nível individual, pelo contrário, cada
consumidor pode, por sua vez, contribuir
para a produção de significado no momento
da redacção. Com efeito, o processo de
1 O debate sobre os postais da época colonial foi aberto pelo trabalho de
Malek Alloula (1981), que transpôs a perspectiva crítica de Edward Saïd
para a fotografia. Na esteira do seu trabalho – e por vezes em polémica
com este – foram depois elaborados numerosos outros estudos, entre
os quais CORBEY 1988; PROCHASKA 1991; DeROO 1998; MATHUR
1999; STURANI 2001; YEE 2004. Para uma perspectiva mais ampla
acerca dos postcard studies veja-se PROCHASKA & MENDELSON 2010.
168
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
semântica não termina com a impressão
do postal, mas continua mesmo depois
da venda do mesmo. Aqui convém notar
que, mesmo que os textos escritos pelos
remetentes reproduzam frequentemente
fórmulas mais ou menos estandardizadas, o
acto da escrita pode contudo desembocar em
textos individualizados, que muitas vezes
modulam notavelmente a interpretação
das imagens. Por fim, a percepção por
parte do destinatário é um factor que o
comprador tem em conta quer no acto de
compra quer no momento da redacção. Os
postais são pois, para todos os efeitos, “um
meio de comunicação dotado de muitos
estratos” (JÄGER 2006, p. 141).
Novas imagens para
uma nova cidade
A grande maioria dos postais sobre o
Cabo Verde colonial concerne a São Vicente.
Como veremos, esta primazia devia-se
à íntima relação que ligava a produção
de postais ao tráfego transatlântico que
passava pelo Porto Grande. Santiago e
as outras ilhas ocupavam uma posição
decisivamente secundária. A Cidade Velha
e os seus monumentos históricos, que
no Cabo Verde pós-colonial se tornaram
importantes lugares da memória, nos postais
da época colonial eram completamente
marginais.
Os postais de São Vicente, que,
por conseguinte, estão no centro deste
trabalho, representam um material de
grande interesse. Em geral, porque os
postais produzidos durante o império
português são ainda pouco estudados2.
E em termos específicos, porque no caso
2 Por isso, as edições de João Loureiro (1997a, 1997b, 1997c, 1998a,
1998b) oferecem uma óptima base empírica. No que diz respeito aos
postais sobre Capo Verde, muitos estão disponíveis também em rede:
www.dokkumenta.com/cverdepostaisantigos;
www.heuijerjans.net/
CapeVerde/postcards/CaboPostcards.html;
http://www.tvciencia.pt/
tvcicn/pagicn/tvcicn01.asp. Infelizmente, não fui capaz de identificar os
fotógrafos das imagens aqui analisadas.
169
de São Vicente o processo de colonização
e a criação de representações coloniais
foram plasmados por actores, perspectivas
e interesses muito diversos entre eles.
Como é sabido, o crescimento económico
e demográfico do Mindelo foi determinado
pelo estabelecimento dos depósitos de carvão
– necessários para abastecer os grandes
vapores que no século XIX tinham iniciado
a cruzar o oceano – e pela construção da
central telegráfica, por onde passava o
cabo que em 1885 ligou pela primeira
vez a Europa à América do Sul. Neste
sentido, São Vicente fazia parte de dois
impérios. Em termos político-territoriais
pertencia a Portugal, enquanto a nível
económico estava inserido no informal
empire britânico. Como notava o jornalista
britânico Archibald Lyall, que visitou Cabo
Verde em 1936, São Vicente era, para
todos os efeitos, uma “criação da revolução
industrial” (LYALL 2007, p. 61).
A economia portuária, animada por uma
intensa circulação humana e comercial,
transformou a ilha numa autêntica “Babel
cabo-verdiana” (CORREIA E SILVA 2000,
p. 128). Junto com um grande número de
cabo-verdianos oriundos das ilhas vizinhas,
em Mindelo estabeleceram-se, com efeito,
pequenos empresários italianos, hebreus
marroquinos e uma centena de empregados
comerciais e técnicos britânicos. Além
disso, transitava pelo Porto Grande uma
grande quantidade de transatlânticos, que
costumava transportar muito mais de cem
mil passageiros por ano. Na maioria dos
casos tratava-se de pobres emigrantes que
de portos como Liverpool, Hamburgo ou
Génova viajavam para Buenos Aires ou
Montevideu. A sua passagem por Mindelo
durava apenas o tempo que a tripulação
levava a abastecer os navios de carvão,
mas o seu trânsito deixou também os seus
traços – mesmo relativamente à imagem
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
visual de São Vicente.
Os postais analisados neste estudo
remontam todos a esta época. As
imagens impressas são, na maioria dos
casos, fotografias, obviamente todas a
branco e preto, embora em alguns casos
tenham sido sucessivamente coloridas
à mão. Embora uma datação precisa
nem sempre seja possível, com base em
características técnicas e noutros indícios
pode-se circunscrever a produção da grande
maioria destes postais nos primeiros
quinze anos do século XX: um período
que coincide com o boom mundial dos
postais e simultaneamente com o apogeu
do imperialismo europeu.
No caso de São Vicente é interessante
notar que a construção de imagens através dos
postais iniciou-se só poucas décadas depois
do nascimento da cidade. Por conseguinte,
as fotografias reproduzidas nos postais não
podiam remontar a uma tradição iconográfica
anterior, mas foram precisamente elas
a criar ex novo a iconografia urbana da
ilha. Encontrava-se em acto um duplo
processo. Por um lado, naqueles anos o
espaço urbano estava a ser construído
fisicamente, estruturado socialmente
e conotado semanticamente. Por outro
lado, esta realidade ‘das muralhas’ estava
selectivamente a ser reproduzida por uma
realidade das imagens, que foi posta em
circulação a nível global através daqueles
media comerciais que eram os postais.
Obviamente, não surpreende que
muitos postais retratem os espaços do
poder colonial português, como por exemplo
a alfândega (LOUREIRO 1998a, n. 6),
o quartel militar (LOUREIRO 1998a, n.
28) ou o edifício pomposo da capitania
(LOUREIRO 1998a, n. 16). Construído
entre 1918 e 1921, este último representa
– como é sabido – uma imitação da Torre
de Belém: constitui portanto uma conexão
simbólica importante, com o propósito de
ligar a colónia à metrópole. Esta função
propagandista era ainda mais explícita
nos postais que serviam para fixar e pôr
em circulação as imagens fotográficas
de eventos políticos, como por exemplo
a visita do príncipe Luís Filipe em 1907
ou as festas republicanas celebradas após
a revolução portuguesa de 1910 (fig. 1).
A encenação da “ordem” e da “civilização”
promovidas pelo domínio português espelhase, porém, também em outras imagens,
cuja natureza política é menos directa. É
o caso das representações fotográficas do
centro do Mindelo (LOUREIRO 1998a, n.
30, 32, 35), com as geometrias lineares
que evocam imediatamente uma ideia de
racionalidade ocidental, ou da imagem
frontal do hospital (LOUREIRO 1998a, n.
29), construído em 1898. Ou das fotografias
da rectangular Praça Nova e dos seus
pavilhões em estilo belle epoque (fig. 2),
que lembram, por sua vez, uma atmosfera
tipicamente europeia.
Noutros postais não é tanto a imagem em
si que produz este efeito quanto a moldura
ornamental que a circunda. No “Salut
de Saint Vincent” esta moldura elimina
as periferias caoticamente desfeitas da
povoação urbana e, extrapolando a cidade
do Mindelo do seu ambiente subtropical,
insere-a num contexto docemente floral (fig.
3). Desta forma, a construção iconográfica
da paisagem produz uma domesticação
da natureza e uma disciplinação visual
da cidade. Como se observou para as
fotografias tiradas nos territórios alemães
da hodierna Namíbia, nestes postais a
“diferença entre colónia e metrópole era
reduzida ao mínimo” com o objectivo de
“representar as colónias como uma parte
da pátria” (JÄGER 2008, § 11-12).
170
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
FIGURA 1
FIGURA 2
171
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
São Vicente, dissemos, estava
profundamente inserida na rede da
talassocracia britânica. Por conseguinte,
entre os motivos recorrentes encontramos
também a estação telegráfica e os depósitos
de carvão (LOUREIRO 1998a, n. 7 e 14),
o arenoso campo de golfe (fig. 4), onde os
britânicos e as elites locais praticavam a sua
socialidade exclusiva, ou então o cais (fig.
5). O postal “Ponte de desembarque” retrata
carris e gruas, símbolos de modernidade,
e homens brancos vestidos num estilo
tipicamente colonial, com sapatos brancos,
chapéus de palha e até um elmo tropical.
As pessoas de pele escura aparecem só
na segunda fila.
Estes documentos transmitiam aos
seus destinatários uma imagem europeia
de São Vicente, ou pelo menos sugeriam
que a colónia estava a beneficiar de um
processo de modernização que a teria
aproximado da civilização da metrópole.
Celebravam o estado português e o
capitalismo britânico. Estes permitiam
aos soldados, aos administradores e aos
empregados comerciais residentes na
ilha que mostrassem aos seus parentes
distantes que eles viviam em condições
“civis” e que a sua transferência para o
arquipélago vinha com um certo bemestar. Na economia semântica deste tipo
de imagens, os crioulos de pele escura
estavam de todo ausentes, ou então
desempenhavam um papel meramente
ornamental.
Projecções etnográficas
entre raça e género
Se compararmos a construção visual de
São Vicente nos postais que apresentámos
com os discursos que se encontram na
literatura de viagens coeva, notamos
imediatamente evidentes contradições.
Especialmente os autores britânicos
mostram-se pouco impressionados pela
“civilização” promovida pelo imperialismo
português. Tomemos o exemplo do britânico
Alfred B. Ellis (1852-1894), um oficial e
autor de livros etnográficos que passou
por São Vicente em 1873. Na sua narração
de viagem, impregnada de estereótipos
racistas, ele expunha à “derisão de todo o
mundo civilizado o modo como as colónias
portuguesas eram geridas” (ELLIS 1885,
p. 159). Mindelo “é a cidade mais mísera
e imoral que alguma vez vi”, escrevia,
e aos seus habitantes – entre os quais
notava as “senhoras portuguesas mestiças
castanhas e amarelas” e as “crianças nuas”
– atribuía uma “rapacidade de abutres”
(ELLIS 1885, p. 127 s., 144).
Também Lyall, que chegou à ilha muitos
anos depois, não ficou decerto positivamente
admirado pelos resultados do colonialismo
português. O que o impressionou foi antes
de mais a miséria em que naqueles anos
de crise vivia boa parte da população:
“Desembarcando no porto era-se assediado
por uma multidão de mendigos; alguns
sentavam-se na calçada; outros no lixo;
cegos, decrépitos, paralíticos e sifilíticos”
(LYALL 2007, p. 63). Além disso ficou
fascinado pela “mistura racial”. A este
propósito, por um lado, Lyall pareceu
distanciar-se da condenação obsessiva
que a cultura colonialista anglo-saxã
exprimia sobre as colónias portuguesas,
mas, por outro, foi beber precisamente à
linguagem do racismo biologista para dar
forma às suas impressões: “A população
é a mistura mais maravilhosa que se
possa encontrar no mundo. [...] foi-lhe
acrescentado o sangue de quase todas as
nações do mundo, dos hindus aos índios do
Brasil, e em São Vicente encontrarás todo o
tipo de mistura, força e variação do género
preto [nigger]. (Peço desculpa aos meus
leitores de cor mas não há outra palavra
para exprimir o conceito). Encontrarás
172
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FIGURA 3
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FIGURA 5
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pretos chineses com olhos amendoados
[...]; pretos escoceses com cabelos ruivos;
pretos alemães com olhos azuis; pretos
hebreus com o nariz adunco; [...] pretos
com olhos castanhos cor de avelã; pretos
louros e descolorados; pretos com a cara
vermelha e com as bochechas como maçãs;
pretos com lábios finos e narizes aquilinos
como o Duque de Wellington3. Se São
Vicente de certa forma se parece com o
inferno, pelo menos deve ser um paraíso
para os etnólogos, para os medidores de
crânios e para os estudiosos de Mendel”4
(LYALL 2007, p. 54 s.).
A imagem belle epoque de uma São
Vicente europeia, tal como era apresentada
nos postais analisados anteriormente, era
contradita drasticamente pelas percepções
dos viajantes, que viam apenas a pobreza,
as nuances nas cores da pele e os costumes
dos crioulos. Por isso, estes aspectos –
removidos das imagens europeístas –
vinham à tona noutros postais.
De facto, os postais eram produzidos em
função de intenções comunicativas muito
heterogéneas. Os europeus residentes na
ilha, que provavelmente eram dentre os
principais compradores dos postais europeístas,
verosimilmente eram uma clientela só
secundária e para manter os contactos
com os parentes usavam seguramente
quase só as cartas, que permitem uma
comunicação mais extensa e mais íntima.
Portanto, a clientela mais importante
eram indubitavelmente os passageiros
dos transatlânticos, que aproveitavam da
paragem em São Vicente para mandar
cumprimentos aos familiares e aos conhecidos.
Para eles, as imagens da Praça Nova
ou da capitania não ofereciam grandes
estímulos e não incorporavam nenhuma
3 Lyall provavelmente refere-se a Arthur Wellesley (1769-1852), o
primeiro duque de Wellington.
4 Gregor Mendel (1822-1884), um dos principais precursores da
genética moderna.
175
mais-valia simbólica. Os postais, com os
quais mostravam aos correspondentes que
se tinha entrado em contacto com a África
“selvagem”, podiam, pelo contrário, suscitar
admiração. E os inúmeros coleccionadores,
que pediam que lhes enviassem os postais
sem nunca ter posto os pés no arquipélago,
estavam certamente mais interessados
em representações do “tipo étnico” dos
“indígenas” que em imagens do centro
do Mindelo.
O género desempenhava um papel
crucial na descrição da população caboverdiana. Em coerência com um típico
discurso colonialista, os homens eram
frequentemente retratados como figuras
ridículas e em farrapos (LOUREIRO 1998a,
n. 188, 193 e 202), enquanto que eram
bastante raras as imagens de crioulos
que se dedicavam a actividades laborais.
A construção visual das mulheres caboverdianas – que constituíam um objecto de
estudo muito mais frequente – obedecia,
ao invés, a modelos diferentes. Em muitos
postais estão de facto retratadas crioulas
que trabalham: vendedeiras no mercado
(LOUREIRO 1998a, n. 168, 170 e 182),
lavadeiras (LOUREIRO 1998a, n. 187) ou
domésticas que pilam o milho nos pilões (fig.
6). O título deste último postal (“Costumes”)
indica, todavia, que a intenção do fotógrafo
não consistia tanto em documentar uma
actividade laboral quanto em tipificar os
costumes e a cultura local. Neste sentido,
os corpos destas mulheres – de pele escura,
descalças, com a cabeça coberta por um
lenço e quase sempre com um ‘canhoto’
na boca (fig. 7) – servia de superfície onde
eram fixadas as características “típicas”
que, aos olhos do fotógrafo, representavam
as especificidades distintivas da cultura
cabo-verdiana. Para usar as palavras de
Susan Shifrin (2002), estes postais usavam
as “mulheres como sítios de cultura”.
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FIGURA 6
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Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
O postal “Cubata indígena” (fig. 8)
demonstra uma importante diferença
relativamente aos hodiernos postais
turísticos, cuja retórica visual bebe
fortemente do imaginário colonial. Nesta
imagem, com efeito, se retrata uma cena
de pobreza extrema: um motivo que no
mundo edulcorado da economia turística
constitui um elemento de incómodo e,
por conseguinte, um tabu. O título do
postal, portanto, parece sugerir que
esta mísera habitação não era tanto o
produto da pobreza dos seus habitantes
quanto uma “típica” expressão da cultura
“indígena”. Como é sabido, em Cabo
Verde, o uso de materiais vegetais na
construção das casas rurais era muito
difuso e, em parte, persiste ainda hoje.
Estas habitações, todavia, eram e são
relativamente espaçosas e a sua fabricação
correspondia e corresponde a precisos
princípios técnicos e estéticos (veja-se, por
exemplo, CARREIRA 2000, p. 524 segs.).
A cubata reproduzida neste postal, pelo
contrário, é pouco mais do que um refúgio
montado ‘como calha’, em que só sobrevive
uma recordação de todo degradada dos
estilos arquitectónicos de origem africana.
Neste postal (e também em muitos outros)
uma situação de pobreza economicamente
determinada é pois reinterpretada como
especificidade étnica, de modo a torná-la
apresentável a um público ocidental. O
adjectivo “indígena”, neste caso, dá azo
a desinformação, visto que entre o fim do
século XIX e inícios do século XX a maior
parte dos habitantes cabo-verdianos de
São Vicente tinha chegado à ilha havia
poucos anos ou quando muito havia uma
geração (CORREIA E SILVA 2000, p.
128). As pessoas retratadas neste postal,
mais do que serem “indígenas” (isto é,
autóctones) eram migrantes sub-proletários
de origem rural, como se encontravam
aos milhões nos subúrbios das cidades
industriais europeias.
177
Hipopótamos, leopardos
e guerreiros tribais
Dentre os mais activos editores de
postais havia as grandes lojas da ilha: o
Bazar Oriental Augusto Figueira, a London
House João Joaquim Figueira, o Union
Bazar, o Bon Marché e sobretudo o Bazar
Central Miniati & Frusoni / Bazar Central
Bonucci & Frusoni5. Para os passageiros
dos transatlânticos, estes empórios eram
importantes pontos de referência durante
a sua breve estadia cabo-verdiana. E os
seus proprietários sabiam como saciar
os desejos exóticos dos seus fregueses.
Embora exprimam uma estética
marcadamente colonial, os postais até
agora analisados muito provavelmente
não satisfaziam a expectação de todos os
viajantes. No imaginário popular ocidental
a “África” era antes de mais um mundo de
tribos primitivas e de animais selvagens.
Portanto, os operários portuários e as
cabras de São Vicente corriam o risco de
desiludir as expectativas “etnográficas”
dos passageiros europeus. Apesar disso, o
viajante ansioso por mostrar que durante
a travessia do oceano tinha ultrapassado
os confins da “civilização”, podia ser
contentado.
Para ficarmos com uma ideia (pelo menos
parcial) das mercadorias oferecidas pelas
lojas do Mindelo, podemos examinar um
postal – produzido com objectivos publicitários
– em que se retrata o interior do Union
Bazar (fig. 9). O empório aparece como
um pequeno gabinete de curiosidades,
cujas peças em exposição (humanas e
zoológicas) servem como representantes
simbólicos do mundo africano. Duas
crianças nuas estão sentadas em cima
5 Os italianos Pietro Bonucci e Giuseppe Frusoni, além de um certo
Miniati, chegaram a São Vicente no fim do século XIX. Giuseppe Frusoni,
que com os seus sócios Bonucci e Miniati geria um empório na hodierna
Rua Lisboa, era o pai do célebre poeta cabo-verdiano Sérgio Frusoni
(MESQUITELA LIMA , 1992)
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FIGURA 8
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do crânio de um hipopótamo. Atrás delas
há presas de elefante esculpidas, e na
estante um leopardo empalhado, uma
estatueta que representa um animal e
várias conchas esperam por um comprador.
E se este não devesse encontrar espaço
na bagageira para arrumar o crânio de
um paquiderme ou se simplesmente não
estivesse disponível a comprar o felino
morto, o Union Bazar oferecia-lhe um
souvenir mais pequeno e decisivamente
menos caro, ou seja, postais, expostos na
estante por detrás da criança.
Alguns postais apresentam uma
imagem completamente inventada do
arquipélago e dos seus habitantes. Em
“Native costumes” (fig. 10), por exemplo,
encena-se uma “tribo”. Um grupo de cerca
de sessenta pessoas é retratado em pose à
frente de um fundo caracterizado por tectos
de palha e uma vegetação exuberante. Na
sua maioria, trata-se de jovens homens
africanos. Dois vestem um uniforme, um
tem uma espingarda. No centro há um
homem sentado, que veste um boubou da
África ocidental e que denota uma atitude
de autoridade. No grupo há também dois
brancos: um homem barbudo que, sentado
de maneira relaxada entre os negros,
parece mostrar que estabeleceu relações
pessoais com eles, e um homem armado
com o olhar feroz de um caçador. Os dois
brancos representam, de certa forma, o
alter ego do remetente, que através deste
postal pode comunicar ao destinatário que
entrou em contacto com a “cultura tribal”
de África. À direita, há três mulheres,
que são abraçadas por um homem. As
mulheres trazem panos compridos, uma
mostra o seio nu – sinais visuais que o
olho ocidental descodifica imediatamente
como aspectos “tipicamente africanos” e
que o fotógrafo provavelmente inseriu na
imagem precisamente com este propósito.
De forma análoga, esta hipótese pode ser
179
formulada para o homem junto deles, cujos
atributos estéticos (calças xadrez, chapéu
de palha) revelam fortes semelhanças com
a figura caricatural do “black dandy”6.
Neste postal, tal como em muitos discursos
colonialistas, os negros ou são sujeitos
completamente fechados no seu contexto
tribal ou, quando muito, mostram-se “más
imitações” dos brancos7.
“Tipo Indígena” (fig. 11) retrata três
homens numa savana. Dois vestem saias
de fibras vegetais e o terceiro um pano com
desenhos abstractos. Os seus peitos nus
estão adornados por colares compridos.
Trazem armas brancas e juntos empunham
uma lança. Esta imagem pertence a
uma categoria de postais especializada
na representação de “tipos étnicos”. As
pessoas fotografadas nestes postais não
eram indivíduos, mas exemplares. Neste
caso, a pretensa autenticidade “etnográfica”
pode ser facilmente desconstruída. A
pose dos três guerreiros é evidentemente
artificial, a coreografia é orquestrada pelo
fotógrafo. A expressão dos três actores
revela uma forte separação relativamente
às suas personagens8. A imagem era um
disfarce. Obviamente, não se tratava de uma
encenação artificial mas fiel à realidade,
como muitas vezes era praticada pelos
etnógrafos9, mas simplesmente de uma
montagem completamente arbitrária. A
estética das personagens fotografadas
é um pastiche tribal, inventado pelo
fotógrafo e afim àquelas espécies de
6 Os “dandies negros” tornaram-se populares pelas chamadas minstrel
shows, um tipo de cabaret da América do norte, em que os actores
brancos com a cara artificialmente escurecida ridicularizavam os negros
(SOTIROPOULOS 2006).
7 Para o conceito de bad copy veja-se MUDIMBE 1988, p. 53, e GABLE
2002.
8 Neste sentido, trata-se de um exemplo que ilustra de forma eficaz
a agency que os indivíduos “indígenas” podiam ganhar na produção
fotográfica, gerando por vezes efeitos discordantes em relação às
intenções do fotógrafo. Para a questão do counter-gaze dos indivíduos
subalternos como forma de resistência relativamente ao olhar colonial,
veja-se BHABHA 1994, p. 67, e ZELLER 2010, p. 17 s.
9 A este propósito, veja-se, por exemplo, a imagem que retrata o
etnólogo Franz Boas enquanto põe em pose e faz fotografar uma índia
(publicada em CLIFFORD 1999, p. 186).
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‘jardim zoológico’ humano, tão populares
no mundo ocidental dos inícios do século
XX (MAXWELL 1999; BANCEL et al.
2004). Em todo o caso, nada tinha a ver
com a realidade cabo-verdiana, onde o
único “guerreiro” realmente existente era
um individuo posto à entrada da Union
Bazar que verosimilmente era pago para
acolher os clientes no mundo consumista
de uma África imaginária (fig. 12).
Os postais ‘africanizantes’ (fig. 10 e
11) são collages, ou melhor, combinações
manipuladoras de fotografias (tiradas
provavelmente no continente africano)
e de títulos (que ligam as imagens a
São Vicente). Eram os produtos de uma
estratégia comercial dirigida para os gostos
dos consumidores europeus e, para os
satisfazer da falta de uma cultura tribal
em São Vicente, compensava-se com uma
obra de invenção inspirada no imaginário
ocidental.
A primazia das motivações comerciais
não exclui portanto a existência de intenções
tipicamente políticas. O postal “O Chefe
da rebelião de Santha Catharina” (fig. 13)
ilustra-o de maneira deveras eloquente.
A imagem pretende retratar o líder da
revolta do Ribeirão Manuel, que se
desencadeou em 1910 no interior de
Santiago (CAMILO PEREIRA 2010).
Na verdade, trata-se de uma foto tirada
num estúdio. A espada curva, o peito
nu e adornado por um colar, além das
plantas selvagens pintadas no fundo de
tela, situam a personagem num contexto
tribal. O postal sugere pois uma leitura
étnica do conflito – “indígenas selvagens”
contra o “poder colonial civilizador” – e deste
modo oculta quer as complexas dinâmicas
(sócio-económicas, religiosas, políticas)
que tinham levado à insurreição , quer
à liderança feminina da mesma. Através
desta encenação, o fotógrafo reduzia a
revolta (que as elites sociais e coloniais
tinham seguido com grande preocupação)
a um inócuo objecto estético, deslegitimava
as suas reivindicações e inventava um
“líder”, cuja estética exótica o tornava um
bem de consumo potencialmente atraente.
Saudações coloniais
O postal é um meio de comunicação de
massa produzido a nível industrial, mas
pode ser utilizado de maneira individual. Por
conseguinte, a heterogeneidade semântica
não se dá só pelos diversos postais. Pelos
textos escritos, pelos remetentes, ela pode
ser gerada também relativamente a postais
idênticos. Assim que são imprimidos, os
postais podem ser interpretados e usados
de várias maneiras por parte dos seus
compradores (TROPPER 2010). E isto
pode determinar divergências também
notáveis em relação às intenções dos
fotógrafos e dos editores.
“Souvenirs d’une soirée passée avec
une bougnoule” (“Recordações de um
serão passado com uma preta”)10: esta
mensagem bastante explícita foi enviada a
3 de Março de 1910 por um certo Edouard
a um seu amigo residente em Avrenches
(França)11. A imagem que tinha no verso
estas palavras não representava nem uma
pessoa nua nem uma prostituta. Tais
motivos eram deveras difusos na época e
podem ser encontrados nos postais mais
variados dos países coloniais e europeus.
No caso de São Vicente, pelo contrário,
faltavam completamente, apesar de nesta
cidade portuária a prostituição ser um
fenómeno difuso e conhecido (CORREIA
E SILVA 2000, p. 137). Em ausência de
ilustrações mais apropriadas à mensagem,
10 O termo “bougnoule” vem do jolofo e originariamente indicava a cor
“preta” ou uma “pessoa de pele escura”. No fim do século XIX a palavra
entrou para o léxico francês e transformou-se progressivamente numa
expressão pejorativa de tipo racista para indicar todos os súbditos não
brancos do império colonial. (DIALO 1990, p. 66).
11 Colecção privada R. Zaugg.
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o francês teve que se contentar com um
postal mais sóbrio em que aparecia a caserna
do Mindelo. Os textos podiam também
encontrar-se em absoluta discrepância
relativamente à imagem.
Noutros casos, pelo contrário, os
remetentes comentavam de maneira
individual as imagens ou integravamnas com anedotas pessoais, orientando
deste modo a recepção por parte do
destinatário. Entre os postais de São
Vicente há alguns que retratam jovens
que mergulham no mar saltando de barcos
a remos. “Mergulhadores” é o título – não
muito eloquente – de um destes postais
(fig. 14). À primeira vista, a actividade
apresentada neste postal parece pouco
clara. Para tornar inteligível a motivação
que impelia os jovens a se mergulharem
nas ondas, havia a necessidade de um
comentário manuscrito. O remetente
escreveu “Une vue de nègres plongeant
pour attraper des sous” (“Uma imagem dos
pretos que mergulham para apanharem
moedas”), explicando ao destinatário o
ritual recorrente que decorria entre os
passageiros dos transatlânticos e os gaiatos
mindelenses. O marinheiro Walter Dawson,
que passou por São Vicente em 1914 num
navio militar britânico, anotou no seu
diário: “os ‘rapazes-mergulhadores’ indígenas
[...] chegam perto do navio e gritam aos
marinheiros ‘Atira, que eu mergulho’ – isto
é, ‘Atira o dinheiro e eu mergulho para o
apanhar’. [...] não lhes custa nada estar
debaixo de água por dois ou três minutos
e mergulham até profundezas tremendas.
Raramente regressam à superfície sem
o objecto desejado” (citado em McKEE
2002, p. 166 s.). Duas décadas depois,
Lyall escreveu a propósito da sua chegada
ao Porto Grande: “Divertimo-nos a atirar
moedinhas às crianças negras nuas, que
mergulham corajosamente na água límpida
e regressam à tona com o dinheiro entre
183
os dentes, apesar de há uns meses atrás
um tubarão ter devorado um engenheiro
italiano a poucas jardas da praia” (LYALL
2007, p. 26).
O interessante é que postais análogos
eram produzidos em todo o mundo, das
Filipinas a Dakar até às Bahamas. A
imagem de indígenas que mergulhavam
atrás das moedinhas tornou-se, graças
também à indústria dos postais, um topos
colonial-turístico e um rito que – como
denunciou V.S. Naipaul (1967) num
dos seus romances – reduzia os nativos
a um elemento estilístico dos trópicos
e os infantilizava através de um jogo
paternalista.
Os textos manuscritos podiam acompanhar
a interpretação das imagens, mas ao mesmo
tempo as imagens não deixam de influenciar
a recepção dos textos. Em 1903 Zeca Araújo
enviou ao sr. Ferreira d’Abreu, residente
em Portugal, um postal de São Vicente
que trazia a seguinte mensagem: “Por
estas cartas de S. Vicente podes ficar com
uma ideia do estado de civilização em
que isto se encontra. Foram necessários
400 anos de domínio para se conseguir
tal maravilha. Somos uns verdadeiros
colonizadores, não é verdade?”. O postal que
veiculou estas palavras estava adornado
com duas pequenas fotografias (fig. 15).
A imagem da esquerda retratava uma
moça descalça e vestida pobremente, que
numa praça arenosa leva pela mão uma
criança e traz outra às costas, da qual se
vê apenas uma perna. À direita há uma
foto com uma mulher de pele escura que
tem um elegante vestido branco, na mão,
uma sombrinha, e olha para um rapazinho,
que – embora esteja descalço – está vestido
com roupas brancas e limpas. As duas
imagens sugerem uma sequência “antes
e depois”, onde a pobreza e a nudez são
substituídas por bem-estar e roupas “civis”.
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FIGURA 14
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A interpretação da mensagem de
Zeca não é fácil. Não é claro, de facto,
se o texto é a expressão de um genuíno
orgulho imperialista de ter realizado a
própria missão civilizadora, ou se pelo
contrário deve ser lido como uma crítica
irónica em relação ao plurissecular domínio
português e aos seus (modestos) resultados.
O destinatário verosimilmente não teve
nenhuma dificuldade em interpretar a
mensagem, pois podia relacioná-la com
outros postais que Zeca lhe enviara junto
com este e que são mencionados no seu
texto. Ao invés, para nós , as intenções do
remetente permanecem ambíguas. Não
sabemos se outros postais representavam
os pavilhões da Praça Nova ou se, pelo
contrário, retratavam uma mísera cubata.
Sem as imagens que faltam, não podemos
compreender o texto de forma clara.
Apropriações pós-coloniais
Os media visuais fazem recair sobre
eles – de forma mais ou menos explícita
– os sinais dos contextos em que foram
produzidos. Todavia, a sua semântica não
pode ser de todo reduzida a estes últimos.
Estes media não espelham somente relações
de força contingentes, mas desenvolvem
também dinâmicas autónomas. As imagens
não têm só origens, têm também vidas
sucessivas. Nesta última parte procurarei
dar dois exemplos disso, adentrando-me no
período pós-colonial e alargando a análise
a outros tipos de media.
O primeiro exemplo concerne ao pilão:
um objecto que, notoriamente, chegou
ao arquipélago na bagagem cultural dos
escravos africanos que para lá foram
deportados. O pilão era antes de mais
um humilde utensílio doméstico e durante
séculos provavelmente foi percepcionado
essencialmente como tal. Os fotógrafos que
em inícios do século XX começaram a tirar
185
fotos de domésticas que se aprestam a pilar
o milho e os editores que inseriram tais
fotografias nos seus postais (LOUREIRO
1998a, n. 184, 191, 200, 209 e 210) viram,
pelo contrário, no pilão, um objecto que
incorporava materialmente os costumes
crioulos. Fotografar uma mulher com um
pilão significava portanto visualizar e tornar
comunicável a cultura cabo-verdian. A este
propósito, o postal “Costumes de São Vicente
de Cabo Verde” (fig. 18) é particularmente
significativo. Contrariamente a outras
fotografias de mulheres com pilões, que
se conformam a um padrão estilístico de
tipo etnográfico e que, por conseguinte,
são tiradas ao aberto, esta imagem foi
produzida em estúdio fotográfico. O fundo
consiste numa tela, na qual estão pintadas
plantas e uma coluna, que parece aludir
mais a um jardim do que a uma floresta.
É provável que este fundo romântico fosse
usado para as foto-retratos e – no fundo
– teria podido figurar perfeitamente um
estúdio qualquer de Londres, Paris ou
Lisboa. Em primeiro plano, o fotógrafo
colocou uma mulher com um pilão. O
lenço, a saia e a camisa com o colarinho
bordado são brancos e marcam um nítido
contraste relativamente à pele escura. (A
fotografia a branco e preto deixa pouco
espaço para as mil nuances da pigmentação
cutânea: é-se, ou branco ou preto). Em
posição erecta e um pouco rígida a mulher
impunha um pau e mantém-no acima do
pilão. O olhar dirige-se para a máquina
fotográfica. Contrariamente aos outros
postais, nesta imagem não se representa
um gesto de trabalhador. O que o fotógrafo
propõe ao seu público é, pelo contrário,
uma representação estilizada da mulher
cabo-verdiana e, per extenso, da cultura
cabo-verdiana.
Os postais, produzidos para os
consumidores ocidentais, transformaram
um gesto quotidiano e fadigoso e o seu
Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4
utensílio de madeira num símbolo cultural:
um símbolo que no tempo foi enriquecido
com novos significados, penetrando em
outros meios de comunicação e tornando-se
assim um sinal de reconhecimento de Cabo
Verde. Na poesia Ritmo de pilão o escritor
António Nunes (1917-1951) dedicou-lhe
versos de grande força (NUNES: 1975):
“Bate, pilão, bate,
Que o teu som é o mesmo
Desde o tempo dos navios negreiros
[...]
O branco deu aos negros cartas de alforria
Mas eles ficaram presos à terra por raízes
de suor...
[...]
Bate, pilão, bate,
Que o teu som é o mesmo,
E em nosso músculo está
Nossa vida de hoje
Feita de revoltas!
Bate, pilão, bate! ...”
Nunes associa o pilão às raízes africanas
do povo cabo-verdiano, à escravidão e à
luta persistente pela vida. Também ele
faz do pilão um símbolo, mas dirige-o
explicitamente contra o domínio colonial. Em
Nunes o pilão torna-se “a matriz maior da
cultura cabo-verdiana, enquanto metáfora
das origens e da busca do pão que é o
milho” (HOPFFER ALMADA 1995, p. 71).
A africanidade (incorporada no pilão) é
revalorizada positivamente e celebrada
como força potencialmente revolucionária.
Durante a luta anticolonial e depois da
independência, impulsos culturais deste
tipo foram enfatizados com o sentido de
“reafricanização dos espíritos”. Neste
novo contexto político, o pilão continuou a
simbolizar a cultura popular cabo-verdiana
e as suas origens africanas, de modo que
em 1989 até foi inserido na nota de 100
escudos. Com a mudança e a chegada ao
poder do MPD a política cultural reorientouse, como é sabido, para ocidente. Esta
descontinuidade manifestou-se também
e sobretudo na esfera simbólica e visual,
como bem se evidencia pelo abandono
da velha bandeira, fiel à cromática panafricanista, vermelho-amarelo-verde, e
pela adopção da nova bandeira, cujas cores
e simbologia apresentam referências à
União Europeia e aos Estados Unidos
da América. Porém, as referências a
África não desapareceram. De facto,
com o desenvolvimento da economia
turística renasceu uma forte demanda
exógena de objectos e imagens chamados
a representar – de forma mais ou menos
credível – um sentido de “africanidade”.
Não por acaso, nos dias de hoje o motivo
iconográfico do pilão é reproduzido em
insígnias publicitárias (fig. 16) e numa
ampla variedade de souvenirs (T-shirts,
estatuetas, porta-chaves, etc.).
O pilão não é, porém, só um banal
símbolo turístico para os consumidores
estrangeiros. Na mesma comunicação intracaboverdiana, ele continua a representar
as raízes culturais e a ligação com a terra
mãe. A estátua de Domingos Luísa na
marginal do Porto Novo (fig. 17) – dedicada
à “mulher das terras de Cabo Verde”12 e
que representa uma mulher que parece
cumprimentar um marido ou um filho que
parte para emigrar, ficando em casa com
uma criança e um pilão – é um óptimo
exemplo.
A apropriação pós-colonial de imagens e
motivos criados nos postais da época colonial
é ainda mais directa no caso do mercado
da Praça Estrela. Inaugurado em 1999,
ele está decorado com grandes painéis de
azulejos brancos e azuis, produzidos em
Portugal e doados pela Câmara Municipal
do Porto. O objectivo declarado destas
decorações, que representam cenas do
12 Inscrição na base da escultura.
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FIGURA 16
FIGURA 17
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FIGURA 18
FIGURA 19
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passado da cidade, é “evoca[r] e homenage[ar]
o trabalhador humilde de S. Vicente”13.
O que é interessante é que todos os 20
painéis são cópias fiéis de outros tantos
postais (confira p.e. fig. 19 e LOUREIRO
1998a, n. 182). Em alguns casos, os azulejos
trazem até os subtítulos impressos nos
postais. As imagens editadas no Cabo
Verde colonial como bens de consumo
efémeros para uma clientela ocidental
tornaram-se assim memórias visuais
da história local, fabricados na antiga
metrópole e monumentalizados para o
público pós-colonial de Cabo Verde.
No seu conjunto, a imagem de Cabo
Verde veiculada pelos postais oscila entre o
progresso e a miséria e entre uma urbanística
europeia e a encenação de indígenas mais
ou menos exóticos. Esta heterogeneidade
aparentemente contraditória é o resultado
de um processo de produção e de consumo
em que se encontrava envolvida uma
pluralidade de actores sociais. De facto,
seria redutivo querer interpretar estes
postais simplesmente como a expressão
hegemónica do colonialismo português. O
discurso apologético do poder colonial está
certamente presente nestas imagens, mas
não era o único motor da construção visual.
No fundo, os postais não eram publicados
pelos detentores do poder político, mas por
pequenos empresários interessados em
interceptar um pedido heterogéneo. De um
ponto de vista comercial, a europeização da
paisagem urbana, as estilizações pseudoetnográficas e os disfarces exóticos não eram
estratégias visuais contraditórias, mas
complementares. De resto, a heterogeneidade
destas imagens faz com que muitas
delas continuem a circular e a serem
usadas em contextos muito diferentes
relativamente àqueles em que nasceram.
Neste sentido, os exemplos do pilão e dos
azulejos, por um lado, mostram o efeito
condicionante que o olhar dos “outros”
tem sobre a auto-percepção. Por outro,
realçam que os sujeitos representados
de modo estereotipado podem apropriarse das imagens produzidas sobre eles e
carregá-las de significados novos e positivos
Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina
13 Inscrição numa lápide comemorativa.
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193
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MAIO 2012