2012 D E Z EMAIO MBRO DE 2009 1 Reitor Vice-Reitora para PósGraduações e Investigação Pró-Reitor para as TIC Pró-Reitor para Assuntos Pedagógicos e Profissionalizantes Pró-Reitor para a Graduação, Desenvolvimento Curricular e Qualidade Académica Administradora-Geral 2 3 4 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Editorial A Universidade de Cabo Verde, enquanto sede pública e nacional para a produção de conhecimentos com objecto e objectivo Cabo Verde, o seu desenvolvimento, a sua identidade e a sua afirmação no concerto das nações, tem nesta publicação – Revista de Estudos Cabo-verdianos (REC) – um instrumento de realização de ciência acabada. Importa agora fazê-la chegar aos seus destinatários e mais importam ainda as consequências que neles conseguem produzir no âmbito da compreensão de fenómenos da rede conceptual Cabo Verde e a da subsequente melhoria da qualidade na tomada de decisões por quem as deve tomar. A REC tem cumprido o seu papel, facultando a investigadores sobre Cabo Verde a realização da etapa definidora de ciência: a submissão ao escrutínio pelos pares e finalmente a partilha com a sociedade – também ela escrutinadora. Este quarto número da Revista inaugura uma nova era: o advento das publicações primo digital chega à UniCV por esta porta magna. Esse salto vai permitir o alcance da mui almejada regularidade e transformar a revista num dos principais escapes da produção científica da área na Uni-CV e no país. Diga-se que a dinâmica da investigação que se pretende imprimir com a criação de novos centros e núcleos demanda uma revista com um tabuleiro editorial forte e uma regularidade metrométrica. De igual modo, o estabelecimento duma política editorial estribada na sustentabilidade e na qualidade, esta, aferida pelas relevâncias científica, académica e social, e visando tanto o estímulo à produção intelectual como a extensão universitária, 5 vem propiciar um nicho confortável para as publicações científicas da Uni-CV, nos três níveis previstos, a saber, formação académico-científica inicial, apoio à pós-graduação e investigação científica avançada. A REC número quatro vem materializar essa política. E a Revista de Ciência e Tecnologia da Universidade de Cabo Verde, cujo primeiro número sairá brevemente, também. Saudações pois aos autores e à equipa editorial, por esta edição e pelas etapas promissoras que se adivinham pela frente! Paulino Lima Fortes Reitor Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Apresentação Caros leitores, Voltamos ao vosso convívio, em formato electrónico, com imenso prazer e lamentando muito a demora deste regresso. Melhorias sensíveis serão introduzidas, como poderão comprovar no próximo número. Neste número estão disponíveis artigos de áreas diversificadas das ciências sociais. Assim, na área da política, Edalina Sanches, no artigo intitulado O processo de institucionalização do sistema de partidos cabo-verdiano e tendo como instrumento a grelha de análise de Mainwaring (1999), reflecte sobre a importância dos partidos e dos sistemas de partidos para o estudo dos processos de democratização no contexto da “Terceira Vaga”, concluindo por uma crescente consolidação da dimensão bipartidária, como resultado do também crescente enraizamento dos dois maiores partidos políticos cabo-verdianos. Ainda na política, mas centrado na articulação comunicação/construção da democracia, Silvino Lopes Évora, em Políticas de comunicação e construção democrática: Analisando a atmosfera do jornalismo em Cabo Verde, e a partir de textos sobre os media e deles oriundos, discute a premente e actualíssima questão de regulação efectiva da comunicação social, artigo especialmente contributivo num momento em que acaba de ser constituído o Conselho de Comunicação Social e instituída a carteira profissional dos jornalistas. Por sua vez, Flávia Lenira Gomes Marques dos Santos, em Cidade Velha, Património Mundial e medidas arquitectónicas, analisa, do ponto de vista dos actores e dos moradores da cidade do nosso orgulho, os posicionamentos adoptados face às medidas arquitectónicas, as quais, no entender da autora, estão a gerar tensões e conflitos. Permanecendo na cultura, ou na intersecção desta com a história, em Experiências atlânticas: africanos e crioulos na dinâmica de construção dos Quilombos do Borrachudo- Barra do Rio de Contas, 1835, a autora Valdinéa de Jesus Sacramento traz ao nosso conhecimento os padrões de rebeldia escrava, enquanto resultados de uma pesquisa que analisa a história dos Quilombos do Borrachudo na década de 1830, do ponto de vista das relações sociais, económicas e políticas. Acreditamos que este artigo será útil aos que se dedicam a aspectos semelhantes da nossa história, também marcada pela escravatura. Nesta mesma linha, Gláucia Nogueira, em Batuku: de divertimento de escravos a património imaterial, traça o percurso da evolução das atitudes dos cabo-verdianos face a esta expressão musical-coreográfica, antes e depois da independência de Cabo Verde. De um ponto de vista estritamente antropológico, Andréa Lobo, a partir de dados recolhidos na Boa Vista, busca perceber a estrutura familiar cabo-verdiana e os seus modelos de suporte, no artigo A família em Cabo Verde. Uma perspectiva antropológica. Inserido numa outra área do conhecimento, a Filosofia, Jasson da Silva Martins e Jacqueline Oliveira Leão apresentam O lugar da síntese na ética kierkegaardiana, buscando responder a questões do tipo Como o indivíduo articula o geral em si mesmo? A ética é uma tarefa individual que deve ser expressa na generalidade?, a partir do pensamento de Søren Kierkegaard, 6 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 caracterizado como filosofia da síntese. Outros artigos provêm da área da história. Dentre eles, um foca a administração pública e outro enfatiza a religião. Assim, em As reformas administrativas de José da Costa Ribeiro: Cabo Verde, 1ª metade do século XVIII, Bertelina Maria do Rosário de Brito traz ao debate a fundação do regime autárquico no país, analisando a situação nas ilhas na primeira metade do século XVIII e as alterações introduzidas pelo projecto autárquico de José da Costa Ribeiro. Através do artigo Evangelização de capuchinhos espanhóis na ilha de São Nicolau de Carlene Recheado, ficamos a conhecer o “estado da arte” da igreja no arquipélago na segunda metade do século XVII, a partir da actuação de dois capuchinhos andaluzes que naufragaram na ilha de São Nicolau em 1666, aquando de uma missão da Congregação para a Propaganda Fide. 7 Roberto Zaugg examina postais de Cabo Verde, das primeiras décadas do século XX, mostrando qual era a representação de Cabo Verde e dos cabo-verdianos no imaginário colonial e como certos elementos iconográficos foram ressignificados, dando conta do papel dos media visuais na construção da identidade. Relacionado com os media, mas usando dispositivos tecnológicos, Luísa Inocêncio, Marcel Pereira e Elisabeth Andrade apresentam os resultados de uma experiência de utilização da plataforma Moodle na Uni-CV, tudo apontando para uma mudança metodológica ou mesmo reconfiguração dos processos de ensinoaprendizagem, ainda que o caminho a percorrer seja longo. Votos, pois, de uma muito útil e prazerosa leitura. Amália Maria Vera-Cruz de Melo Lopes Editora Responsável Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 8 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SISTEMA DE PARTIDOS CABO-VERDIANO1 Edalina Sanches2 Resumo/Abstract Este artigo analisa a importância dos partidos e dos sistemas de partidos para o estudo dos processos de democratização no contexto da “Terceira Vaga”. Com base na grelha de análise de Mainwaring (1999), descrevemos características básicas do sistema de partidos cabo-verdiano desde a transição para a democracia. Os resultados demonstram que um dos aspectos centrais do processo de institucionalização do sistema partidário cabo-verdiano tem sido a crescente consolidação da dimensão bipartidária. Com efeito, para além do sistema eleitoral, demonstramos que o nível de volatilidade em diferentes eleições, a identificação partidária, a percentagem de votos dos partidos, a idade média dos partidos e a evolução dos direitos políticos e civis, dão indicação de um crescente enraizamento dos dois maiores partidos. Palavras-chave: sistema de partidos; Terceira Vaga; institucionalização dos sistemas partidários; bipartidarismo. This article analyses the relevance of parties and party systems when assessing the “Third Wave” of democratisations. The aim is to describe essential features of the cape verdean party system since the democratic transition, drawing upon Mainwarings’ (1999) framework of analysis. The findings evince that one central aspect in Cape Verdes’ party system institutionalization process is precisely the growing consolidation of its two-party nature. In fact, beyond the electoral system, we reveal that level of volatility in different elections, share of votes, mean age of parties and extension of civil and political rights, all combine for strengthening the roots of the two major parties. Keywords: party system; Third Wave; institutionalization of party systems; two-party. 1 Este artigo é uma versão revista de um dos capítulos da dissertação de mestrado da autora, intitulada “Sistema de Partidos Cabo-Verdiano no Período Democrático: 1991-2006”, ICS- UL. A Autora agradece à Doutora Gláucia Nogueira pelos seus comentários à primeira versão deste artigo. ** Edalina Rodrigues Sanches é aluna de Doutoramento em Ciência Política na Universidade de Lisboa (UL) e colabora em vários projetos de investigação no Instituto de Ciências Sociais/UL. Entre Setembro e Dezembro de 2011 foi Visiting Student na Universidade de Leiden. Os seus principais interesses de investigação são as instituições políticas e os partidos políticos nas sociedades africanas contemporâneas. As suas publicações cobrem tópicos variados sobre o funcionamento dos sistemas partidários em democracias europeias e africanas. 9 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Introdução Os partidos e os sistemas de partidos dizem muito sobre o funcionamento de um sistema político e podem ser um veículo para o estudo dos processos de democratização. Desde a emergência da democracia de massas no século XIX, os partidos têm-se tornando os maiores agentes de representação e de canalização de interesses no interior de uma determinada sociedade (Mainwaring, 1999). A forma como se organizam, a ideologia e as estratégias de competição eleitoral que adoptam, é historicamente contingente (Mair, 1990) e tem implicações directas na natureza de um regime político. A primeira tentativa de tipificação dos sistemas partidários, entre bipartidários e multipartidários, foi conseguida por Duverger (1954), contando apenas o número de partidos em diferentes sistemas políticos. Os efeitos políticos destes dois formatos eram diferenciados. Assim, enquanto a competição entre dois partidos mais ou menos equivalentes em poder, permitiria equacionar governos de partido único, alternância no governo e estratégias eleitorais centristas, a competição entre vários partidos, implicaria a necessidade de coligações para a formação de governo, a fragmentação ideológica é maior logo espera-se maior instabilidade governativa. Se o alcance de algumas destas premissas foi contestado, por outro lado, o critério utilizado por Duverger (1954) – número de partidos – tem estado na base da maioria dos estudos posteriores que se fizeram sobre os sistemas de partidos. Se até meados dos anos 90, as tipologias desenvolvidas pretendiam compreender o funcionamento dos partidos e dos sistemas de partidos nas democracias ocidentais industrializadas, a partir da Terceira Vaga de democratização, com a emergência de novas formas de organização partidária, surgem também novos modelos teóricos (por exemplo, Mainwaring, 1999; Kuenzi e Lambright, 2005 e 2001;Manning, 2005; Bogaards, 2001). Neste artigo, iremos descrever alguns traços do sistema de partidos caboverdiano. Começaremos por fazer uma breve apresentação da literatura sobre os sistemas de partidos. Neste contexto, elegemos a tipologia de Mainwaring (1999), que analisa o processo de institucionalização dos sistemas de partidos, para aplicar ao caso cabo-verdiano. Continuamos com a medição do grau de institucionalização do sistema de partidos em três dimensões (estabilidade/regularidade dos padrões de competição eleitoral, enraizamento dos partidos na sociedade e legitimidade das eleições) e, finalmente, terminamos com as considerações finais. Estado da Arte (…) A party system is precisely the system of interactions resulting from inter-party competition. (Sartori, 1976: 43-4) Os sistemas de partidos podem ser compreendidos como padrões de competição e de cooperação entre os diferentes partidos dentro de um sistema (Ware,1996: 7) e o seu estudo é sobretudo orientado para responder à questão sobre o que determina o número de partidos que competem e são eleitos numa determinada sociedade. O estudo dos partidos e dos sistemas de partidos está associado ao processo de democratização no mundo ocidental. Por este motivo, o seu sentido está associado a características históricas, sociais, económicas e políticas típicas destes países. São estas primeiras tipologias que apresentamos de seguida. As tipologias clássicas de descrição dos sistemas de partidos (Mair, in Le Duc, 10 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 1996) tiveram, de um modo geral, por base o critério do número de partidos. Unicamente com base nesta medida Duverger (1954) distinguiu sistemas bipartidários de sistemas multipartidários, resultando o primeiro tipo em governos de maior estabilidade, enquanto o último se caracterizava por uma maior fragmentação e instabilidade governativa, como aliás, já referimos na introdução1. Ao número de partidos, Rokkan (1968) junta mais dois critérios; a probabilidade de ocorrerem maiorias monopartidárias e a distribuição da minoria em forças partidárias e; identifica três tipos de sistemas de partidos: 1) sistema 1 vs 1+1, no qual dois partidos dominantes coabitam com um terceiro pequeno partido, 2) sistema 1 vs 3+4, existência de um grande partido confrontado com uma aliança formal entre 3-4 pequenos partidos e, 3) sistema multipartidário equilibrado 1 vs 1 vs 1 + 2-3, onde a competição é dominada por três ou mais 1 Esta ideia é também amplamente discutida por Lijphart (1994), quando identifica dois estilos de democracia: a maioritária e a consensual. Assim, enquanto a democracia maioritária favorece a responsabilização e a estabilidade do governo; a democracia consensual envolve secções mais amplas da sociedade no processo de tomada de decisão do governo. 11 partidos com igual peso. Por sua vez, Sartori (1976) propõe uma tipologia em que analisa as interacções entre os partidos dentro de um sistema político. Assim, através dos padrões de competição (medido pelo número de partidos) e da distância ideológica (medida pelo grau de polarização) destaca quatro formatos distintos: bipartidário (pouca distância ideológica com competição limitada), pluralismo moderado (pluralismo limitado, distância ideológica relativamente pequena), pluralismo polarizado (pluralismo extremo ampla distância ideológica) e partido dominante (um partido ganha a maioria dos lugares). Estes modelos foram essencialmente desenvolvidos e testados em democracias consolidadas (europeias), no entanto quando estudamos as democracias de “Terceira Vaga” poderá ser necessário repensar a teoria dos sistemas de partidos existente. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Com efeito, desde que Huntington (1991) assinalou o início da “Terceira Vaga” tornase imperativa a distinção entre os sistemas de partidos em democracias consolidadas e não consolidadas. estão pouco profissionalizados, em muitos casos são veículos personalísticos existindo por isso uma fraca lealdade por parte da própria elite política) (Mainwaring, 1999: 21-39). É este o exercício que nos propõe Mainwaring (1999), que aos critérios de Sartori vem acrescentar, o grau de institucionalização do sistema partidário, que define como o processo pelo qual as práticas e as organizações são tomadas como universalmente legítimas, permitindo que os actores políticos possuam expectativas claras e estáveis sobre o comportamento de outros actores políticos. Este conceito é operacionalizado em quatro componentes: 1) a estabilidade da competição eleitoral (medido através do índice de volatilidade eleitoral), 2) o enraizamento dos partidos na sociedade (medido pela consistência das posições ideológicas, se os votantes estão ligados aos seus partidos e candidatos, se grupos de interesse apoiam os partidos ou são fundados por eles, pela percentagem de votantes que afirmam ter preferência partidária, pela possibilidade de candidatos independentes serem eleitos e pela idade Do ponto de vista teórico, Mainwaring refuta a utilidade de uma teoria das clivagens sociais ou eleitoralista per se, propondo que se analise também, o modo como a relação estado/elites partidárias tem contribuído para a estruturação e reestruturação dos sistemas partidários a partir do topo. Precisamente, a partir deste trabalho, Kuenzi e Lambright (2005) sustentam que, nos sistemas de partidos africanos a estabilidade (medida pela idade média dos partidos) e a competitividade (medida pelo número efectivo de partidos) estão positivamente correlacionadas com as perspectivas de consolidação e qualidade da democracia. Ou seja, nos sistemas de partidos onde os partidos estão fortemente institucionalizados, o processo de consolidação democrática tenderá a ser mais fácil, (Mainwaring, 1998), logo quanto maior a idade média dos partidos maior o grau de estabilidade Quadro 2 – Círculos e mandatos por distrito em Cabo Verde Dimensão 1991 1995 2001 2006 CE MD % CE MD % CE MD % CE MD % 12 25 31,6 16 41 56,9 17 39 54,2 17 40 55,6 Media 5 28 35,4 1 7 9,7 1 9 12,5 1 6 8,3 Grande 2 26 32,9 2 24 33,3 2 24 33,3 2 26 36,1 19 79 100 19 72 100 20 72 100 20 72 100 Pequena Total média dos partidos), 3) a medida em que os cidadãos e outros actores políticos aceitam os partidos e as eleições como meio de determinar quem governa e; 4) a medida em que os partidos estão organizados (na maioria das democracias de Terceira Vaga os partidos têm fracos recursos e democrática, por exemplo. Adicionalmente, Mozaffar e Scarritt (2005) identificaram a existência de elevada volatilidade eleitoral e de baixa fragmentação nos sistemas de partidos africanos. A explicação destes 12 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 fenómenos tinha a ver com o impacto dos legados institucionais dos regimes autoritários no processo de formação e desenvolvimento dos partidos políticos. Perante os constrangimentos colocados pelos regimes autoritários (fraca mobilização eleitoral e escasso pluralismo político, etc.) os actores políticos nas democracias emergentes estabeleceram partidos políticos com vista a manterem a sua base de poder fragmentada e, contavam com as eleições e as clivagens etnopolíticas, para a coordenação estratégica dos votos e dos lugares e para a formação de coligações eleitorais. Como resultado, os sistemas de partidos foram invadidos por um grande número de partidos de curta existência. Assim, os sistemas de partidos apresentariam níveis elevados de volatilidade combinada com uma baixa fragmentação, na medida em que a representação parlamentar continuava a ser um exclusivo dos maiores partidos. Na mesma linha, Bogaards (2004) sustentou que a “Terceira Vaga” de democratização, essencialmente caracterizada pela introdução de eleições multipartidárias concorrenciais, resultou no predomínio dos partidos históricos e, logo, de sistemas de partidos dominantes. Na próxima secção iremos descrever o sistema de partidos cabo-verdiano com base no conceito de institucionalização dos sistemas partidários de Mainwaring (1998 e 1999). Como veremos os dados apontam 13 para uma crescente estabilização do padrão de competição eleitoral bipartidário. Processo de institucionalização do sistema de partidos Desde 1991, os resultados eleitorais traduzem uma sucessão de maiorias com rotação entre os dois maiores partidos, MPD (Movimento para a Democracia) e PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). A contribuir para este fenómeno de bipolarização acresce o facto de, na curta história da democracia caboverdiana, os poderes presidencial e legislativo nunca se terem oposto, criando-se assim verdadeiras maiorias de partido (este facto é salientado em vários estudos veja-se Costa, 2003 e Semedo e cols., 2007). Uma das potenciais explicações deste fenómeno é o tipo de sistema eleitoral. Com efeito, a aplicação do método d’Hondt em círculos de baixa dimensão aumenta a desproporcionalidade no processo de conversão de votos em mandatos e a probabilidade de ocorrência de maiorias artificiais favorecendo assim os maiores partidos (Lijphart, 1994). Como se pode observar no quadro 2, apesar de representarem 85% do total de círculos eleitorais em 2006, os círculos de pequena dimensão elegem pouco mais de metade (55,6%) do total de deputados da Assembleia da República. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Mas este argumento não é suficiente, segundo Semedo e cols. (2007) o fenómeno de bipartidarização tem-se acentuado ao longo do processo de consolidação democrática, porque para além destes aspectos disposicionais, existe uma marcada homogeneidade cultural (ver também Chabal, 2002 e Meyens, 2002) e todo um contexto histórico de mudança de regime que favorece o MPD e o PAICV. O facto de terem protagonizado os dois momentos politicamente mais relevantes da história do país – o primeiro está ligado à abertura política e o segundo à independência – faz com que reúnam as preferências de grande parte do eleitorado (Ibid.). Outra forma de olhar para estes padrões, já o referimos, é avaliar o processo de institucionalização do sistema de partidos nas suas componentes: estabilidade/ regularidade dos padrões de competição eleitoral, enraizamento dos partidos na sociedade e legitimidade das eleições. A quarta componente apontada por Mainwaring (1999) “organização dos partidos” não será aqui analisada uma vez que não dispomos de dados suficientes para o fazer. Pensamos, no entanto, que esta dimensão deverá ser tida em conta em investigações futuras. Estabilidade ou regularidade dos padrões de competição eleitoral Os padrões de competição partidária tendem a ser, relativamente, regulares nas democracias mais consolidadas. Esta característica pode ser medida através do índice de volatilidade eleitoral, que diz respeito à percentagem total de mudança de votos de um partido para outro de uma eleição para outra (Op. Cit. Przeworski, 1975 e Pedersen, 1983 in Mainwaring, 1999: 28)2. Mainwaring (1998) calculou a volatilidade eleitoral de 26 países: 8 democracias industriais avançadas, três casos da Europa do Sul, as três democracias mais antigas na América Latina, quatro casos da Ex-União Soviética e 8 países recentemente democratizados da América Latina. Os resultados revelaram padrões bastante distintos, com as democracias industriais avançadas a apresentarem 2 Exemplo para o cálculo da volatilidade: num sistema com três partidos dominantes se o partido A vencer 38 % numas eleições e 43% na próxima, enquanto o partido B descer de 47% para 27% e o partido C aumentar de 15% para 30% então a V = 5+20+15÷2 = 10%. 14 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 níveis de volatilidade mais baixos, do que os países da Ex-União Soviética e da “Terceira Vaga” de democratização. Ora níveis de volatilidade distintos assumem consequências políticas distintas, nomeadamente, ao nível dos padrões de competição entre os partidos. Onde a volatilidade for mais baixa os resultados eleitorais são mais previsíveis de eleição para eleição. Onde a volatilidade for maior, as expectativas tanto dos eleitores como dos partidos eleitorais, são de maior incerteza (Ibid.: 72). Analisando a volatilidade eleitoral em 30 países africanos, entre 1966-1999, Kuenzi e Lambright (2001: 449), encontram uma volatilidade eleitoral média de 31.4%. No período 1991/1995, que correspondeu às duas legislaturas do MPD, Cabo Verde registou uma volatilidade eleitoral de 7,7% enquanto, por exemplo S. Tomé e Príncipe a proporção era de 24% (Ibid.). 15 No período eleitoral seguinte – 1995/2001 – os cidadãos cabo-verdianos trouxeram o PAICV de volta ao poder e, em consequência disso, a volatilidade eleitoral aumentou 14.6 pontos percentuais (22,3%). Se tivermos em conta unicamente os dois maiores partidos, verificamos que o MPD perde 19.8 pontos percentuais enquanto o PAICV ganha exactamente mais 19.8 pontos percentuais, ou seja a alteração do sentido de voto, poderá deverse maioritariamente a uma volatilidade do comportamento eleitoral entre estes dois partidos. Quanto aos pequenos partidos – PSD (Partido Social Democrata), PRD (Partido da Renovação Democrática) e a coligação ADM (Aliança Democrática para a Mudança) – verifica-se que ganham mais votos, crescendo 1.6 pontos percentuais comparativamente aos resultados de 19953. No período eleitoral 2001/2006 o 3 A comparação dos níveis de volatilidade aponta tendências importantes ao nível da regularidade da competição eleitoral. Uma informação complementar poderia seria dada através da medição das transferências de votos, o que não tem lugar neste artigo mas é sem Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 PAICV mantém-se no poder e os níveis de volatilidade descem para 7,7%. Numa leitura desagregada verifica-se que o PAICV e o MPD registaram aumentos de 4.5 e 4.8 pontos percentuais enquanto os pequenos partidos – PRD, PSD e UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrata) – perdem no total 6 pontos percentuais, piorando a sua performance face a 2001. Em termos globais ficamos com a ideia que a volatilidade média observada (12,6%) é relativamente baixa e que a competição eleitoral está dotada de alguma regularidade. Esta percepção pode ainda ser medida de outra forma, nomeadamente, observando até que ponto os cidadãos votam no mesmo partido em diferentes eleições. No quadro 4 apresentamos a diferença de votos entre as eleições presidenciais e as legislativas para os dois maiores partidos. Assim, relativamente às eleições presidenciais e para efeitos deste cálculo, assume-se a percentagem de voto no candidato apoiado pelo partido faz-se a diferença relativamente aos votos obtidos nas eleições legislativas (Mainwaring, 1999). A título descritivo apresenta-se ainda o posicionamento dos pequenos partidos relativamente aos candidatos presidenciais. dúvida importante. 16 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 No caso cabo-verdiano os votantes têm seguido, sistematicamente, as labels partidárias para votar nas eleições presidenciais. O candidato presidencial apoiado pelo partido do poder vence sempre as eleições presidenciais (ver quadro 4). Observa-se, por outro lado, que enquanto o MPD reforça sempre o número de votos nas eleições presidenciais face às eleições legislativas, mesmo quando sai derrotado (2001 e 2006 o candidato era Carlos Veiga), o PAICV tende a perder votos nas eleições presidenciais face às legislativas (excepção feita às eleições de 2001 ganhas pela margem mínima de 12 votos). Outro aspecto adicional que acentua a bipartidarização do regime é a posição dos pequenos partidos em eleições presidenciais, que tem oscilado uma posição neutra e um apoio aberto aos dois maiores candidatos. Enraizamento dos partidos na sociedade alteração no comportamento do voto estão reflectidas na volatilidade eleitoral. Podemos observar se os partidos têm raízes fortes na sociedade se os cidadãos votam com base na sua filiação partidária, pela percentagem de inquiridos que afirmam ter uma identificação partidária, pela idade média dos partidos e pela percentagem de lugares que obtêm em eleições legislativas (Mainwaring, 1999 e 1998). De acordo com os dados do Afrobarómetro a maioria dos cabo-verdianos inquiridos não assume uma identificação partidária (52,6% em 2002 e 55,5% em 2005). Dos que referem ter uma identificação partidária – 47,4% em 2002 e 44,6% em 2005 – a esmagadora maioria identifica-se com o PAICV e com o MPD, os pequenos partidos recolhem em conjunto 2,1% e 0,7% das preferências, em 2002 e 2005, respectivamente. Este critério pode estar intimamente relacionado com a volatilidade eleitoral, Ainda no que diz respeito à percentagem de inquiridos sem uma identificação partidária, vale a pena salientar que Cabo Verde pois onde existe maior regularidade do voto, ou seja, mais cidadãos que apoiam o mesmo partido de uma eleição para outra, existem poucos eleitores cuja regista uma proporção relativamente inferior à média dos países analisados no Afrobarómetro. Por outro lado, como se pode observar pelo quadro que se 17 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 segue, os indivíduos parecem apresentar simpatias partidárias fixas, já que tendem a votar de acordo com a sua identificação partidária, ainda que aqui estejamos a falar em termos da intenção de voto e não do comportamento voto numa eleição passada. Assim, 85% dos indivíduos que afirmaram identificar-se com o PAICV e com o MPD em 2005, também perspectivam votar nesse partido se as eleições legislativas fossem amanhã, sendo que apenas 15% se apresentaram como indecisos. Podemos ainda medir se os partidos têm raízes estáveis na sociedade utilizando dois indicadores adicionais: percentagem de lugares obtidos por partidos fundados em 1970 nas últimas eleições e idade média dos partidos a vencer 10% dos lugares nas últimas eleições (Mainwaring, 1999 e 1998). Kuenzi e Lambright (2001: 453-457) verificaram que em 13 dos 30 países africanos analisados, entre os quais o Benim e a Zâmbia, nenhum partido fundado em 1970 tinha ganho um lugar nas últimas eleições (em finais da década de 90). Noutros casos, como o Zimbabué e a Namíbia grande parte dos lugares, 98,3% e 73,6%, respectivamente, foram ganhos por um único partido (fundado nos anos 70). Nestes países confirmase a predominância dos partidos que desempenharam um papel de destaque no pré e pós independência. Face ao ano eleitoral considerado para Cabo Verde, 1995, o PAICV ganhou 29% dos lugares, ocupando o 14 lugar no ranking de institucionalização elaborado pelas autoras. Se considerarmos as eleições de 2006, em que o PAICV ganhou 56,9% dos lugares, podemos afirmar que o partido apresenta uma grande capacidade para fixar lealdades ao longo do tempo e que o sistema de partidos está mais institucionalizado do que em 1995. Relativamente ao segundo indicador verifica-se uma grande disparidade entre os países analisados por Kuenzi e Lambright (2001). Em sete casos a idade média dos partidos a vencer 10% dos lugares nas últimas eleições, é superior a 30, em seis casos é superior a 20 e em oito casos é superior a 10. No caso Cabo-verdiano a idade média dos partidos a vencer 10% dos lugares em 2006 é de 33 anos, sendo considerados o PAICV e MPD, fundados respectivamente em 1956 e 1990. Com base nestes dados é possível argumentar que o sistema partidário caboverdiano, se caracteriza pela predominância dos partidos com importância histórica e aos quais a maioria da população se 18 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Dimensão 1991 1995 2006 MD % CE MD % CE MD % CE MD % 12 25 31,6 16 41 56,9 17 39 54,2 17 40 55,6 Media 5 28 35,4 1 7 9,7 1 9 12,5 1 6 8,3 Grande 2 26 32,9 2 24 33,3 2 24 33,3 2 26 36,1 19 79 100 19 72 100 20 72 100 20 72 100 Pequena Total sente identificada. Isto significa que os partidos têm raízes estáveis na sociedade e que por isso, os resultados eleitorais são de algum modo previsíveis ou pelo menos a luta eleitoral está reduzida aos dois principais partidos. 19 2001 CE Confiança/Legitimidade nos partidos e eleições A legitimidade diz respeito às atitudes sobre o regime político enquanto um todo, mas pode estar vinculada a determinadas instituições sociais. Neste caso, diz respeito à aceitação dos partidos e das eleições Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 enquanto meios para determinar quem governa. Os partidos são legítimos na medida em que os actores políticos os consideram essenciais para o funcionamento de um bom regime político. Atitudes positivas poderão indicar que o sistema é mais estável. Onde os partidos forem mais “desacreditados”, mais fácil se torna que políticos “anti-partido” ganhem lugares (Mainwaring: 1998; 76-78). Kuenzi e Lambright (2001: 457) definiram três indicadores para este critério: se a oposição boicotou as eleições, se os vencidos aceitaram a derrota e se as eleições são livres e justas. Assim as eleições podem ser consideradas legítimas se os partidos da oposição participaram livremente nas eleições, se o processo eleitoral não foi marcado por boicotes, se os procedimentos eleitorais foram amplamente aceites e se existiu liberdade de acesso à informação, bem como garantia dos direitos políticos. Relativamente ao primeiro e ao segundo indicadores não se registaram nas quatro eleições legislativas realizadas até ao momento, fenómenos de boicote ou de não-aceitação dos resultados por parte dos partidos cabo-verdianos. No que diz respeito ao terceiro critério de acordo com os relatórios da Freedom House4, o país tem assinalado melhorias no respeito pelas liberdades políticas e civis, atingindo o score máximo (1) nesses dois itens, a partir de 2004. Ainda segundo esta fonte, apesar de se terem registado queixas junto do Supremo Tribunal alegando fraude eleitoral, nomeadamente nas eleições presidenciais de 2001, as mesmas foram arquivadas uma vez que as eleições foram consideradas «livres e justas» e o resultado, definido pela margem de 12 votos, aceite. As opiniões dos eleitores constituem 4 Http://www.freedomhouse.org/modules/mod_ call_dsp_country-fiw.cfm?year=2004&country=2906 outra forma de medir o nível de confiança e de aceitação das instituições políticas. Neste sentido, recorremos, novamente, ao inquérito do Afrobarómetro, utilizando a questão que mede o grau de confiança nas instituições sociais: «Até que ponto confia em cada uma das seguintes (instituições), ou não ouviu falar o suficiente para dar a sua opinião?». Para este critério seleccionámos unicamente as respostas relativamente às instituições políticas. Começamos por utilizar os dados individuais e, posteriormente, iremos construir um índice de confiança nas instituições políticas. Os resultados de 2002, apontam, de um modo global, para uma baixa confiança dos inquiridos em todas as instituições políticas. Com efeito, a grande maioria (cerca de 60%) afirma não confiar «de maneira nenhuma» ou confiar «só um pouco» nas instituições políticas em avaliação. O Partido do Poder (31,2%), os Partidos da Oposição (30,1) e o Presidente da República (28,0%), são as instituições que inspiram menor confiança aos inquiridos. Por outro lado a proporção que “não sabe ou não ouviu o suficiente” para se posicionar na escala de confiança, é relevante ultrapassando a percentagem de inquiridos que confiam “até certo ponto” ou “muito”, em algumas instituições políticas (por exemplo: CNE, AM, e P/A) Os dados de 2005 revelam algumas melhorias nos níveis de confiança. Assim, a maioria dos inquiridos refere confiar «até certo ponto» ou «muito» nas instituições políticas. No entanto, a proporção que não confia «de maneira nenhuma» continua a ser bastante expressiva (20-30%). Se analisarmos os dados em termos agregados, utilizando antes o índice de confiança nas instituições políticas, verificamos 20 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 que há uma tendência de melhoria nas atitudes face às instituições políticas. Enquanto em 2002, cerca de metade dos inquiridos (49,4%) não tinha nenhuma confiança nas instituições políticas em 2005 essa percentagem desce perto de 20 pontos percentuais (29,4%). Outra diferença importante é que a distribuição dos inquiridos pela escala de confiança, é mais heterogénea em 2002 (percentagens variam entre 16% e 49,4%) do que em 2005 (as percentagens variam entre 20,9% e 29,8%). O aumento da confiança nas instituições políticas de 2002 (média = 1,54) para 2005 (média = 1,91) pode estar relacionado com a avaliação da performance dos órgãos de poder político. Fizemos uma correlação entre a “avaliação da performance dos órgãos de poder político” e o “índice de confiança nas instituições políticas” e os resultados demonstraram uma correlação estatisticamente significativa entre as duas dimensões quer em 2002 (p <0,01) quer em 2005 (p <0,01). Assim, do mesmo modo que a confiança nas instituições políticas é reforçada em 2005, também a percepção que os inquiridos têm sobre a performance do governo é mais positiva: a percentagem de inquiridos que consideraram a performance do governo boa em 2005 aumentou 4.3 pontos percentuais. Considerações finais Os resultados obtidos nesta análise apontam para um progressivo processo de institucionalização, a par de uma crescente consolidação da dimensão bipolar do sistema partidário cabo-verdiano. Todos os indicadores que aqui utilizámos – volatilidade legislativa e presidencial, idade dos partidos, percentagem de lugares dos 21 partidos, evolução dos direitos e liberdade políticas e civis, identificação partidária, entre outros – serviram para demonstrar a força dos dois maiores partidos no sistema político cabo-verdiano e a sua evolução desde a transição para a democracia. A tendência tem sido o reforço da bipartidarização. Segundo Sartori (1976) podemos identificar um formato bipartidário sempre que a existência de um terceiro partido, não inibe o governo sem oposição, dos dois maiores partidos, ou seja sempre que não se coloca um quadro de coligação (Sartori, 1976: 143). No contexto cabo-verdiano, desde de 1991, os resultados eleitorais têm sido altamente regulares e previsíveis, a distância entre os dois maiores partidos é curta, no sentido em que permite aos dois principais partidos terem expectativas legítimas de vencer as eleições e de formar governo maioritário. Também por isso o tipo de competição entre os partidos é definido por uma tendência centrípeta (ver também Mair, 1990), ou seja, uma vez que os eleitores se identificam sobretudo com dois partidos as clivagens e estratégias políticas – são mais moderadas, porque os eleitores flutuantes são eles próprios mais moderados (Sartori, 1976: 46). Isto significa que o bipartidarismo funciona quando existe uma fraca variação das posições ideológicas. Os partidos funcionam neste quadro como agências agregadoras que competem entre si no sentido de representarem o maior número de grupos e de interesses possíveis. Reflictamos brevemente sobre estas questões tendo em conta os contextos históricos nos quais os dois maiores partidos foram forjados. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Contexto de fundação dos partidos O PAIGC/CV surgiu, num contexto em que os movimentos de libertação nacional se disseminavam por toda a África Lusófona. Fundado por Amílcar Cabral e outros em 1956, a sua ideologia e prática foram, amplamente, influenciadas pela matriz socialista e revolucionária (Chilcote, 1991: 153). Do ponto de vista das suas bases de apoio o partido assume uma natureza inter-classista agregando o campesinato, o proletariado, as elites pseudo-burguesas ou pequena burguesia e adopta como função principal a organização das camadas sociais em redor de um único motor político, o partido (Gomes, 2002: 40). Neste sentido, o PAICV identificava-se, na sua origem, com o tipo ideal de partido de massas de base nacionalista. Segundo Gunther (2003) estes partidos caracterizam-se por ter uma base alargada de suporte, organizações partidárias extensivas e uma clientela eleitoral constituída por indivíduos que se identificam com um projecto distinto de estado nação. As suas aspirações relacionam-se com o governo do território e a construção do estado independente (Gunther, 2003: 180-181). No entanto, este objectivo foi, historicamente, contingente e logo após a independência o PAICV foi incapaz de manter um discurso unificador. Segundo Furtado (1993) a reforma agrária permitiu ao partido direccionar a sua acção, numa segunda fase, para os trabalhadores rurais tendo assumindo, assim, uma componente mais classista do que anteriormente. O MPD constitui-se inicialmente com o objectivo de fazer oposição ao regime de partido único e de reivindicar a instauração da democracia. Ao contrário do PAICV não resultou de um movimento social, tendo antes, sido fundado por elites políticas que chegaram a assumir postos de confiança no regime autoritário, nomeadamente quadros técnicos superiores que estavam envolvidos na administração do Estado no regime monopartidário mas que, de certa forma, assumiam uma postura reformista dentro do regime (Furtado 1997, in Évora 2004: 93). Ao lado de Carlos Veiga, estavam alguns quadros da mesma geração que os dirigentes do PAICV, mas que sempre tinham recusado colaborar (Teófilo Figueiredo Silva, Manuel Chantre), mas sobretudo quadros de 3545 anos que tinham sido estudantes em Portugal por volta de 1970 (…) dos quais alguns pertenceram mais tarde ao chamado «trotskismo cabo-verdiano», como Manuel Faustino e José Tomas Veiga (Cahen, 1991: 147). Segundo Évora (2004), dificilmente conseguiremos associar o MPD a uma linha ideológica definida, na medida em que tanto nas eleições de 1991, como no programa político de 1997, o partido limitou-se a apresentar as suas propostas de desenvolvimento não se posicionando à esquerda ou à direita do PAICV. Segundo o jornalista João Paulo Guerra, “teoricamente o MPD está mais perto das posições da Igreja Católica do ponto de vista ideológico do que o PAICV, membro da Internacional Socialista. Mas a definição ideológica do MPD é algo de muito vago e complexo. Agrupando toda a oposição ao PAICV, o MPD vai de posições da direita liberal e democrata-cristã aos dissidentes trotskistas do partido” (O Jornal 14/12/1990). Numa entrevista concedida ao jornal 22 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Público (29/07/90), o líder Carlos Veiga referiu: “Temos gente da esquerda à direita. Vamos elaborar um programa credível, alternativo” e identificou, também, alguns princípios e valores defendidos pelo seu partido “democracia pluralista, cultura das liberdades, economia mista em que o papel do sector privado tenha um papel fundamental e o homem é medida de todas as coisas” e demarca-se da esquerda “o que decerto não vamos é para a ideologia marxista. Rejeitamos o dogmatismo”. Estas posições foram continuamente reforçadas, no decorrer da campanha eleitoral para as eleições de 1991: “O MPD não se considera um partido de orientações e, por isso, não assume qualquer filosofia monista sobre a história ou sobre a evolução da sociedade” (Diário de Noticias 6/12/1990). O MPD é, assim, desde a sua origem, um partido de base eleitoralista (Gunther, 2003; Katz e Mair, 1995), semelhante ao ideal tipo catch all. Otto Kirchheimer (1995 e 1966) desenvolveu este conceito para explicar a transformação dos partidos de massas em partidos “agregadores”, nas sociedades ocidentais a partir dos anos 50-60. Com o enfraquecimento das fronteiras sociais, em consequência dos elevados níveis de bem-estar económico e de segurança social, torna-se mais difícil identificar sectores separados do eleitorado e interesses de longo-termo. No caso africano, Manning (2005), salientou que a crescente personificação dos partidos e a perda de autonomia dos governos nacionais face às políticas externas de ajustamento estrutural, impostas pelos países doadores, contribuíam para uniformizar os conteúdos programáticos dos partidos e também para uma a fraca polarização esquerda/direita. Ao mesmo tempo, este novo quadro democrático criou, incentivos para a 23 formação de novos partidos, sendo o aspecto mais singular deste fenómeno, o facto da grande maioria ter surgido a partir do topo da sociedade política, nomeadamente a partir de cisões no interior de outros partidos, o que vai de encontro ao argumento de Manning (2005) e de Mainwaring (1999), segundo os quais os sistemas de partidos, na “Terceira Vaga”, são formatados em grande medida pelo topo da sociedade política, nomeadamente por notáveis/elites políticas. Com efeito, os quatro partidos, que surgiram entre 1992-2000, foram fundados por elites políticas dissidentes. Assim, o PCD e o PRD, fundados respectivamente em 1993 e 2000, resultam de duas crises no interior do MPD e; o PSD, fundado em 1992, resulta de uma cisão no interior da UCID. Apenas o PTS não resultou de uma cisão, tendo sido formado em 2000, por Onésimo Silveira que, no passado, chegou a integrar governos do PAICV. Porém, a entrada em cena de novos partidos eleitorais não parece ter alterado a distribuição do poder já que a fórmula maioritária tem-se reproduzido sem que as estratégias dos pequenos partidos (coligações, candidaturas independentes pelas listas dos dois maiores partidos) surtam efeitos acentuados. ♦♦♦♦♦ A democracia cabo-verdiana emerge no contexto da “Terceira Vaga”, com a introdução de eleições livres concorrenciais em 1991, às quais apenas dois partidos (PAICV e MPD) concorreram. O sistema de partidos pode, contando apenas o número de partido relevantes, ser identificado com o formato bipartidário, pois não existia, à altura uma terceira força política. Ambos os partidos tinham expectativas fortes de vencer as eleições em 1991, mas é o MPD que as vence, com maioria qualificada e Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 forma um governo maioritário. Com um padrão de alternância entre dois partidos apenas e o acesso ao poder virtualmente impossibilitado aos pequenos partidos, pelas regras do sistema eleitoral por um lado, e pelas dificuldades de financiamento que enfrentam por outro lado, a fórmula de governo, no sentido em que foi formulado por Mair (1990), é sistematicamente a mesma: maioritária. Estes factores parecem colocar Cabo Verde ao lado das democracias mais consolidadas onde aparentemente as estruturas de competição são mais regulares e estáveis. No entanto estas estruturas não são condicionadas unicamente por factores mecânicos (como por exemplo a lei eleitoral), mas também psicológicos, uma vez que as preferências de voto são aqui condicionadas pelo facto de as expectativas serem mais previsíveis. Ou seja os eleitores têm conhecimento que a luta pelo poder está concentrada nos dois maiores partidos. Adicionalmente, como demonstramos, o crescente enraizamento dos partidos na sociedade, acontece porque os simpatizantes dos dois maiores partidos apresentam lealdades relativamente fixas e estáveis e têm atitudes cada vez mais positivas sobre as instituições políticas. 24 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Referências BOGAARDS, Matthijs (2004). “Counting Parties and identifying dominant party systems in Africa”, European Journal of Political Research, n. º 43, pp. 173-197. CAHEN, Michel (1991). “Arquipélagos da alternância: A vitória da oposição nas ilhas de Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe”, Revista Internacional de Estudos Africanos, Vol. 14-15, pp. 113-154. GUNTER, Richard; DIAMOND, Larry (2003). “Species of political parties: a new typology”, Party Politics, Vol. 9 (2), pp. 167-199. KATZ, Richard; Mair, Peter (eds.) (1994). 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Discute a produção de políticas públicas e a regulação da comunicação social, para concluir, apesar de todos os mecanismos normativos, por uma ausência de regulação efectiva. A desregulamentação prática atinge a comunicação social de várias formas: a regulação sectorial, embora existindo normativamente, não funciona porque o Conselho de Comunicação Social – enquanto entidade reguladora – está longe de cumprir as suas atribuições e não tem, ao seu dispor, os instrumentos de que precisa para ser um regulador forte; a lei, muitas vezes, não passa de ‘letra morta’, não produzindo efeitos na sociedade; a não existência de carteira profissional torna o jornalismo em ‘terra de ninguém’ e, por falta de qualificação e preparação de vários profissionais, deparamos com um jornalismo comprometido, amorfo, que não contesta e pouco contribui para a construção da democracia cabo-verdiana. Palavras-Chave: políticas de comunicação; liberdade de imprensa; comunicação social; democracia e jornalismo. This article aims to contribute to the debate about the Constitutional revision in Cape Verde, based on three texts previously published in the media. This article discusses the policy process and media regulation and it concludes that, despite numerous regulatory mechanisms, there is no effective regulation in the country. The practical non-regulation of the media has several causes and consequences. The sectorial media regulation, although inscribed in the law, does not work because the Council for the Media as a media regulatory body does not fulfill its obligations once it does not have the indispensable tolls to become a strong regulator. The law is dead letter, producing no social effects. Furthermore, in Cape Verde there is no professional accreditation which means that journalism has no clear professional frontiers and it is open to unqualified professionals. As a result, there is no journalistic independence and the journalistic output is uncritical and unable to make a substantial contribution to the democratic development.. Keywords: media policy; press freedom; mass media; democracy and journalism. 1 Silvino Lopes Évora é professor de Jornalismo da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde e de Comunicação Estratégica da Universidade de Cabo Verde. Doutorado e Mestre em Ciências da Comunicação, Licenciado em Jornalismo e Pós-graduado em Jornalismo Judiciário. É jornalista, escritor e investigador. 29 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 1. Políticas de Comunicação e Serviço Público: da protecção jurídica às práticas Com a chegada da democracia em 1991, uma das primeiras medidas que afectou a comunicação social é a aprovação da Constituição da República de Cabo Verde, em 1992, que chegou mesmo antes da legislação ordinária para o sector, já que a lei da rádio foi aprovada em 1993, as restantes leis sectoriais no Verão de 1998 e o Regulamento para a Carteira Profissional dos Jornalistas em 2004. Portanto, a Constituição é um dos primeiros ganhos jurídicos que o país conheceu no processo de implementação da sua democracia. Sendo o principal instrumento a partir do qual emana as grandes referências da organização e da orientação social, ela deve compreender as reais necessidades de um país, de forma a dar resposta ao seu processo de desenvolvimento e, muitas vezes, contribuir para a emancipação ideológica dos cidadãos. Miranda considera, assim, a Constituição como a “Lei fundamental, Lei das leis, revela-se mais do que isso. Vem a ser a expressão imediata dos valores jurídicos básicos acolhidos ou dominantes na comunidade política, a sede da ideia de Direito nela triunfante, o quadro de referência do poder político que se pretende ao serviço desta ideia, o instrumento último de reivindicação de segurança dos cidadãos frente ao poder. E, radicada na soberania do Estado, torna-se também ponte entre a sua ordem interna e a ordem internacional” (1996: 67). Em Cabo Verde, a Constituição da República constitui um dos principais alicerces da nossa democracia, uma vez que é nela que se encontram protegidos os fundamentais direitos da pessoa humana. Por isso, a sua elaboração constitui um dos principais momentos de produção de políticas para a organização da sociedade. Lembremos que os pós-positivistas já tinham dito que, no processo de definição de políticas públicas (public policy process), mais do que actores nacionais que lutam para alcançarem interesses específicos, também entram em linha de conta a interacção de valores, as normas que estabelecem a organização de uma determinada sociedade e as diferentes formas numa fase muito mais avançada do desenvolvimento do sector da comunicação social em Cabo Verde. Contrário à alienação, é preciso que o Estado invista no sector da comunicação social, no sentido de melhorar a sua qualidade. É que, se o Estado não conseguir fazer isso, ninguém ainda mostrou que consegue. O investimento aqui passa por várias intervenções: a) dotar os meios de comunicação social de instrumentos materiais para cumprir as suas obrigações; b) trabalhar na autonomização dos meios de comunicação, cortando com o circuito interventivo dos Governos através de nomeação do Conselho de Administração das empresas estatais da área, seguindo-se-lhe toda a cadeia de comandos; c) promover o profissionalismo dos jornalistas, através de formações generalizadas que elevam o nível da classe; d) fazer a necessária reestruturação do sector que, em quase 20 anos, ninguém conseguiu fazer; e) estabelecer o Contrato de Concessão de Serviço Público – previsto –, definindo a engenharia financeira envolvente e as atribuições dos órgãos de serviço público; f) dar eficácia à fiscalização das atribuições dos órgãos de serviço público de forma a que alcancem os objectivos definidos (se olharmos para a Constituição, a Lei e o que tem sido a TCV, notamos que, desde 1992, ela vem operando numa ‘inconstitucionalidade por omissão’, entrando numa ‘ilegalidade por omissão’ a partir de 1998, com a publicação da Lei da Televisão. Isto porque, a estação pública 30 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 tem estado longe de alcançar os padrões de qualidade que a Constituição e a Lei determinam como estruturas orientadoras do seu funcionamento); g) promover a Carteira Profissional dos Jornalistas, definindo a política de acesso à profissão, privilegiando vectores como o mérito e a formação; h) ancorar a regulação por via da definição do padrão de qualidade através dos órgãos de serviço público à regulação institucionalizada, promovendo a regulação independente e estimulando a promoção e o desenvolvimento de mecanismos autoreguladores, no sentido de se encontrar um equilíbrio entre a liberdade de imprensa e a responsabilidade social dos media. Tudo isso são caminhos, possibilidades e, diríamos, oportunidades para que a sociedade possa desenvolver a crítica, promover o pensamento divergente, apostar na diversidade e encarar a comunicação social como chave para a solidificação do sistema democrático. Nestas questões, não se deve ficar pelos discursos. Que a comunicação social é um factor de reforço da democracia, já se ouve desde o início do percurso da nossa democracia. É preciso que ela seja transformada nesse elemento intrínseco ao desenvolvimento do sistema democrático. Em Cabo Verde, é preciso encarar a comunicação social como uma oportunidade de desenvolver o pensamento, as consciências e a própria democracia, potenciando o próprio desenvolvimento do país. Não conhecemos países em que se conheceu grandes avanços sem que haja avanços na mentalidade. Neste sentido, a comunicação social figura-se como um importante elemento da modernidade democrática, capaz de contribuir para, e promover, essa abertura de mentalidade. Recordemos, portanto, que, depois da TVEC, veio a TNCV e, em 1992, por 31 imposição constitucional, ficou assente que o Estado asseguraria um serviço público de radiodifusão e de radiotelevisão de qualidade, sendo que, para isso, teria de celebrar um contrato de concessão de serviço público com a empresa gestora dos dois órgãos, neste caso, a RTC. Ora, de 1992 até hoje, contam-se 17 anos e nesse meio tempo não há contrato de concessão, não há qualidade no serviço público e não há forma de os cidadãos terem melhor televisão nacional, sendo que, ainda que os privados tenham entrado, não conseguiram agitar as águas, no sentido de fazer ‘mossa’ à televisão do Estado. E ficamos nessa ‘inconstitucionalidade por omissão’ que as Ciências Jurídicas explicam muito bem. 2. Regulação Sectorial da Comunicação Social Legislar sobre a Constituição da República constitui um dos momentos políticos mais importantes de um país, na medida em que, em quase todos os países modernos, decidiu-se consagrar a forma da organização institucional em Constituições. Portanto, por consagrar matérias ambivalentes, que procuram cobrir todas as preocupações de uma sociedade, ainda que de forma genérica, o ideal seria que a sociedade pudesse participar no debate sobre as matérias protegidas na Constituição. Neste ponto, iremos debater a regulação da comunicação social, um sector espezinhado durante o Colonialismo, amargurado durante o Partido Único e sofrido durante a Segunda República. Tendo em conta que o Direito de Informação – o de informar e de se informar – só faz sentido porque existe o Direito à Informação dos cidadãos, a qualidade da comunicação social devia ser a preocupação de toda uma sociedade democrática. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Em vários países ocidentais, tem sido implementado um processo de complementaridade na regulação do sector da comunicação social, em que a auto-regulação assume uma natureza complementar à hetero-regulação. Esta consiste numa regulação com sede nos poderes públicos, enquanto que aquela se trata de um sistema de regulação em que os directos envolventes na produção da matéria noticiosa se assumem como actores principais na regulação da sua própria actividade profissional. Portanto, por agora, não vamos nos debruçar muito sobre as conceptualizações teóricos das duas dimensões da regulação. Entretanto, importa realçar que a regulação passa, antes de mais, por criar estruturas, organismos e condições para disciplinar, organizar e fiscalizar o exercício da profissão e a organização do sector mediático. Portanto, pode haver duas naturezas de regulação com sede no poder político: a sectorial, que recai sobre um determinado domínio de actividade; e a profissional, que procura disciplinar uma profissão. Antes de avançar, devemos lembrar que o uso da expressão regulação, neste caso, tem em vista a hetero-regulação, deixando de fora todos os mecanismos autoreguladores. Posto isto, é possível verificar que, em Cabo Verde, a regulação sectorial tem sido um grande fracasso. Criou-se um Conselho de Comunicação Social no início da nossa caminhada democrática, composto por 9 membros, cuja presidência foi entregue a um magistrado judicial, que, necessariamente, terá que ser indicado pelo Conselho Superior da Magistratura. Se formos à Lei da Comunicação Social (B.O. n.º 21, I Série), notaremos que o Conselho de Comunicação Social foi pensado como um órgão independente, que funciona junto da Assembleia Nacional. O seu peso parlamentar é visível já que, como a própria lei consigna, cabe à Assembleia Nacional eleger 3 dos nove membros que compõem o órgão. Também vale a pena lembrar que a substituição dos membros do Conselho da Comunicação Social merece a aprovação de dois terços dos deputados em efectividades das suas funções. Portanto, esse pormenor, como iremos ver, é muito importante. Devemos realçar que, como atribuições do Conselho de Comunicação Social, a lei estabelece: a) assegurar o exercício do direito à informação e à liberdade de informação; b) salvaguardar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião nos meios de informação; c) providenciar pela salvaguarda da isenção, rigor e objectividade da informação; d) garantir o exercício efectivo dos direitos de antena, de resposta e de réplica política; e) contribuir para a garantia da independência e do pluralismo dos meios de comunicação social do Estado; f) promover a adopção pelos meios de comunicação social de critérios jornalísticos ou de programação que respeitem os direitos individuais; g) garantir a independência do jornalista e o respeito pela ética e pela deontologia profissional. Ora, depois de onze anos da aprovação da Lei da Comunicação Social e quase vinte anos sobre a criação do Conselho da Comunicação Social, o que é que temos? Quase nada. A regulação sectorial para a comunicação social em Cabo Verde é praticamente inexistente. O Conselho da Comunicação Social apenas emite alguns pareceres quando são nomeados os directores dos órgãos públicos e pouco mais. Pelo menos, é esse o sentimento dos profissionais da comunicação social e, quase sempre, a sociedade passa ao lado da sua existência. Portanto, tendo sob a sua alçada uma matéria tão importante como 32 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 a regulação dos conteúdos da comunicação social, era mais do que necessário que o Conselho de Comunicação Social fosse um órgão actuante na sociedade. Esta sentiria que tinha uma instituição intermediária à qual poderia recorrer, não esperando para que os casos ganhem figurinos incriminatórios, para recorrer à tábua judicial. O grande problema é que o Conselho de Comunicação Social possui pouca força institucional e as suas decisões não têm natureza vinculativa, podendo ser valoradas ou não, já que não passam de recomendações. Em algumas matérias específicas, há a possibilidade desse órgão regulador aplicar contraordenações em caso de faltas graves aos deveres profissionais, mas não tem recorrido a esse instrumento. Por outro lado, também há a questão da validade temporal dos mandatos. A este respeito, devemos lembrar que o mandato dos membros do Conselho de Comunicação Social é válido por um período de quatro anos e a actual composição já vai para o triplo do tempo estipulado pela lei, justamente por causa da lei ter estabelecido que é preciso dois terços de deputados consensualizados para votarem favoravelmente a uma proposta. Ora, isso significaria duas coisas: que um partido ganhasse as legislativas com maioria qualificada, como aconteceu uma vez com o MpD, dispondo dos dois terços de deputados impostos pela lei; ou, que haja entendimento entre as duas bancadas parlamentares maioritárias (ou não! Basta haver dois terços de deputados dispostos a viabilizarem uma proposta para a composição do Conselho de Comunicação Social. Mas, com a natureza dos partidos que temos, até agora é o MpD e o PAICV que asseguram um número de deputados suficiente para se chegar a esse limiar de dois terços de parlamentares). Portanto, para ambas as 33 situações, as soluções são difíceis de serem encontradas: tanto é difícil haver uma maioria qualificada, como também difícil será haver um entendimento entre o MpD e o PAICV no sentido de substituírem os membros de um órgão como o Conselho de Comunicação Social ou qualquer outro semelhante, cuja natureza jurídica é idêntica. Tendo em conta a idiossincrasia do povo cabo-verdiano, muito voltado à desconfiança para com aquele que pensa diferente, conseguir consensos tem sido muito complicado. Neste sentido, temos um Conselho de Comunicação Social que não funciona e, como os partidos não se entendem, continua a não funcionar. Fala-se, depois, na falta de qualidade dos órgãos de comunicação social em Cabo Verde. Mas, haverá qualidade nas políticas de comunicação em Cabo Verde? Está-se a pensar efectivamente na dignificação da comunicação social, quando temos um órgão fundamental para regular o sector desfalcado, indo para dez anos de caducidade do mandato, sem que ninguém mexa uma palha para mudar esse estado de coisas? A revisão da Constituição da República de Cabo Verde pode ser um momento importante para alterar o estado de coisas, já que se está a ignorar a formação das mentes, a informação dos cidadãos e, para resumir, a constituição do mosaico cognitivo do cidadão cabo-verdiano. Em suma, é coisificar o processo de aprendizagem das crianças, a maturação dos conhecimentos dos jovens e adolescentes e a solidificação das estruturas cognitivas e argumentativas dos adultos, transformando-os em preocupações menores da sociedade. A Constituição impõe como regulador do sector mediático o Conselho da Comunicação Social, mas é preciso que ela seja mudada para se poder mudar o figurino da regulação da comunicação social. Impor, constitucionalmente, o Conselho da Comunicação Social ou qualquer Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 outra entidade de natureza análoga será, sempre, atrelar o sector da comunicação social a um figurino que não funciona e ao qual não se pode fugir. Pensamos que a resolução de um problema dessa natureza não passa unicamente por mudar a nomenclatura da instituição. Passará por criar mecanismos para que as instituições funcionem, independentemente do nome que pode constituir a sua designação. Portanto, há uma necessidade fundamental de se alterar o quadro constitucional da regulação mediática, criando uma entidade independente do Governo e dos partidos, que zele efectivamente pela melhoria do trabalho da comunicação social, impondo exigências, defendendo os direitos dos jornalistas, protegendo as esferas privadas, assegurando a realização do direito à liberdade de imprensa e promovendo a comunicação social no processo de consolidação de uma democracia que, quase 20 anos depois da sua chegada, ainda tenta dar os seus primeiros passos, de uma forma algo tímida. Para isso, a autoridade reguladora tem que ter mais poderes, não podendo se confinar apenas a um órgão decorativo, cuja capacidade de intervenção se cinja a meras advertências. É preciso ir mais longe na regulação do sector da comunicação social em Cabo Verde. Na comunicação social, deve haver mais povo e menos partidos; mais sociedade e menos política; mais independência e menos subordinação; mais informação de interesse público e menos informação de interesse político. A democracia cabo-verdiana tem um grande desafio à sua frente: é os partidos, quando chegarem ao Governo, fazer o seu trabalho e deixar a comunicação social livre para contribuir no processo de construção democrática. Os profissionais da comunicação têm que ousar mais e se sentirem mais comprometidos com o seu dever profissional. Por fim, deve haver uma regulação mais eficiente. Será que os membros das entidades reguladoras para a comunicação social que se venha a criar em Cabo Verde têm que ser profissionalizados? É uma possibilidade. Quando profissionalizamos alguém, estamos em condições de exigir responsabilidades. Um profissional, normalmente, sentese obrigado a mostrar trabalho feito e aquele que é digno da profissão e da posição que ocupa na sociedade procura responder às suas exigências para que tenha a consciência de que o dinheiro que a sociedade lhe paga é revertido em forma de trabalho prestado. Agora, quando pomos pessoas em lugares fundamentais para a consolidação do sistema democrático a prestarem trabalhos com bases em colaborações cívicas que pontualmente acontecem é claro que teremos sempre deficiências. Entre ‘prestar favores’, mediante avenças pouco significativas, e apresentar resultado no trabalho para o qual efectivamente alguém é contratado, a primeira sai a perder. Portanto, no actual esquema de funcionamento do Conselho de Comunicação Social, os seus membros são apenas colaboradores, que têm as suas atribuições profissionais em outros sítios. O Conselho de Comunicação Social acaba por ficar para trás e, parecendo que não, a sociedade cabo-verdiana tem muito mais a perder do que se imagina. A verdade é que muitos dizem que a comunicação social está atrasada, criticam a televisão nacional e outros órgãos de informação do país, mas não procuram as raízes do problema. Enquanto continuarmos a secundarizar a comunicação social, continuaremos a ter uma imprensa amorfa, que não contribui grande coisa para a criação do pensamento divergente na sociedade cabo-verdiana. E pensamento divergente aqui não é poder ser do PAICV ou do MpD. Esta é uma forma 34 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 maniqueísta de organização social que nós criámos depois da nossa transição para o sistema democrático e, sem percebermos bem, criamos problemas graves na nossa concepção do modelo democrático que nos deixa atrelados a um ou outro partido, não podendo estar ‘soltos’ entre as duas ‘carruagens’ porque pode-se correr sérios riscos de se ser esmagado. A concepção do modelo democrático desenhado em Cabo Verde resulta da definição de políticas para os sectores chaves para o aprofundamento da democracia, como a comunicação social. Por isso, todos devem lutar e exigir políticas consentâneas com as ambições de uma sociedade democrática. Essas políticas e as condições ideais que as democracias possam nos proporcionar permitem-nos ser nós, seres humanos, livres e com independência de pensamento, e não partidos, cooptados a determinadas amarras de interesses. 3. Regulação Profissional da Comunicação Social Se a regulação sectorial da comunicação social é importante, havendo a necessidade de se assegurar entidades autónomas capazes de garantir a independência dos órgãos de comunicação social e assegurar a qualidade dos conteúdos que chegam ao espaço público, a verdade é que essa não é a única porta pela qual o problema da falta de qualidade nos órgãos de imprensa pode ser atacado. A regulação profissional também é muito importante nesta matéria e, para situarmos melhor o nosso contexto de debate, deitaremos mão a algumas concepções teóricas, que muito nos servem para ajudar a explicar a profissionalização do jornalismo. A Sociologia das Profissões dá-nos contributos importantes para compreender 35 o estabelecimento de algumas profissões, entre elas a do jornalismo. A tese de doutoramento de Fidalgo (2005), jornalista e docente da Universidade do Minho, vai ‘pescar olhos’ a essas concepções teoréticas para enquadrar a profissão de jornalismo, evidenciando as suas especificidades e, inclusive dificuldades de afirmação, em comparação com as profissões estabelecidas, como as de médico, advogado, engenheiro ou enfermeiro. O princípio de diferenciação é um daqueles à qual se deita mão para explicar a peculiaridade do jornalismo enquanto profissão e, neste caso, Fidalgo (2005) recorre a Bourdieu que concebe o ‘mundo social’ como um espaço (a várias dimensões), construído na base de princípios de diferenciação. Desta forma, a emergência do jornalismo como uma profissão resulta-se de um esforço no sentido de definir uma actividade profissional com características que lhe são próprias, capazes de lhe tornar singular, diferenciando-a das demais categorias de actividades. Como diz Fidalgo (2005), esse procedimento começou por explorar as vertentes negativas, tentando distinguir aquilo que era jornalismo do que não era: “nem uma tribuna de propaganda política e proselitismo partidário, nem o espaço mais alargado (em termos de difusão pública) para os escritores interessados em publicar as suas crónicas ou os fascículos dos seus romances, nem a tribuna pessoal de quem queria promover-se e à sua carreira, nem o registo burocrático das singelas informações sobre a cotação dos produtos no mercado e do seu trânsito comercial. Tratava-se, aqui, essencialmente de definir uma ‘fronteira’ – termo que Ruellan (1997) vai buscar à geografia humana e que considera bastante útil no contexto da sociologia dos grupos profissionais, ilustrando a ocupação, por um determinado grupo, de um terreno virgem que se vai Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ‘demarcando’ até à linha separadora de outros terrenos/actividades vizinhas, mas também concorrentes” (Fidalgo, 2005: 67). Desta forma, é possível verificar que o surgimento do jornalismo enquanto profissão teve como princípio básico definir o que é jornalismo e o que não é, o que diferencia o jornalismo dos territórios profissionais ou ocupacionais vizinhos. Para isso, tinha que se identificar o que o jornalismo tem de genuíno, que pode constituir a sua solidez profissional. Ora, perguntaria: será que, em Cabo Verde, já se fez esse distanciamento do jornalismo em relação a outras profissões ou ainda temos uma amálgama de coisas ligadas à escrita que cuja fronteira ainda não foi bem definida? Iniciámos com o regime de Partido Único, depois da independência nacional, e em certos sectores de actividade demos continuidade à forma de procedimento perdurante no sistema colonial. Assim como não se trabalhou no sentido de se empreender uma ‘ruptura profissional no jornalismo’ do colonialismo para a independência, também do Partido Único para o multipartidarismo, as coisas foram deixadas ir ao sabor do vento. É claro que, da parte dos jornalistas, houve novas atitudes, mas não conseguiram correspondências com a natureza formal do regime, não chegando a estar a par daquilo que se exigia com tudo o que a isso se associava. Não se trata de culpabilizar eminentemente a classe dos jornalistas, mas o processo de democratização do país teve os seus problemas e a falta de cultura democrática no seio dos partidos fez com que houvesse algum percurso pouco abonatório para a afirmação da profissão de jornalismo, como a multiplicação de processos judiciais contra os profissionais do sector. Se, nos primórdios do jornalismo, a definição profissional de jornalista passava, antes, por saber o que era jornalismo e o que não era, em Cabo Verde, a regulação profissional do sector da comunicação social impõe que se procure saber exactamente quem é jornalista e quem não o é. Em poucos países de Desenvolvimento Médio, democráticos e organizados em Estados de Direito, a profissão do jornalismo está tão ‘abandalhada’ como se verifica em Cabo Verde. Qualquer um que decide escrevinhar o seu texto é considerado de jornalista, independentemente da sua preparação, formação académica, experiência profissional ou mesmo capacidade para distinguir o que é um texto jornalístico – essencialmente informativo, de tendência neutra, com possibilidade de fazer análise a partir de correlação de informações e de factos – do que é um texto opinativo, bastante subjectivo, por vezes nada factual, tendenciosa certas vezes e que não está ancorada à obrigatoriedade de informar as pessoas, podendo estar voltada para a defesa de pontos de vista, objectivos ideológicos, pessoais, políticos ou de outra ordem. A classe jornalística do ‘Cabo Verde independente’ começou a compor-se depois da independência nacional, quando grande parte da população nacional tinha fraca instrução académica. Portanto, não era só em jornalismo que se encontrava pessoas com formação deficiente, se for comparada com a exigência do cargo. Durante o Partido Único, em algumas situações – com salvo o respeito para alguns profissionais competentes que entraram nos órgãos e fizeram uma carreira de louvar – o sector do jornalismo não passava de um local de ‘desterro’ de profissionais inabilitados para fazer tudo o resto. Quando alguém não sabia fazer mais nada e era complacente com as investidas do poder instalado, era-se 36 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ‘despromovido’ para o jornalismo. Ou seja, o jornalismo começou por ser uma espécie de FAIMO, uma grande Frente de Alta Intensidade de Mão-de-Obra, que fez com que os órgãos entrassem para a democracia com um excesso de gordura em termos de recursos humanos, padecendo de duas situações conflituantes: excesso de pessoal e, ao mesmo tempo, falta de pessoal produtivo. A esses problemas, veio juntar-se mais o do aumento do pessoal, quando um novo partido chegou ao poder e uma avalanche de pessoas voltaram a entrar para o jornalismo: daí os anos 90 terem sido conflituantes entre a própria classe, já que havia uma discussão enorme entre os profissionais com formação e os profissionais sem a desejável formação. Hoje parece que esse problema foi ultrapassado, mas ainda não. É basta se começar a falar com profissionais formados para se perceber que se sentem incomodados quando vêem pessoas sem a formação adequada na área à frente dos órgãos. Portanto, uma das soluções é pegar na situação que temos, em Cabo Verde, e construir uma saída, que passa por disciplinar a profissão do jornalismo: ou seja, a tal regulação profissional de que falamos. Ela tem como base a atribuição da Carteira Profissional, coisa que teima em não acontecer. Em 2004, o Governo criou o Regulamento para o funcionamento da Comissão de Carteira Profissional do Jornalista. Sendo a comunicação social tomada como o ‘parente pobre’ da nossa sociedade, facilmente decidiu-se transferir a magistrada que já tinha sido destacada para presidir a Comissão da Carteira para a Comissão Nacional das Eleições, deixando a primeira desfalcada. Resolveu-se o problema, recentemente, com a eleição de um novo representante e inclusive a Comissão de Carteira Profissional já tem instalação na Casa da Imprensa, mesmo ao lado da Secretaria da Associação dos 37 Jornalistas de Cabo Verde. Mas, até ainda, não se vê nenhuma carteira profissional atribuída. Ora, isso não deve continuar assim. O jornalismo não deve continuar a ser a ‘terra de ninguém’. Há que dar alguma protecção e dignidade à classe dos jornalistas porque, caso contrário, o avanço harmonioso da nossa sociedade fica adiado. Não há qualquer dúvida que, numa democracia em que a comunicação social funciona de forma indigna, a própria democracia está condenada à indignidade. A verdade é que a imprensa livre e funcional é o oxigénio de qualquer democracia que quer ser plural e funcional. Não podemos deixar a comunicação social na rua da amargura, transformando-a em ‘terra de ninguém’, onde qualquer um pode entrar e operar sem prestar contas a ninguém. Educar a ‘composição psíquica’ das pessoas é uma atribuição demasiado importante para ser deixado ao critério de ‘quem sabe mais conta melhor’. Ruellan (1997) – citado por Fidalgo (2005) – ajuda-nos a determinar quatro momentos de evolução da profissão do jornalismo. O autor estudou especificamente o caso da França, mas o seu modelo aplicase em grande parte dos países da Europa Ocidental, cuja trajectória da imprensa teve as suas especificidades de país para país, mas também tem os seus pontos concordantes. 1. Os primórdios da actividade, que antecedeu o surgimento da imprensa industrial – que ocorre a partir dos meados do século XIX; 2. O período da capitalização dos efeitos da industrialização, que provou incremento da actividade económica dos media, marcado essencialmente pelo surgimento da imprensa privada; Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 3. O lapso de tempo que mediou as duas Grandes Guerras, em que houve ganhos significativos a nível da definição de um quadro legal e institucional para a profissão; 4. E o período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, enquanto etapa de consolidação dos ganhos anteriores. No entanto, quanto a nós, é momento de perguntar, em que período a nossa imprensa se encontra, quais são os ganhos que ela já conheceu, onde é que pretendemos chegar com ela, o que teria que ser feito para chegarmos à meta desejada e quanto tempo mais temos que esperar para ver a comunicação social a dar um passo significativo? Num país onde não há carteira profissional, onde todos entram arbitrariamente na profissão, onde os conselhos de redacção não funcionam, onde praticamente não há regulação institucional, onde muitas vezes a lei não passa de ‘letra morta’, onde não há uma política séria para o sector da comunicação social, quem conseguir responder a todas as questões que acabamos de levantar, praticamente, encontra a chave para o desenvolvimento do sector da comunicação social em Cabo Verde. 4. Síntese conclusiva A comunicação social é uma das principais áreas da sociedade na qual se pode investir para a solidificação do sistema democrático. Trabalhando a formação das consciências, ela ajuda a criar condições para a abertura da mentalidade e para a emancipação ideológica dos cidadãos. Para isso, necessita de estar ancorada na liberdade de imprensa, que não se deve ficar pela sua acepção jurídico-formal, mas deve também manifestar-se de forma material. Só havendo uma liberdade efectiva no sector da comunicação social se cria condições para que o jornalismo seja um elemento muito importante na promoção da construção democrática do país. Por outro lado, as políticas de comunicação são bastante importantes, na medida em que, da forma como elas forem definidas e funcionarem, poderão contribuir para que haja uma maior ou menor esfera para a prática da liberdade de imprensa e de um jornalismo que, efectivamente, pede conta aos poderes públicos, estando ao serviço dos cidadãos, do bem comum, da sociedade e das suas aspirações colectivas. O panorama dos media cabo-verdianos é marcado por um gritante fracasso da regulação: a auto-regulação é incipiente, os dispositivos da regulação sectorial são ineficazes e a ausência da regulação profissional e, por conseguinte, da atribuição da carteira profissional têm transformado o jornalismo numa ‘profissão a céu aberto’ ou ‘terra de ninguém’, onde qualquer um pode escrever e assinar como jornalista sem que para isso tenha que prestar contas à classe, à sociedade ou ao próprio país. E assim a democracia continua a reclamar de uma comunicação social mais interventiva, de um jornalismo menos amorfo, de uma liberdade de imprensa efectivada e uma regulação, quer em termos formais, profissionais ou sectoriais. 38 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Referências BALLE, Francis (1987). Et si la Presse n’Existait Pas?, Paris : Jean-Claude Lattés. DAHL, Robert (1989). Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press. FIDALGO, Joaquim (2005). “O Lugar da Ética e da Auto-Regulação na Identidade Profissional dos Jornalistas” (Tese de Doutoramento), Braga, Universidade do Minho. JOHN, Peter (1998). Analysing Public Policy. London and New York: Pinter. MIRANDA, Jorge (1996). Manual de Direito Constitucional – Tomo II. Coimbra: Coimbra Editora. RHODES, R. A. W. (1997). Understanding governance : Policy networks, governance, reflexivity and accountability. Buckingham, Open University Press. WOLTON, Dominique (1993). Eloge du Grand Public – Une théorie critique de la télévision. Paris : Flammarion. 39 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 40 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 CIDADE VELHA, PATRIMÓNIO MUNDIAL E MEDIDAS ARQUITECTÓNICAS Flávia Lenira Gomes Marques dos Santos1 Resumo/Abstract Trabalhando a candidatura de Cidade Velha a Património Mundial e as medidas arquitectónicas, analisa-se a forma como diferentes actores encararam a candidatura de Cidade Velha a património mundial, tendo em conta as suas expectativas, e como os moradores se posicionam perante as medidas arquitectónicas impostas, que estão sendo geradoras de tensões e conflitos. Palavras-chave: património cultural; candidatura a património mundial; medidas arquitectónicas; turismo. Working the application of the Cidade Velha to be a World Patrimony and the architecture measures behind, the way how different actors perceived the application of the Cidade Velha as a World Patrimony is analyzed taking into account their expectations and how the residents are positioned to the architectural measures imposed, which are generating some tensions and conflicts. Keywords: cultural patrimony; application for a world patrimony; architectural measures; tourism. 1 Flávia Marques dos Santos é Licenciada em Sociologia pela Universidade de Évora (2002), com PósGraduação em Políticas e Práticas do Turismo pela Universidade de Évora (2003), Mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Cabo Verde (2009) e doutoranda em Ciências Sociais (UNICV). No âmbito do Mestrado desenvolveu um trabalho intitulado “A Construção patrimonial no contexto da expansão turística na Cidade Velha, Cabo Verde”. Actualmente é redactora da Assembleia Nacional de Cabo Verde e docente na Universidade de Cabo Verde a tempo parcial. As áreas de investigação a que se tem dedicado prendem-se com identidade, património, turismo, territorialidade, conflitos socioambientais. 41 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Situada a 12 km da Cidade da Praia, Cidade Velha1 aparece em diferentes brochuras de promoção turística, em discursos oficiais e no documento de candidatura a Património Mundial, junto à UNESCO, como sendo a primeira capital eclesiástica e civil de Cabo Verde, sede do primeiro bispado da Costa Ocidental Africana e a primeira construída, em 1462, pelos europeus na África Subsaariana. Dessa época sobreviveram, entre outras ruínas, algumas construções históricas, entre elas, religiosas e militares, que foram alvos de restauros, como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1495), a Igreja e Convento de São Francisco (1640), as ruínas da Sé Catedral (1700), o Pelourinho ou “Picota” (1512) e a Fortaleza Real de São Filipe (1591), entre as demais ruínas. De alguns edifícios sobraram apenas poucas ruínas, algumas vítimas da destruição local que passam despercebidas ao olhar de quem por lá passa, algumas casas deterioradas, outras com fachadas sem pinturas, algumas ruas estreitas com pouca ou nenhuma iluminação, mas que, os que por lá passam atribuem diferentes sentidos. Muitas casas não autorizadas foram sendo construídas dando origem a um espaço que não se enquadrava nas práticas discursivas de cidade histórica, que se pretendia turística, com base nos monumentos. A partir dos anos 60 do século XX, por altura da comemoração do meio milénio da morte do Infante D. Henrique e do meio milénio da descoberta do arquipélago, há um reconhecimento patrimonial, pelo que procedeu-se ao restauro de algumas construções representativas de uma época gloriosa na história portuguesa, perspectivando a valorização turística da cidade. 1 Nome usado para designar o centro histórico após a decadência da Ribeira Grande. No pós-independência e ao longo da década de 80 do século XX até aos nossos dias, a mais antiga urbe de Cabo Verde vem sendo apropriada enquanto património por diversos actores, o que culminou com a publicação do Decreto n.º 121/90, B.O n.º 49 de 8 de Dezembro, que declara o sítio histórico da Cidade Velha património nacional de Cabo Verde. Por essa ocasião, a antiga Ribeira Grande evidenciava-se como uma referência e um dos pontos turísticos da Ilha de Santiago e de Cabo Verde em geral, sendo divulgada pelas agências de viagens. O apelo à história da Cidade Velha para legitimar a ideia do património cultural tem sido utilizado ao longo dos tempos, em que os seus elementos são considerados representativos do passado, com várias opções políticas e sociais e, mais recentemente, com vários esforços, tendo em vista a legitimação da candidatura da Cidade Velha a Património Mundial da Humanidade junto à UNESCO, apresentada em Janeiro de 2008, e que teve um resultado favorável conhecido em Junho de 2009. São visíveis as várias mudanças ocorridas em decorrência dessa candidatura a património mundial, que estão gerando tensões e conflitos na Cidade Velha. É desta forma que parto para a análise do processo de candidatura de Cidade Velha a património mundial e a sua relação com as medidas arquitectónicas. Esse artigo resulta de uma dissertação de mestrado, na qual fez-se uma etnografia, utilizando a técnica da observação participante, registos fotográficos e entrevistas a diferentes actores locais, de diferentes faixas etárias e a outros agentes intermediários no processo de construção patrimonial, analisando o sentido 42 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 que os actores dão aos acontecimentos em que estão envolvidos, confrontando diferentes pontos de vista. Apesar da maioria dos moradores locais2 ter autorizado o uso de suas identidades, optei por protegê-las, utilizando nomes fictícios. Este tratamento somente foi utilizado em relação aos moradores locais, excluindo dessa selecção autoridades nacionais, cujas posições e posicionamentos são públicos. 1. A candidatura a património mundial da humanidade Decorria o ano de 1972 quando a Organização para a Educação, Ciência e Cultura das Nações Unidas (UNESCO) redigiu a Convenção Geral para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, estabelecendo um sistema de protecção mundial do património cultural e natural de valor universal, considerado excepcional. Esta convenção estabeleceu o tipo de locais a serem classificados como património natural ou cultural e que podem ser inscritos na lista de Património Mundial, criando o Fundo de Património Mundial e o Comité do Património Mundial. Desta forma, os países que assinaram a referida convenção comprometeram-se a identificar os potenciais locais, proteger e preservar o património mundial, cultural e natural, bem como os locais classificados como património mundial localizados no seu território e a proteger o respectivo património nacional. São eles que indicam os bens culturais a serem inscritos na Lista do Património Mundial. Para conseguir a inscrição na lista de património mundial da humanidade, a candidatura deve representar uma obra2 Utilizo esse termo para as pessoas que vivem na Cidade Velha há mais de 10 anos. 43 prima de genialidade criativa do ponto de vista artístico e humano; demonstrar um importante intercâmbio de valores humanos num dado período ou numa zona cultural do mundo, progressos na arquitectura e tecnologia, artes monumentais, planeamento urbanístico e design paisagístico; representar um testemunho único, ou pelo menos excepcional, de uma tradição cultural ou de uma civilização ainda viva ou já desaparecida; ser um exemplo extraordinário de um tipo de edifício, conjunto arquitectónico e tecnológico ou paisagem que ilustre uma ou várias fases significativas na história da Humanidade; ser um exemplo extraordinário de ocupação humana tradicional ou utilização de terras que representem uma cultura ou culturas, especialmente quando se tornarem vulneráveis ao impacto de uma alteração irreversível; ser directa ou tangivelmente associado a eventos ou tradições vivas, a ideias ou crenças ou a obras literárias ou artísticas de importância universal incalculável (um critério apenas utilizado em circunstâncias excepcionais e, em conjunto com outros critérios). As informações sobre cada candidatura são avaliadas pelo Comité do Património Mundial, composto por representantes de 21 países, que aprova anualmente as candidaturas. Já a protecção e a conservação dos bens declarados Património da Humanidade, são compromissos do país onde se localizam. A participação da UNESCO reporta-se no apoio de acções de protecção, pesquisa e divulgação, com recursos técnicos e financeiros do Fundo do Património Mundial. Segundo Dias e Aguiar (2002), mais do que benefícios directos originários da UNESCO, os governos de todo o mundo, ao incluírem monumentos e sítios na Lista do Património Mundial, obtêm prestígio Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 e projecção internacional, valorizando culturalmente esses locais e incluindoos no circuito do turismo internacional. A declaração do que é património da humanidade deve conseguir a concordância dos governos nacionais e das comunidades próximas ao sítio a ser preservado, mesmo quando o património não se identifica com a cultura da comunidade naquele momento histórico. 2. O processo de candidatura de Cidade Velha a património da humanidade Após vários preparativos e um pedido recusado, Cidade Velha voltou a candidatarse a património mundial da humanidade. “Na década de 90 houve uma tentativa de classificação de Cidade Velha como património mundial. Se quisermos, a apresentação de 2008 é reincidente, uma segunda vez. Da primeira vez, com a falta de experiência, o governo incidiu mais sobre a história da escravatura, o povoamento, a contribuição que Cabo Verde deu no surgimento de um novo mundo, sobretudo as Américas e as ilhas atlânticas. Entendeu, na altura, e ainda entende, que essa contribuição de Cabo Verde no surgimento do crioulo no mundo deve ser reconhecida a nível mundial. É neste quadro que desde 2006 a esta parte temos trabalhado afincadamente para tentarmos obter essa classificação formal” (Martinho Brito, Director de Salvaguarda do Património, IIPC, 2008). O dossier da candidatura de Cidade Velha a património da humanidade começou a ser preparado em 2006, foi apresentado em Janeiro de 2008, e o resultado ficou conhecido em Julho de 2009, decidido pelo Comité do Património Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Este dossier encontra-se estruturado em quatro pontos que versam sobre a vantagem do sítio, o processo de inscrição, argumentos e desafios que este sítio impõe ao Estado, como também à população. “Para conseguirmos este documento tivemos que fazer vários encontros com a população local. Mostramos todos os documentos que fizemos, com fotografias que documentam a sua realidade” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). A análise desse dossier deixa evidentes os discursos sobre o passado, nos quais diferentes actores legitimam a Cidade Velha enquanto cidade histórica, turística e lugar de memória. No documento de inscrição encontra-se sumariada que Cidade Velha se destaca “como uma escala importante na rota do Atlântico, entre a África e a Europa e, seguidamente, as Américas; sítio de realização do tráfico negreiro e do comércio triangular, dois séculos antes das grandes deportações; lugar de encontro de povos distantes, promotores de uma nova cultura fundada na miscigenação; sítio com um património material e imaterial expressivo das relações que unem a África, a Europa e as Américas” (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2008: 3), com apresentação das várias construções históricas. Apresentam análise comparativa com outros lugares considerados património mundial. Nesta candidatura, perspectiva-se o aumento do fluxo turístico. O plano de gestão3 tenta dar voz às necessidades locais, embora oculte os conflitos, confrontos e disputas que estão ocorrendo. A este 3 É um instrumento de gestão que programa a preservação do sítio e dos seus valores culturais, no qual pretende melhorar as condições de vida dos moradores locais (saneamento e rede de esgotos, acesso à água potável, capacitação dos responsáveis locais, investimento nas infra-estruturas escolares, etc) (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2008a). 44 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 respeito, Charles Akibodé, coordenador científico da comissão de preparação do dossier de candidatura da Cidade Velha a património mundial refere nos termos seguintes: “Agora a UNESCO considera que ao apresentares o sítio a património mundial, na qual o sítio terá grande visibilidade, a população local terá que ser beneficiada. É por isso que temos um plano de gestão da Cidade Velha de 2008-2012. Para conseguirmos este plano, temos quatro pilares: o primeiro pilar é a gestão participativa da Cidade Velha. É a implicação da sociedade civil na gestão da Cidade Velha, isto é, para salvaguardarmos o património construído, se a população não estiver implicada nessa gestão do sítio, pode danificar à noite, as pessoas podem urinar nos monumentos. Então, se tiveres gestão participativa, vão-se unir os interesses. O segundo pilar é sobre a luta contra a pobreza. Temos que melhorar a vida da população da Cidade Velha, a partir da recuperação das casas mais antigas e a criação de um foco de desenvolvimento. O terceiro pilar versa sobre a melhoria de vida da população e a sua participação em programas de desenvolvimento cultural. Temos ideia de organizar feiras tradicionais na Cidade Velha. O quarto pilar é a salvaguarda do património imaterial. Para conseguirmos um plano de gestão tivemos que ter vários encontros com várias camadas da população, desde empresários, estudantes, todos aqueles que fazem parte da vida activa da Cidade Velha, tendo uma estratégia de diálogo, para retirar o fundamental do encontro” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). O processo de candidatura de Cidade Velha a património mundial da humanidade fez com que a Cidade Velha aparecesse, em 45 vários momentos, no centro do debate político e na imprensa nacional e internacional. Com esta candidatura pretendeu-se atrair o turismo internacional. Os moradores locais posicionaram-se, diferenciadamente, sobre esta candidatura. Vários moradores locais somente ouviram dizer que Cidade Velha era candidata a património mundial, mas sem saber o que isso queria dizer. Houve outros que ficaram sabendo da candidatura pelos meios de comunicação social. Outras pessoas, as mais idosas, chegaram mesmo a dizer que não ouviram falar, embora se encontrasse anunciada a nível local, através de uma grande placa que se encontra afixada à frente do posto de turismo. Um grande número de pessoas nem sequer se informou a esse respeito. Outros ainda demonstraram a sua importância, mas ao mesmo tempo percebe-se que partilham do que lhes é dito. “O país passa a ser conhecido, entra mais dinheiro para a Cidade e para o País” (Paulo, estudante, 17 anos, 2008). “Cidade Velha será mais conhecida, o que aumentará o fluxo turístico, entrarão receitas. Disseram-nos que se passarmos na candidatura, não nos vão dar dinheiro, mas com isso entra-se em roteiros turísticos” (Sérgio, funcionário público, 33 anos, 2008). “A partir de agora as pessoas vão passar a conhecer Cidade Velha. Brava pode se desenvolver rapidamente, Santo Antão com turismo de montanha, São Vicente com turismo urbano, Sal e Boa Vista com turismo de mar. Não é somente a Cidade Velha que vai se beneficiar com isso. Haverá um fluxo turístico enorme. Por isso, também temos estratégia de tentar fazer com que o turista compre mais peças de Cabo Verde. Estamos pensando em voltar para a nossa tradição, Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 voltar ao artesanato cabo-verdiano. Temos que pensar numa política artesanal virada para o turismo. Tudo isso é benefício para a da economia cabo-verdiana, não somente da de Cidade Velha” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). Verificou-se o interesse na geração de rendimento que a candidatura pode trazer, nomeadamente, com o aumento do fluxo turístico. A Proim-tur, empresa que explora a manutenção e o desenvolvimento do turismo cultural na Cidade Velha, também perspectiva o aumento de turistas e uma maior projecção do local, assim como o Presidente da Câmara: “Só a novidade da nossa candidatura elevou o nome de Cidade e fez com que a valorizássemos. A candidatura trouxe mais valor, promoveu o turismo. Podemos transformar o nome de Cidade Velha numa marca e tudo pode vir a desenvolver-se à volta disso. No fundo, somos Cidade do mundo, passaremos a ser no mundo. É um título que nos dá grandeza”( Manuel de Pina, Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago). Um dos moradores locais, durante a entrevista, definiu o que entendia pela candidatura: “candidatura a património mundial é lançar a Cidade no mundo, fazer a Cidade ser reconhecida no mundo: com o seu passado, presente e futuro” (Sérgio, funcionário público, 33 anos, 2008). Alguns moradores locais, assim como o coordenador científico da comissão de preparação do dossier de candidatura de Cidade Velha a património mundial, são conscientes de algumas perdas. “Cidade Velha vai ter ganhos com essa candidatura, mas no fundo vai ter, também, algumas perdas. Desde o início não fomos informados para sabermos o que vai sair com essa candidatura a património mundial” (Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008). “Temos que proteger a população da Cidade Velha. Com a vinda de diversas pessoas, com a pressão do espaço, a população da Cidade Velha é capaz de sofrer muito e se não tivermos um bom plano de melhoramento das suas vidas, é melhor não apresentarmos a Cidade Velha a património da humanidade, porque temos vários outros exemplos no mundo. Se não tomarmos medidas importaremos violência para Cidade Velha. Há também a SIDA. Um outro perigo que chamamos atenção, são pessoas que vão pedir esmolas. Neste momento, vais a Cidade Velha, as crianças sabem dizer dinheiro em várias línguas: francês, inglês. Este é um grande perigo porque se pedirem e receberem dinheiro, ficarão a pedir e abandonarão a escola. Em vez de fazerem uma formação, as pessoas vão achar que indo atrás de turistas irão ter mais ganhos de que ser carpinteiro ou ter outro tipo de emprego. Será um novo tipo de escravatura porque em vez de terem um trabalho, ficarão dependentes da vinda de turistas. Este também é um dos grandes focos da pobreza, de perigos, e pessoas sairão da Praia, São Vicente, Fogo, para se instalarem na Cidade Velha, cada um à sua sorte. Este é um perigo para a população local, a invasão de pessoas, não somente de turistas. Não teremos nenhum lugar para transitar porque todos quererão ir vender aí” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). É de salientar que houve algumas preocupações por parte do Governo em fazer reuniões com a população, com sessões de esclarecimento sobre a candidatura da 46 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Cidade Velha a património da humanidade. Mas, conversando com os moradores locais, verifica-se que havia muito desinteresse. As pessoas não compareciam e depois debatiam entre si, mas sem procurar obter informações, o que poderá ser uma forma de mostrarem desinteresse. “Parece que não foi só eu que não compareci. Posso te dizer que Cidade inteira também” (Joaquim, 25 anos, desempregado, 2008), “todos pensam que não vão ganhar nada e nem beneficiar com o património, que lhes importa se a candidatura vai passar ou não?” (Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008). Essas opiniões denotam o fraco envolvimento e participação dos moradores locais nos pedidos de declaração patrimonial da Cidade Velha. Os moradores locais justificam a sua fraca participação no processo da candidatura por considerarem que não foram ouvidos, não deram a sua voz, o que demonstra alguma insatisfação na forma como o processo foi conduzido, e realçam que devia servir e agradar a população, para que ela possa contribuir para a sua preservação. Por outro lado, os que foram às sessões disseram-me que colocaram perguntas, mas que ficaram sem respostas. “Tive que ir a duas ou três reuniões na Sé Catedral. Estou de acordo que Cidade Velha se candidate a património mundial, mas também quando ganhar esse estatuto não seremos geridos de novo como o espanhol tem feito, que disse que nos deu algo e está a nos gerir. Queria ter mais oportunidades de fazer mais perguntas às pessoas que estão relacionadas com essa candidatura da Cidade Velha a património, para um melhor esclarecimento” (Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008). “Fui mas não fiquei muito esclarecido. As minhas dúvidas não foram respondidas. Não ficou claro qual é o envolvimento da população nisso. Fizeram as coisas do fim para o início. Deviam começar por sensibilizar as pessoas e depois continuar” (Sérgio, funcionário público, 33 anos, 2008). “Fizeram encontros, mas não com a população massiva, somente com alguns representantes de zonas, de associações, depois com governantes, com pessoas que não são da Cidade para falarem do que Cidade Velha sente. Quando vais a essas reuniões e colocas a tua opinião, pedes sugestão e ignoram a pergunta que colocas. Penso que os nossos governantes, antes deles organizarem todo esse processo, deviam “Em 2007 fizemos reuniões com pessoas mais próximas de conflitos, com choro, mágoa, desentendimento. Temos que mostrar os ganhos e perigos da Cidade Velha não ser inscrita como património mundial. Surgiram várias questões e sensibilizamos a população para mostrarmos a eles que não queremos mais do que a sua compreensão, participação na gestão da cidade, do sítio. Mesmo que Cidade seja património, se não tivermos apoio da população, é capaz de sair da lista do património da humanidade. Fizemos com que todo o sector da população aparecesse para ouvir a nossa comunicação. Para além das reuniões que fizemos no Convento, na Câmara Municipal, fomos às suas casas falar com eles. Às vezes são eles que chegam até nós. Já fizemos reuniões alargadas, mas temos que ter encontros informais com a população, com pessoas que não estão contentes e nós temos que tomar nota de tudo o que querem e ouvir a população, porque nós queremos ser património mundial, mas também temos que nos sentir seguros” (Candinha, professora, 35 anos, 2008). não querem e depois iremos ver, porque não podemos individualizar as necessidades” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de 47 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). Algumas preocupações devem ser tidas em conta: “Penso que se conseguirmos, dará um grande avanço para nós, mas também caso ganharmos, tem que ser passo a passo, ponto por ponto, com toda a definição da população da Cidade Velha para saberem o que é, de onde vieram e a sua utilidade no futuro. Já falaram muito dessa candidatura a património mundial, mas se desde o início tudo andasse nos seus passos reais, penso que hoje seria a própria população da Cidade Velha a gritar à UNESCO que a hora já tinha chegado” (Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008). Contudo, muitos são os que consideravam a candidatura positiva e importante, perspectivando as vantagens para a Cidade Velha e Cabo Verde, pois, quer do ponto de vista económico, cultural, académico, político e social, a Cidade Velha tem muito a ganhar, ajudando na expansão económica do município. “Essa candidatura primeiro tem que beneficiar a Cidade Velha e, posteriormente, Cabo Verde pode vir a ser beneficiada” (Candinha, professora, 35 anos, 2008). Um outro facto realçado por muitos moradores locais é de que essa candidatura poderá atrair mais turistas. Está-se, assim, a reproduzir o que lhes foi transmitido. “Não precisamos concorrer, já somos património” (Joaquim, 25 anos, desempregado, 2008). “O reconhecimento da Cidade Velha como património da humanidade é importante, mas mais importante não é o reconhecimento, mais importante para nós é saber que a Cidade Velha já é um património da humanidade e, disto eu não tenho dúvidas, isto ninguém precisa vir me dizer. Para quem já conhece a história da Cidade Velha, para quem já sabe que anteriormente a 1460 Cabo Verde não existia, essa história de cinco séculos não existia, o Povo e Nação de Cabo Verde não existiam, nossa cultura viva, dinâmica que antes não havia e hoje existe e se com a existência da Cidade Velha tudo isso passou a existir, o património da humanidade ficou mais rico, e a forma como este património foi construído. Houve cruzamento de povos, várias etnias que vieram da África, elementos de povos que vieram da Europa, sobretudo de Portugal que cruzaram e resultou algo novo de tal maneira que o crioulo que estou falando agora não havia. Sem Cidade Velha, o Brasil não seria como é hoje, do ponto de vista económico, antropológico, plantas e animais que foram levados para lá. A Cidade Velha foi uma ponte que ligou o mundo, que ligou o continente africano ao continente europeu, americano e asiático. A Cidade Velha contribuiu para a história e cultura da América, Antilhas, Ásia. Tudo isso é importante para a história da humanidade, contribui para a importância patrimonial da humanidade. Este reconhecimento só vem valorizar quem o vai reconhecer” (Manuel Veiga, Ministro da Cultura, 2008). Muitos foram os fóruns feitos na Cidade Velha como forma de encontrar apoios para a candidatura. Poucos moradores locais participaram. A crítica desses moradores dirigia-se às autoridades: “Convidam somente estrangeiros para os fóruns para falar da Cidade, como se ninguém daqui soubesse nada, como se nós não pudéssemos participar para apresentar algo sobre Cidade. Em tudo somos colocados à parte, só nos apresentam o facto consumado, depois de decidirem. Não me canso de levantar a minha voz para dizer o que está mal” 48 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 (Pedro, funcionário público, 30 anos, 2008). “Eu estava numa reunião na qual o Zé Maria (Primeiro-Ministro) disse que não vamos ganhar nada com património mundial porque património não tem dinheiro para dar. É uma placa que vai ser colocada aqui que vai dizer que Cidade é reconhecida a património mundial. Mas, eu penso que se for somente uma placa, porquê tanto sacrifício, porquê tanta contradição, guerra entre o Ministério da Cultura, a população e a Câmara na construção? Se for somente a colocação da placa, vale a pena tanto sacrifício?” (Candinha, professora, 35 anos, 2008). “As pessoas não sabiam o que era património da humanidade. Pensaram que a UNESCO chegaria aqui com um automóvel cheio de dinheiro e dividia com eles, que cada um iria receber e fazer o que bem entender. Explicámos que não era assim que iria funcionar. Disseram que se Cidade Velha conseguir o título de património mundial não vão se interessar, que querem casa com telha, betão e não respeitam os padrões” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). Algumas construções clandestinas e a destruição dos monumentos, no passado, foram considerados, na altura, entraves para os especialistas da UNESCO. 3. As medidas arquitectónicas e as acções de reabilitação de casas do centro histórico As casas degradadas da Cidade Velha integram o sítio histórico, algumas com acções de reabilitação e conservação, assim como os arruamentos do centro histórico, de forma a legitimar essa candidatura. Pretende-se recuperar as 49 fachadas, substituir o betão armado pela colocação de telhas de barro que foram substituídas por betão armado, com o financiamento da cooperação espanhola. Destaca-se que desde a década de 90 proibiu-se fazer reformas nas casas da Cidade Velha, que não seguiam o estilo tradicional, cujos edifícios de dois ou mais andares vão contra o ambiente histórico que se quer criar e a política preconizada pela UNESCO que analisa as condições de candidatura a património mundial da humanidade. De facto, a Câmara Municipal da Praia, em 1993, publicou um Edital n.º 4/93 de 27 de Abril de 1993, que define as normas de construção civil respeitantes às áreas que integram o património nacional de Cidade Velha e a zona tampão. A partir desse momento, delineava-se um campo conflitual. O facto de se ter essa limitação das construções faz com que a população local esteja apreensiva com essas medidas arquitectónicas impostas. De acordo com o Edital n.º 4/93 “são proibidas construções novas e ampliações nas localidades de São Sebastião, São Roque, Largo, São Brás, Misericórdia, Rosário, Laranjinha, Figueira, São Pedro e na zona tampão” (CÂMARA MUNICIPAL DA PRAIA, 1993). Determinam, ainda, que “todos os edifícios construídos, no âmbito destas normas, terão o nível de rés-do-chão, independentemente da zona da sua localização, com a excepção dos prédios de comprovado valor histórico e arquitectónico, nomeadamente os sobrados” (CÂMARA MUNICIPAL DA PRAIA, 1993). Embora uma boa parte dos moradores locais cumpra as normas de não ampliação das casas (em altura e profundidade), o Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 que demonstra que as pessoas estão mais sensibilizadas, elas não concordam com essa proibição, visto que existe alguma tensão entre o desejo de construir mais casas e essa imposição, em contraponto ao aumento do número dos membros da família. Segundo o INE (2001) “os agregados familiares da Cidade Velha vivem em unidades de alojamento relativamente exíguas. A este título importa referir que, de cada 100 unidades de alojamento dessa zona, cerca de 23 têm apenas uma única divisão, 25 têm duas divisões, 20 têm 3 divisões e apenas 6 tem seis ou mais divisões, quando os agregados familiares dessa zona têm, em média, 5,2 pessoas. Consequentemente, o número de divisões utilizadas para dormir é reduzido. Cerca de 44% dos agregados familiares utilizam apenas uma divisão do alojamento para dormir, e cerca de 53% utilizam 2 a 3 divisões para esse fim. Quase metade (48.4%) das unidades de alojamento dessa zona tem coberturas de betão armado, cerca de ¼ é que tem cobertura de telha e 22,1% são de fibrocimento”. Os moradores locais elaboram interpretações sobre a sua situação: “Não permitiram aumentar as casas para fazer 1º andar. Sou contra a proibição de construção porque os meus filhos não têm como fazer mais obras. Reclamei mas não deu em nada. Disseram-me que tapava a vista do mar lá de Fortaleza” (D. Felisberta, doméstica, 76 anos, 2008). “Penso que antes de exigirem deviam criar condições, com a criação de uma zona de expansão ou para Santa Marta ou para Achada Forte. Poderiam dizer que em baixo na vila ninguém poderia construir para cima. Tudo bem, se não puder fazer aqui, então te dou um outro lugar para construíres. Nascemos e encontramos nossos pais com esta casa. Naquele tempo tudo era dentro desta casa. Mas agora estamos a acompanhar o desenvolvimento. Não é porque esta casa é pequena e estamos a concorrer a património mundial que devemos ficar aí, porque antes esse espaço era sala de visita, quarto, sala jantar, casa de banho, mas agora não dá. Como Cidade Velha não tem terreno, deviam dar às pessoas oportunidades de fazer 1º andar e colocar telha. Não posso fazer em cima para arrendar aos turistas, não tenho assim espaço para restaurante. Desta forma, só os espanhóis é que ganham” (Candinha, professora primária, 35 anos, 2008). “As pessoas dizem, é minha casa, o terreno é meu, faço 2º e 3º andar. Há pessoas que estão a fazer isso, basta ires lá e veres. Continuam ainda. Há outras que querem transformar Cidade Velha como Palmarejo. Um belo dia verás a transformação de Cidade Velha como Palmarejo. Estão mesmo a fazê-lo” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). Pretende-se ter ganhos com a vinda de mais turistas, apostando em estruturas de apoio ao turista caso lhes seja dada a oportunidade de construir, tendo algum benefício com o turismo. Contudo, a ideia de se pensar numa zona de expansão é recente: “Só há pouco tempo tivemos a ideia de criar uma zona de expansão e essa zona é problemática por causa do lugar onde será feita, mas a atribuição também será problemática para quem se atribuir uma casa nessa zona. Houve uma tentativa na Cidade de tentar melhorar esta situação. Demos às pessoas terrenos por aforamento, terrenos que não podem vender. Essas mesmas pessoas a quem demos terrenos, fizeram sua 50 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 casa, em dois dias vimos que eles venderam o terreno para pedirem outro. Se não lhes dermos outro, vão fazer prédio. O que é engraçado é que damos o terreno, vendemno e com o dinheiro da venda fazem um 2º andar na sua casa. Este é um caso. Não é toda a gente que o faz. Há uns que não pediram o terreno, tiveram dinheiro e fizeram andar. Agora, com a zona de expansão será uma política mais de distribuição de lote, por isso tem que ser feito, rapidamente, o recenseamento de quem vive lá. É por isso que já fizemos várias reuniões, temos que identificar casas problemáticas, pessoas que precisam de um lote de terreno e pessoas que precisam comprar um lote. Gerir uma necessidade dessas é complexa” (Charles Akibodé, coordenador científico da comissão de preparação do dossier de candidatura de Cidade Velha a património mundial, 2008). “Há um interesse político quer do Governo, quer da Câmara, no sentido de arranjar zonas de expansão. Tendo esse espaço, sinto que a pressão vai diminuir” (Martinho Brito, Director de Salvaguarda do Património, IIPC, 2008). A esse respeito, um morador local alerta que: “Se fizerem uma zona de expansão para a zona do Salineiro as pessoas vão dizer que lhes tiraram de Cidade Velha para lhes colocarem em Achada Salineiro. O único lugar tão perto que as pessoas da Cidade poderiam sair para ir é para Achada Forte. Se forem aí, ainda, vão se sentir que são da Cidade Velha. Para um outro lugar não vão querer ir e ainda por cima ficarão com raiva quando se lhes aborda sobre questões patrimoniais” (Nilton, estudante, 24 anos, 2008). A Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago participa neste debate, dizendo: 51 “As pessoas querem construir, mas esta Câmara vai-se manter firme para defender e preservar. É claro que temos que arranjar alternativas. Não podemo somente impedir as pessoas de construir e não lhes dar alternativas. Temos que definir uma zona de expansão. Aí, também o Governo tem um papel importante porque a Câmara em si, não possui terreno para dizer que vai fazer expansão para uma determinada zona. Há que ter expropriação ou negociação com proprietários para poderem garantir a expansão da Cidade. Tens que dar alternativas para construírem num outro lugar, para poderem preservar aqui. (Manuel de Pina, Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago, 2008). Outros moradores locais criticam a pouca fiscalização na construção das casas. Outros partilham do discurso de agentes estatais para fazer concessões para se ver aprovada a candidatura a património mundial. “Somos conscientes que para entrarmos a património temos que abrir mão, mas teremos contrapartidas, mas isso não entra na cabeça das pessoas” (Sérgio, funcionário público, 33 anos, 2008). A colocação de telhas4 constitui um custo que, muitas vezes, não é suportado pelas autoridades oficiais, mas por ela exigida. Os moradores locais criticam essa imposição. Por outro lado, no cenário das casas, muitos são os que não se limitaram a fazer, somente, mais um piso. Mesmo com proibição, fazem mais um andar, o que contraria a imagem do lugar que tanto se quer construir. Outros casos revelam 4 Segundo o Edital n.º 4/93, “todos os edifícios deverão ser cobertos de telha vermelha ou de palha. Todos os prédios serão pintados ou caiados de branco devendo as portas e as janelas serem pintadas com cores tradicionais” (CÂMARA MUNICIPAL DA PRAIA, 1993). Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 o não cumprimento da imposição. “Pedi ampliação mas a câmara demorou a responder-me, mas autorizaram-me. Quando me deram a autorização, o Ministério da Cultura mandou proibir, mas fiz na mesma, mas recuando 10 metros. Fiquei descontente, 10 metros de terreno é muito” (Sérgio, funcionário público, 33 anos, 2008). Embora com a divulgação das medidas arquitectónicas, paralela à Rua Banana, na Rua Carreira, encontra-se uma casa de construção recente (2008), com cave, que vai contra a arquitectura do local e as normas impostas pelo Ministério da Cultura. Não houve nenhum impedimento dessa construção, tanto é que esta casa já está quase pronta. “Ao fazer a cave, porque na zona só havia sobrados, se calhar destruíram os vestígios históricos que estavam aí, que era a parte mais rica da Cidade Velha, porque o pedreiro não é formado em arqueologia para fazer esse trabalho e ninguém diz nada” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). Muitos são os moradores locais que se unem contra a imposição de não se fazer mais construções no centro histórico. “Eles não se apercebem que o que tem mais valor é sentir que a população está contente. As pessoas contentes preservam para não danificar. O Governo, na Praia decide e não ouve a população” (Candinha, professora, 35 anos, 2008). O discurso que aí se delineia prendese com a expectativa em melhorar as suas condições habitacionais. As críticas dirigem-se aos agentes estatais. Os moradores locais estão conscientes de que as proibições devem-se à atribuição do estatuto de património mundial da parte de agentes estatais: “Devemos ter um discurso responsável, para melhorar a situação e não colocar-lhe fogo. Esta é uma tarefa de cada um de nós, é tarefa de todo o cabo-verdiano porque se Cidade Velha passar a património de humanidade não será ganho daquele que estiver fazendo 1º andar, 2º andar ou 3º andar. Quer dizer, beneficiará todos. Por isso, cada um de nós tem que fazer um sacrifício. Há pessoas que têm ideias de que todos os moradores sairão da Cidade Velha para alugarem as suas casas para os turistas, vão viver na zona de expansão. A alma sairá da cidade e depois é impossível transformar a Cidade Velha no Hotel Praia Mar ou Hotel Trópico! Depois, as suas raízes estão lá. Não poderás vender a tua alma, tens que ficar aí, pertences ao lugar, tens que viver aí e o ganho não acontece num só dia, o ganho é milenar. Pensa nos teus filhos, netos, bisnetos. É que se tiveres um espaço e saberes que é teu, verás que estarás num sítio histórico, milenar e tens que ficar aí e respeitar os seus padrões. Temos a realidade de Cabo Verde, de pessoas que vivem fora, na Holanda, França, Suiça, que querem fazer o mesmo estilo de casas do lugar onde habitam. Estão pessoas na Cidade Velha que vivem fora, que têm dinheiro e que querem reproduzir essas casas, pouco lhes importa a nossa estratégia de recuperação e melhoramento de casas. Algo engraçado é que umas batucadeiras cantaram uma música dizendo que as pessoas de Cidade Velha são poucas aí, as restantes são pessoas que foram aí e, neste momento chamam muita gente de rusga” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). Se para Charles Akibodé a alma da Cidade Velha encontra-se nas pessoas, 52 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 para o Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago:“ Alma da Cidade está nos seus monumentos” (Manuel de Pina, Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago, 2008). Por outro lado, Charles Akibodé percepciona que as pessoas devam ficar nas suas casas. O então Presidente da Câmara considera o seguinte: “A solução é arranjar uma zona de expansão, dar a todos um lote, dar aos idosos um lote, dizer-lhes para construir aí, ajudá-los a construir e fazer com que usem essa parte antiga da cidade, em vez de usarem para morarem, usarem para fazer negócio, alugar aos turistas, etc. Isso faz com que libertem suas casas que têm na Cidade” (Manuel de Pina, Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago, 2008). Algumas são as transformações na arquitectura dita tradicional local com o intuito de dar resposta à procura turística e, consequentemente, conforto ao turista. Essas mudanças são percepcionadas, positivamente, por alguns moradores locais que beneficiaram de reabilitações, embora outros critiquem as reabilitações nas suas casas, o que tem gerado algumas tensões e conflitos. Embora, ainda, sejam poucos os que beneficiaram com obras de requalificação5 em suas casas, muitos ainda anseiam que, nas suas casas, sejam feitas algumas reformas. “Foram feitas obras na minha casa. Penso que foi bom porque não tínhamos possibilidades de fazer essas obras e agora vivemos melhor. 5 Apesar das normas de construção, segundo o Edital n.º 4/93, “são autorizadas as obras de remodelação, manutenção e conclusão das casas de banho, cozinha, quartos interiores e de protecção de zonas perigosas, dentro do perímetro das construções já existentes” (CÂMARA MUNICIPAL DA PRAIA, 1993). 53 Ajudaram-nos a colocar betão, reboque e deram-nos novas portas” (Rogério, estudante, 19 anos, 2008). “Preciso arranjar esta casa porque preciso tirar a telha, para colocar betão armado ou uma outra cobertura porque a madeira já está podre” (José, desempregado, 65 anos, 2008). Se por um lado, o discurso oficial tende para a preservação e salvaguarda, com restrições arquitectónicas locais, muitos moradores locais anseiam a modernização das suas casas. Nessa linha de pensamento, a contribuição de Pastor Alfonso (2003: 107, tradução minha) é importante no sentido de que para este autor “em muitos lugares diversos elementos patrimoniais se estão modificando em função do turismo”, apresentando assim exemplos da restauração de antigas fachadas, que podem ser positivas para a população local e para os turistas. Contudo, outros reclamam a forma como as primeiras intervenções foram feitas: “Na minha casa eu já tinha feito parede, vieram e colocaram a parte de fora de pedra. Só que ficou para uma terceira fase a construção da casa de banho, cozinha, disseram que arranjavam a casa, colocavam água nas casas que não a tinham, mas não fizeram nada. Fizeram somente aquela parede, colocaram quatro telhas, de longe as pessoas pensam que fizeram alguma coisa” (Candinha, professora, 35 anos, 2008). Perspectiva-se que os moradores locais tenham casa de banho e deixem de defecar em lugares públicos, o que constitui uma tentativa de higienização de comportamentos, hábitos, impondo padrões de urbanidade. Numa visita a casa de um morador, pedi para utilizar a casa de banho, mas disseram-me que infelizmente não poderiam satisfazer o meu pedido Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 porque não o tinham, embora o número de moradias com casa de banho venha aumentando. De acordo com os dados do INE (2001), “quase 2/3 dos alojamentos não possuíam casa de banho, retrete ou latrina e menos de 30% possuíam casa de banho com retrete”. O QUIBB de 2007 diz que no concelho de Ribeira Grande de Santiago, 25,7% das pessoas possuíam casa de banho com retrete, enquanto 59,9% não tinham casa de banho e utilizavam latrinas. Segundo Charles Akibodé (2008), “foram eles que pediram casa de banho nas suas casas. Todos possuem latrinas. À noite vão deitar o seu conteúdo no mar. Já há muito tempo que pessoas estavam a pedir isso”. Contudo, para os moradores locais: “Fui a uma reunião com pessoas do IIPC, uma delas me disse que a população não deve defecar na rua, que dá má imagem e cria lixo. Imagina só, se as pessoas não têm condições para terem casa de banho e nem água, não lhes fazem casa de banho, eles não têm outra solução a não ser fazer necessidade onde costumam fazer. É preciso que se lhes criem condições para depois exigir” (Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008). Para aqueles que vivem em condições precárias, anseiam uma mudança na sua condição de vida. Enquanto não lhes for dada a possibilidade de ter uma casa de banho, as suas práticas diárias, possivelmente, continuarão a verificar-se. “Existem conflitos por causa da proibição de fazer varandas na parte de fora, porque perde-se o que queremos, que não devemos colocar betão nas casas. Eu espero que quem dá essa ordem, Ministério da Cultura, IIPC, ok, faz como bem entenderes, constrói tu! Já coloquei betão, coloquei telha! Se tu queres ver as casas bonitas com telhas, coloque telha. Eu coloquei o que posso. Se não posso colocar telha não coloco. Se posso colocar betão que toda a gente me ajuda com uma lata de areia, brita, eu coloco betão. Não impeço que depois de eu colocar betão que coloques telha porque o teu programa é de colocar telha para todos verem bonito, vermelho, coloque telha tu que precisas. É isso que penso que devia ser a realidade para todos verem porque se tu estás a querer beneficiar a população, tens que a ajudar com a sua pobreza. Exiges e não contribuis para a exigência que estás a fazer. Dizem que quem dá pão dá castigo, mas se tu não dás pão não dês castigo! Está bem que não quero que ninguém venha cá colocar mosaicos em minha casa. Também o que digo? Eu construo a parte de dentro, minhas amigas e amigos vêem. De fora que me importa? Eu não vivo na parte de fora da casa” (Carla, funcionária pública, 40 anos, 2008). No Bairro de São Sebastião 17 casas estavam sendo alvo de um projecto de reabilitação urbana e melhorias habitacionais, numa primeira fase. Consta que o dono da obra era o Ministério da Cultura, foi financiada pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o desenvolvimento e, que está orçada em 33.488.744$02 CVE. A gestão da execução dessa obra estava a cargo do IIPC. As casas beneficiadas estavam numeradas a tinta, nas paredes, antes de serem novamente pintadas no decorrer das obras. “Para que as suas casas fossem arranjadas, as pessoas assinaram um papel. Querem colocar telha vermelha em todas as casas. Se Cidade conseguir entrar na lista do património mundial vai ajudar muito, penso que é bom, mas se não formos lutar para entrar na lista do património mundial também vamos perder, penso que não vale a pena assinarmos algo e depois ficarmos com a nossa casa empatada” (Joaquim, desempregado, 25 anos, 2008). 54 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Alguns dos beneficiários não estavam satisfeitos com as obras que estavam sendo realizadas. Por isso, dirigiram críticas ao Ministério da Cultura pela forma como essas obras de reabilitação estavam sendo feitas. “Tiraram-me a cobertura da casa. Eu tenho somente um filho que tem seis filhos. Vivemos todos juntos aqui. Quando vieram mostrar, o arquitecto começou bem, falou bem. Agora, como querem fazer a minha casa? Tiraram a cobertura, a parede está quase a cair e não querem tirar. Querem só dar um jeito para fazer a cobertura, que também não quero. Estava degradada, mas não chamei e nem pedi favores a ninguém. Disse-lhes isso. Se for à casa de parentes pedir ajuda, vou conseguir para fazer a cobertura. Deramme um grande atraso e os poucos bens que possuo estão na casa de pessoas que estão fora do País, mas quando vierem o que faço? Onde encontrar dinheiro para a renda? Se não vão arranjar a minha casa como quero, para deixarem assim como encontraram. Agora é tempo das chuvas, não posso esperar mais porque se a chuva vier não tenho para onde ir. Estou com esperanças neles. Agora essa parede não dá para fazer um jeito e colocar a cobertura por cima. É uma parede que meus pais já encontraram assim. Já danificaram a minha casa, estou na rua” (D. Isabel, doméstica, 78 anos, 2008). “Deviam arranjar a casa mais de raiz porque tiram somente o reboco e o tecto, não estão a ver as paredes que estão quase a cair” (Rogério, estudante, 19 anos, 2008). “Escolheram material de baixa qualidade, colocaram pessoas exageradamente no trabalho e sem nenhum controlo. Dizem que já não podem ser feitas mudanças na casa, mas como não fazer se utilizaram material de baixa qualidade e tiveram que retirar a parede e o reboco? Devem usar material 55 que perdure no tempo, para não terem que fazer mais mudanças” (Nilton, estudante, 24 anos, 2008). Devido a essa candidatura para o reconhecimento da Cidade Velha como património mundial, perspectivaramse vários projectos, nomeadamente, a melhoria do centro de saúde, construção de uma estrada que não passe pelo meio da cidade, evitando que a população corra riscos resultantes do aumento do fluxo turístico caso venha a ser considerada património mundial. Perspectiva-se, ainda, a melhoria da escola e a criação de um mercado funcional. “Temos que ter um mercado para venda de artesanato, devemos ter um mercado de venda de produtos como verduras, muito bem localizado para as pessoas. Tudo isto tem que ser muito bem pensado e organizado. Mas isso só poderemos fazer com a ajuda da população” (Charles Akibodé, Coordenador Científico da Comissão de Preparação do Dossier de Candidatura de Cidade Velha a Património Mundial, 2008). “A nível da cultura vamos reivindicar que Cidade Velha seja um palco cultural por excelência na ilha de Santiago. Isso depende de nós, do que formos capazes de movimentarmos, de mobilizar. Quer dizer, de recuperar todos os grupos tradicionais como batuque, tabanca, teatro. A nível do artesanato é uma fonte de renda e entendemos que com a visita de turistas várias pessoas podem desenvolver artesanato local. Queremos produtos daqui. Então, há alguns projectos neste sentido de promover cooperativas para desenvolver o artesanato. Ainda ontem recebemos um empresário aqui que quer trazer pessoas do Brasil para vir dar formação, para que as pessoas aproveitem as pequenas coisas, para pintar as pedras do mar, por exemplo, escamas de peixe, pele de animais, todos os Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 produtos para transformar em artesanato” (Manuel de Pina, Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago, 2008). Agentes estatais apelam à produção artesanal como sendo uma mais-valia para o turismo, para a rentabilidade local e uma forma de mercantilização da cultura, denotando a sua dimensão económica e cultural. Essa produção poderá vir a potenciar o desenvolvimento local. Considerações finais No decorrer do processo de candidatura de Cidade Velha a património mundial, as expectativas eram positivas. Esperamse alguns ganhos, tanto materiais como simbólicos. Se por um lado, o discurso oficial tende para a preservação e salvaguarda, com restrições arquitectónicas locais que originaram construções clandestinas, muitos moradores locais anseiam a modernização das suas casas. Embora uma boa parte dos moradores locais cumpra as normas de não ampliação das casas (em altura e profundidade), o que demonstra que as pessoas estão mais sensibilizadas, ele mostraram-se apreensivas com essas normas, discordando delas por não se lhes apresentarem alternativas. Neste particular, notou-se alguma tensão entre o desejo de construir mais casas e essa imposição, em contraponto ao aumento do número dos membros da família. Essa tensão tem gerado alguns conflitos, que poderão se intensificar. Essa proibição, impede também que essas famílias possam ter nas suas casas alguma estrutura de apoio ao turista. habitacionais, ter um espaço para os filhos, porque a casa é pequena e a família é alargada, e ter em suas casas alguma estrutura de apoio ao turista, podendo também ter ganhos com a vinda de mais turistas. Sugerem a criação de uma zona de expansão para Santa Marta ou Achada Forte, que não seja na zona de Salineiro porque vão sentir que saíram da Cidade Velha. Critica-se que uns constroem e não se faz nada e outros que não constroem ficam prejudicados. Mesmo com proibição, fazem mais um andar, o que contraria a imagem do lugar que tanto se quer construir. Sugere-se que a população deve estar satisfeita, para poderem valorizar e conservar a cidade. Os moradores locais estão conscientes de que as proibições devem-se à inscrição da Cidade Velha na lista do património mundial. As pessoas esperam soluções e algumas estão mais convictas que essas soluções estão a demorar muito a chegar e que a população não é ouvida, mas alguns também estão desinteressados. Uns valorizam o património cultural, enquanto outros pensam mais nos benefícios daí advenientes do que com a preservação. As críticas dirigem-se aos agentes estatais. Os moradores locais, o que querem, é melhorar as suas condições 56 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Referências DIAS, Reinaldo e AGUIAR, Marina Rodrigues (2002). Fundamentos do Turismo Conceitos, Normas e Definições. Campinas, São Paulo: Alínea. INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA DE CABO VERDE (2001). Censo 2000. Praia, INE. INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA DE CABO VERDE (2008). Questionário Unificado de Indicadores Básicos de Bem-estar. Praia: INE. PASTOR ALFONSO, María José (2003). El Património cultural como opción turística, in Horizontes Antropológicos n.º 20, Porto Alegre: PPGAS. Publicações Periódicas – Publicações Oficiais CÂMARA MUNICIPAL DA PRAIA (1993), Edital n.º 4/93, de 22 de Abril de 1993, que define as normas de construção civil respeitantes às áreas que integram o património nacional de Cidade Velha. Decreto n.º 121/90, de 8 de Dezembro de 1990, B. O. N.º 49, declara o sítio histórico da Cidade Velha património nacional de Cabo Verde. Praia: Imprensa Nacional. Documentos MINISTÉRIO DA CULTURA DE CABO VERDE (2008), Cidade Velha, Inscrição no Património Mundial, 2009, Praia. UNESCO (1972), Convención sobre la Protección del Patrimonio mundial, cultural y natural.< http://www.cubaarqueologica.org/document/carta8.pdf >, acesso em 27 de Outubro de 2008. 57 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 58 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 EXPERIÊNCIAS ATLÂNTICAS: AFRICANOS E CRIOULOS NA DINÂMICA DE CONSTRUÇÃO DOS QUILOMBOS DO BORRACHUDO- BARRA DO RIO DE CONTAS, 1835 Valdinéa de Jesus Sacramento1 Resumo/Abstract Nesta pesquisa, busca-se analisar a trajetória histórica dos Quilombos do Borrachudo, durante a década de 1830, destacando a natureza das relações sociais, econômicas e políticas, criadas nos universos dos quilombolas e partilhadas por outros agentes sociais. O estudo desses mocambos permitiu examinar padrões de rebeldia escrava no sentido mais amplo e aponta de maneira empírica para a gestação de uma organização socioeconômica construída por comunidades de fugitivos e compartilhada por escravos, libertos e livres das vilas de Camamu, Ilhéus e Maraú, no século XIX. Imprimindo tons, cores e lógicas próprias à sociedade local e adjacências, africanos e crioulos, na condição de fugitivos, conseguiram modificar as vidas daqueles que continuavam no cativeiro. Palavras-chave: quilombos; Barra do Rio de Contas; Bahia; economia quilombola; resistência escrava. This research analyzes the historical trajectory of the maroon communities the Borrachudo, during the 1830, pointing out the nature of social, economical and political relationships created in the universe of runaways and shared by the other social agents. The research on maroon societies allowed to examine standards of slave’s rebellion in a broad sense and denotes, in an empirical form, the gestation of a social-economic organization built by fugitives communities and shared with slaves, released and freemen coming from the small towns of Camamu, Ilheus and Marau, in the 19th century. By printing shades, colors and logics as proper to the local society, Africans and Creoles, Africans, in the condition of fugitives, achieved to change the life of those who continued in captivity. Keywords: maroon societies; Barra do Rio de Contas; Bahia; maroon economy; slave resistance. 1 Valdinéa de Jesus Sacramento é historiadora (UESC), Mestra em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). 59 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 1. Nota introdutória Os estudos atinentes à rebeldia escrava baiana têm apontado o sul da Bahia como a região que mais experimentou a formação de quilombos. Contudo, essa riqueza de experiência não se traduziu numa farta literatura sobre o assunto. Muito pelo contrário, a historiografia sul-baiana sempre deu destaque à figura dos coronéis do cacau, vistos como desbravadores e responsáveis pela ascensão econômica da região. Mitos e realidades à parte, é possível dizer com ênfase que a escravidão negra foi importante na Comarca dos Ilhéus, e que a participação dos africanos e seus descendentes foi muito ampla, não se limitando apenas a compor a mão-deobra local. Nesse sentido, o presente texto traz algumas reflexões desenvolvidas ao longo da dissertação, por mim defendida na Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, intitulada “Mergulhando nos Mocambos do Borrachudo – Barra do Rio de Contas, séc. XIX”. Trata-se de um estudo apoiado, em grande parte, em fontes inéditas, acerca da mobilização quilombola a partir da experiência dos Quilombos do Borrachudo, em Barra do Rio de Contas, atual Itacaré, nas primeiras décadas do século XIX. Neste artigo centralizo a discussão nas práticas repressivas empregadas pela classe senhorial e autoridades sulbaianas na destruição dos quilombos que surgiram ao norte da Comarca de Ilhéus. Na sequência procuro ressaltar as principais representações dos Quilombos do Borrachudo presentes nos discursos oficiais, retroalimentada pelo haitianismo e pelo Levante dos Malês. Constitui-se, portanto, de uma reflexão histórica acerca da mobilização quilombola levando em consideração a natureza das relações sociais, econômicas e políticas criadas nos universos dos fugitivos e partilhada pela sociedade envolvente. 2. A Comarca de Ilhéus e seus mocambos Enquanto em Salvador e Recôncavo a rebeldia era marcada principalmente pela grande presença de cativos africanos, geralmente através de revoltas organizadas a partir de filiações étnicas; no sul da Bahia, a face rebelde da escravaria significou a continuidade de uma prática de formação de mocambos/quilombos iniciada em séculos precedentes. As vilas que mais experimentaram a incidência dessas instituições foram os distritos sulinos de Camamu, Ilhéus, Cairu e Barra do Rio de Contas (vide mapa 1). Nas matas de Cairu, de Camamu, Rio de Contas e de Ilhéus nunca deixaram de existir tais coios de escravos fugidos, apesar de, por muitas vezes, serem eles destruídos e aprisionados os seus moradores. Logo se refaziam, e entravam os negros de novo a apavorar as vilas, fazendas, engenhos e roças. Nas matas do distrito de Barra do Rio de Contas existia agora, por alturas do ano retrocitado, grande número de quilombolas, que emparceirados com desertores andavam hostilizando os moradores dos lugares mais ermos, assaltando os viandantes, e os escravos (CAMPOS, 2006: 217). Nessas localidades, o problema parecia incomumente grave, superando até os distritos açucareiros do Recôncavo com seus plantéis de médio e grande porte e com maiores exigências de trabalho, vistas como propulsoras de resistência escrava. Diversas expedições foram enviadas para a região sul-baiana, como as de 1663, 1692, 1697, 1723, 1806 e 1835, a fim de 60 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 destruir e/ou exterminar as atividades de comunidades de fugitivos. De fato, esse número é significativo e sugere a dificuldade de tal empreitada. Paralelamente ao crescimento e proliferação de mocambos na Comarca de Ilhéus, foram organizadas políticas voltadas à construção de um aparato policial-militar, datado do final do século XVII, cujo objetivo era o de combater e perseguir escravos fugidos. Essas ações coincidiram com o desfecho das atividades expedicionárias de paulistas – pelas quais se dispersaram os índios do sertão da capitania aos quais os quilombolas algumas vezes poderiam pedir apoio e proteção. Em Camamu, esse aparato pode ter-se iniciado 61 em 1669, quando a Câmara emitiu um documento pedindo ao Governo-Geral a criação de uma “Companhia de mulatos forros, mamelucos, mestiços e índios” com o intuito de combater “gentios bravos” e mocambos. Na vila de São Jorge dos Ilhéus foi criado, em 1696, o posto de “Capitãomor das entradas dos mocambos e negros fugidos”, que sinalizava explicitamente a presença de fugitivos e quilombos nos arredores da vila e a intenção de darlhes combate1. 1 Estes e outros aspectos relacionados ao surgimento de aparelhos de repressão com o intuito de coibir e perseguir escravos fugitivos e quilombos, na Comarca de Ilhéus, podem ser encontrados no seguinte documento: APEB, Ordens Régias, v. 4, 1696–1697, doc. 50, 19.11. 1696. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 À medida que aumentava o número de escravos fugidos e de mocambos, vários postos de combate e repressão foram criados e cartas-patentes emitidas. Ainda assim, na prática efetiva esse aparato repressor parecia muito mais constituir uma “Militância de bobagem. Os Corpos, os terços ou regimentos só existiam em nome, em esboço; sem sombra de disciplina, se conseguiam alguns soldados, nas sedes das vilas. Simples pretexto para nomeação de oficiais” (CAMPOS, 2006: 276-277). Apesar das medidas de repressão, os quilombos continuaram a pontilhar em diversas partes da comarca. Em 1692, Camamu foi atacada por fugitivos aquilombados, causando pânico em toda a região. Esse levante contou com a participação de mais ou menos cem negros e foi liderado por cinco mulatos, que adentraram a cidade, mataram alguns homens brancos, sequestraram mulheres e crianças e fizeram várias pilhagens nas roças. Lara de Melo dos Santos concluiu que fatores conjunturais e específicos à região podem ter criado condições favoráveis para o levante, tais como: “permanente instabilidade militar na região, além de rotineiras desavenças entre proprietários locais – opondo jesuítas e lavradores pelo controlo e uso dos índios e das terras e o aumento do trabalho escravo” (SANTOS, 2004: 92). A década de 1820 parece ter sido um momento propício para as fugas e formação de novos mocambos, pois notícias a respeito destes eram constantemente direcionadas à capital da província. Em 1827, a câmara de Camamu, argumentando em defesa dos interesses de lavradores e da comunidade em geral, informava sobre o “iminente perigo de ser invadido por bando de escravos fugidos, aquilombados nas matas desta vila” e a necessidade premente de armas para combatê-los. Neste documento, enviado ao governador, também era explicitada a ocorrência de insultos, roubos e mortes perpetrados pelos quilombolas a alguns residentes daquela vila. O lavrador e capitão-mor Arcângelo teria tido sua fazenda saqueada e vivenciado confrontos físicos com os fugitivos; o senhor Manuel Ferreira Borges, da vila de Santarém, teria tido 14 de seus escravos em fuga; José Fascio, de Camamu, 12 escravos fugidos, e na mesma vila, as outras fugas podiam variar entre três e quatro. Como a Câmara não obteve auxílio do governo, as autoridades locais teriam arregimentado, na Comarca de Ilhéus, um grupo de sessenta homens conduzidos por um oficial miliciano para o combate aos quilombos, na mata. Os poucos registros dessa expedição afirmam que “alguns [fugitivos] procuraram a casa de seus senhores, e por algum tempo cessaram os roubos e as mortes”. Depois, registra-se que “não durou, porém, muito a dispersão dos fugitivos: eles se congregam: o quilombo se povoa e torna um asilo”, conforme opinavam os vereadores de Camamu. Nesse sentido, a documentação acaba sinalizando a pouca eficiência da repressão, uma vez que, com seus ritmos, direções e estratégias próprias de resistência, os quilombos subsistiam e podiam ampliar suas formas de organização2. Para além de considerar a dinâmica, a intensidade e a extensão desses quilombos, não se pode subestimar o poder de articulação dos fugitivos e a leitura própria sobre o melhor momento ou contexto para empreenderem suas fugas. João Reis pontua que pelo menos os primeiros anos da década de 1820 foram caracterizados por “revoltas de caserna e tumultos populares 2 APEB, Atas da Câmara de Camamu, maço 1282, Doc. 28/04/1827. 62 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 antilusitanos, além das divisões dentro da classe dominante sobre o encaminhamento político da descolonização e criação do Estado Nacional” (REIS, 1979: 289). Em Barra do Rio de Contas, a emergência de quilombos foi registrada em 1736, portanto, quatro anos após a fundação da vila. Uma outra experiência de resistência escrava foi registrada em 1806, quando o governador da Bahia, o Conde da Ponte, enviou uma tropa punitiva contra quilombolas e acoitadores de escravos fugitivos. A trajetória histórica dessa vila – assim como das vilas contíguas – seria marcada pela presença constante de mocambos, ao mesmo tempo que se dava a expansão da agricultura. 3. Mergulham mocambos nos mangues molhados: na trilha do Borrachudo Em 1835, enquanto na capital da província baiana todos os esforços estavam dirigidos para os interrogatórios e medidas punitivas aos integrantes do Levante Malê, no Sul da Bahia e em particular na Comarca de Ilhéus, as autoridades se empenhavam em desbaratar uma aglomeração de quilombos nas florestas da vila da Barra do Rio de Contas. Uma grande expedição, composta por oitenta praças sob o comando do Alferes Guilherme Frederico de Sá Bittencourt e Câmara, dava cabo dessa aglomeração – núcleos de resistência, sob as denominações de Colégio Novo, Colégio Velho, Sabura, Retiro Alegre, Santo Antônio do Bom Viver, Corisco e Coronel –, denominada de “Quilombo do Borrachudo”, ou “Quilombos do Borrachudo”, como se encontra registrado em alguns documentos da época. Problematizando em torno de possíveis significados do vocábulo “Borrachudo” 63 verifica-se algumas conexões plausíveis. A primeira refere-se ao nome de um mosquito simuliídeos, muito comum na Mata Atlântica, principalmente, em terras baixas e alagadiças. Ora, uma simples averiguação sobre a situação geográfica dos mocambos, notaria, de imediato, que pântanos e mangues, juntamente com o rio de Contas e seus afluentes, margeavam os acampamentos dos fugitivos. Mas se tal relação não for significativa, encontrase nas características do mosquito um apanhado de acepções que, no mínimo, são curiosas, quando associadas às diversas formas de atuação dos quilombolas. De cor negra, sorrateiro e dado à invisibilidade, o borrachudo, costuma pegar de surpresa as pessoas desavisadas. Assim como o borrachudo-mosquito, os membros do borrachudo-quilombo costumavam agir obedecendo a algumas regras práticas – tais como imprevisibilidade, discrição e agilidade – quando praticavam razias nas fazendas, roças e engenhos da Vila e adjacências. Durante a década de 1830, as câmaras e os juízes da vila da Barra do Rio de Contas e de outras vilas vizinhas emitiram dezenas de ofícios aos sucessivos governadores, exigindo medidas efetivas para destruir os quilombos próximos às margens do Rio de Contas. Ainda assim, a medida punitiva que chegou àquela vila não logrou êxito total, resultando tão-somente na prisão de 39 fugitivos e na morte de alguns, tendose a maioria dos revoltosos dispersado. Não se tem conhecimento de quando se iniciou o processo de formação dos Quilombos do Borrachudo. Contudo, a ocupação quilombola nessa localidade pode ser constatada a partir de dois documentos contemporâneos: o primeiro de 1823, quando a Câmara de Ilhéus participava e ao mesmo tempo pedia Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ajuda para apreender nas matas do Rio de Contas “um lote de escravos fugidos”, que andavam atacando as pessoas que transitavam por terra das vilas do Norte; o outro data de 1824 e, dessa vez, seria a Câmara da Vila de Barra do Rio de Contas que informava ao Presidente da Província sobre a atuação na vila de aquilombados oriundos de diversas partes da Comarca, a maior parte deles pertencentes ao plantel do Engenho de Dona Ana, da vila de Ilhéus3. Nota-se que as florestas próximas às margens do Rio de Contas se tornaram, desde longa data, um espaço propício para a atividade quilombola. Além da configuração geográfica composta de morros e mangues, existiam alguns poucos engenhos e lavradores de mandioca que, muitas vezes, eram fundamentais para as trocas mercantis efetuadas pelos quilombolas. Os documentos não permitem afirmar de maneira explícita, mas não é impossível que as experiências de ocupação quilombola de 1823 e 1824, nas margens do Rio de Contas, já representassem as bases dos quilombos do Borrachudo. Nos primeiros anos da década de 1830, tornaram-se conhecidos das autoridades das vilas da Comarca de Ilhéus, e principalmente da vila em questão, os lugares onde se estabeleciam os quilombos do Borrachudo. Em 1833, o juiz de paz Rafael José Setúbal informava que Há tempo, que tem constatado na Villa da Barra do Rio de Contas do sul, onde exerço o lugar de Juiz de Paz, que aparece uma imigração de escravos fugidos crioulos e Africanos, que se tem introduzido nas matas da Villa para o distrito de Ilhéus, e eu, quanto em mim tem estado, tenho feito as 3 APEB, Atas da Câmara de Barra do Rio de Contas, maço 1254, Doc. 13/03/1824. diligências precisas para obstar todos os males, que pudessem causar tais salteadores, e para conseguir a certeza dos lugares, em que eles existam [...] Com efeito, fui certificado e informado de que eles, em número maior de cem, existem em três mocambos em diferentes lugares distantes uma ou duas léguas, e outro uma e mais [...] (APEB, Judiciário, Barra do Rio de Contas, cx. 744, maço 2246, Doc.21/03/1835 ). Neste ofício, o discurso empregado pelo juiz de paz projeta-se no intuito de estabelecer a ordem na vila da Barra do Rio de Contas. Não se sabe se a distância apontada no ofício se refere à de um quilombo para o outro ou à localização dos quilombos em relação à sede da vila. Apesar de algumas imprecisões, estas e outras informações sobre os Quilombos do Borrachudo, destinadas à capital da província, tornaram-se frequentes. Isso deveu-se principalmente à dificuldade de destruir tais mocambos. Em 09 de agosto de 1834, nas sessões da Câmara de Ilhéus, não se falava em outro assunto: os quilombos do Corisco, Colégio Novo, Colégio Velho, Sabura, Retiro Alegre, Santo Antônio do Bom Viver e Coronel já se tornavam um problema que merecia medidas efetivas. Nesse intuito, a Câmara elaborou uma representação exigindo do governo providência emergencial. Consta no documento que esses mocambos estavam organizados a ponto “de haverem formado entre si juízes de paz” e que para efetuar as investidas sobre eles era necessário o auxílio de oitenta botocudos domésticos, que estavam sob a liderança do Padre Manuel Fernandes da Costa, vigário da Missão da Conquista da Ressaca, e de vinte “bugres” sob a administração do Frade Ludovico de Leorne4. 4 APEB, Câmara de Ilhéus, maço 1316, Doc. 09/08/1834. 64 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 A guerra promovida pelas autoridades municipais contra os Quilombos do Borrachudo parecia não ter fim; as várias tropas punitivas domésticas enviadas não logravam êxitos. Agora era preciso ajuda de fora da Comarca. Meses depois, o Presidente da Província informava à Câmara de Ilhéus que as providências já tinham sido tomadas levando em consideração as medidas apontadas pela dita câmara. No entanto, as medidas não foram consolidadas naquele mesmo ano. Mas a vila de Barra continuou a enviar ofícios para o governo, informando sobre arrombamentos de propriedades, furtos, roubos e abandono de fazendas pelos seus proprietários, assim como o fizeram Dona Ignácia de Loyola e Menezes, Antônio de Villas Boas e Moraes, Bernardino José de Magalhães e seus irmãos, dentre eles, Alexandre de Villas Boas. Em abril de 1835, dados mais precisos sobre rotas de fugas de escravos das vilas do Norte, que seguiam em direção aos Quilombos do Borrachudo, foram fornecidos por autoridades locais, que, ao perceberem o envolvimento da escravatura, já começavam a temer uma possível “insurreição quilombola” na região. Assim parecia constatar o juiz de Paz de Maraú Manuel Pereira: Pesando sobre mim o dever de cooperar a bem da segurança e tranquilidade desta Vila, e vendo-a [...] todo o dever acometido pelos insurgentes reunidos não só nas matas da Vila da Barra do Rio de Contas, [...], em o Quilombo do lugar denominado o Borrachudo, mas ainda pelos de outros situados nos de outras Vilas desta Comarca, e dispostos, por já terem recente mesmo aparecido em grupos atacando as casas de alguns fazendeiros [...] aquela corporação inimiga pela fuga de avultado número de escravos desta e mais vilas da Comarca, e mesmo a aparição de um saveiro indo de quatro remos, mas 65 encontrado já sem eles [...] e barcos que todos dentro da barreta do Rio Piracanga que deve prestar [para as fugas de escravos] da Vila sobredita [...]. (APEB, Juízes, Maraú, cx. 808, maço 2476, Doc.20/04/1835). O juiz informou com detalhes, ao governo da capital baiana, que os escravos fugidos de Maraú e de outras vilas seguiam o curso do Rio Piracanga - uma das vias naturais de acesso à desembocadura do Rio de Contas – partindo em direção aos quilombos presentes nas matas da vila da Barra, num lugar chamado Borrachudo. Através de saveiros e barcos, com a cumplicidade de barqueiros ou com embarcações roubadas, muitos escravos desembarcavam e seguiam suas rotas de fugas. Essas informações corroboraram com as constatações feitas, em 1834, pelo juiz Rafael José Setúbal sobre a existência de possíveis ligações desses fugitivos com outros escravos da região e com pessoas livres. Consternado com tais relações, o sobredito juiz não deixou de mencionar, em sua narrativa, o que para ele efetivamente representava essa dinâmica entre quilombolas e sociedade envolvente, no que diz respeito à quebra da manutenção da ordem escravista: de um lado, os quilombos, na condição de inimigos “externos e declarados”; do outro lado, a presença de pessoas livres ou cativas, que, fornecendo todos os bens necessários para o bem-estar dos fugitivos se enquadravam na condição de inimigos “internos e occultos”, informando, assim, a natureza clandestina e ilegal dessas ligações. Da fluidez com que ocorriam as relações sociais estabelecidas entre os setores escravos e livres, depreende-se, em parte, a crítica mordaz do juiz Rafael e, por extensão, de Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 seus pares no cenário da escravidão. A política estatal, desde o início do processo colonizador, foi realmente projetar uma sociedade em que os setores sociais fossem hermeticamente fechados, e para efetivar tal projeto, recorreu-se “à criação de sistemas sociais marcados por diferentes patamares de status, diferentes códigos de conduta e diferentes representações simbólicas em cada setor.” (MINTZ, 2003, p. 23) A questão fundamental é que a sociedade tal como foi projetada através de leis, códigos e condutas, não se consolidou. Esse ideal de sociedade fazia provocar uma série de contradições sociais perceptíveis e vivenciadas por pessoas livres, escravos e libertos. 4. A Expedição de 1835: os sentidos e significados de uma repressão A prática de repressão aos mocambos, no Brasil e em várias regiões da América, incluía, dentre outros elementos, a reunião de uma tropa e de meios necessários para sua atuação e manutenção. O grande problema é que essa preparação não era uma tarefa fácil. Para se efetivar uma diligência dessa natureza, era preciso obter recursos para prover a tropa e o pagamento dos soldados. Outro obstáculo dizia respeito à mobilização da tropa, pois, normalmente, os destacamentos locais eram diminutos. No entanto, esse era o preço com que senhores e autoridades teriam que arcar. O apoio do governo provincial, que chegou à vila da Barra do Rio de Contas no mês de maio, consistiu no envio de quarenta armas, mil e duzentos cartuchos, além do comandante da expedição – o alferes Guilherme Frederico de Sá Bittencourt e Câmara. Os senhores da vila – alguns deles com escravos aquilombados contribuíram com um total de 337$000 (trezentos e trinta e sete mil réis). Com este valor se compraria em 1820 um escravo, e, em meados de 1830, pagaria um aluguel de um casebre. No mais, foi requisitada ajuda das vilas de Ressaca, Ferradas e Maraú, e da sede da Comarca de Ilhéus. Resolvidos esses problemas, outros apareceram5. Um dos entraves vivenciados pelas autoridades na consolidação da expedição foi a ausência de tropas auxiliares constituídas por indígenas. Estava claro, para os senhores da vila e para seus pares, a importância de arregimentar “de preferência mateiros de Ilhéus, vinte bugres de Ferrada e vinte mestiços e dois índios da Ressaca” para que a expedição, desta vez, lograsse êxito. Segundo Schwartz (2003), a mobilização de indígenas aldeados para engrossar as tropas militares fazia parte de uma política colonial de acentuar as hostilidades entre comunidades indígenas e africanos e seus descendentes. De acordo com Freitas & Paraíso (2001), na Comarca de Ilhéus, ao longo do período colonial, vários aldeamentos foram formados e mobilizados no intuito 5 Esses valores foram calculados tomando como referência os estudos realizados por João Reis. In. REIS, J.J. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1987, sobretudo a primeira parte do texto que retrata a conjuntura econômica e política da Bahia Oitocentista. Para suprir as tropas repressivas, cooperaram as seguintes pessoas: Rafael José Setúbal, com mil réis; Manuel Martins de Lima, oitenta mil réis; João Martins de Lima, cinquenta mil réis; Dona Ana Joaquina do Espírito Santo, cinquenta mil réis; Gonçalo Antônio da Soledade, quinze mil réis; Estevão Pereira Nobre, mil réis; Vicente Martins, dez mil réis; João Lourenço e sócios, trinta mil réis; Manuel Ferreira de Almeida, dez mil réis; André Jose de Sousa, vinte mil réis; Miguel Travassos de Lima, vinte mil réis; Alexandre de Villas Boas, vinte mil réis; Anselmo Gomes da Fonseca, dez mil réis; Francisco dos Santos Borges, dez mil réis; José Gomes de Barros, dez mil réis (APEB, Juízes, Maço 2246, Doc. 21/03/135). 66 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 “de fornecer mão-de-obra aos colonos” e, sobretudo, “usar os aldeados como combatentes dos índios dos sertões”. É nesse sentido que se pode entender o pedido do Marquês de Valença ao ouvidor de Ilhéus, o desembargador Francisco Nunes da Costa, para que se restabelecesse o aldeamento de Nossa Senhora da Conceição dos Índios Grên, no rio Funil. Esse pedido foi feito em 1782 e visava proteger os transeuntes dos ataques dos Pataxós na nova estrada que ligava Barra do Rio de Contas a Cairu e Camamu. Na Bahia e em Pernambuco, a prática de mobilizar aldeamentos contra quilombos começou no século XVI e nos séculos XVII - XVIII já era constituída por uma tropa regular. De modo, que, com o passar do tempo, as tropas antiquilombos ganhariam outras feições, incluindo além de indígenas, também negros, mulatos e brancos. Constituíram, portanto, tropas mais mestiças. Um dos exemplos mais conhecidos foi o do batalhão composto por homens pardos, mulatos e indígenas, comandado por Henrique Dias, com intuito de combater holandeses e, mais tarde, operar na destruição dos Quilombos de Palmares (GOMES, 2003; SCHWARTZ, 2003). Em Barra do Rio de Contas, na expedição de 1835, a tropa auxiliar formada por indígenas foi requerida pelas autoridades municipais e pelo governo da capital. Entretanto, através do oficio do Juiz Miguel Travasso, vê-se que esse pedido de ajuda não foi acatado: Tendo eu oficiado em vinte seis de Agosto ao Frade Ludovico de Leorne requisitando-lhe da parte desse Governo o auxílio de vinte Bugres, ou indígenas sob sua administração, não me foram fornecidos, sob o pretexto privado de receios da [...] dos aquilombados, ou de algum 67 que no caso de não serem vencidos, ou de algum que no caso contrário escapulisse [...]. Igualmente me não foram prestado os vinte Mestiços e Dois Índios que exc. Antecessor de Vossa Excelência ordenara ao Juiz de Paz da Ressaca de nos conferir em auxilio da Força e nem até hoje tive o desengano. (APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, cx 744, maço 2246, Doc. 15/06/1835). A ausência de auxiliares indígenas e a justificativa do frade Ludovico Leorne de que os nativos sob sua administração temiam represália dos aquilombados suscita algumas considerações6. Não se tem certeza se, de fato, o discurso de Leorne expressou o receio dos aldeados. De todo modo, como foi visto, não há como desconsiderar as rivalidades existentes entre índios e negros. Evidências menos ambíguas sobre a atitude do frade frente aos indígenas parece esclarecer, ou talvez, apontar os reais motivos da ausência dos aldeados em fazer parte da tropa punitiva: Solicitando arrecadar não só paramentos e alfaias religiosos, como restos de ferramentas, roupas e quinquilharias já bem danificadas que tendo recebido um frei João Evangelista Potrier uma aldeia que não se realizou no lugar chamado Bouqueirão ficaram por sua ausência em poder de um crioulo Jacinto, que nem garantia oferecia. Entregues a aquele Reverendo Missionário esse resto de ferramentas, roupas e quinquilharia para 6 A aldeia a que o juiz se referiu no ofício foi a de São Pedro de Alcântara, no sítio das Ferradas. Sua criação, em 1816, pelo capuchinho Ludovico de Leorne fazia parte de um projeto de integração da Comarca de Ilhéus com as áreas centrais e às regiões limítrofes da Província da Bahia. Os aldeados ao se dedicarem à cultura de produtos de subsistência acabavam atendendo às reais necessidades de tropeiros e viajantes que circulavam entre a estrada de Ilhéus e a Vila Imperial da Conquista, hoje, Vitória da Conquista, o que possibilitaria a ligação da Província da Bahia com a de Minas Gerais. Vide (WIEDNEUWIED, 1940:.357) Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 distribuir com os indígenas da aldeia. (APEB, Juízes, Comarca de Ilhéus, maço 2395-1). A correspondência enviada à capital da província pelas autoridades de Ilhéus parece evidenciar os sérios problemas que o capuchinho e os aldeados estavam enfrentando. Assim, continuou até meados de 1840. Nesse sentido, é muito provável que a negação do pedido de ajuda fosse uma resposta à política do governo que exigia produção no aldeamento, mas não atendia às reais necessidades dos indígenas no que diz respeito aos recursos financeiros e de segurança, condições imprescindíveis para a fixação do homem à terra. Outros fatos ocorridos e documentados em Barra do Rio de Contas mostram que a postura de indígenas em não querer fazer parte das tropas repressoras pode ter procedência se forem considerados os conflitos entre as autoridades e os aquilombados. Em maio de 1835, o Juiz Bernardino José de Magalhães e Aragão, enviou uma expedição de dez homens contra os membros do Quilombo do Corisco, uma investida que resultou na prisão tão somente de “um negro, uma negra e uma cria”. A atitude inconsequente do juiz – assim foi vista pelos seus pares – custou-lhe muito caro. Numa postura de represália, o dito juiz teve sua casa arrombada, saqueada e, vivenciou momentos de enfrentamento físico com os quinze negros, dos aquilombados. O outro caso de desagravo ocorreu, em 1834, quando um grupo de aquilombados invadiu a casa que funcionava como cadeia resgatando alguns companheiros presos, além de atos de hostilidades às autoridades presentes. É possível, também, entender a ausência dos indígenas de Ferradas e Ressaca como uma expressão silenciosa de solidariedade com os quilombolas do Borrachudo, já que a vida destes e daqueles não se resumia a hostilidades. Naquela altura, esses indígenas aldeados, tal como os quilombolas, eram camponeses envolvidos com a produção de alimentos e, de certa forma, como salienta Gomes (2005, p. 23), “a luta dos quilombolas enquanto resistência escrava pode ter significado a continuidade da resistência indígena”. A escolha de auxiliares indígenas nas campanhas contra os quilombos se dava pelo seu conhecimento e destreza em adentrar em campo inimigo, desvendando o seu sistema de defesa. Sem índios e sem mestiços, a solução encontrada pelas autoridades de Barra foi utilizar as informações do escravo de Dona Ana Joaquina do Espírito Santo – por sinal, antigo morador de um dos quilombos – o crioulo Joaquim, que ajudou na localização dos quilombos e das armadilhas (estrepes e fojos) construídos pelos quilombolas. Outros problemas surgiram durante o processo de formação da tropa, inclusive envolvendo desordens de militares que resistiam em cooperar com a expedição. Notificado pelos juízes do 1º e 2º distrito da Vila, o Presidente da Província ordenava que pessoas da localidade com idade acima de dezoito anos fossem recrutadas e, se necessário, era-lhes permitido “empregar a força” em relação aos Guardas Nacionais que se negassem a prestar auxílio a tal empreitada. Muitas vezes a apatia desses militares estava diretamente ligada ao baixo soldo, que, em muitas campanhas antiquilombos, nem mesmo existia. Mas também podia representar uma atitude de repulsa à atividade de perseguir escravos fugidos. Um fato ocorrido em Ilhéus permite pensar nessa possibilidade. Em 1824, quando houve a insubordinação da escravaria do Engenho de Santana, o Presidente da 68 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Província enviou uma força composta por oficiais e milicianos de Valença e Santarém, resultando na prisão de alguns poucos escravos e na dispersão de outros nas matas. Diante da exigência do ouvidor Mascarenhas, de que se dessem batidas no mato, os militares se insubordinaram e, entre os desaforos que disseram ao dito ouvidor, estava o de que “não eram capitãesdo-mato para prender negros fugidos” (CAMPOS, 2006: 333)7. Outra hipótese, bastante apropriada para este caso, é a de que militares tivessem envolvimento com os quilombolas ou fizessem “vistas grossas” ao comércio clandestino que estes realizavam. Não se pode esquecer que, no momento da batida das tropas nos quilombos do Borrachudo, alguns escravos foram recapturados e por eles se soube que um “certo Sargento-mor de Ilhéus” e seus escravos estabeleciam comércio com os aquilombados. Ultrapassados os problemas ligados à formação da tropa, nos meses seguintes, quer dizer, entre maio e o início de agosto, as autoridades juntamente com o comandante da expedição, o alferes Guilherme Frederico de Sá, preocupar-se-iam em traçar uma estratégia militar favorável à sua acção. A primeira medida estava diretamente ligada ao desarmamento dos quilombolas. Sobre este fato noticia o juiz Miguel Travassos, ao Presidente da Província: Estas mesmas requisições de fazer sustar a venda da pólvora em geral, e o desarmamento dos escravos, fiz ao Juiz de Paz do 1º Distrito daquela Vila de Ilhéus, João Dias Pereira Guimarães e o da Vila de Maraú, José 7 Em 1834, a Guarda Nacional de Barra do Rio de Contas era composta pelo capitão-mor José Antônio de Sousa, o tenente Rafael José Setúbal, o alferes Bernardino José de Magalhães e Aragão, o 1º Sargento Fortunato Joaquim de Magalhães, o 2º Sargento Basílio Luiz da Cruz e o furriel Sebastião Bonifácio de Magalhães. 69 Manuel da Costa Bonilha, e foram de pronto satisfeitas, conforme os ofícios em resposta, requisitando-o também este último ao da Vila de Barcelos; e como tivesse eu dado estas providências na vila, foi isso bastante vantajoso (APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, cx 744, maço 2246 Doc. 06/08/1835). A estratégia de desarmar os negros do Borrachudo, impedindo-os de comprar pólvora e armas, contribuiu parcialmente para o êxito da expedição e, ao mesmo tempo, serviu para desvendar o raio de ação dos quilombolas, que, por sua vez, não estava circunscrito à Barra do Rio de Contas. Desta medida, parecem ter sido informados também os próprios aquilombados, pois, segundo relatou o juiz, os mesmos ameaçaram interceptar a embarcação que viria de Salvador com as munições e invadir o termo da Vila para exigir a suspensão das medidas punitivas. As ameaças não foram concretizadas, mas, na dúvida, as autoridades ficaram em alerta. A segunda fase da estratégia ocorreu nas vésperas da saída da expedição e consistiu “na reclusão de todos os moradores no Termo da Vila”, e aos poucos lavradores que residiam na zona rural, fez-se com que “deixassem as suas fazendas e moradas destituídas de mandiocas e víveres” para que no momento da batida os quilombolas não lograssem sequestrar moradores, nem obtivessem apoio e meios de sobrevivência ao procurarem refúgio nas fazendas. Foi despovoada temporariamente toda a região em torno do Rio da Cachoeira e ao sul da vila da Barra do Rio de Contas8. Entre os meses de agosto e setembro 8 APEB, judiciário, maço 2246 “Relatório da Força Expedicionária comandada pelo alferes Guilherme Frederico de Sá Bittencourt e Câmara”, 24/08/1835. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 de 1835, foram enviadas duas expedições: A primeira saiu em 09 de agosto e durou 15 dias e a segunda deu entrada na mata a partir da primeira metade do mês de setembro. Poucos quilombolas foram presos nessas expedições, mas nos intervalos entre elas muitos se entregaram, “alguns pela fome, pela falta de recursos para sobreviver, outros por medo e, finalmente, pela falta de pólvora que já não podiam adquirir pelas providências tomadas a respeito”, uma clara demonstração da eficácia das duas medidas levadas a cabo pelas autoridades da Vila. Além da configuração geográfica e o sistema de defesa dos quilombos, poderia concorrer para a desvantagem da tropa repressiva, a longa rede de relações entre quilombolas, escravos e outros agentes da sociedade. Em muitas situações era difícil manter o tão almejado segredo sobre as expedições. Assim, investigação e repressão andavam juntas. A expedição de 1835 não encontrou apenas um quilombo, mas vários quilombos articulados entre si e com os escravos das senzalas. Numa medida investigativa, o comandante da expedição tomou conhecimento de como os residentes do Quilombo Colégio Novo ficaram sabendo do avanço da tropa. Inquirida, uma habitante de um dos quilombos – a escrava Maria Bahia – respondeu que “tinha sido pelo aviso” que tivera do escravo do Capitão-mor Estevão Pereira Nobre, o cabra João. A Força Expedicionária comandada pelo alferes Guilherme de Sá contava com a participação de 80 praças, alguns da Guarda Nacional. Em nove de agosto, a tropa partiu de Pancada, um local que funcionava como porto de escoamento de produtos, dentre eles, farinha de mandioca. Para “guia” da tropa serviu o crioulo Joaquim, recém-saído do quilombo, que fora conduzido pelo alferes Bernardino José de Magalhães. Relatando em ofício ao Presidente da Província sobre a atuação da tropa, o juiz Travassos revelara que “tudo se fez com vantagem”, por conta da ajuda do dito crioulo. De fato, a tropa logrou êxito, mas essa vantagem deve ser relativizada por conta de certo exagero do dito juiz em querer causar boa impressão à autoridade da capital da província. No relatório da Força Expedicionária, ficou bastante evidente que o auxílio de Joaquim não foi suficiente para evitar que os soldados e o comandante da expedição fossem surpreendidos com armadilhas deixadas pelos quilombolas na floresta. O impacto das duas expedições resultou na prisão de 38 escravos e uma africana liberta. Alguns destes escravos pertenciam a pessoas da localidade e vilas circunvizinhas. Embora se tenham algumas informações desse processo, não foi encontrada documentação sobre as investigações e interrogatórios que poderiam fornecer mais detalhes a respeito da dinâmica desses quilombos e a relação destes com a sociedade envolvente. À medida que os fugitivos iam chegando à vila, os interrogatórios eram efetuados em público e com a presença de testemunhas e curadores. Cento e trinta pessoas – entre livres e escravos – do termo da vila de Barra do Rio de Contas e dos Ilhéus, declararam “que os negros comerciavam com eles, fornecendo pólvoras, armas, consertos, ferramentas, e outras coisas que necessitavam”9. O relatório da diligência sobre o “aniquilamento e destruição” dos quilombos do Borrachudo, levado em missão incumbida pelo juiz de paz Miguel Travassos, revelou detalhes 9 APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, maço 2246. Doc. 24/08/1835. “Relatório descrevendo a atuação da Tropa formada para “aniquilamento e destruição” do Quilombo do Borrachudo”. Documento redigido pelo alferes Guilherme Frederico de Sá Bittencourt. 70 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 sobre o mundo criado pelos quilombolas no meio da floresta. Esse documento oferece particularidades sobre a geografia do local, rotas de fugas, aspectos socioeconômicos, redes de relações e sobretudo o sistema de defesa dos mocambos. Tendo partido no dia 9 de agosto, a expedição só chegou ao Quilombo Colégio Novo no dia 10, depois de superar as armadilhas deixadas nos caminhos dos quilombos. As vinte casas e os produtos agrícolas encontrados foram “estragados e reduzidos a nada”. No dia 11, a expedição desembocou nos quilombos Colégio Velho e Santo Antônio do Bom Viver e lá encontrou, respectivamente, oito e três casas. Nessa ocasião foram presos três negros que “tinham vindo fazer farinha” no dito Quilombo de Santo Antônio. A tropa seguiu em frente, a desbaratar quilombos, apesar da mata densa. Foram encontrados os Quilombos de Sabura e Retiro Alegre, nos quais não foram achados habitantes. Entre os dias 13 e 15 de agosto prosseguiram no aprisionamento de escravos nas matas. Lauriano, africano pertencente a José Gonçalves Ribeiro, uma vez preso, daria informações sobre as novas “rancharias” dos aquilombados que estavam situadas nas cabeceiras do Almada. Não obtendo êxito na diligência, o comandante e a tropa pernoitaram no Colégio Novo e, pela manhã, o alferes em comissão faria uma grande descoberta: “todos os rastros dos quilombolas em fuga levavam em direção às margens do Rio de Contas”, fato que dá a entender que muitos escravos utilizaram canoas como meio de fuga. Nos dias seguintes, foram destruídos os quilombos Corisco e Coronel. Nesta empreitada, a tropa de repressão contou com a participação do alferes e juiz Bernardino de Magalhães. No dia 18, logo pela manhã, a marcha continuou 71 na floresta, mas, desta vez, o alferes achou de bom tino dividir a expedição em patrulhas, sendo “quatro dirigidas para o norte e três para o sul”, sempre em direção às margens do Rio de Contas. Neste dia, houve tiros e mortes de alguns quilombolas. No resto da tarde continuaram as patrulhas perseguindo quilombolas e, ao findar do dia, todos se recolheram no ponto de referência, denominado Banco. No dia 19, continuaram as diligências e, como não achassem mais rastros de fugas na parte norte das margens do Rio de Contas, o alferes e as patrulhas retornaram ao Porto de Pancada, ponto inicial da expedição. Ali mesmo foram interrogados alguns escravos capturados. No final do relatório, o alferes informando sobre o impacto dessa primeira fase da expedição, não deixou de ressaltar que muitos escravos se entregaram sejam por medo ou pela grande fome. De certa forma, não foram apenas os quilombolas que sofreram com as investidas, a narrativa do comandante da expedição não deixa dúvidas: “No dia 22 vendo eu o estado em que se achava a Tropa, uns estropiados e outros com as pernas feridas de alguns estrepes e mesmo eu, por me achar com as canelas feridas das pancadas dos paus, retirei-me com a gente para esta vila a procurar algum descanso”10. As inúmeras histórias de confrontos entre quilombolas e representantes da classe senhorial que vêm à tona, através das fontes, revelam o quão desestabilizador dos projetos governamentais, se tornou a presença do Borrachudo naquele contexto. Como seria de se esperar, as representações dos quilombolas, que emergem dos discursos 10 APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, maço 2246. Doc. 24/08/1835. “Relatório descrevendo a atuação da Tropa formada para “aniquilamento e destruição” do Quilombo do Borrachudo”. Documento redigido pelo alferes Guilherme Frederico de Sá Bittencourt. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 das autoridades de Barra do Rio de Contas e das demais Vilas da Comarca de Ilhéus, possibilitaram a construção de um “outro” baseado na oposição entre a barbárie e a civilização, entre o Mal e o Bem, entre o Caos e a Ordem. Os mocambos eram adjetivados de “asilos”, “espeluncas”, “theatro da desonra” e seus habitantes caracterizados como seres dotados de ausência de humanidade. Assim relatou, em 26 de dezembro de 1834, o juiz de direito da Comarca de Ilhéus Francisco Primo Coutinho de Castro ao Presidente da Província da Bahia: Eu não posso deixar em silêncio o total atrasamento em que se acha esta comarca, cujo logo que tomei posse, tive a honra de participar a V. Exc. rogando algumas providências conducentes ao adiantamento dela, mesmo a segurança interna, por achando-se cercada de quilombos, ou para melhor me exprimir, espeluncas de assassinos, depósitos de roubos, e asilos de malvadeza. Necessário se tornava um golpe, que definhando tais monstros de espécie humana ressurgisse a paz às famílias, e segurança nos agrícolas, já que chegava a ousadia a um ponto tal de atacarem as fazendas máximas em Camamu onde sem o menor receio, e certos na escassez de forças coercitivas invadem os recintos das famílias, deixando-as em estado de tudo abandonarem (APEB, Juízes, Comarca de Ilhéus, maço 2395, Doc. 31/03/1835). O supracitado trecho do ofício do juiz de direito, em Ilhéus, constitui-se num exemplo claro da histeria senhorial perante a classe subalterna. Isto não quer dizer que, as alegações de “insultos”, “roubos” e outros crimes cometidos contra a propriedade e pessoas pelos fugitivos se tratassem apenas de uma falácia da classe senhorial. De fato, muitos lavradores e autoridades tiveram suas propriedades invadidas11, 11 Pelo oficio de 22 de fevereiro de 1832, o juiz de e, quando isso acontecia, os senhores não poupavam tinta e costumavam caprichar na retórica. Vê-se o trecho da correspondência do juiz de paz Rafael Setúbal expedida para a autoridade máxima da Província, em 1834: Tenho a honra de levar ao conhecimento de Vossa Excelência os acontecimentos seguintes, afim de V. Exc. acudir com as prontas providências, que o caso exige. [...] quando no dia 4 do passado mês de fevereiro indo juntamente com o Capitão Mor Estevão Pereira Nobre para as nossas fazendas, que ficam vizinhas, eis que ao saltarmos no porto, vimos ela ocupada por quinze ou dezesseis dos ditos escravos salteadores, que tendo roubado e saqueado a casa do dito Capitão Mor, para nos avançar com ânimo de nos ofender, e decerto seríamos vítimas, se não valesse a fidelidade dos escravos do Capitão Mor, que indo sobre eles os fizeram recuar a fugir pelos matos (APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, cx. 744, maço 2246, Doc.22/03/1833). Com efeito, não foi desprezível o poder dos quilombolas na disseminação de um clima de medo entre membros das elites dominantes principalmente num período em que a onda negra e/ ou africana parecia representar, de maneira real ou simbólica, o principal inimigo dos segmentos livres da sociedade brasileira. Em 1835, quando houve o Levante dos Malês na cidade de Salvador, autoridades de diversas regiões do Brasil temeram uma insurreição geral da escravatura. A repercussão desse levante na Comarca de Ilhéus também se fez presente, servindo como argumento para paz José Antônio de Souza, do Primeiro Distrito de Barra do Rio de Contas informava ao Presidente da Província sobre o arrombamento da propriedade do Capitão Pedro do Espírito Santo e Aragão e do Major Francisco Prudente de Eça e Castro, nesta propriedade os “Pretos fortificaram-se” (APEB, maço 2246). 72 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 convencer a autoridade provincial - Francisco de Sousa Martins – a tomar as medidas efetivas para destruir os quilombos do Borrachudo e outros presentes nas matas, já que a repressão não fora consolidada pelos seus antecessores. Os inúmeros oficios expedidos pelos juízes do interior da Comarca de Ilhéus ao Presidente da Província fizeram engrossar, ainda mais, a fileira de pedidos de ajuda que partiam de outras áreas da Bahia. Em 18 de abril de 1835, o juiz de paz do segundo distrito de Camamu, João José Fascio, anunciava as possibilidades reais que o fenômeno de Salvador pudesse se instalar na região tomando como referência a falta de instrumentos coercitivos e a incidência de escravos fugidos nas matas. A recente rebelião dos Africanos nessa cidade, além de outras tais tentativas já por vezes aí mesmo praticados são fatos bastantes e sobejos para chamar à atenção as autoridades constituídas e amigas da ordem e por isso não me parece ociosa toda a vigilância tão melindroso, e de tanta ponderação. Marchando deste principio na qualidade de Juiz de Paz do 2º Distrito da cabeça do Termo desta Vila, e pela incumbência que me faz a lei de 15 de outubro de 1827, passo a ponderar a V. Exc. Que um não pequeno número de escravos foragidos devagam as matas desta Vila e suas adjacências. Que estes bandidos e saídos criminosos têm perpetrado por muitas vezes os mais cruéis assassínios, além de roubos, (e seus vícios), de que não tem resultado a mais pronta e enérgica repulsa. Que muitos agrícolas têm abandonado as suas lavouras procurando recinto do povoado para se escaparem às fúrias deste malvado bando, que frusta-se toda e qualquer tentativa para agredir estes pestes da sociedade pela falta de contingente preciso para as despesas que 73 se haja de fazer (APEB, Juízes, Camamu, maço 2298, Doc. 18/04/1835) Aliás, a supracitada correspondência não foi a única expedida pelo dito juiz. Nos meses de abril e junho continuou a relatar, dentre outras coisas, o aumento de fugas de escravos em direção aos quilombos das matas adjacentes, o abandono das lavouras pelos agricultores e muitos furtos e roubos cometidos pelos fugitivos. Com um aparato policial-militar ineficiente e a ausência de uma atitude mais firme do governo central, João José Fascio, num tom provocador, alertou o Presidente da Província: Que no interior das matas desta Vila existe um quilombo de escravos foragidos, e que de dia em dia engrossa mais. Que estes bandidos e sanhudos criminosos tem perpetrado os mais cruéis, e nefandos assassínios, como há três dias, mataram um homem, além de continuados roubos que fazem que muitos agrícolas tem abandonado as suas lavouras, procurando o recinto do povoado, para assim escaparem às fúrias deste malvado bando. Que vaga a notícia que eles até prometem vir a Vila. Sim, Excelentíssimo Senhor, se em face de tantas autoridades policiais, tropa, boca de fogo, e das mais prontas enérgicas providencias aparece uma tal insurreição qual a dos Africanos nessa Capital, o que se não pode tão bem supor de tantos criminosos impunes, que com uma tal noticia se podem encorajar, porem em execução o mesmo plano, conhecendo a nenhuma defesa que aqui há; pois que nem armamento nem munição chegou ainda para esta Vila (APEB, Juízes, Camamu, maço 2298, Doc.24/06/1835). Medo, pânico e histeria tomaram conta do pensamento das autoridades e do povo da região que, naquela altura da situação, temiam que a escravaria local pudesse seguir os mesmos passos Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 dos escravos insurretos da capital. Isto não se concretizou, mas as crenças e os boatos não pararam por aí. Renascia também o fantasma haitiano. O Juiz de Paz do 3º distrito de Camamu, Marcelino Gomes, oficiando ao governo da Província salientava a emergência de ações e revoltas comandada pela escravatura africana na capital e na região. Apesar dos tão funestos acontecimentos que têm tido, e agora tiveram lugar nessa capital, e que aqui há muitos anos quase diariamente há, com insultos, roubos, mortes, perpetrados estes crimes por um temível e grosso envolvimento da escravatura desta e outras comarcas emboscadas nos centros das matas sobranceiras a esta Vila já com toda as autoridades em uma notável indiferença, a vista mesmo de tão desgraçados exemplos se tivessem servido de lição as trágicas cenas noutra ora representadas com sangue e fogo na Ilha do Aiti [Haiti], talvez não se repetisse no nosso País, e em quase todos, o que admitem o comércio de escravatura Africana (APEB, Juízes, Camamu, maço 2298, Doc. 31/03/1835). Nesta correspondência há uma tentativa do juiz Marcelino Gomes colocar em pé de igualdade os acontecimentos de Salvador com aqueles que ocorriam constantemente nas Comarcas do sul da província baiana. A menção ao fenômeno haitiano parece constituir um grande mote para atacar o que realmente o juiz não via com muita tranquilidade: o comércio da escravatura africana. Nessa atmosfera de desconforto encontravam-se políticos, intelectuais e membros da classe dirigente, provincial e nacional, que, passaram a criticar o tráfico de escravos e a escravidão com mais frequência nas décadas de 20 e 30 do século XIX, fomentada no contexto das discussões que giravam em torno das pressões inglesas contra o tráfico transatlântico de escravos. Embora não houvesse consenso quanto às opiniões sobre o tráfico e a escravidão africana no Brasil, dirigentes nacionais passaram a encarar os nascidos em África como inimigos da ordem estatal (REIS, 2003). O haitianismo e o Levante Malê cruzaram mares e fronteiras. Em Barra do Rio de Contas e adjacências, insurreição dessa natureza, não se efetivou, mas, na dúvida e na possibilidade de sua existência, o Presidente da Província da Bahia, finalmente, não hesitou em enviar a ajuda tão requisitada pelas autoridades sul-baianas12. Com as ordens de ataque em mãos, a repressão era esperada de imediato, mas veio a ocorrer somente em agosto de 1835, quase quatro meses depois de recebida a ordem do governo. A experiência do Quilombo do Borrachudo e sua repressão tornaram mais evidentes a fragilidade dos instrumentos de coerção e a série de conflitos e de interesses que impediam a coesão dos setores dominantes nessa região. Durante a década de 1830, registros de invasões de engenhos efetivados pelos quilombolas denotam que, além de representarem um real problema que as autoridades deveriam enfrentar, esse protesto negro acabou por desafiar a hegemonia dos senhores, na medida em que retirou-lhes um pouco do poder simbólico que mantinham sobre seus escravos. Por isso, a onda de saques e a subtração de aves, gados, aguardentes e farinhas nos engenhos – por sinal produtos que faziam parte da dieta alimentar dos fugitivos – refletiam as tensões sociais vigentes 12 Vide a discussão feita por GOMES (1995/1996) sobre repercussões do Levante Malê e do “haitianismo” no Brasil. 74 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 entre a classe senhorial e a comunidade escrava local. Decerto que era uma briga entre desiguais, mas o resultado dessa tensão poderia ter consequências materiais (THOMPSON, 1998: 25-85).13 Era o preço da escravidão que as elites locais tinham que arcar. Os discursos construídos, em torno da atuação dos fugitivos, pelo legislativo e judiciário, traduzia-se numa real necessidade de manter o controlo não apenas da escravaria como do espaço que se pretendia colonizar. Parte considerável das reivindições das autoridades de Barra do Rio de Contas, que foram encaminhadas à capital da Província da Bahia, buscavam subsídios para a construção de estradas e, exigiam uma participação mais efetiva do poder central na vila a fim defender os reais interesses dos habitantes. Tratava-se, na lógica dos dirigentes locais, de levar para os locais mais recônditos os ideais de civilidade. Talvez, o teor desses discursos indicasse de todo modo, uma preocupação em conter o avanço dos quilombolas sobre terras devolutas e reduzir o poder de sedução que a presença dos quilombos pudesse representar, como uma espécie de atrativo, para fugas de escravos; posto que, se a escravidão significou uma desterritorialização dos africanos e seus descendentes, o quilombo, enquanto instituição subjacente a realidade escravista denotou uma forma real de territorialização. Isto permitiu a criação de um território marcado por códigos e referências que orientavam social e culturalmente seus residentes. Menciona-se como exemplo, o quilombo Colégio Novo. A distribuição 13 Recorreu-se, nessa discussão, ao argumento de Eduard Thompson sobre o significado do protesto plebeu, principalmente o segundo capítulo, “Patrícios e Plebeus”. 75 espacial das casas formava uma grande praça, sobre a qual orientavam-se os quilombolas, em caso de fuga. No fundo das habitações destacavam-se o cultivo de diversos produtos, fossem esses para consumo interno, trocas ou vendas. Uma clara demonstração da ocupação e do uso que os fugitivos faziam do solo. Se o território subjaz conflitos, disputas e formas de controle social, isto pode ser traduzido, em parte, nas diversas formas de luta dos quilombolas em defesa daquilo que consideravam como seus domínios. Estes, por sua vez, permitiram provavelmente, formações de unidades familiares, preservação de laços comunitários e um grau de privacidade, garantidos longe dos olhares dos senhores. Certamente, essas leituras sobre a liberdade não ficaram desconectadas dos nomes atribuídos aos mocambos Retiro Alegre, Santo Antônio do Bom Viver e Sabura. Este último evidencia muito bem esse propósito quilombola. Expressão de origem crioula, sabura significa “apreciar aquilo que é bom; tempos aprazíveis.”14 Visto por este prisma, o pano de fundo desta inquietação senhorial recaía-se sobre um território que escapava o controlo do poder institucional. Deste modo, “as instituições criadas pelos escravos para lidar com o constituía, ao mesmo tempo, os aspectos mais comuns e mais importantes da vida assumiram sua forma característica dentro dos parâmetros do monopólio de poder dos senhores, mas separados das instituições senhoriais” (MINTZ, 2003, p. 60). Em vez de ser um enclave isolado 14 Recorreu-se inicialmente aos dicionários de língua portuguesa do século XIX em busca de uma palavra semelhante, mas a tentativa foi malograda. De todo modo, foi apenas no Dicionário Crioulo Caboverdiano (www.priberam.pt/dcvpo/dcvpo.asp. Acesso: 22/08/2008) que o termo sabura e seu significado foram encontrados. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 no meio da floresta, o Borrachudo, no decorrer do tempo, mobilizou-se obedecendo a critérios de produção, manutenção de seus membros e de laços de solidariedade e familiar com a comunidade escrava local e adjacente. Além disso, preocupar-se-ia em construir diversas formas de proteção contra possíveis investidas de pessoas que não fossem bem-vindas por ali, sobretudo, tropas antiquilombos. Caso as formas reais de salvaguarda não lograssem êxitos, poder-se-ia recorrer à proteção de Santo Antônio. Esta parece ser uma explicação razoável para o nome do mocambo Santo Antônio do Bom Viver. Se bem que dado a muitas controvérsias e funções, o santo casamenteiro, também em terras brasílicas teve receptividade nos diversos segmentos sociais. Senhores em busca de escravos fugidos lançavam mão dos serviços do divino capitão-do-mato no intuito de manter a ordem social. Contudo, era nas camadas mais populares, sobretudo entre os negros livres e escravos, que o culto ao Santo António ganhava feições antiescravistas. A associação do santo com a tranquilidade e a segurança revela não ter sido apenas anseio da classe senhorial, mas também de setores racializados e desclassificados socialmente, dentre eles escravos fugidos. (MOTT, 1996). Hesitações e medo à parte, as práticas senhoriais de destruição dos refúgios dos fugitivos não se davam apenas no plano do discurso. Assentava-se, também, no plano mais amplo do simbólico. Como não evidenciar o grau de simbologia conferido às mortes de alguns habitantes dos mocambos. No intuito de prevenir a incidência de episódios desse tipo, a política pedagógica dos dirigentes locais baseava-se na punição e na prevenção. A exposição das cabeças dos escravos, no cemitério do Termo, que foram mortos “em ato de resistência” tinha o objetivo de desmitificar a figura do líder, como alguém imbatível; demonstrar o futuro de quem procedesse de maneira semelhante. Foram destinados à morte, os quilombolas Basílio, Faustino, Roque, respectivamente propriedades dos senhores Rafael José Setubal, Estevão Pereira Nobre e da senhora Ana de Magalhães. Esta moradora de Ilhéus. A repressão aos quilombos era algo esperado e inerente ao cenário escravista, porém, tinha como filha bastarda, a rebeldia dos fugitivos. Uma das histórias de resistência individual que, emerge das fontes, sob a pena do alferes comandante da expedição, manifesta de maneira inequívoca, a indisciplina obstinada de um fugitivo. Era 18 de agosto, numa tarde de terçafeira, quando, segundo o alferes Guilherme de Sá, a patrulha comandada pelo cabo Bernardo Teles chegara com a cabeça do escravo Chagas. As circunstâncias que rodearam a morte do escravo misturam heroísmo e tragédia. Retornando de mais uma diligência nas matas -atrás de fugitivos, os soldados encontraram, na fazenda de Ignácia de Loiola e Mendes, Chagas acompanhado de outros escravos fugidos. Cercados pela patrulha, a atitude da maioria foi se entregar, exceto o dito escravo. Chagas numa atitude de impedir sua reescravização tentou, sem êxito, o suicídio, sob a alegação de que “era mais fácil morrer do que se entregar.” Desse ato decorreu sua morte, após receber dois tiros. Foi sob a alegação de resistir à prisão e de cometer crimes contra a propriedade e pessoas que a morte de Chagas foi legitimada. Contudo, deve-se salientar que a legislação que se seguiu após a onda de conspirações e revoltas escravas realizadas, na Bahia oitocentista, fez pesar sobre os corpos africanos e, por 76 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 extensão aos negros, livres ou escravos, uma série de mecanismos de controlo e de violência coletiva. A lei de 10 de junho de 1835, na qual determinava em seu artigo primeiro, uma série de penas, inclusive de morte, para os cativos que andasse praticando crimes contra pessoas é um exemplo do endurecimento das práticas coercitivas projetadas sobre o quotidiano das “populações de cor”.15 Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendente ou ascendentes, que em sua companhia morarem, administrador, feitor e ás suas mulheres, que com eles viverem. Num sugestivo artigo intitulado “Tambores e temores: a festa negra na Bahia”, João Reis discutiu como, em nome dos ideais de civilização europeus, dirigentes baianos esforçaram-se para manter um controlo maior sobre a população livre mas também e sobretudo sobre a população escrava, a partir de leis provinciais e posturas municipais. Também esclareceu como a cultura africana foi alvo de diferentes políticas governamentais, principalmente, as festas e os batuques, que, quando não foram vistas como a antessala da rebeldia negra, passaram a ser interpretadas como válvula de escape da escravaria (REIS, 2008). De modo algum poder-se-ia saber o que realmente Chagas possuía em termos de sonhos e projetos de vida, mas por certo que não era a escravidão. A liberdade 15 Índices das Decisões de 1835, Lei n. 04, 10.06.1835, p.5. In. Coleção das Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 18311840, disponível em www2.camara.gov.br/internet/ legislação/ publicações/do imperiocoleçao3.html. Acesso em 22/09/2008. 77 – tão almejada pela escravaria e, em particular pelo escravo fujão – se não fosse possível neste mundo, talvez, na ótica de Chagas, pudesse ser efetivada após sua morte. Diante do quadro de terror pintado pelas autoridades da Comarca de Ilhéus, acerca da mobilização escrava da região, era inevitável que a repressão sobre os mocambos do Borrachudo fosse adiada. Considerações finais Neste artigo propus-me, inicialmente, dar uma visão panorâmica das agências quilombolas no sul da Bahia, não obstante as práticas historiográficas que as invisibilizam dando lugar aos feitos coronelistas. No momento seguinte procurei situar o leitor acerca das práticas repressivas e das representações senhoriais presentes na experiência dos Quilombos do Borrachudo em meio a conjuntura política, social e econômica da Bahia Oitocentista. Ao longo do texto destaquei o papel desempenhado pelo haitianismo e o Levante Malê na consolidação da “destruição” dos quilombos Colégio Novo, Colégio Velho, Sabura, Retiro Alegre, Santo Antônio do Bom Viver, Corisco e Coronel, procurando desvelar a relação existente entre repressão e representação. Assim, as denominações “Theatro da Desonra” e “Quilombos do Borrachudo” para designar as aglomerações de escravos fugitivos, são terminologias que permitem incursionar sobre o imaginário da sociedade colonial trazendo à superfície as regras de conduta social, medos, anseios, ideais sociais e, sobretudo suas contradições temporais. Se os sentidos de honra e vergonha “são valorizações sociais e partilham portanto da natureza de sanções sociais (PERISTIANY, 1965: 3)”, o “Theatro da Desonra” emerge como aspecto valorativo das agências escravas de maneira sistemática e negativa e que encontrou na repressão sua validação. Na contrapartida escrava, pode-se afirmar Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 que o movimento contínuo da presença de comunidades de fugitivos esclarece, em parte, a forte tradição de rebeldia cativa sobre a qual assentou significativamente as experiências de africanos e crioulos frente aos padrões de controle e de opressão senhorial da Comarca de Ilhéus e, em particular, da Vila do Rio de Contas. Referências CAMPOS, João da Silva (1981). Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura. DIAS, Marcelo Henrique (2007). Economia, Sociedade e Paisagens da Capitania e Comarca de Ilhéus no Período Colonial. Tese (Doutorado em História Social) – IFCH, Universidade Federal Fluminense, Niterói, p.354. FREITAS, Antônio F. G. de; PARAÍSO, Maria H.B (2001). Caminho ao encontro do mundo: a capitania, os frutos de ouro e a princesa do Sul. Ilhéus: Editus. GOMES, Flávio dos Santos (1995-1996). 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Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1831-1840. 79 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 80 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 BATUKU: DE DIVERTIMENTO DE ESCRAVOS A PATRIMÓNIO IMATERIAL1 Gláucia Nogueira2 Resumo/Abstract O batuku, género musical cabo-verdiano baseado na percussão e no canto, tem hoje na sociedade cabo-verdiana um estatuto bem diferente do que teve no passado. É valorizado; grupos novos estão sempre a surgir; artistas de sucesso têm na sua sonoridade a matéria-prima para a sua obra, reelaborando-o. Fica claro que hoje o batuku é visto como um património de Cabo Verde. Mas nem sempre foi assim. Relatos históricos, textos de jornais antigos e mesmo a literatura, na prosa e na poesia, mostram com abundantes registos como em outros tempos o batuku, um “divertimento de escravos”, era apenas tolerado; mais tarde, foi um divertimento dos camponeses no interior de Santiago, também apenas tolerado, e, em certos momentos, mesmo reprimido. Este artigo procura mostrar o quão diferentes são as atitudes face a esta expressão musical-coreográfica antes e depois da independência de Cabo Verde. A luta de libertação é um divisor de águas nesta história. Palavras-chave: Cabo Verde; património cultural; património cultural imaterial; música; batuko. Batuku, Cape Verdean musical genre based on percussion and singing, is today in Cape Verdean society a very different status than it had in the past. It is valued; new groups are constantly emerging; artists inspired by the rhythm of batuku recreating it. Batuku today is seen as cultural heritage of Cape Verde. It was not always so. Historical reports, texts of old newspapers and even literature show as in other times batuku, a “fun of slaves” was only tolerated; later, it was a fun of the peasants in Santiago, also only tolerated, and at times even repressed. This article shows how different are the attitudes towards this musical-choreographic expression before and after the independence of Cape Verde. Keywords: Cape Verde; cultural heritage; immaterial heritage; music; batuko. 1 Este artigo é uma adaptação da dissertação de mestrado em Património e Desenvolvimetno defendida pela autora na Universidade de Cabo Verde em Março de 2011, intitulada “Batuku, património imaterial de Cabo Verde. Percurso Histórico-Musical”. 2 Gláucia Nogueira é jornalista e antropóloga, mestre em Património e Desenvolvimento pela Universidade de Cabo Verde. Bolseira do Instituto de Investigação e do Património Culturais (2011/2012) para produção do Dicionário de Personagens da Música de Cabo Verde. No âmbito de pesquisas sobre a música em Cabo Verde, é autora de: O tempo de B.Léza, documentos e memórias (IBNL, Praia, 2006); Notícias que fazem a história – A música de Cabo Verde pela imprensa ao longo do século XX (ed. autor, Praia, 2007); B.Léza, um africano que amava o Brasil (Ministério da Educação, Brasília, no prelo); e Batuko, património imaterial de Cabo Verde - percurso histórico-musical (no prelo). 81 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Introdução O poema Batuko1, de Kaoberdiano Dambará , que faz parte do livro Nôti, publicado pelo PAIGC em Paris em 1964, pode ser visto simbolicamente como um momento zero da mudança de estatuto do batuku2, no período da luta de libertação. O poema, que termina com o verso “Batuko e nos aima”3, aparece na voz de Armando Dupret no LP Poesia Cabo-Verdiana Protesto e Luta, também editado pelo PAIGC, na Holanda, por volta de 1969, como instrumento de consciencialização e mobilização política no interior das comunidades cabo-verdianas na Europa. Enquanto isso, em Cabo Verde, o batuku era reprimido, tal como outras manifestações culturais populares, como os bailes de funaná4, de acordo com vários depoimentos. Corsino Fortes, que viveu na Praia na década de 60, afirma em entrevista a Michel Laban que havia em Santiago “muito mais violência [do que em S. Vicente] pelo menos de ordem cultural”, e refere: Os batuques, a tchabeta , as finaçons e a tabanka eram expressamente proibidas, sendo necessário ir para o interior onde, em ambiente de sigilo e de secretismo, se podia participar ou assistir. Toda a manifestação cultural de cariz africana era pura e simplesmente reprimida. Em 1 Kaoberdiano Dambará é pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes, advogado que em finais dos anos 60 e início dos 70 defendeu militantes da luta de libertação caídos nas mãos da PIDE e que é o poeta que “inventa a Negritude Crioula” (HOPFFER ALMADA. In VEIGA, 1998, p. 143). 2 Será utilizada a grafia batuku (a adoptada pelo ALUPEC) para diferenciar o tema deste artigo de outras manifestações culturais que nos países de língua portuguesa se convencionou denominar “batuque”. Nas citações, contudo, mantém-se a grafia original. Optou-se também por não utilizar itálico em nomes de géneros/estilos musicais, sejam caboverdianos ou de outros países. 3 Tradução: “batuku, a nossa alma”. O texto original e traduzido para português por M. Freitas encontra-se em http://www.umassd.edu/ SpecialPrograms/caboverde/cvkriolp.htm Consultado em 07.02.2010. 4 Funaná: género musical tradicional do interior de Santiago, cuja história tem semelhanças com a do batuku, uma vez que também era menosprezado no período colonial e depois da independência foi recriado e adoptado pelo público urbano. São Vicente, que é praticamente uma cidade onde não há uma clara distinção entre os meios rural e urbano, a repressão incidiu quase apenas sobre as serenatas, o toque de tambores nas festas de São João e Santo António, mas nunca com a violência, como em Santiago. (LABAN, 1990, p. 392). Mas chegava-se ao fim de uma era. Às vésperas da independência, quando já surgiam na Praia e arredores eventos organizados pelo próprio Ministério da Educação e Cultura levando ao palco grupos de batuku, os leitores do Novo Jornal de Cabo Verde – publicação criada em 1974 logo após a extinção de O Arquipélago – puderam ler um artigo intitulado “Apontamento – Batuco” (DELGADO, sob o pseudónimo Wanga, 2009, p.17), em que o autor afirma, após ter assistido ao evento: “O batuco só ganhou o direito de subir a um palco de teatro com a subida ao palco da História do povo que o criou”. E prossegue, de forma entusiasmada, na efervescência que se vivia a menos de um mês da proclamação da independência: “Apetece perguntar quem foi aplaudido: o ritmo desenfreado e as palavras entre dentes ou o povo que dançou? O momento de libertação é um momento de orgulho e o orgulho de um povo tem que ser traduzido em arte: canto, dança ou palavras ou mesmo uma simples estrela negra pintada em qualquer parte” (DELGADO, 2009, p. 17). A partir da independência, como será demonstrado adiante, o batuku – tal como outras expressões culturais tradicionais e populares, que se encaixam no que a Unesco define como património cultural imaterial (ver quadros) passa a a ser encarado de outra maneira, passa a ser valorizado de várias formas, assim como a própria ideia, aliás, de património cultural, que é divulgada pelos formadores de opinião da 82 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 época, procurando sensibilizar a opinião pública para estas questões. Mas antes de chegar a esse período, e com a intenção de revelar o contraste entre a colónia e Cabo Verde independente no que diz respeito ao tema em questão, é interessante recuar no tempo cerca de dois séculos. de Setembro de 1772. Trata-se de um bando mandado publicar e afixar pelo governador Joaquim Salema de Saldanha Lobo proibindo o batuku (ALMEIDA, Horizonte, 19.09.2006, p. 4). No texto, lê-se que “zambunas” propiciam desordens à noite “com tanto excesso, que chega a ser por todos os fins escandalozos a Deus, e de perturbação às Leys, e ao sucego público, prencipalmente por effeito da intemperança dos que se deichão esquecer delles”. Refere ainda que a essas sessões “costumão concurer pessoas estranhas, ou que não pertencem a família de qualquer caza”, numa alusão àqueles que frequentam as sessões de batuku – ou seja, os badios, no sentido que então se dava ao termo: “Classe de pretos livres e libertos que viviam à margem da economia e sociedade escravocratas” (CORREIA E SILVA, 1995, p. 70-71). O castigo para quem desobedecesse era, da primeira vez, quatro meses de prisão. “Zambuna” ou “sambuna” é o nome dado a uma parte da sessão de batuku. É de crer que, no que diz respeito ao documento citado acima, pode-se tomar o termo “zambuna” como equivalente a uma sessão de batuku. O texto refere ainda que esta proibição não é a primeira e podemos inferir que a anterior proibição não era cumprida, já que as zambunas acontenciam naquele momento, levando à publicação do bando em questão. Período colonial 1.1 - Século XVIII - Século XIX A mais antiga referência ao batuku encontrada na pesquisa para a dissertação em que se baseia este artigo data de 16 83 Prosseguindo cronologicamente, temos vários registos sobre o batuku em meados do séc. XIX, época que corresponde ao período final da escravatura (1876) e ao início da imprensa editada em Cabo Verde (1842). Quase um século depois do documento citado, o batuku continua a ser alvo de disposições legais que determinam a sua não realização. Através de um edital datado de 7 de Março de 1866 e publicado no BO Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 nº 13, de 31 de Março, o administrador do Concelho da Praia, José Gabriel Cordeiro, proíbe as sessões de batuku em “toda a área da cidade” e, tal como no documento do século anterior, determina a prisão de quem desobedecer. O aspecto moral é também aqui evidenciado – “um divertimento que se opõe à civilização actual do século, por altamente inconveniente e incómodo, ofensivo da boa moral, ordem e tranquilidade pública” – e os seus participantes são referenciados como “povo menos civilizado” (SEMEDO & TURANO, 1997, pp. 127-128). Além dos textos legais, há desse período relatos de viajantes e textos de diferentes tipos em que se pode encontrar referências ao batuku, em publicações editadas em Cabo Verde, Portugal e outros países. Por exemplo, no romance O Escravo (considerado a primeira obra de temática cabo-verdiana, escrito em 1856 e cuja acção se passa em 1835), de José Evaristo de Almeida, lê-se que o batuku era “uma das poucas distracções concedidas aos escravos” (ALMEIDA, 1989, p. 52). Ao longo desta obra encontraremos várias alusões a estas reuniões musicais. Um dos capítulos intitula-se “Reunião de Escravos – Uma história”, e descreve, na Praia do século XIX, uma casa onde vai se realizar uma sessão de batuku: A pequena porção de candeeiros, cuja luz era absorvida em parte pelo escuro das paredes, revestidas somente do preparo para o reboco – preparo a que a areia preta, com que traçam aqui a cal, dá uma cor triste – tornava sombrio este local, e pouco próprio a uma partida de prazer. (ALMEIDA, 1989, p. 61). Noutro capítulo da mesma obra, intitulado “O Torno”, encontra-se a cena de uma sessão de batuku, e o autor inicia a descrição referindo “os sons pouco harmoniosos de três guitarras – que estavam em completo desacordo entre si” (ALMEIDA, 1989, pp.77-78). O texto prossegue com a descrição do torno, o momento em que uma dançarina solista vai para o meio da roda. Os seus movimentos são referidos como lúbricos, a sua performance é descrita como a “lascívia personificada”. É com minúcia que o batuku aparece descrito pelo naturalista e etnógrafo austríaco Cornelio Doelter y Cisterich, que a caminho do continente africano passou uma temporada em Cabo Verde. Na ilha de Santiago, por exemplo, a dança mais popular é o batuko, uma dança reminiscente das danças africanas encontradas entre os papeis, mandingas, etc. O batuko consiste num grande círculo formado pelos participantes. Ao som de fortes gritos, um homem e uma mulher emergem do meio do círculo, a dançar em contorções selvagens, que são acompanhadas por gestos tão extremos que dificilmente poderiam ser descritos com palavras. Ao mesmo tempo, os outros participantes marcam o ritmo com as mãos e os pés, enquanto entoam cantos monótonos. Assim como no continente, tais danças podem durar horas, ao longo de toda a noite. Mesmo em casamentos e rituais fúnebres, muitos costumes africanos prevalecem sem ter tido muita influência do Cristianismo. (DOELTER, 1888 apud HURLEY-GLOWA, 1997, pp. 171-172),5 É bastante evidente, mesmo numa rápida leitura destes trechos, uma atitude negativa e de reprovação perante o batuku, patente no emprego de termos e expressões como “dezordens”; “excesso”; “escandalozos”; “intemperança”; “que se 5 Tradução do alemão para o inglês por Susan e Josef Glowa. Tradução do inglês para o português feita pela autora com o apoio de Robert Sarwark. 84 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 opõem à civilização actual”; “altamente inconveniente e incómodo”; “ofensivo da boa moral, ordem e tranquilidade pública”; “campo da imoralidade e da embriaguez”; “pouco decente”; e “lascívia personificada”. Percebe-se também nesses trechos a alusão a quem pratica o batuku, ou seja, a camada mais baixa na escala social: “escravos”; “pessoas estranhas, ou que não pertencem a família de qualquer caza”; “classe de pretos livres e libertos”; “povo menos civilizado”, entre outros. Um trecho de Francisco Travassos Valdez, é explícito ao referenciar os “vadios”, ou “badios”, “gente que mais se entrega ao uso de bebidas espirituosas, do que resulta o famoso batuque, e mil dissoluções e molestias” (VALDEZ, 1864, p. 251). Os locais de realização das sessões de batuku são também reveladores: uma casa pouco decente; o “escuro das paredes, revestidas somente do preparo para o reboco” e às quais a areia preta utilizada dá “uma cor triste”; o facto de o local ser “sombrio”… Por sua vez, a música é apresentada com expressões como: “sons pouco harmoniosos”; “guitarras em desacordo entre si”; “infernal”; “sem cadência, sem harmonia e sem gosto”; “o mais desarmonioso possível”; “cantos monótonos”. Trata-se, pois, de descrições claramente negativas e marcadas por várias ausências: de harmonia, de acordo, de cadência, de gosto, de diversidade de tons. Com a excepção, é verdade, do texto de Almeida, que refere “um outro acompanhamento mais positivo, mais igual e mais conforme ao canto (…) a fazer esquecer velhos pesares (…) uma espécie de rufo, que é onde está toda a delicadeza do xabeta” e ainda a referência às vozes, “que elas possuem de uma extensão a causar inveja ao mais abalizado barítono” 85 (ALMEIDA, 1989, pp. 77-78). 1.2 - Século XX - últimas décadas do regime colonial Ao longo do século XX, várias alusões ao batuku pela imprensa e outros textos contribuem para o que se pretende mostrar neste artigo: as atitudes face ao batuku ao longo do tempo. Reveladores da mentalidade vigente na época colonial entre a elite letrada, ou seja, formadores de opinião, a maior parte dos trechos aqui apresentados estão carregados de ideias e sentimentos negativos, contrários à normalidade, inferiorizantes ou, ao invocar a proximidade do batuku com a África, não o assumindo como característico de Cabo Verde. Um trecho da imprensa de 1917, resposta a um artigo anterior, em meio a uma polémica do momento, contesta um comentário do autor desse primeiro texto: “Lembrou-se o batuque com o propósito de desprestigiar (…) Quiz o crítico deprimir com mais [ilegível] os povos de Cabo Verde, afirmando que dançavam o batuque, parecendo-nos que seja o mesmo que chamar-lhes selvagens?” (LAGE, 1917, p. 2) “Pobres selvagens.” Esta expressão aparece no poema de António Pedro6 que causou celeuma na altura. Consta que o seu livro Diário, publicado em 1929, foi rasgado por um grupo de estudantes liceais e os pedaços remetidos ao autor, criticado pelo seu alheamento à realidade cabo-verdiana. Vivendo em Portugal desde a infância, depois de uma visita a Cabo Verde, aos 20 anos, António Pedro escreveu um poema sobre o batuku com pinceladas 6 António Pedro da Costa (1909-1966), poeta, dramaturgo e artista plástico que revolucionou o teatro português no seu tempo, tido como o introdutor do surrealismo em Portugal, nasceu na localidade de Laranjo, arredores da Praia. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 de cores vivas, em que destaca o aspecto erótico que dele reteve, com termos como “bacanal!”; “dança doida”; “mole e sensual / meneio de ancas e de ombros”; “cópula carnal”; “passo da dança dela / que me extasia…”; “a negra nua e macia…” 7 (COSTA in FERREIRA, 1997, p. 78-79). Pedro Cardoso, por sua vez, aproximadamente na mesma época, dedica ao tema várias páginas do seu livro Folclore Caboverdeano. Recordando que quase nada está feito, “nada escrito com método e seriedade” sobre o folclore cabo-verdiano, critica que por vezes as notícias que aparecem em jornais e almanaques prendem-se ao insólito de certos hábitos, reduzindo-os ao anedótico, quase sempre com “o propósito de ridicularizar a ‘selvagidade’ indígena”. Prosseguindo: “No Folclore caboverdeano deparam-se, é certo, reminiscências de crenças e ritos gentílicos, notoriamente na ilha de Santiago (batuque, tabanca, etc.), onde predomina ainda o elemento etíope sem mescla” (CARDOSO, 1983; 1933, p. 18). O autor dedica algumas páginas ao batuku, à cimboa8 e a algumas cantigas de finaçon, que reproduz e sobre as quais escreve: “Finaçon, versos soltos, muitas vezes sem unidade métrica, improvisados ao sabor da fantasia, podiam chamarse ‘confusão’. Algumas há não de todo destituídas de graça, e outras até envolvendo sentenças” (CARDOSO, 1983; 1933, p. 88). Referindo-se a uma das cantigas cuja letra reproduz, escreve em nota de rodapé: “O santiaguense, sendo como fica dito, o menos evoluído dos seus irmãos, excede-os, no entanto, em dedicação e gratidão para 7 Talvez seja interessante referir que o descontentamento que Diário causou nos jovens cabo-verdianos não foi, provavelmente, devido especificamente ao poema sobre o batuku, mas ao livro de modo geral. Até porque o poema sobre a morna – “já velha sem ser antiga”, “um semicivilizado lasso balanço” – possivelmente também não lhes terá agradado. 8 Cimboa, ou cimbó: instrumento musical cordofone encontrado em vários países da África, com diferentes denominações. Tem uma única corda, feita com fios de rabo de cavalo. A sua caixa de ressonância, de cabaça ou coco, é recoberta com pele de cabra. Utilizado durante as sessões de batuku. Mais pormenores em Nogueira (2007, pp 175-183). com a mãe. Nunca a esquece. Admirável!” (CARDOSO, 1983; 1933, p. 95). Pode-se notar aqui que Pedro Cardoso, embora fosse um intelectual com agudo senso crítico, que valorizava as tradições culturais da sua terra, assinava textos com o pseudónimo Afro e era “um ardente defensor do continente negro e da dignificação do homem africano” (BRITO-SEMEDO & MORAIS, orgs., 2008, p. 9), não estava imune às ideias eurocêntricas do seu tempo. Critica os que ridicularizam a “selvagidade” indígena mas não a contesta, associando, tal como faz João Lopes, como se mostrará a seguir, Santiago às reminiscências da África, ambos (Santiago e a África) distantes do mundo a que o jornalista pertence – uma elite ideologicamente “branca”, ainda que os aspectos etnográficos “africanos” o fascinem. É assim que, do finaçon, Cardoso salienta a falta de unidade métrica e o facto de ser improvisado, aspectos que associa à “confusão” (contrário de ordem, organização). Algumas cantigas, refere, não são totalmente destituídas de graça, o que faz pensar que, na sua opinião, a maior parte o seja. 1.2.1 - Batuku e os claridosos Ao surgir em 1936, Claridade revela já no seu primeiro número o interesse dos seus responsáveis por aspectos etnográficos de Santiago (de que serão exemplos textos de Félix Monteiro sobre a tabanca e de Baltasar Lopes sobre batuku e finaçon), com duas cantigas de finaçon na capa. Baltasar Lopes voltará a estes temas nos números 6 e 7 da revista, e também em Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. Nesta brochura, o escritor claridoso, que defendia a proeminência da componente portuguesa da cultura de Cabo Verde 86 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 sobre a sua componente africana, ao fazer um comentário sobre as tabancas da ilha de Santiago – únicas manifestações cabo-verdianas, segundo ele, em que “se podem ainda notar ecos esbatidos de cultos africanos…” –, diz ser possível que ela “despindo-se do seu carácter ritual, viesse a confundir-se com o batuque; isto é, vir a especializar-se numa forma de expressão dionisíaca da vida”. No mesmo texto, faz referência à população de origem africana das Antilhas e outras regiões das Américas, afirmando: “é animada e conduzida na música, no folclore novelístico, na dança, no aproveitamento de valores africanos para a orquestração típica, por apelos que já não actuam por cá.” (sublinhado da autora) (LOPES DA SILVA, 1958, pp. 19-20) A intenção de Lopes da Silva era mostrar a maior proximidade cultural de Cabo Verde com a Europa do que com a África. Contudo, a ilha de Santiago não se encaixa nesse padrão, como reconhece o autor ao referir que o terreiro de batuku é o meio que a herança cultural africana proporciona ao santiaguense para definir a sua atitude perante a vida. Ou como escreve a propósito do processo de aculturação: Já a ilha de Santiago, com suas manifestações culturais típicas – o batuque (…) a tabanca, o cimbó, a magia negra, o tamborona, o folclore novelístico, o seu catolicismo especial, a maior ocorrência de vocábulos de origem africana – ainda se encontra em fase de adaptação. (LOPES DA SILVA, 1947, p. 19) A mesma postura encontramos em João Lopes, que considera a ilha de Santiago como “em parte um compartimento estanque em Cabo Verde”, que guarda “maior fidelidade às origens africanas, aos seus ritmos originários”. Ainda Lopes, a respeito desta ilha: “Seus batuques evocando na insistência monocórdica do cimbó o que ficou lá longe, em África” (LOPES, 2007, p. 80, sublinhado da autora). Por outro lado, ao escrever sobre a morna, nas suas palavras “a primeira embaixatriz do mundo espiritual de Cabo Verde”, este autor afirma: “A nossa morna como elemento folclórico tem profundas raízes na nossa psicologia e todo o seu andamento traduz um sentir próprio do nosso povo” (LOPES, idem, p. 114). Ressalta destes trechos que, à parte o interesse etnográfico destes autores pelas manifestações culturais de Santiago, a atitude predominante é de considerá-las algo distante: a África com seus batuques, “lá longe”; aqui, a “nossa morna” com a sua melancolia suave. Esta tendência revela-se também nas representações de Cabo Verde nas exposições coloniais em Portugal nesse período. 1.2.2 - A participação de Cabo Verde nas exposições coloniais As representações da colónia de Cabo Verde nas exposições coloniais nunca incluem o batuku. As expressões musicais que levam este nome e que aparecem nesses eventos – com grande sucesso de público, aliás, pelo seu exotismo e exuberância – são as da Guiné, Angola, Moçambique. Estes músicos e dançarinos das colónias portuguesas mereceram, durante a realização da Primeira Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934) e da Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940), grande destaque nas páginas da imprensa de então. Durante todo o Verão de 1940, os jornais trazem anúncios e artigos sobre espectáculos de batuques africanos que se realizam, a partir do início de Julho, semanalmente, para mais tarde entre Agosto e Setembro serem praticamente diários9. Veja-se um 9 Pesquisados para encontrar referências à participação cabo-verdiana 87 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 comentário publicado na imprensa após um desses espectáculos: O europeu acolhe, assim, sempre, com delícia, o espectáculo dos costumes e das curiosidades de outros povos que (...) conservam estranhezas e pitorescos. O que é um batuque? O termo, por si só, é uma trepidante evocação da dança exuberante e colérica, em que palpita a própria alma e o mistério doloroso e frenético da selva. Há ali como que uma repercussão temível das arremetidas e dos uivos das feras, precipitadas através da floresta deusa na ânsia vertiginosa e feroz do ‘stuggle for life’ (...) e os arrebatamentos do amor, as contorções ciosas e brutais que preludiam o êxtase; a submissão dolente do homem sob os raios ardentes de um sol que fustiga (...) Que fantástica orquestração de ritmos, de brados, de apelos, de espasmos se traduz no batuque! (PAMPULHA, 1940) Quem representa Cabo Verde nestes eventos, do ponto de vista musical, é sempre a morna, com a sua melancolia e sentimentalismo. São reveladores os trechos a seguir, extraídos de uma conferência sobre a morna proferida no âmbito da Exposição Colonial de 1934. Para o seu autor, o escritor Fausto Duarte, o batuku praticamente não existe, tendo sido destronado pela morna, que aparece como uma evolução da barbárie / sensualidade / voluptuosidade africana para a suavidade / melancolia / sentimentalismo romântico que se pretende ser a característica do cabo-verdiano. Uma clara intenção de branqueamento da cultura cabo-verdiana emana deste texto, como se pode inferir de trechos como: “Os seus cantares não têm aquela alegria esfuziante que caracterizam os batuques do continente negro”; “O batuque os jornais Diário de Lisboa (01.05.1940 a 06.12.1940); O Século (04.04.1940 a 06.12.1940) e República (01.05.1940 a 06.12.1940). é toada ruidosa a ritmo desconcertante”; ou “O batuque apaga-se ante a modalidade da nova dança onde não existe qualquer reminiscência da ancestralidade negra”. A conclusão do conferencista é que “a feição típica” de Cabo Verde do ponto de vista musical reside na morna e no violão, pois a primeira destronou o torno e o instrumento introduzido pelos europeus fez esquecer a cimboa e o tambor. (DUARTE, 1934, pp. 11,13,16-17) 1.2.3 - A repressão do batuku Várias pessoas que sentiram na pele a repressão ao batuku e outras formas de festejos populares, como o tradicional baile de gaita10, deixaram os seus depoimentos, como Codé di Dona (1940-2010), que contava ter sido multado por tocar uma noite inteira no baptismo do seu filho, nos anos 60, Não tinha cama para toda a gente poder se deitar, não tinha carro, então peguei a gaita e toquei. No outro dia mandaram intimação. Fizeram queixa de mim no regedor (…) 300 mil réis de multa, naquele tempo era como 600 contos hoje. Eu não tinha aquele dinheiro. (Codé di Dona, entrevista, 1998) Nácia Gomi (1925-2011), por sua vez, dizia recordar-se que, à data do seu casamento, em 1959, o batuku estava proibido desde 1941 (havia quase 20 anos); que os catequistas eram instruídos a denunciar as festas com batuku; e que os padres se recusavam a casar pessoas em cujas casas havia batuku (entrevista a Orlando Rodrigues, Agência Lusa, 2004, apud GONÇALVES, p. 28). Hurley-Glowa refere na sua tese que, ao questionar pessoas em Cabo Verde 10 Gaita: acordeão diatónico, utilizado habitualmente para tocar o funaná no contexto tradicional. 88 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 sobre o batuku já ter sido proibido, a geração mais velha de batukaderas tendia a responder que a repressão não era do governo, mas da Igreja Católica, e que os sacerdotes se opunham à livre expressão da sexualidade e do tom de desafio encontrado no batuku. A batukadera Tchim Tabari respondeu-lhe que as autoridades, embora não gostando muito do batuku, nunca impediram o povo de o praticar nos seus próprios bairros. Não podia era subir ao Plateau (HURLEY-GLOWA, pp. 184-185). Os documentos da Administração do Concelho da Praia referentes aos anos 40 e 50 existentes no Instituto do Arquivo Histórico Nacional revelam alguns aspectos desta questão. Para já, a existência de normas que exigiam a solicitação de uma autorização ou licença para a realização de bailes, ainda que fossem em casas privadas, e de outras festas, como por exemplo a tabanca, à qual a música do batuku está associada. (AHN, Cx. 26). Numa autorização de 1947 especificase que são proibidos “cânticos e gritos desordenados”. Sabendo-se que a música de baile nessa época era tocada por grupos compostos basicamente por violas e outros instrumentos de corda, sendo o violino quase sempre o instrumento solista, cabe questionar se não era ao batuku que se referia a proibição dos referidos cânticos e gritos. Sobre a acção da Igreja Católica no combate aos folguedos populares e profanos, vários documentos são reveladores. Em 1956, eclesiásticos pedem às autoridades administrativas que proíbam os bailes por ocasião das festas religiosas, tendo aquelas autoridades agido de acordo com essas solicitações. Para a festa de S. Lourenço, a 10 de Agosto, o pároco de Órgãos pede ao administrador do concelho da Praia para “não dar licença para baile em nenhuma 89 parte dos Órgãos, por ocasião da mesma festa de S. Lourenço, quer dias antes, quer no dia, quer nos dias seguintes”. Como resultado, o administrador do concelho escreve ao regedor da freguesia dos Órgãos incumbindo-o de tomar “as medidas necessárias para evitar a realização de festas e bailes” naqueles dias. O mesmo se passa em Pedra Badejo por ocasião do dia de Santiago Maior, patrono daquela freguesia (IAHN Cx. 58). Esses documentos não fazem referência explícita ao batuku, mas é possível inferir que incidiam sobre ele, entre outros itens dos bailes, já que esta modalidade de música e dança é até hoje uma das formas mais frequentes de comemoração no interior de Santiago. Quanto mais não seriam então naquela época, em que as influências musicais exógenas eram muito mais limitadas. Cabo Verde independente A nova atitude perante o batuku, anunciada pelo poema de Dambará e o artigo de Delgado às vésperas da independência, revela-se já em Setembro de 1975, com o grupo de teatro amador Korda Kaoberdi, dirigido por Francisco Fragoso. O próprio nome do grupo (que significa “acorda Cabo Verde”) é por si só um chamado para que os cabo-verdianos despertassem para a sua própria realidade e cultura. Neste grupo, o batuku teve um papel de destaque através daquela que liderava essa parte dos espectáculos: a já citada Tchim Tabari (Cipriana Tavares, 1922-2003). Com o Korda Kauberdi, o batuku será levado em 1981 para o Festival Internacional de Teatro Ibérico, no Porto, como parte da peça Rai de Tabanka mas antes disso o grupo já actuara nas ilhas de S. Vicente e Fogo e na Guiné-Bissau (Bissau e interior), nas comemorações do Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 aniversário da independência, em 1976. Nesse período, verificam-se deslocações de grupos de batuku para actuarem em diferentes municípios e ilhas, organizadas por entidades como a OMCV e outras ligadas ao partido – único – no poder. Ntóni Denti d’Oru, por exemplo, conta que viajou para S. Vicente, Santo Antão e Fogo, e participou da inauguração do Palácio da Assembleia Nacional (Ntóni Denti d’Oru, entrevista, 1998). Naqueles primeiros tempos do pósindependência, “pouquíssimos conheciam o batuku. Foi uma descoberta para eles” diz Fragoso (NOGUEIRA, 2011, p. 74), referindo-se ao grande número de profissionais e militantes do PAIGC que se transferem do estrangeiro ou de outras ilhas para a capital, nessa altura, o que mostra que o batuku era praticamente desconhecido fora do seu contexto de origem. É interessante notar que vários dos artigos em periódicos dessa época parecem procurar divulgar o batuku para aqueles que não o conhecem e convencer os leitores do seu valor: “Uma das mais genuínas manifestações culturais do povo de Santiago”; “a oportunidade de ver em acção autênticos artistas populares, muitos deles praticamente desconhecidos do público da capital e arredores” são enunciados presentes num artigo que dá conta de um concurso de batuku presenciado pelo primeiro-ministro e altas autoridades nacionais (VP, 19.05.1984, p. 5). A Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV) teve um papel importante na valorização do batuku, seja ao dinamizar grupos e ao organizar concursos e apresentações como também através da sua revista mensal, Mujer. Em 1982, Dulce Almada Duarte, na época directora geral da Cultura, publica um artigo nesta revista e justifica o tema com o facto de o batuku ser “desconhecido por grande parte da população cabo-verdiana”. Trata-se de uma minuciosa explanação histórica sobre o batuku, baseado em grande parte nos escritos de Baltasar Lopes da Silva, e a autora conclui afirmando que, após anos de repressão colonial, “a sua vitalidade de hoje é a prova de que, como disse Cabral, a luta de libertação nacional foi, antes de mais, ‘um acto de cultura’” (DUARTE, Mujer, 7, 1982, pp. 15-16). A publicação da OMCV abriu espaço para o batuku outras vezes, ao longo do ano de 1984: um poema de Vera Duarte intitulado Mulheres batucadeiras (DUARTE, Mujer, Fevereiro, 2, p. 16);11, um perfil (com duas páginas!) de uma menina batukadeira de 13 anos (Mujer, Junho, 6, p. 12-13); e na secção “Puzia & Mujer”, coordenada por Oswaldo Osório, dois textos sobre Bibinha Cabral: “Finação de Bibiña Kabral, cantadeira de Santiago”, com os versos de uma das suas cantigas (Mujer, Novembro, 11, p. 20) e “Ainda Bibiña Kabral, apresentação de divisa” (Mujer, Dezembro, 12, p. 14). Passada uma década da independência, podemos constatar que a luta por uma nova mentalidade do ponto de vista cultural – de que o batuku beneficia, passando a ser valorizado – é uma realidade. Em 1985 realiza-se uma Semana de Defesa do Património Histórico. O então ministro da Educação, Corsino Tolentino, na sua intervenção durante o evento e referindo-se à identidade cultural e à luta de libertação, afirma que a primeira “foi um dos pilares da segunda, como elemento galvanizador das forças de ruptura com o colonialismo” 11 Refira-se, no que diz respeito à sensibilização para as questões do património de modo geral, que esta mesma edição traz um artigo de Dulce Almada Duarte (na época directora geral do Património Cultural) intitulado “Preservemos o nosso Património Cultural” e ostenta na contracapa uma foto da Cidade Velha. 90 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 (VP, 30.10.1985, p. 4). Em 1987, um comunicado do Ministério da Cultura na sequência de uma reunião dos responsáveis e técnicos do sector com o ministro David Hopffer Almada, consta uma série de determinações para acções prioritárias neste domínio, no qual se lê: “Apoio sistematizado e planificado às manifestações culturais do nosso povo, com particular realce para a Tabanca, o Carnaval e as Festas de Bandeira e Apoio às festas tradicionais e aos grupos culturais” (VP, 31.01.1987, pp. 2-3). Na mesma época, um artigo de Arcília Barreto questiona: Como fazer que todo o cabo-verdiano, em cada ilha, em cada canto do mundo, conheça a sua cultura, em toda a sua extensão, não apenas como coisa morta, esquecida na memória de alguém ou no novo livro duma estante, mas sim através de manifestações permanentes que serão os nossos cantos, teatros, danças, cinemas, literatura, construídos da nossa vivência e que evoluirão com o tempo e as coisas no quotidiano? Como fazer que todo o cabo-verdiano conheça e se orgulhe de cada uma das manifestações culturais específicas de cada ilha, de cada comunidade, como elementos ou células do Corpo Cultural que é a Nação Cabo-Verdiana? (BARRETO, VP, 07.02.1987, p. 6) Por sua vez, em entrevista a Michel Laban, o jornalista Manuel Delgado afirmará: A independência política de Cabo Verde não teria sido possível nos moldes em que foi se o PAIGC não tivesse tido a ‘sagesse’ de desenterrar e fazer explodir toda a cultura popular cabo-verdiana. A tabanka, o batuque, tiveram um papel catalisador, fundamental no processo de consciencialização em Cabo Verde (LABAN, s/d, p. 746). 91 Percebe-se nesses trechos que a nova mentalidade baseada nos princípios nacionalistas favorece claramente os aspectos culturais antes menosprezados ao mesmo tempo que se vale deles para a sua própria afrmação. Em termos práticos, pode-se afirmar que é a publicação de três livros de recolhas de cantigas de batuku e finaçon, realizadas por Tomé Varela da Silva12, que atesta a valorização do batuku como elemento da cultura cabo-verdiana, assumido como património imaterial, ainda que, na altura em que saem essas obras, a própria Unesco ainda dá os primeiros passos, com a Recomendação de 1989, do que virá a ser a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial de 2003. Trata-se de Ña Bibiña Kabral – Bida y Obra (1988), Finasons di Ña Nasia Gomi (1988) e Ña Gida Mendi – Simenti di Onti na con di mañan (1990). É ainda do início dos anos 80 a gravação de um documentário intitulado Songs of Badius pelo antropólogo norte-americano Gei Zantzinger (1936-2007). Dado que na altura a TVEC (Televisão Experimental de Cabo Verde) estava a dar os seus primeiros passos, será provavelmente nesse documento que se encontram as únicas imagens fílmicas de Nha Bibinha Cabral, que morreu pouco tempo depois e a cuja memória é dedicada a obra. Mais recentemente, o batuku veio a ser objecto de interesse por parte de duas documentaristas portuguesas, Catarina Rodrigues e Catarina Alves Costa, e do cabo-verdiano Júlio Silvão Tavares. 2.1. ‘Batuku sta na moda’ A partir dos anos 90 do século XX, 12 Refira-se que estas recolhas constituem uma pequena parte do trabalho deste investigador com as tradições orais de Cabo Verde, que já rendeu, até 2011, cerca de meia dúzia de livros, excluídos os aqui referidos. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 passa-se a encontrar com frequência na imprensa e em outras fontes dados sobre o batuku como representação artística de Cabo Verde na programação oficial do país em eventos culturais no estrangeiro, algo que não acontecia antes. A Expo 92, em Sevilha, Espanha; o Festival of American Folklife, da Smithsonian Institution, em Washington DC, em 1995; e A Expo Lisboa, em 1998 são exemplos. Ao mesmo tempo, começam a aparecer gravações de batuku editadas em CD, como no disco Music From Cape Verde, de 1993, editado na Suécia, com cantigas de Nácia Gomi gravadas na sua própria casa. Seis anos depois irá sair, gravado já num estúdio profissional, Nacia gomi cu ses mocinhos, e em 2005 Finkadus na Raiz, desta cantadeira com Ntóni Denti d´Oru. Nácia Gomi teve também uma participação no CD Rei di Tabanka, do grupo Ferro Gaita. Estes são apenas alguns entre vários exemplos de trabalhos discográficos dedicados especificamente ao batuku ou em que ele aparece. Mas já nos anos 80 alguns artistas tinham-se debruçado sobre este ritmo, como Norberto Tavares, João Cirilo e o grupo Bulimundo, cujo terceiro álbum tem justamente o título Batuco. Ao longo dos anos 90, aparecem outros trabalhos de artistas provenientes de diferentes estilos musicais que se baseiam no batuku, nele se inspiram ou dele se aproximam, de alguma forma, como Eutrópio Lima da Cruz, Vasco Martins (para mais pormenores, ver NOGUEIRA, 2011, Anexo 4) e todo o grupo que, a partir de finais da década de 90, surgirá a trabalhar o ritmo do batuku com instrumentos da música urbana contemporânea, em que se incluem Tcheka, Princezito, Vadú, grupo Djingo, Mayra Andrade, Lura, entre outros. Orlando Pantera, que se tornou um ícone desta tendência, chega mesmo a compor um tema em que afirma que o batuku está na moda. Considerações finais A exposição cronológica das diferentes atitudes, e acções delas decorrentes, face ao batuku mostra o quão dinâmica e marcada por questões ideológicas é a maneira de se encarar determinada expressão cultural, revelando a questão de poder que lhe está subjacente: só com o pensamento nacionalista o batuko veio a ser valorizado. Evidencia também como o património cultural é algo construído a partir de escolhas. No caso de Cabo Verde, a morna aparecia na primeira metade do século XX, como elemento representativo de todo o arquipélago, ainda que, como realça Dias ao estudar a construção do percurso da morna enquanto símbolo nacional, fiquem na história apenas três localidades, a Boavista, a Brava e São Vicente, eliminando as outras ilhas (DIAS, 2004, p. 73). A ideia de “primeira embaixatriz do mundo espiritual de Cabo Verde” que “traduz um sentir próprio do nosso povo”, como refere Lopes, (2007, p. 114) é outro exemplo que torna nítida a escolha daquilo que podia ser representativo de Cabo Verde, em contraposição à posição que ocupava o batuku nesse âmbito de ideias – a África, lá longe. Assim, tal como outras expressões musicais que são ícones da cultura dos seus países – como o samba, o fado, o tango –, originários também elas de grupos subalternos, o batuku no seu processo de aceitação e valorização passa também por uma renovação, atraindo artistas das gerações mais novas, incorporando novas linguagens e sons e prosseguindo 92 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 o seu percurso como expressão cultural vigorosa e marca identitária – uma delas – do país. Neste início do século XXI, o batuku aparece como uma forma de arte como várias outras em Cabo Verde. Mas como já se afirmou no início deste trabalho, nem sempre foi assim. Parece oportuno apresentar, como balanço de todo esse percurso do batuku, a visão de Franco Crespi ao comentar o quão problemático é o termo arte. Aplica-se, segundo este autor, segundo diferentes contextos sócio-culturais, particularmente os relacionados com as estruturas sociais (estratificação de classes e de camadas, formação das elites, distribuição do poder, situações de centralidade e marginalidade, modos de produção, formas de consumo, nível da técnica, etc.) e com características do sistema cultural dominante, nas suas formas e nos seus conteúdos (valores estéticos, morais, sociais, estilos de vida, homogeneidade e heterogeneidade, etc.). (CRESPI, 1997, p. 171) Seguindo esta linha de ideias, o termo “arte” é problemático porque não existem critérios absolutos para definir o que é arte e o que o não é, e os critérios em que se baseia a atribuição do adjectivo “artístico” a determinada forma expressiva se alteram com o tempo – algo que a história do batuku nos últimos cinquenta anos mostra com exemplos abundantes. Estudar o batuku é, por outro lado, uma forma de revelar aspectos da trajectória do povo cabo-verdiano, do ponto de vista histórico e cultural, já que o estatuto que passou a ter no período pós-independência é claramente decorrente das ideias nacionalistas do novo poder instituído. Mas ainda antes disso, a própria inclusão do poema de Dambará no LP Poesia Cabo-Verdiana Protesto e Luta, que foi um instrumento da luta que se travava também no âmbito cultural, mostra a reinvindicação do batuku já como parte desse processo de luta contra o colonialismo. E o poeta termina dizendo que o batuko é a alma do povo cabo-verdiano, tal e qual já se dissera da morna. Referências bibliográficas e outras fontes ALMEIDA, José Evaristo de (1989). O Escravo, col. Para a História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, , 2.ª ed., Linda-a-Velha: ALAC. BRITO-SEMEDO, Manuel & MORAIS, Joaquim (orgs.) (2008) Pedro Cardoso. Textos jornalísticos e literários – parte I. Praia: IBNL. CARDOSO, Pedro (1983). Folclore Caboverdeano. Paris: Solidariedade Caboverdiana. (reprodução integral da primeira edição, Porto: Edições Maranus, 1933). CORREIA E SILVA, António (1995). Histórias de um Sahel Insular. Praia: Spleen Edições. COSTA, António Pedro, “V”. In FERREIRA, Manuel, No Reino de Caliban (1997). Lisboa: Plátano. 93 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 CRESPI, Franco (1997). Manual de Sociologia da Cultura. Lisboa: Editorial Estampa. DELGADO, Manuel (2009). De Rabidantibus, Praia: A.P. C. Delgado. 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Eutrópio Lima da Cruz, Ami N ta Monda, cassete, e/a, 1991. __________________, Ilhas Barrocas, 2 CD, Mindelo, Afrika, 2000. (Inclui a reedição de Ami N ta Monda) Ferro Gaita, Rei di Tabanka, CD, Praia, e/a, 1999. João Cerilo, Pó di Terra, LP, 001-XL, Lisboa, Táki-Tálá, 1982. Lado 1 faixa 2, lado 2 faixa 4. Nácia Gomi e Ntóni Denti d´Oru, Finkadus na Raiz, CD, Praia, AV Produções, 2005. Nácia Gomi, Nacia Gomi cu ses mocinhos, CD, 285, Praia, Sons d´África, [2000]. ___________, Poesia Cabo-Verdiana Protesto e Luta, LP, 6802 580 Y, Roterdão: PAIGC, [1970]. Lado 1, faixa 4. Vasco Martins, Danças de Câncer, CD, 66981-2, Paris, Mélodie, 1996. Faixas 2, 12. ___________, Quatro Sinfonias, CD, Mindelo, Harmonia, 2007. Faixa 1 Documento audiovisual ZANTZINGER, Gey (produção e realização). Songs of badius, documentário, 35 min., produção: Constant Spring Productions, [1986]. Outros documentos UNESCO (2003) Convenção para Salvaguarda do Património Cultural Imaterial de 17 de Outubro de 2003, adoptada em Cabo Verde pelo Decreto 4/2008, BO, 16.06.2008, I Série, 22. Fundo Arquivístico da Administração do Concelho da Praia - Instituto do Arquivo Histórico Nacional: Caixas n.º 23, 26, 58, 90. Entrevistas e esclarecimentos Codé di Dona (Gregório Vaz), S. Francisco, Junho 1998. Dulce Almada Duarte (via e-mail), Março 2011. Francisco Fragoso (via e-mail), Março 2010. 97 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 98 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 A FAMÍLIA EM CABO VERDE. UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA1 Andréa Lobo2 Resumo/Abstract O artigo tem por objetivo refletir sobre as categorias de organização e desorganização no contexto familiar cabo-verdiano a partir de uma perspectiva antropológica. Lançando mão dos dados coletados em pesquisa realizada na ilha da Boa Vista, analiso a constituição de uma estrutura familiar que é informada, em larga medida, por modelos em contraste e em composição, o modelo local e um modelo ideal de família nuclear associado ao mundo europeu. Desta forma, pretendo relativizar as noções de “desagregação” e “crise” recentemente associadas ao contexto familiar nesta sociedade ao desvendar a organização social do contexto familiar em Cabo Verde. Palavras-chave: Cabo Verde; antropologia social; organização familiar; parentesco; género. The article aims to reflect on the categories of organization and disorganization in the family context of Cape Verde from an anthropological perspective. Culling the data collected in a survey conducted in Boa Vista, I analyze the constitution of the family structure that is informed largely by models in contrast and composition, the local model and a model of one ideal nuclear family associated with Europe. Thus, I intend to relativize the notions of “disintegration” and “crisis” recently associated with family in this society to unravel the social organization of family context in Cape Verde.. Keywords: Cape Verde, social anthropology; familiar organization; kinship; gender. 1 Uma versão deste trabalho foi apresentada na Conferência de Abertura da 3ª turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade de Cabo Verde. Agradeço os comentários dos participantes que, na medida do possível, foram incorporados na versão atual do texto. 2 Andréa Lobo é doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB). Hoje é professora adjunta da Universidade de Brasília. Realiza pesquisa em Cabo Verde desde o ano de 2000 sobre fluxos migratórios e organização familiar na sociedade cabo-verdiana. 99 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 O tema da “crise familiar” tem mobilizado, nos últimos anos, esforços de políticos, intelectuais e ativistas do terceiro setor em Cabo Verde. Dentre os diversos desafios que o país enfrenta no contexto póscolonial, as reflexões sobre a “estrutura familiar cabo-verdiana” e sua suposta desagregação têm sido foco de debates e de propostas de políticas públicas (re) ordenadoras. Num país frequentemente caracterizado por uma intensa “abertura ao outro”1, tais processos ocorrem em meio a um diálogo com distintos modelos de estruturas familiares, especialmente com o modelo de família nuclear e associado a uma estrutura familiar ocidental europeia. Tendo como pano de fundo este debate, o presente artigo tem por objetivo refletir sobre as categorias de organização e desorganização no contexto familiar cabo-verdiano a partir de uma perspectiva antropológica. Lançando mão dos dados coletados em pesquisa realizada na ilha da Boa Vista, analiso a constituição de uma estrutura familiar que é informada, em larga medida, por modelos em contraste e em composição. Desta forma, pretende-se relativizar as noções de “desagregação” e “crise” recentemente associadas ao contexto familiar nesta sociedade. Inicio com a citação de uma informante; sua perspectiva dará o tom de minhas reflexões. Aqui temos muito o problema da família desestruturada, não tanto por causa do divórcio, porque a maioria nem casada no papel é, mas por causa da emigração. A mulher emigra e os filhos são criados pelas avós, não tendo a referência de pai e mãe, e isso complica muito a questão 1 Não me refiro somente ao fenômeno migratório ao falar desta “abertura ao outro”, mas do importante papel de instituições de países do Norte no âmbito da cooperação internacional, dos quadros de intelectuais e outros profissionais que estudam em universidades de diferentes países retornando a Cabo Verde com ideias e modelos de fora; isso sem falar da história do arquipélago, marcada por fluxos com diversos “outros” e a capacidade dos “ilhéus” de incorporarem o de fora na constituição de uma cultura crioula. familiar, pois os avós fazem parte de uma geração muito diferente da dos netos e não conseguem ter diálogo. A relação com as mães emigradas acaba por ser difícil por causa da distância, pois elas passam um ou dois meses a cada dois anos perto dos filhos e o resto do tempo fora. O pai boa-vistense não liga para a família mesmo, então o peso fica todo na avó. A emigração é o bem e o mal de nossa família. É uma família desestruturada, não é normal como lá na Europa, por exemplo. Lá o pai e a mãe dividem tudo, a responsabilidade na casa e no trabalho. , Aqui é só a mulher … coitada … ! O homem só quer saber “de do seu egoísmo, de da sua rua”, das pequenas [namoradas] e do grogue [cachaça]. Daí tem vem o problema da gravidez precoce e da promiscuidade sexual que está pior agora por causa de muita mistura na Boa Vista, por causa do turismo. O problema é assim: os jovens da Boa Vista comportamse cada vez mais de acordo com influência de coisas ruins justamente por não terem a referência correcta do pai e da mãe juntos, como deve ser! A reflexão é de uma professora do Liceu da Boa Vista. Ela tenta explicar para uma jovem italiana porque a Boa Vista estaria perdendo os valores morais que por tantos anos a distinguiu do restante das ilhas do arquipélago de Cabo Verde: povo pacato, simples e alegre. Onde estaria o problema? Primeiro, na ideia de uma família desestruturada em que a mãe se encontra-se na emigração, o pai em qualquer outro lugar que não a casa, e a avó, já com idade avançada, assumindo funções que não lhe caberiam em uma situação de “normalidade”. Complementar a este esse quadro, a explicação da professora incorpora o turismo e a “mistura” como um segundo foco de problemas para os 100 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 jovens da ilha, sendo aqui a categoriachave a de “má influência”. A imagem construída pela professora era compartilhada por muitos que foram convidados pela pesquisadora ou por algum evento cotidiano, a refletir sobre a organização familiar boa-vistense. Por diversas vezes fui corrigida quando explicava o sentido da pesquisa sobre organização familiar: você quer dizer desorganização familiar, não é mesmo? Esta questão trazia uma ambiguidade importante e sempre presente no entendimento que tinham sobre os objetivos da pesquisa: ao imaginarem que a família nuclear e monogâmica (e idealmente europeia) seria a única adequada, interpretavam que factores característicos da família boa-vistense seriam sinais de atraso, desorganização ou até declínio das relações familiares. Porém, quando tais explicações eram cruzadas com uma observação atenta e continuada das práticas em torno da família, a ambiguidade ficava mais aparente, inspirando minha curiosidade com os entendimentos sobre a desorganização na família da Boa Vista. Desde os primeiros dias de trabalho de campo impressionou-me o valor dado à mobilidade e à circulação de homens, mulheres e crianças no universo familiar boa-vistense e logo percebi que tais famílias “espalhadas” não eram frutos de desorganização, tal como explicava a professora, mas de uma “outra” forma de organização familiar. Embora os próprios boa-vistenses pontuem suas conversas com frases e afirmações que valorizam a moralidade da família cristã europeia enquanto situação ideal, suas práticas e atitudes diante de fatos concretos revelam orientações que pouco têm a ver com ela. Tal contexto desafiava dois pressupostos metodológicos básicos da antropologia; 101 o primeiro, de que não existem valores irracionais que sejam mantidos e atualizados pelas culturas e, o segundo, de que devemos levar a sério o que nossos informantes nos dizem. Ora, a fala que abriu esta apresentação me colocava-me numa situação, à primeira vista, complicada – como lidar com a categoria desorganização quando ela estava colocada no discurso de meus próprios informantes? Minha saída foi, portanto, conjugar duas faculdades muito utilizadas no trabalho de campo: o ouvir e o ver. Conjugando discurso e prática busquei encontrar uma saída para este dilema inicial. A coesão familiar na sociedade boavistense depende da força dos mecanismos para solucionar os riscos de uma estrutura que se especializou em ejectar alguns de seus membros, prioritariamente mulheres adultas, do sistema social. Neste contexto, o pressuposto de que “a família tem que viver junta” dá lugar a outra ideia de família. Trata-se de um contexto familiar que guarda características fortes da matricentralidade, normalmente associada à família cabo-verdiana, mas que ao mesmo tempo empurra as mulheres para a emigração na Europa; de famílias que percebem o binômio mãe-filho como o vínculo mais importante, porém separamnos em nome da reprodução familiar; famílias que têm a criança como um valor fundamental, mas que as colocam para circular entre casas e localidades; famílias que constroem a ideia de parentesco por relações de partilha e proximidade, mas vivem os relacionamentos familiares à distância. Seriam estes valores ambíguos? Contraditórios? A análise que se segue vai demonstrar que o sentimento de pertença pertencimento ou quebra nas relações familiares depende de um equilíbrio na manutenção dos diversos Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 princípios de filiação social que mantêm as pessoas unidas. Um princípio emerge de maneira especial, a unidade mãe-filho. Então, a estrutura familiar encontrada na Boa Vista opera, em suas ambiguidades, como um sistema de princípios que fornece a base para que indivíduos e grupos sejam capazes de reproduzir práticas e relações fundamentais ao sistema (Bourdieu, 1991). Em que a antropologia pode contribuir para este debate Estudos sobre a organização familiar são tradicionais em nossa disciplina. Desde os clássicos, nós nos vemos envolvidos em debates sobre consanguinidade, filiação, descendência, parentesco, universalidade da família, a dicotomia entre o biológico e o social, conflitos geracionais, conjugalidade, entre outros. Tais conceitos tornaram-se indispensáveis ao pensamento antropológico e toda a terminologia de parentesco acabou por se constituir como a área de estudos que mais caracterizava a antropologia como disciplina independente (Pina Cabral, 2003). Com o desenvolvimento dos estudos na área, pesquisadores foram sendo desafiados a redefinir os conceitos clássicos e novos debates surgiram à luz dos materiais fornecidos pelas sociedades estudadas. No período que vai dos anos 60 até meados dos anos 80, as teorias da antropologia do parentesco do período clássico sofreram críticas profundas. Edmund Leach (1961) e Needham (1971) foram os primeiros a lançar críticas radicais à teoria do parentesco, instalando-se uma crise na antropologia da época que ficou latente ainda por alguns anos. Foi somente em 1984, com David Schneider, que se reapresentou uma crítica ao eurocentrismo do conceito de parentesco que, anos mais tarde, iria gerar uma discussão da problemática do parentesco em novas linhas, bem como o deslocamento da atenção para outras temáticas, como género, casa e outros. O trabalho de Schneider (1984)2 nos conduz-nos à desconstrução da categoria parentesco fundada em laços genealógicos. O autor critica o caminho pelo qual, desde Morgan, os antropólogos aplicaram ideias e valores ocidentais para a análise do parentesco em outras sociedades. Ele argumenta que nem todas as sociedades têm algo chamado de parentesco ou que possa ser definido nestes termos. Afirmando que a centralidade na procriação é assumida a priori em tais teorias, Schneider propõe que a categoria não tem valor para a análise de outras culturas porque sua definição está construída por noções ocidentais e limitada a elas. A única solução seria, então, ou abandonar a categoria completamente ou estabelecer uma agenda mais limitada: “dada esta definição de parentesco, este povo particular a possui ou não?” (1984:200). Na mesma linha de Schneider, autoras que tratavam de estudos de género e de estudos feministas, Collier, Rosaldo e Yanagisako, lamentam3 o facto de que, na área da família e do parentesco, pesquisadores tenham descartado o caráter histórico e contextual das diversas formas familiares. No desenvolvimento de seus argumentos sobre as distinções estanques entre natureza e cultura, mostrando que a noção de natureza é tão socialmente construída quanto qualquer outra, uma distinção deixa de fazer sentido, aquela que separa parentesco de gênero em 2 Segundo Pina Cabral (2005), o estudo de parentesco de Schneider é hoje considerado o texto mais influente na área de estudos de parentesco pelos comentadores mais abalizados. Prezando pela pureza do conceito, vê o parentesco como objeto de estudo, possível somente no seu sentido mais restrito e talvez só nas culturas ocidentais. Veremos mais adiante que Pina Cabral propõe, ao invés de abandonar a categoria, “desetnocentrificá-la”. 3 Ver o artigo “Is there a family? New anthropological views” (in: Thorne & Yalom, 1992). 102 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 dois domínios académicos. Guardadas as diferenças em suas análises, as autoras dessa geração concordam na rejeição do parentesco como um domínio particular de estudos e reconhecem que é infrutífero estudar o parentesco sem se emaranhar na realidade complexa das sociedades. Quero centrar-me num esforço analítico que seguiu em diálogo com a perspectiva radical de Schneider e, em certa medida, das antropólogas feministas, e que gerou a noção de relatedness. Carsten (2004), a proponente desta perspectiva, tem como ponto de partida as ideias de Fortes (1974) sobre os laços de parentesco. Com Fortes (1974) já se percebe que as dinâmicas familiares só se tornam visíveis quando a análise vai além da unidade doméstica isolada e do momento presente. Este autor, por meio de seu conceito de desenvolvimento do ciclo doméstico, dimensiona a importância do processo para se vislumbrar a lógica de um sistema mais amplo de relações sociais. Observa-se uma mudança no eixo teórico das categorias de parentesco, descendência e aliança, o que leva a um deslocamento das discussões. Instigada por este deslocamento para uma visão processual do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, Carsten critica a abordagem fortesiana por esta ter dado pouca atenção à intimidade dos arranjos domésticos, e aos comportamentos e às afectividades ligados a eles. Porém, influenciada por sua perspectiva processualista, soma a atenção às práticas cotidianas e apresenta a noção de relatedness para se referir ao fato de que os laços predefinidos pelo sangue não definem o sentimento de proximidade, uma vez que este se encontra em contínua construção pelos actos cotidianos de “viver junto”. 103 Carsten (2004) revisita a crítica de Schneider e confirma o argumento do autor na medida em que, em seu caso de estudo, as ideias de parentesco não são derivadas da procriação. Porém, apesar de concordar com o autor, ela não advoga que se abandone o uso comparativo do parentesco enquanto categoria analítica. Propõe, então, que se utilize a ideia de relatedness para indicar as formas nativas de agir e conceituar as relações entre as pessoas. É vivendo e consumindo juntos, convivendo no mesmo espaço – a casa – que alguém se torna parente. Apesar da substância central do parentesco na percepção local ser o sangue, a maior contribuição ao sangue é a comida. Esta relação entre as duas substâncias faz do sangue uma categoria sempre mutável e fluida. Nesse sentido, ela opta por uma noção mais flexível de parentesco. Tenta demonstrar, primeiro, como as pessoas definem e constroem suas noções de relatedness e, então, que valores e significados elas dão a estas noções. Com base em dados etnográficos, ela mostra como a separação do social e do biológico, que Schneider demonstrou ser o centro da definição histórica de parentesco na antropologia, é culturalmente específica. No entanto, enfatiza que isto não é suficiente, pois há um espaço que precisa ser preenchido por signos de proximidade: dar e receber, dependência mútua, trocas recíprocas de materiais, cognitivas e emocionais. Na perspectiva da autora, o domínio do parentesco precisa ser praticado em solidariedade. Mais do que isso, se as relações de proximidade não acontecem dentro do universo do sangue, buscamse caminhos em outras vias, criando-se relações de parentesco onde antes não existia. No universo por mim estudado Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 operam formas de organização familiar caracterizadas por um contexto social em que indivíduos e grupos não têm acesso aos meios necessários para a realização dos valores que consideram importantes, não chegando a alcançar o modelo ideal. Nele, as relações familiares são profundamente marcadas por laços sociais construídos cotidianamente pela partilha e pelas trocas de coisas, valores e pessoas, e o sentimento de pertencimento está vinculado a um conjunto de referências comuns e à participação numa comunidade de prática. Neste contexto, “viver junto”, ser criado na mesma casa, partilhar experiências e coisas são as principais fontes de identificação pessoal de um indivíduo. Sua posição na sociedade está marcada não só pelos laços de família, mas também pela relação com as pessoas que acompanharam seu processo de socialização. Dada a importância da mobilidade – entre casas, povoados, ilhas e países – que acaba por gerar o que denomino de “famílias espalhadas”, as formas de criar , a “proximidade à distância”, são os instrumentos aos quais os indivíduos recorrem, na tentativa de lidar com as inseguranças, resultantes da mobilidade que caracteriza esta sociedade. A casa assume importância central para estas pessoas, é uma marca de pertencimento. As casas são como âncoras que prendem o indivíduo a um grupo num contexto percebido como inseguro e de difícil actualização dos laços familiares. São pelas relações intradomésticas, entre as casas, que se constrói um sentimento de identidade familiar. A experiência partilhada de viver junto é de fundamental importância, já que se opera uma intensa cooperação entre os membros. O interessante, neste caso, é que isto ocorre mesmo que alguns destes membros estejam ausentes e se vejam a cada dois ou três anos (é o que denomino de “proximidade à distância”). O fato de terem dormido, comido e vivido juntos durante um período de tempo cria uma relação que se mantém pela vida e que pode ser mais forte do que os laços genealógicos. A perspectiva de relatedness parece dar conta do sistema de reprodução do tipo que encontramos na Ilha da Boa Vista, onde a ênfase central se coloca na experiência de coabitação e cooperação doméstica entre pessoas relacionadas, tais laços dependendo da perpetuação de estratégias de proximidade. A ideia de família seria então um projecto, sempre construído e reavaliado por seus membros a depender de sua capacidade de actualizar estratégias de proximidade (entendida aqui como relatedness). Estar presa a conceitos como o de conjugalidade, paternidade, maternidade, descendência, como entendidos pelos clássicos de nossa disciplina, poderia implicar percepções distorcidas e até equivocadas da realidade estudada. É preciso, portanto, procurar instrumentos que ajudem a pensar as diferentes formas familiares numa perspectiva comparativa – perspectiva esta que recusa hierarquias etnoceêntricas e, ao mesmo tempo, resgata a especificidade de cada configuração social. Além de descrever formas e padrões, regras culturais de residência e sucessão, padrões de ciclo do grupo doméstico, é preciso dar atenção aos modos pelos quais as relações entre parentes são vividas no cotidiano. Opto, então, pela ênfase dada pelas novas etnografias às práticas cotidianas e à concretização das substâncias compartilhadas entre parentes. Tais perspectivas trazem questões importantes para um novo debate nas teorias de parentesco, em que se percebe que as relações são mais construídas que dadas por uma natureza imaginada ou a 104 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 existência formal de laços de parentesco. Sobre as famílias: um pouco de etnografia A organização familiar que foi objeto deste estudo apresenta as seguintes características gerais: há uma priorização dos laços consanguíneos à relação conjugal; a mobilidade de homens, mulheres e, especialmente, crianças entre várias casas faz parte da dinâmica familiar; o conceito de maternidade é mais social do que biológico, sendo que é preciso a combinação de duas gerações de mulheres para que se realize a maternidade social plena; a casa é a unidade central, sendo fortemente associada à mulher e às crianças; o homem tem uma relação marcada pela ausência física e a distância no cotidiano dos filhos e das mães de seus filhos, contribuindo financeira e socialmente de maneira esporádica; para o caso mais específico da Boa Vista, as mulheres adultas emigram deixando familiares, filhos e os pais de seus filhos na ilha. As unidades domésticas são fortemente centradas na figura da mãe ou avó. As mulheres têm um importante papel económico e, além disso, os arranjos conjugais que predominam estimulam a instabilidade e a circulação dos homens por várias unidades domésticas durante a vida adulta. Tudo isto opera no sentido de dar maior peso às mulheres no interior das famílias. A centralidade feminina é reforçada pelas redes familiares que, devido à ausência relativa do homem, operam entre as casas por meio da troca e da partilha de coisas, valores e pessoas. Neste contexto, partilhar é uma categoria fundamental para se entenderem as relações familiares e isto não está restrito aos laços genealógicos. Pela análise das práticas de 105 partilha, ajuda mútua e solidariedade entre pessoas e grupos domésticos, percebe-se o conceito fundamental de “fazer família”, ou seja, fortalecer laços entre parentes e criar parentesco onde este não existia. Dadas as características da realidade da Boa Vista, o enfoque deve recair no sistema familiar enquanto um processo que é construído cotidianamente. Acontece que, enquanto parte de uma sociedade crioula – e, portanto, resultado de uma dinâmica social em que se misturam, chocam e interpenetram forças, processos, valores e símbolos oriundos de duas vertentes civilizatórias, a africana e a europeia, dando luz a uma entidade terceira (Trajano Filho, 2006:1) – a organização familiar em Cabo Verde revela práticas e modelos em competição, que ora enfatizam uma vertente (a africana), ora outra (a europeia). Sendo assim, paralelamente às práticas que reproduzem um sistema familiar como o descrito acima, operam também valores calcados num modelo de família nuclear, um casal em co-residência e seus filhos, de, matriz europeia, e que é considerado ideal, especialmente pelas mulheres. Temos, por um lado, práticas que reproduzem formas tradicionais (coerentes com o que se entende por uma matriz africana) de organização familiar e, por outro, a existência de um modelo ideal e vislumbrado que não se realiza plenamente, dando luz à ideia de desorganização. As formas pelas quais a proximidade é construída em Cabo Verde podem ser percebidas pela amplitude do sistema de parentesco. Em teoria, aqueles que fazem parte da família não estão, necessariamente, restritos a laços genealógicos, ou seja, quando estamos no domínio do conceito amplo de família, um dado importante a se levar em conta é o tipo de relação construída cotidianamente por indivíduos Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ou grupos domésticos. De acordo com o padrão ideal, as relações familiares se caracterizam por um comprometimento mútuo, contactos sociais regulares e um fluxo constante de benefícios materiais e não materiais. O interessante aqui é que esses requisitos, fundamentais para a construção do conceito de proximidade, atuam tanto para fortalecer laços preexistentes quanto para ampliar o campo de relações assumidas como de parentes. A ideia de família é associada a um ideal de unidade e harmonia, e aquele que fala sempre ressalta sua contribuição individual para isto. Definir-se como solidário e generoso em relação aos familiares é um modo comum de se representar como uma boa pessoa. Por extensão, o mesmo acontece quando são feitas referências às relações na comunidade, esta constituindose enquanto uma extensão da família4. Fica claro que, tanto interna quanto externamente às casas, existe uma rede de solidariedade que perpassa a organização doméstica e interdoméstica. A participação das mulheres em actividades geradoras de renda depende, em grande parte, da possibilidade de contar com parentes (idealmente a mãe) que aguentem as crianças. As crianças, por sua vez, se sentem-se pertencendo tanto às unidades onde passam o dia quanto àquelas onde passam a noite. De forma muito clara, os limites da organização doméstica ultrapassam não só as fronteiras da casa, mas também os limites das relações consanguíneas. A rede de solidariedade entre mulheres está associada ao princípio de “viver junto” e às regras de reciprocidade que isto implica. Tem-se um tratamento de parente em relação àquela pessoa com quem se pode contar, aquela que está perto no dia a dia e que sabe trocar bens, favores e informações, como se fossem parentes próximos. É possível observar um fluxo contínuo de bens, serviços e informações em circulação recíproca entre casas vizinhas. Bons vizinhos, assim como parentes, trocam refeições, ajudam com os filhos uns dos outros ou ajudam uns aos outros a cuidar dos filhos, cedem crianças para auxiliar nos mandados5 e, uma vez que não são parentes de verdade, podem casar os filhos entre si (arranjo altamente preferencial). Há uma espécie de fidelidade especial entre os habitantes de uma mesma zona, um tipo de tratamento que se aproxima do sentimento que se tem para com um parente. Todo esse sistema é operacional, pois, ao ampliar as regras de reciprocidade àquelas que vivem próximas, e em uma relação de vizinhança, as mulheres de uma mesma localidade garantem um aumento de suas possibilidades ocupacionais, uma vez que têm sempre a garantia de que alguém a ajudará na criação dos filhos ou em casos de necessidade. Segundo, como afirma a professora ao se referir aos maridos que estão sempre na rua, a rede de solidariedade também é fundamental no sentido de diminuir a dependência da mulher em face do companheiro, porque, conforme ouvi de muitas mulheres, com o homem não se pode contar. 4 É claro que esta é uma imagem idealizada. Quando os contatos ficaram mais próximos, de forma que comecei a entrar no campo das confidências, uma pintura mais complicada emergiu. Nas relações familiares há uma realidade dinâmica que, ao mesmo tempo em que é marcada por relações de cooperação, é também um campo de hierarquia e competição. Isto se estende para a comunidade em geral. A ideia de viver junto é tão forte na definição de família que é comum que os conceitos de proximidade e distância, mesmo entre irmãos, sejam associados à 5 Esta categoria será devidamente explicada neste trabalho. 106 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 relação mantida entre eles. Fica claro aqui que os laços predefinidos pelo sangue não determinam, necessariamente, o sentimento de proximidade, pois ele encontra-se em contínua construção por intermédio das acções e das relações cotidianas. Como afirma Carsten (2000:20), os laços de proximidade são criados pela procriação, mas também pelos actos de cuidar, partilhar, viver juntos. Tais laços são tão importantes que podem diluir relações baseadas no parentesco, ou criar parentesco onde este não existia. É preciso observar que “viver junto” tem um sentido amplo, não sendo necessariamente sinónimo de morar junto. É importante estar próximo fisicamente, mas nos casos em que isto não é possível, a manutenção da proximidade social pelo cumprimento de obrigações recíprocas é um factor de manutenção da relação. Ter sido criado numa mesma casa fortalece laços. Histórias de experiências compartilhadas na infância e o caráter da relação que é desenvolvida são, por vezes, mais importantes que os laços genealógicos. Normalmente, a proximidade entre irmãos é definida pela maternidade, ou seja, meios-irmãos pelo lado materno têm maior possibilidade de viver juntos do que aqueles relacionados pelo lado paterno. Isto porque é mais comum filhos de pais que não vivem juntos morarem com a mãe e pessoas mais próximas da família extensa desta. Os estudos que tratam da organização familiar em Cabo Verde (Solomon, 1992; Dias, 2000; Monteiro, 1997; Akesson, 2004) salientam o laço fundamental e constituinte do conceito de família: a relação mãe-filho. Na Boa Vista, esse laço é a base para a formação das redes de reciprocidade entre parentes e não parentes 107 e provê a estabilidade, a continuidade e a amplitude das relações de uma pessoa. Porém, mais uma vez precisamos estar atentos ao conceito de maternidade. O laço entre mãe e filho não está, também, restrito às relações entre mães e filhos biológicos, mas envolve as chamadas “mães sociais”. Por comparação, os laços entre pais e filhos são mais difusos ou frouxos e, em grande medida, dependem da capacidade que o homem tem de estar próximo dos filhos quando estes são crianças. Ser um bom pai, ou seja, dar suporte económico, material e emocional, é culturalmente aprovado e valorizado. Porém, o mais comum é que eles sejam caracterizados pelos próprios filhos como figuras distantes e que justifiquem sua ausência em função de dificuldades económicas. Paternidade e maternidade A relação entre mãe (não necessariamente a biológica) e filhos tem um caráter muito especial. Se há alguma relação percebida como duradoura e estável na esfera familiar boa-vistense, é esta que liga as mães aos filhos. Além disso, defendo que a relação de filiação tende a predominar sobre a relação conjugal na constituição do grupo familiar, e isto é percebido pelas mulheres da ilha. Cito o exemplo de uma informante, que me afirmou que não aceitava desrespeito do pai-de-filho porque na hierarquia do gostar, em primeiro, segundo e terceiro lugar estava sua filha, depois sua mãe e, só muito depois, em último lugar, é que viria seu pai-de-filho. Ainda na infância, o papel do pai varia a depender do padrão de residência adotado. De forma geral, a relação entre pai e filho será mais ou menos intensa conforme Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 os pais vivam ou não juntos. Nos casos em que o pai vive separado fisicamente da mãe, seu papel restringe-se a visitas periódicas aos filhos. Quanto à ajuda económica, isto dependerá de diversos factores e não são raros os casos em que as mães reclamam de não receber qualquer apoio financeiro do pai-de-filho. Mesmo nos casos em que pais e filhos residem numa mesma casa, o laço emocional com o pai é frouxo, a relação é caracterizada pela distância enquanto, no que diz respeito à mãe percebe-se uma grande proximidade e um grande calor afectivo. Ter um filho é um valor importante no universo masculino, assim como ter uma mulher (ou várias). Ambos são símbolos de masculinidade exibidos constantemente “nas rodas de conversas” entre homens. Enquanto as mulheres valorizam a ideia de estar próximo, os homens se envolvem com o universo doméstico por meio de um pertencimento distante. O homem deve ter uma família (e isto significa ter filhos), mas seu relacionamento com esta, marcado pelo distanciamento. É importante salientar que não há uma ausência de relação entre pai e filho, esta relação existe e é mediada por um sentimento de respeito à autoridade paterna, pois é ele quem impõe autoridade e os filhos devem respeitá-lo. Porém, entre os filhos, também há um sentimento muito próximo daquele relatado pelas mulheres quando se referem à presença do marido na casa, como uma figura com quem não se pode contar – não apenas no sentido financeiro, pois geralmente é a mãe ou a avó que assumem as despesas escolares e de alimentação dos filhos, mas também na esfera psicológica e na transmissão de saberes, domínios em que o pai mostrase distante, especialmente na fase em que os filhos ainda são crianças. Nessas circunstâncias, a centralidade da mulher e de sua rede de relações ganha força e os laços emocionais entre esses membros estáveis da unidade doméstica tendem a fortalecer-se de tal modo que a situação do homem enquanto marido e pai fica cada vez mais marginal. Após a apresentação do quadro social das famílias, quero chamar a atenção para a questão da maternidade social, trazendo à cena um actor fundamental: a figura da avó e seu importante papel na construção deste universo familiar. Essa relação de distância não retira do pai a vontade de ter filhos. Na maioria dos casos, a mulher engravida a pedido do namorado ou companheiro e ele espalha a boa novidade a todos, com orgulho e alegria. Considerações finais Num contexto em que as relações entre parentes são mais construídas do que dadas biologicamente, o conceito de maternidade também é mais social que biológico. A relação entre mãe e filho, apesar de central, é apenas um elemento dentro da esfera familiar. Cada indivíduo está envolvido numa rede consanguínea que exige constante demonstração de solidariedade (laços de sangue têm precedência sobre relacionamentos contratuais) e as crianças são partes importantes nessas relações. A mulher que dá à luz conta com uma rede de solidariedade para criar o filho, pois raramente uma pessoa cuida sozinha de uma criança. A figura da avó materna é o principal foco de apoio de uma jovem mãe e, idealmente, tal avó tem o direito e o dever de compartilhar a maternidade da filha. Isto implica que não necessariamente é a mãe quem vai criar o filho, mas que ambas, tanto a mãe biológica quanto a 108 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 avó materna (ou, eventualmente, outra), podem compartilhar a identidade social de mãe. A depender do contexto, este fato é fonte de disputa entre as envolvidas, em particular nos casos de emigração da mãe, situação em que (apesar dos esforços e das estratégias de manter proximidade à distância) ela corre o risco de ver sua influência diminuída no dia a dia dos filhos. Há, porém, outra fonte de tensão entre mãe e filha: a demanda por definições de papéis decorrente do choque entre os dois modelos que permeiam essa sociedade e que foi expresso na fala da professora no início desta apresentação: de um lado, temos a prática social local na qual (1) uma só geração não dá conta da maternidade; (2) as relações conjugais são marcadas pela ideia de instabilidade; e (3) não há grupos corporados; de outro, temos a percepção do modelo de família nuclear ocidental como ideal de organização familiar. Vamos entender cada um desses níveis de forma mais detalhada. Estudos sobre a sociedade africana mostram que as pessoas são muito valorizadas e, mais do que isso, são percebidas como uma espécie de “capital” social e político, cada indivíduo trazendo diversas vantagens para o grupo. Sendo a pessoa um valor fundamental, os direitos sobre pessoas (rights in persons) adquirem, neste contexto, um lugar de destaque, o próprio status de cada indivíduo podendo ser pensado como o conjunto de direitos que este possui sobre outras pessoas ou coisas, acrescido de seus correspondentes deveres. É importante lembrar que os direitos sobre pessoas podem ser transferidos, implicando compensação ou indenização. 109 No âmbito do parentesco, há possibilidade de manipular tais direitos para aumentar o número de pessoas sob o domínio de um indivíduo, e as formas como as transferências de direitos são realizadas são de importância fundamental no contexto africano (sobre este assunto ver Kopytoff & Miers, 1979; Parkin & Niamwaya, 1987; RadcliffeBrown, 1952). Trazendo tal discussão para o tema das famílias cabo-verdianas e percebendo o valor das pessoas dentro de uma sociedade caracterizada pela escassez de recursos, a característica de exportação de seus membros e a importância da vida familiar, percebemos as crianças como um valor fundamental. A mulher que tem um filho sabe que ele tem um valor imediato e outro a longo prazo: um bebê está no centro da reprodução das relações entre parentes e vizinhos, estimula visitas, é motivo de festas e agrega as mulheres da família da mãe e do pai ao seu redor; a criança, a partir de 6 ou 7 anos, faz serviços domésticos, faz companhia e circula entre as casas; já adulto, ajuda a sustentar seus velhos. Diante da impossibilidade de aguentar uma criança sozinha, dada pelo próprio sistema familiar, a pessoa ideal com quem uma mãe pode partilhar o valor dos filhos é sua mãe, a avó materna da criança. Para a avó materna, o neto é um bem que garante sua centralidade dentro da esfera doméstica. Para a mãe da criança, deixar o filho com a avó materna pode ser a garantia de que ela sempre será lembrada como boa mãe, mesmo em casos de distância física prolongada. O valor da criança estende-se também geograficamente, sendo ela um vínculo fundamental entre as famílias do pai e da mãe, outros parentes e vizinhos. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Num sistema de matrifocalidade, toda a produção feminina é criadora, mantém as relações, e a mobilidade das crianças é uma componente dessa prática: reproduz a centralidade feminina e aumenta o número de mulheres às quais um indivíduo deve lealdade. Por sua vez, crianças e jovens têm, pela relação com as mulheres (da família paterna e materna), fonte segura de conforto emocional e de transmissão de bens materiais e valores. As principais tensões que emergem desse esquema social têm a ver com o choque entre um modelo tradicional com todas as características aqui analisadas e a referência constante a um ideal de família nuclear ocidental presente no discurso dos indivíduos. As avós, quando questionadas sobre a relação com os netos, salientam que “mãe é quem pariu”, contrariando, ao nível do discurso, a característica da maternidade compartilhada que observei no dia a dia das famílias. Os netos, especialmente os jovens, começam a valorizar o que chamam de “família normal” e a perder o interesse pelo que as avós têm a oferecer. As mães, cada vez mais cedo, buscam opções para construir seu espaço seguindo padrões europeus de residência e organização familiar. A centralidade feminina é, portanto, uma característica fundamental deste modo de organização familiar e a dispersão das funções entre duas ou mais mulheres não leva, como se poderia pensar, a um enfraquecimento dos laços entre mães e filhos ou mesmo entre os membros da família. Neste contexto, a partilha – de bens, alimentos e até crianças – não enfraquece, pelo contrário, só vem a fortalecer a reprodução do sistema. A mobilidade e o compartilhamento são valores que criam e recriam relações familiares. Por fim, há toda a dimensão migratória que, por falta de espaço, não foi tratada nesta caracterização aqui retratada. A emigração, enquanto característica marcante desta sociedade, é tanto produto deste sistema familiar quanto o actualiza e o reforça. Além disso, coloca novos desafios para este sistema familiar, dado o seu caráter sempre dinâmico. Concluindo, espero ter contribuído para uma sistematização deste modelo familiar que tentei aqui descrever. Como salientei no início, a base dos meus dados restringem-se à Ilha da Boa Vista, mas muitas destas características foram encontradas e salientadas por diversos autores que dedicaram seus estudos ao arquipélago de Cabo Verde. O que cabe ressaltar como contribuição da antropologia a partir de seus métodos de estudos é que a ideia de uma estrutura familiar “normal” ou “organizada” é um construto social que raramente se atualiza nas práticas cotidianas. O que costumamos encontrar são inúmeros modelos e práticas que operam nesta ou naquela sociedade e que, só em seu contexto, fazem sentido. Dentre estes modelos possíveis, o estereótipo da família ocidental moderna europeia (de uma mãe, pai e filhos vivendo numa unidade familiar em separado) é apenas mais um e, como os demais, também não actualiza seu ideal de forma plena. Volto, portanto, ao discurso que abriu esta fala no sentido de lembrar que ele deve ser contextualizado e inserido no sistema cultural local. Ao fim e ao cabo, o dilema inicial se dilui. É certo que a organização familiar da sociedade cabo-verdiana apresenta problemas, conflitos, ambiguidades e desafios que devem ser enfrentados por esta sociedade (e imagino que serão tratados pelos demais palestrantes desta mesa) – afinal, não há sociedade existente que 110 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 apresente suas instituições em equilíbrio e harmonia absolutos. O que tento chamar a atenção com as reflexões que apresento neste artigo é que tais desafios devem ser entendidos e enfrentados em seu contexto, e não a partir de modelos emprestados que aqui não se encaixam. Referências AKESSON, L. To make a life: meanings of migration in the transnational homeland of Cape Verde. PhD Thesis, Department of Social Anthropology, University of Gothenburg. 2004. BOURDIEU, P. (1991) .Outline of a theory of practice. London: Cambridge Studies in Social Anthropology. 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Paper presented at the Seminar Powerfull Presence of the Past, at the Max Planck Institute, Halle, Germany. 2006. 113 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 114 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 O LUGAR DA SÍNTESE NA ÉTICA KIERKEGAARDIANA Jasson da Silva Martins e Jacqueline Oliveira Leão1 Resumo/Abstract A vida ética, segundo Søren Kierkegaard, encontra seu princípio na paixão. Nesse sentido, o pensamento kierkegaardiano, conhecido como filosofia da dualidade e da disjunção, pode ser caracterizado como filosofia da síntese, à medida que a interioridade do indivíduo e a exterioridade do mundo alcançam o seu termo na ética. No entanto, uma das funções da ética como expressão do geral, é proibir. Como o indivíduo articula o geral em si mesmo? A ética é uma tarefa individual que deve ser expressa na generalidade? Palavras-chave: ética; indivíduo; existência; escolha; exceção. The ethical life, according to Søren Kierkegaard, finds its origin in the passion. In this sense, the kierkegaardian thought, known as the philosophy of duality and disjunction can be characterized by the philosophy of synthesis, as the interiority of the individual and exteriority of the world reaches its end in ethics. However, one of the functions of ethics as an expression of general is to prohibit. How the individual articulates the general himself? Is ethics an individual task that must be expressed in general? Keywords: ethics; individual; existence; choose; exception. 1 Jasson da Silva Martins é professor assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário La Salle (UNILASALLE). Mestre em filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente, como bolsista PROSUP/CAPES, desenvolve pesquisa em nível de Doutorado nessa mesma Universidade. Jacqueline Oliveira Leão é graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte - FAFIBH (1995). Mestre em Estudos Literários, Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2002). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2008). Atualmente desenvolve pesquisa em nível de Pós-doutorado em Estudos Literários/UFMG, sob a supervisão da Profª Drª Leda Maria Martins. Atua como pesquisadora, nos seguintes grupos/projetos de pesquisa: a) Espaços na Literatura Contemporânea, vinculado ao CNPq e coordenado pela Profª Drª Maria Zilda Cury; b) Estudos sobre a obra de Kierkegaard, vinculado ao CNPq e coordenado pelo Prof. Dr. Álvaro L. M. Valls. 115 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 1. Introdução O conjunto da obra multiforme de Søren Kierkegaard pode ser resumido partindo desta interrogação: o que significa para o homem existir como indivíduo singular? Essa é a retomada kierkegaardiana da questão socrática da consciência de si, que é renovada em função de uma referência ao tornar-se cristão. Como é possível pensar a subjetividade de maneira rigorosa, após Kant e Hegel, levando em conta a existência individual? O propósito de Kierkegaard, ao tematizar a dualidade existente entre o indivíduo e a sociedade, é reconstruir um pensamento da existência como diferença, mas também como identidade. É na existência do indivíduo singular, na qual se entrecruzam a exterioridade e a interioridade, que está colocado o paradoxo do tornar-se si mesmo em meio aos demais e, igualmente, o regressar a si mesmo como interioridade absoluta. Realizar essa dialética, no aqui e no agora da existência, é a tarefa do indivíduo. O aprofundamento na intimidade, à medida que o indivíduo é capaz de voltar-se a si mesmo, não escapa ao hermetismo da relação com alguma coisa exterior. Nesse sentido, a negatividade, que está presente tanto no exterior como no interior, produz e mantém uma relação de reciprocidade entre o indivíduo singular e o mundo exterior, transformando a dialética de ambos no aqui e no agora da história. Qual é o papel da ética no caminho da realização dialética? É notório que tratar da existência do indivíduo singular é colocar em questão a capacidade mediadora da ética, esfera de passagem do singular ao geral, necessariamente ligada às demais esferas da existência. Nesse sentido, o pensamento kierkegaardiano, conhecido como filosofia da dualidade e da disjunção, pode ser caracterizado como filosofia da síntese, à medida que a interioridade do indivíduo singular e a exterioridade do mundo alcançam o seu termo na ética. A singularidade do indivíduo existente é o lugar decisivo onde ocorre a reflexão e a interação da interioridade e da exterioridade existencial. 2. Vida ética como existência apaixonada1 A vida ética encontra o seu princípio em uma paixão. A paixão implica, para existir enquanto amor e afirmação de si, que alguém tome a dimensão normativa da ética. A questão levantada aqui é aquela do estatuto ético em sua relação com o indivíduo. Como o indivíduo engendra em si a esfera ética enquanto modo de existir? Feita a pergunta, na resposta está implicada a relação de circularidade entre o estatuto ético e o ato originário de afirmação de si, do eu individual. Contudo, não é sob o ponto de vista ético que o indivíduo se interroga quanto à paixão originária do existir, bem como não espera que a reciprocidade dessa paixão possa explicar a ética. Partindo da ética ascendente – ética que surge da realidade sem descurar a idealidade – o problema a ser encarado, neste estudo, é o de pensar a natureza da relação entre a paixão e a vida ética. O mundo ético é constituído a partir da paixão, organizado sob normas gerais, idênticas para todos os indivíduos de uma determinada sociedade. A ética é a esfera determinada da existência com caráter completo e auto-suficiente. Além disso, 1 O presente estudo refere-se ao texto O equilíbrio do estético e do ético na formação da personalidade, constante na segunda parte de A alternativa [EntenEller], publicada originalmente em 1843. A questão pseudonímica da obra kierkegaardiana não é objeto de discussão deste texto. 116 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 é reconhecida através de alguns traços específicos na existência do homem comum, que plenamente assimilou as normas de sua sociedade. Para Kierkegaard, a ética é apenas uma das etapas no caminho da vida, mas, nela, precede, sobretudo, o ato individual da decisão. É nesse exato momento da reflexão, que surge o paradoxo: como a ética, enquanto disciplina normatizadora da sociedade, encontra o seu princípio no indivíduo? A ética se eleva da singularidade à generalidade através da escolha. O enfoque da discussão não é mais o da ética enquanto generalidade, mas sim a natureza das escolhas individuais. Se a escolha é essencialmente subjetiva, deve, pois, portar um elemento de generalidade para transcender a particularidade de cada um, constituindo-se como lei. Por outro lado, a escolha individual não pode fundamentar a ética, dado que esta pressupõe certas condições, por exemplo, trazer junto a si a possibilidade da relação com o geral. Uma outra possibilidade é pensar a vida ética como efeito de uma escolha individual, em que o indivíduo é convocado a decidir entre dois ou mais bens. A solução, inicialmente indicada por Kierkegaard, aponta a síntese entre a generalidade da lei e a singularidade da norma, ambas colocadas em movimento pelo indivíduo singular e portador do universal. Esse dilema é abordado pelo Juiz Wilhelm: Meu dilema [Enten-Eller] não significa, no entanto a escolha entre o bem e o mal; designa a escolha pela qual alguém excluiu ou escolheu o bem ou o mal. Trata-se aqui de saber sob quais categorias alguém quer considerar toda a vida e viver o si-mesmo [selv leve]. É bem verdade que, em escolhendo o bem e o mal, alguém escolhe bem, mas isso não aparece de imediato; a estética não é o 117 mal, mas a indiferença, por isso eu disse que a ética constitui a escolha. Não se trata, portanto, de escolher entre querer [ville] o bem ou o mal, mas de escolher o querer [ville], aí o bem e o mal se acham colocados. (KIERKEGAARD, 1970: 154) O dilema, a alternativa [Enten-Eller] pronunciada pelo Juiz Wilhelm é, por si mesma, uma escolha originária e um ato reflexivo que procura fazer a síntese entre a generalidade e a singularidade, colocando o indivíduo diante de seu próprio querer. Kierkegaard chama atenção para o fato de que não se trata de uma decisão entre o bem ou o mal, mas é a possibilidade de escolher que impele a vontade do indivíduo, levando-o a optar por uma dessas duas instâncias. Ao contrário de uma simetria, Kierkegaard aponta a dissimetria da ética, onde o indivíduo é confrontado com a lei (generalidade) e a norma (singularidade). O bem e o mal não possuem sentido absoluto, sendo, pois, determinados negativamente na esfera ética, dado que a escolha primordial do indivíduo não está entre escolher o bem ou o mal, mas, sobretudo, em escolher. Decidir por escolher algo já é a escolha acertada. Nesse ato singular de escolha, instaura-se a ética ascendente, determinando o modo de vida do indivíduo: o modo de vida na esfera ética. Viver eticamente não significa, para Kierkegaard, ato de escolha ou eleição, ao contrário, escolher o querer é o ato de autoafirmação. Tal ato da vontade põe em movimento o destino do indivíduo singular e da história, perpassado pelo modo de vida ético. A possibilidade de escolher o “querer escolher” difere do ato de escolher algo em detrimento de outro, pois transforma a escolha individual em algo único e singular: poder escolher. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Daí surge outra questão que deve ser respondida: como a ordem ética determina o homem ou como o homem atinge a esfera da ética? O dilema da escolha, notadamente de teor eidético, é apresentado pelo Juiz Wilhelm como pressuposto que antecede à própria escolha. Meu dilema [Enten-Eller] faz surgir a ética. Não existe ainda a questão da escolha de uma coisa, nem da realidade da realidade escolhida, mas da realidade do ato de escolher. Isto é o decisivo, e é aí que eu me esforçarei para despertar a tua vontade. Até esse ponto, um homem pode ajudar a outro; mas, a importância que ele precisa ter para o outro é secundária. (KIERKEGAARD, 1970: 161) Nesse trecho, é possível notar o quanto o sentimento e o ato da vontade realizam a função originária da escolha ética. Realizá-la, contudo, não é a mesma coisa que realizar a vida ética a partir do seu pathos. No fundo, a escolha original de si é o amor a si mesmo, pois a escolha primordial é pura e pode ser comparada com o primeiro amor ou o amor verdadeiro. Escolher a si mesmo não leva o indivíduo a tornar-se outro, mas reafirma a sua individualidade, a sua subjetividade singular e ética, a sua capacidade de escolher. O tornar-se si mesmo é o resultado de uma constante atualização, sendo executada como ato de constante repetição. O indivíduo singular faz a passagem do mesmo ao mesmo2 através do movimento dialético e gradual, do possível ao real. A escolha efetua, por sua vez, dois movimentos dialéticos: o objeto possível da escolha não 2 Nessa perspectiva, podem ser lidos os estádios no caminho da vida (estético, ético, religioso). O objetivo é o mesmo, o indivíduo é o mesmo, o que modifica é o momento vivido. Isso significa igualmente que o absoluto é escolhido, mas não é a escolha do absoluto que conduz à passagem de um estádio a outro, é o indivíduo que modifica a si mesmo. é, advém da escolha; esse objeto é, senão a escolha não seria possível. Se, com efeito, a coisa que eu escolhi não fosse, mas surgisse absolutamente da escolha, eu não a escolheria, eu a criaria; mas, eu não crio a mim mesmo, eu escolho a mim mesmo. Assim, do mesmo modo que a natureza é criada do nada, do mesmo modo que eu sou como pessoa, imediatamente criado do nada, eu mesmo sou como espírito livre, criado pelo princípio de contradição ou criado pelo fato de ter escolhido a mim mesmo. (KIERKEGAARD, 1970: 194) No entendimento do Juiz Wilhelm, a escolha é o móbil que funda o mundo da eticidade, conduzindo a problemática da ética ao mais elevado paradoxo. Para o indivíduo, o início da vida ética não coincide somente com a escolha do querer, mas também com a escolha de si mesmo. Essa é a crítica endereçada pelo Juiz Wilhelm, pseudônimo ético por excelência, aos místicos, acusando-os de fuga do mundo concreto. Fugir não significa escolher-se a si mesmo ou afirmar a sua singularidade, a fuga do místico é uma escolha abstrata, que não o leva à responsabilidade de tornarse si mesmo: O místico, fazendo em geral pouco caso da realidade, vê-se porque não encara com a mesma desconfiança o momento da realidade, onde sofre o contato com uma ordem superior de coisas. [...] O erro do místico, na escolha, é de não tornar-se concreto nem diante dele mesmo nem diante de Deus; ele se escolhe abstratamente e carece assim de transparência. (KIERKEGAARD, 1970: 222-223) Uma escolha ética é uma escolha egoísta, pois a singularidade escolhe a si mesmo ao escolher o querer. A consequência dessa noção de ética coloca em xeque a sua própria dialética interior. Decidir escolher o querer é atitude genuína, em sintonia 118 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 com a singularidade do indivíduo. A decisão ética pela generalidade é diferente. Quando inteiramente assumida, não deixa espaço para a singularidade. Em termo kierkegaardiano, a tarefa do indivíduo não é tornar-se tão somente ético, mas escolher a si mesmo: “... a escolha faz dele um indivíduo preciso, a saber, ele mesmo; visto que ele se escolheu”. (KIERKEGAARD, 1970: 226) O dever ético está implicado no próprio ato de escolher. Dever, como o próprio Kierkegaard reconstrói etimologicamente na sua língua, remete ao termo dinamarquês Pligt (dever), derivado do verbo paaligge (incumbir), ligado à interioridade. Não remete, contudo, ao termo Paaloeg (imposição, ordem), pois este diz respeito à exterioridade. Logo, o dever nada mais é do que a tarefa pessoal de tornar-se si mesmo, como incumbência da própria singularidade. É muito curioso que, pela palavra dever, alguém possa pensar em uma relação exterior, visto que a etimologia dessa palavra designa uma relação interior; e dado que incumbe a mim, não a título de um indivíduo qualquer que eu sou, mas conforme a minha essência verdadeira, isso se encontra de todo modo na relação mais íntima comigo mesmo. Com efeito, o dever não é uma coisa imposta, mas uma coisa que incumbe. Quando o dever é visto assim, é então o sinal que o indivíduo está orientado em si-mesmo. (KIERKEGAARD, 1970: 228-229). Como visto, Kierkegaard equipara a escolha pessoal ao dever ético. Daí, o pseudônimo Climacus, no Post-scriptum, retomar a expressão do Juiz Wilhelm quando este afirma que a distinção entre o modo de vida ético e o estético é, principalmente, que a ética exige de “... todo homem o dever de se manifestar claramente aos 119 olhos de todos”. (KIERKEGAARD, 1977: 235). É sabido que a ética se debate com a fundamentação entre escolher o modo de vida singular (norma) ou o modo de vida geral (lei). Em Kierkegaard, esse problema torna-se mais agudo, dado que a única realidade é a existência do indivíduo singular. Então, podem as ações individuais ser condicionadas por um critério que lhes seja exterior? O confronto que se estabelece entre a vida ética, que tem por fim a realização do indivíduo na interioridade, exige por si mesmo referir-se a um princípio geral. A síntese, ao menos em termos especulativos, deve levar em conta a generalidade e a normatividade na escolha primordial do indivíduo. Ou seja, o que está em questão, agora, é a ligação entre o indivíduo, o dever e a sociedade. Se, para cada um, há a exigência estrita de publicidade da escolha, como preconiza a ética de Kant e Hegel, a saída encontrada por Kierkegaard foi reformular a necessidade de explicitar publicamente a conduta ética do indivíduo. Problema que aparece como dilema: se por um lado, a necessidade de publicização está em conformidade com a ética ordinária, por outro, esta não possui efeito para o indivíduo excepcional. Para o indivíduo excepcional (veja o exemplo de Abraão), à medida que a sua ação transcende a ética ordinária, a lei geral torna-se insuficiente e, no entanto, ele não pode tornar pública a norma de sua ação. O dilema ético está justamente no hiato entre a regulação da ação individual e a necessidade de universalizar o princípio da ação ante o geral. Kierkegaard, ao fundamentar a ética na singularidade, nega o geral, fundamentando a ética na exceção. (Cf. VERGOTE, 1982: 546). Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Como a escolha excepcional molda a existência? Como a interioridade se manifesta na vida social? Em síntese, como a escolha efetuada na interioridade pode conter em si mesma a medida da existência ao se desdobrar na generalidade da vida ordinária? Sem dúvida, este é o problema da relação entre a norma e a lei. Contudo, trata-se de derivar essa relação, de explicar como a escolha primitiva passa a ser a escolha de viver segundo determinada lei, descoberta e reconhecida pelo indivíduo em si mesmo. Nesse sentido, o significado do primeiro amor, descrito por Wilhelm, ilustra o princípio da vida ética, que se desdobra no casamento. Através da retomada reflexiva da ética, o homem atualiza o modo de vida ético, sintetizando o geral e o particular: Portanto, a ética é ainda muito abstrata e se encontra fora do indivíduo, não se presta a uma realização interna. Para que a ética possa se realizar é preciso inicialmente que o indivíduo seja ele mesmo e o geral. O segredo da consciência moral, da vida individual é que uma e outra é, por sua vez, a vida individual e o geral, senão, imediatamente, ao menos, segundo sua possibilidade. (KIERKEGAARD, 1970: 229-230) A finalidade da vida ética consiste na realização da existência singular do indivíduo. Contudo, a vida do indivíduo, à medida que este não é um ser isolado, somente ganha sentido na sociedade, na generalidade. Por outro lado, é a paixão de existir que dá sentido à generalidade. O indivíduo expressa, através da síntese entre a singularidade e a generalidade, características universais que o constituem como singularidade. A generalidade é a expressão da singularidade, pois exige do indivíduo a manifestação do princípio ético, escolher ser si mesmo em meio aos demais. 3. A singularidade e generalidade ética A generalidade possui um elemento decisivo para a ética, a proibição. Contudo, a ética é, enquanto princípio geral válido para todos os indivíduos, proibitiva. A proibição ética está incluída na generalidade, da qual deriva. O simples fato de um princípio ser apresentado como geral, corresponde ao conjunto de obrigações e proibições que delimitam a ação dos indivíduos. Isso ocorre porque existe a relação de subordinação entre a generalidade e a normatividade. Por isso, a norma não pode ser apresentada como imperativo ou mandamento de uma determinada vontade, mas como resultado de uma vontade geral. Segundo André Clair: A vida moral, totalmente separada da existência comum, torna-se estranha ao homem. Mas então, reenviar à ética o inefável ou o místico é adotar uma posição, não é uma questão verdadeiramente rigorosa, mas, totalmente, particular e restritiva, que ela corre o risco de carecer da vida moral. (CLAIR, 1989a: 34). Então, como compreender a passagem da generalidade à singularidade? Para Kierkegaard, esta é uma relação intrincada, uma relação dialética, na qual a vida singular do homem é fruto de determinações gerais e circunstâncias particulares. O indivíduo singular é a síntese do geral e do particular. Ou, como afirma Kierkegaard, em O conceito de angústia: “... o indivíduo é ele mesmo e a espécie” (KIERKEGAARD, 1973: 131). Nesse aspecto, o projeto ético-existencial de cada indivíduo é reafirmar-se enquanto ser particular e único, assumindo características gerais da espécie, que igualmente constituem a sua natureza. Ao realizar essa tarefa, o indivíduo se re-apropria da vida moral. 120 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Este constitui o lugar a partir do qual podem ser conduzidas efetivamente as investigações éticas. Nesse lugar, importa antes de tudo reencontrar a subjetividade. Com efeito, aquilo que faz pensar é a apropriação (Tilegnelse) das noções éticas por uma subjetividade existente. Sem esta apropriação, que é o mesmo que uma reapropriação, a vida moral (no sentido dos costumes de uma comunidade humana) e o discurso ético (como discurso de análise e reflexão sobre os costumes) permaneceriam estranhos ao sujeito como existente singular (den Enkelte). (CLAIR, 1989b : 225). Se cada indivíduo é o geral e o particular, trata-se, pois, de precisar as funções da generalidade (e igualmente da normatividade) entre todos os homens. Expressar a universalidade só é possível na unicidade de cada um, no aqui e no agora da existência individual. Por outro lado, a singularidade, através da normatividade, reafirma os princípios éticos universais. Portanto, o sentido ético não existe por si só, mas é a expressão da singularidade. Concretizar o aqui e o agora é a tarefa de cada indivíduo e, nela, encontra-se o princípio ético. O indivíduo é, conforme André Clair, o princípio e o fim da ação ética: “É o próprio agente que reenvia à atividade racional do homem, aquilo que é propriamente o agir que é causa eficiente e causa final de sua ação” (CLAIR, 1989a: 20). No entanto, para afirmar a existência de uma tarefa particular, individual, é necessário supor que haja a consciência dessa tarefa, bem como a forma de realizá-la: O ético sabe que o importante é a maneira de encarar toda a situação, a energia então demonstrada, e qualquer um que se discipline assim nas circunstâncias mais insignificantes pode viver mais intensamente 121 o testemunho ou mesmo como herói dos mais notáveis acontecimentos [...] A ética não fará, portanto do indivíduo outra pessoa, mas ele mesmo; ele não aniquilará o estético, mas o transfigurará. Para viver segundo a ética, é necessário que o homem tome consciência dele mesmo, de uma maneira tão enérgica que nenhuma circunstância lhe escape. (KIERKEGAARD, 1970: 227) A consciência de que o indivíduo tem por tarefa - tornar-se si mesmo - bem como a maneira de encará-la, põe a disjunção entre a vocação e a profissão. Vocação, aqui, é entendida como chamado à responsabilidade e, além disso, significa trabalho ou profissão. No indivíduo singular, essas duas significações são convergentes e concordantes, porque existem a vocação e a atribuição de determinada função ou profissão. Essa função é atribuída a todos e, igualmente, todos são chamados a responder: “Quando um homem tem uma vocação, ele tem ordinariamente fora dele uma norma que, sem fazer dele um escravo, lhe ensina, todavia, em qualquer espécie de tarefa, regular o seu tempo, dando-lhe frequentemente a opção de começar”. (KIERKEGAARD, 1970: 262-263) Assim, aquilo que é considerado vocação completa a função normativa da ética. É isso que confere o caráter de objetividade, mas também de exterioridade à norma. Nesse sentido, a vocação é a retomada subjetiva daquilo que é exigido pela ética. Se não se trata, certamente, de uma ética da autonomia, visto que a tarefa a completar é atribuída ao exterior, a reapropriação subjetiva realiza-se naquilo que é interior, no que é o constitutivo do ser de cada um. A vocação não é o particular em cada um ou aquilo que o distingue dos outros, mas uma reunião do geral (humanidade) e do particular. Em Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 síntese, assumir a vocação é assumir a própria singularidade que, por sua vez, se expressa na universalidade ética. Com isso, a oposição entre heteronomia (diferença) e autonomia (identidade) perde sua valência, muito embora Kierkegaard afirme: Mas a ética reconcilia o homem com a vida, afirmando que todo homem tem uma vocação. [...] Essa sentença do ético, que todo homem tem uma vocação exprime, portanto, que existe uma ordem das coisas razoáveis onde cada um, se ele quer recobrar seu lugar de tal modo que traduza, por sua vez, o humano em sua generalidade e individualidade. (KIERKEGAARD, 1970: 261) Esse dever significa, simplesmente, que cada indivíduo tem que tornar-se si mesmo, e não poderá fazer isso, assumindo apenas aquilo que lhe é inicialmente designado por natureza. O indivíduo tem que se escolher, quer dizer, responder de uma maneira única à realidade única que ele é, ou seja, àquilo que faz com que sua singularidade seja transformada pela reduplicação de sua unicidade natural. Assumindo-se assim, como ser singular, frente ao geral, o indivíduo torna-se excepcional. Kierkegaard, na obra A repetição, mostra que a exceção assimila o geral e é compreendida através dessa assimilação: A exceção assimila o geral, ao mesmo tempo, que se submete a uma análise completa; trabalha em benefício do geral em se elaborando ela mesma, explica o geral em explicando a si mesma. A exceção explica, portanto, o geral e ela mesma; e se alguém quer exatamente estudar o geral é suficiente procurar à sua volta uma exceção fundada: esclarece tudo melhor que o geral. A exceção fundada se encontra reconciliada no geral; o geral é essencialmente atingido no combate e recusa para mostrar sua predileção por ela antes que tenha, por assim dizer, forçado a confessar. (KIERKEGAARD, 1972: 93) A exceção, o princípio normatizador da vida ética, justifica a si mesma e o geral. Como pode o indivíduo realizar a ética? Isso só é possível mediante uma ruptura, um salto, quer dizer, o indivíduo excepcional, realiza a tarefa ética e torna secundária a generalidade. Antes de ser desdobramento da generalidade dos costumes, a vida ética, para o indivíduo, é afirmação de si e igualmente afirmação da generalidade. Portanto, a exceção é o meio de criar, modificar e afirmar a generalidade. Isso supõe que o indivíduo deve ser o portador da instância moduladora da ética e não a generalidade. Sendo assim, a invenção existencial do indivíduo suspende a escolha de um outro, no que diz respeito à sua realização, quando esta se reporta ao mundo social normatizado. O princípio ético é transmutado em situação de exceção. Nessas situações, onde normas e valores são desrespeitados ou pervertidos, apenas os indivíduos excepcionais podem denunciar a ilusão e testemunhar a verdade. Um indivíduo excepcional não é fruto de sua própria decisão, porque, através da prova estrita de eleição, elege a si mesmo, em meio ao sofrimento e tribulações. Nesse sentido, a exceção é pensada como síntese originária segundo a qual aquilo que é estritamente único traz em si o mais geral. A exceção é a união dela mesma e do geral para transformar a tarefa ética em tarefa pessoal. 4. Conclusão Para compreender a existência individual, a vida ética tem função diretriz. A doutrina kierkegaardiana da ética apresenta a escolha originária como princípio da vida singular 122 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 e geral, contudo há certa primazia da decisão sobre a generalidade e as normas. Igualmente, por um movimento circular, a primazia se inverte, à medida que a decisão primeira é a repetição daquilo que o indivíduo singular tem de universal e que transcende a sua particularidade. A decisão do indivíduo singular não é normativa, no sentido de que as normas por ele engendradas são atualizações da normatividade inscrita em todo o homem. Por isso, a sua decisão é o meio e o princípio da normatividade. A vida ética é a síntese, síntese que se expressa de diversos modos: na decisão e na norma, no particular e no geral, no individual e no social, na moralidade e nos costumes. Se todas essas questões acentuam a dualidade, ainda assim permanecem distintas, não se repetindo através de uma dualidade exacerbada. Do ponto de vista da ética, é precisamente, na síntese, que a situação concreta e particular do indivíduo singular fixa a decisão através do querer. No entanto, esta decisão não seria ética se efetuasse a abertura pela generalidade e pelos costumes apenas através da espécie. Os fundamentos de uma ética da existência pressupõem a exceção. Tal ética não descura que, na vida ética, o indivíduo com sua liberdade e sua finitude seja sempre o foco da discussão. Kierkegaard busca fundamentar uma ética prática, centrada no indivíduo enquanto ser singular, capaz de fazer a síntese entre a lei da generalidade e a norma da singularidade em seu existir através da exceção. Referências CLAIR, André (1989a). Éthique et humanisme: essai sur la modernité. París: Cerf. CLAIR, André (1989b). Wittgenstein en debat avec Kierkegaard: la possibilité d’un discurs éthique. In. Les cahiers de philosophie, n. 8/9, p. 211-226. KIERKEGAARD, Sören (1970). L’alternative. Paris: Éditions de l’Orante. (v. 4, segunda parte) KIERKEGAARD, Sören (1972). La répétition. Paris: Éditions de l’Orante. (v. 5) KIERKEGAARD, Sören (1973). Le concept d’angoisse. Paris: Éditions de l’Orante. (v. 7) KIERKEGAARD, Sören (1977), Post-scriptum définitif et non scientifique aux miettes philosophiques. Paris: Éditions de l’Orante. (v. 11, segunda parte) VERGOTE, Henri-Bernard. (1982) Sens et Répétition: Essai sur l’ironie kierkegaardienne, Paris: Cerf/Orante. (2 volumes) 123 124 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 AS REFORMAS ADMINISTRATIVAS DE JOSÉ DA COSTA RIBEIRO1: CABO VERDE, 1ª METADE DO SÉCULO XVIII Bertelina Maria do Rosário de Brito 2 Resumo/Abstract A administração pública nas ilhas de Cabo Verde na primeira metade do século XVIII, vivia um momento de estagnação, em parte por causa da crise comercial e financeira que atingia o arquipélago desde o século XVI. O abandono a que estava remetido as ilhas do arquipélago, com excepção de Santiago e Fogo, também colocava entraves à implantação do funcionalismo régio nas mesmas ilhas. Com a entrada do ouvidor José da Costa Ribeiro em cena esta política vai sofrer alterações, desenvolvendo um projecto que tinha como objectivo principal dotar todas as ilhas de órgãos capazes e que as permitia se auto-governarem. Palavras- chave: Cabo Verde; século XVIII; reformas administrativas; ouvidor José da Costa Ribeiro; administração pública. Public administration in the islands of Cape Verde in the first half of the eighteenth century, there lived a moment of stagnation, in part because of the commercial and financial crisis that struck the archipelago since the sixteenth century The abandonment that was sent the other islands of the archipelago, especially in this group only the islands of Santiago and Fogo, also posed obstacles to the deployment of royal officialdom in the same islands. With the entry of Judge José Costa Ribeiro on the scence will change this policy by developing this project which aimed to provide all the maim islands of organs capable and allowed to self-govern. Keywords: Cape-Verde; eighteenth century; administrative reforms; Judge José da Costa Ribeiro; government. 1 José da Costa Ribeiro era “natural da Madeira, cavaleiro da Ordem de Cristo, licenciado e desembargador. Foi o primeiro togado de Santiago. Devia tomar residência ao seu antecessor e para sindicar o governador Francisco da Nóbrega Vasconcelos, no que toca ao assassinato de Sebastião de Bravo Botelho; é o grande responsável pela implantação de um aparelho administrativo nas ilhas do Barlavento, Maio e Brava, em 1731/32, conforme lhe fora sugerido pelo Conselho Ultramarino, em 1727. Percorreu várias ilhas em correição, nomeadamente Santo Antão, S. Nicolau e Boavista, bem como a Guiné, para fiscalizar a acção do capitão-mor de Cacheu, João Perestrelo. Teve conflitos com o governador Bento Gomes Coelho, chegando a refugiar-se no Convento S. Francisco. Em 1738, tratou da arrecadação dos rendimentos da ilha Brava e informou das irregularidades do feitor de Santo Antão e das suas tentativas para submeter S. Vicente à sua Jurisdição.”, Iva Cabral e Maria João Soares, «Ouvidores de Cabo Verde», publicada na HGCV, vol, III, coord. de Maria Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e Cartografia Antiga; Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia; Direcção Geral do Património de Cabo Verde, 2002, p. 422. 2 Bertelina Brito é mestranda em História Moderna e da Expansão Portuguesa na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. É estagiária no projecto “Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco” no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. 125 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Conjuntura Na primeira metade do século XVIII, o arquipélago de Cabo Verde sentia os efeitos do agravamento de uma crise, que afectava o desenvolvimento económico, financeiro e comercial do território. Este fenómeno vinha sendo desenvolvido desde o século XVI e consolidou-se no século XVII quando Cacheu assumiu o lugar de Cabo Verde como entreposto comercial de mercadorias que circulavam entre África e a Europa. Nesta época, o comércio de escravos passou a ser feito em grande parte não por intermédio de Santiago, mas sim por Cacheu e, portanto os rendimentos do quarto1 e da vintena2 e os direitos sobre outros géneros deixaram de ser arrecadados em Cabo Verde para o ser, consequentemente em Cacheu. Esta alteração explica-se pela concorrência cada vez mais apertada dos ingleses, franceses e holandeses na costa da Guiné, colocando a Coroa portuguesa sobre aviso nesta região, onde corria o risco de perder o monopólio do comércio de escravos3. Configura-se como natural que a Coroa, neste contexto, canalizasse os seus esforços na manutenção da praça de Cacheu. Os negociantes ricos de Santiago e Fogo amealhavam todas as moedas valorizadas ou investiam o seu capital em negócios fora das ilhas. Os rendimentos recolhidos dos tributos da Fazenda Real não chegavam para o pagamento dos “filhos 1 Imposto régio, cujo valor de 25% recaia sobre todas as mercadorias resgatadas pelos moradores de Santiago nos rios da Guiné. 2 Imposto régio cujo a cobrança correspondia a um de cada vinte unidades; era cobrado depois de retirado o quarto e recai também sobre os mesmos artigos que o quarto. 3 Ilídio Baleno, «Reconversão do Comércio Externo em Tempo de Crise e o Impacto da Companhia de Gão-Pará e Maranhão, in HGCV, op. cit, vol. III, p. 159. da folha”, muito menos para sustentar toda a estrutura administrativa. A administração atravessava uma fase caótica pelos sucessivos desentendimentos entre as autoridades civis, judiciais e eclesiásticas das ilhas. Além disso a “nobreza da terra” começou a “ditar leis”, sobrepondo-se às autoridades régias devido a falta de numerário, “que d’ali desaparecera completamente, fazendose os pagamentos por meio de vales”4. Foi precisamente neste contexto que ocorreram as divergências entre o ouvidor-geral Sebastião Bravo Botelho5 e o governador Francisco Miguel de Nóbrega Vasconcelos6, iniciadas em 17267. Foram vários os pontos de discórdia entre Bravo Botelho e Nóbrega Vasconcelos, mas o processo atingiu o ponto máximo quando Miguel Caetano de Barros, irmão do ouvidor, que servia como capitão-mor de São Filipe, na ilha de Santiago, ausentou-se do seu posto, sem a devida autorização, com vista a acompanhar o ouvidor na sua deslocação à ilha de Santo Antão8. Em consequência deste acto, Miguel Caetano de Barros foi suspenso do seu cargo 4 Cristiano José de Sena Barcelos, Subsídios para História Geral de Cabo Verde e Guiné, parte II, Imprensa Nacional, Lisboa, 1899, p. 186. 5 Sebastião de Bravo Botelho era “licenciado e meirinho dos pinhais de Leiria. Foi nomeado para o cargo de ouvidor-geral de Cabo Verde em 1723, tomou posse a 25 de Janeiro de 1724 e foi assassinado em 1728”, Iva Cabral e Maria João Soares, “Ouvidores de Cabo Verde”, publicado na HGCV, vol. III, coord. de Maria Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e Cartografia Antiga; Instituto de Investigação Cientifica Tropical; Praia; Direcção Geral do Património de Cabo Verde, Lisboa, 2002, p. 422. 6 Francisco Manuel Nóbrega de Vasconcelos “serviu no estado do Pará e Maranhão. Foi nomeado para o posto de governador-geral de Cabo Verde em 1725, tomou posse a 24 de Janeiro de 1726 e em 1728 fugiu para a Guiné por culpas por ter assassinado o ouvidor Sebastião de Bravo Botelho.”, Iva Cabral e Maria João Soares, “Governadores de Cabo Verde: 1640-1781” publicado na HGCV, vol. III, coord. de Maria Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e Cartografia Antiga; Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia; Direcção Geral do Património de Cabo Verde, Lisboa, 2002, p. 417. 7 António Carreira, «Conflitos Sociais em Cabo Verde no século XVIII», separata da Revista de História Económica e Social, nº16, 1985, p. 71; Cristiano José de Sena Barcelos, op. cit., p. 252. 8 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 6, 5 de Maio de 1728, Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino. 126 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 pelo governador, no entanto a câmara de Ribeira Grande foi contra esta suspensão, desautorizando e desrespeitando Nóbrega Vasconcelos9. Com vista a resolver esta questão, o Conselho Ultramarino anunciou em 5 de Maio de 1728 a substituição de Sebastião Bravo Botelho e a nomeação do seu sucessor10, ignorando-se no Reino que no dia 19 de Fevereiro do mesmo ano Sebastião Bravo Botelho havia sido assassinado, juntamente com o seu irmão e o seu tio, Sebastião Pereira da Silva, na sequência da tentativa de prender os dois últimos11. A escolha do Conselho Ultramarino para ocupar o posto de ouvidor-geral de Cabo Verde recaiu sobre José da Costa Ribeiro, figura central do nosso estudo no que toca às propostas que apresentou no que concerne à administração do arquipélago. Dados bibliográficos e nomeação São escassos os elementos bibliográficos disponíveis acerca de José da Costa Ribeiro12. Nasceu em 1683, na ilha da Madeira13, existindo suspeitas da sua legitimidade por não ter recebido nenhum dos apelidos do seu pai, Jerónimo Teixeira de Góis14. 9 Cristiano José de Sena Barcelos, op. cit, pp. 254-255. 10 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 6, 5 de Maio de 1728, Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino. 11 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 8, 28 de Abril de 1729, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade de Ribeira Grande. 12 Sobre a acção deste indivíduo ver o citado artigo de Alexandra Pinheiro Pelúcia, «José da Costa Ribeiro, um madeirense ao serviço da Ouvidaria-Geral das Ilhas de Cabo Verde (1728-1740), Islenha, nº 21, 1997, pp. 124-144. 13 Os dados sobre a idade e a origem foram obtidos através de várias referências: em 15 de Outubro de 1728, Costa Ribeiro, é apresentado com a idade de 45 anos. Ver ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra J, maço 96, doc. 26, fl.6 vº, 15 de Outubro de 1728, Lisboa. Parecer da Mesa da Consciência e Ordens dirigido ao rei. O próprio diz ter já com 50 anos; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 15, doc. 47, 5 de Março de 1734, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade de Ribeira Grande. 14 ANTT, Registo Geral de Mercês, D. João V, Livro 20, fl. 20. 127 A partir de 1702 encontrava-se em Lisboa a fim de prosseguir os estudos15, tendo frequentado a Universidade de Coimbra a fim de obter o grau de bacharel aprovado na leitura do Desembargo do Paço16. Em 1712 ingressou na carreira de magistratura17, altura em que foi feito mercê do cargo de juiz de fora de Mértola, pelo prazo de um triénio, eventualmente prorrogável até que lhe fosse inquirido residência. O segundo cargo que ocupou foi o de juiz de fora da cidade Beja , antes de ser nomeado para servir em Cabo Verde. Esta nomeação ocorreu a 4 de Outubro de 1728, por um período de 6 anos18. José da Costa Ribeiro, como ouvidorgeral de Cabo Verde, era a autoridade de superintendência de todos os assuntos judicias, assim a este estava associado o exercício das funções de provedor da Fazenda Real e de provedor das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos, do qual José da Costa Ribeiro recebeu alvará de serventia no dia 5 do mesmo mês19. A tomada de posse ocorreu, na câmara da Ribeira Grande, em 5 de Fevereiro de 172920. 15 ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra J, maço 96, doc. 26, fl.6 vº, 15 de Outubro de 1728, Lisboa. Parecer da Mesa da Consciência e Ordens dirigido ao rei, 16 ANTT, Chancelaria de D. João V, Ofícios e Mercês, livro 38, fl. 133, 3 de Novembro de 1712. Carta régia de mercê do cargo de juiz de fora da vila de Mértola a José da Costa Ribeiro. 17 ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra J, maço 96, doc. 26, fl.6 vº, 15 de Outubro de 1728, Lisboa. Parecer da Mesa da Consciência e Ordens dirigido ao rei; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 15, doc. 63, 5 de Outubro de 1734. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei. 18 ANTT, Chancelaria de D. João V, Ofícios e Mercês, livro 75, fl. 146, 4 de Outubro de 1728, Lisboa, carta régia de mercê do cargo de ouvidorgeral de Cabo Verde; AHU, Cabo Verde, Papeis Avulsos, cx. 16, doc. 38, [ant. 28 de Setembro de 1736]. Requerimento de Artur Aoldovort ao rei. 19 ANTT, Chancelaria de D. João V, Ofícios e Mercês, livro 75, fl. 152 vº, 5 de Outubro de 1728, Lisboa. Alvará régio de serventia do ofício de provedor das fazendas dos defuntos e ausentes, capelas e resíduos outorgado a José da Costa Ribeiro. 20 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 60, 2 de Maio de 1729, Santiago. Certidão elaborada por Domingos Soares da Cunha, escrivão da câmara. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Administração da Fazenda Régia favor do almoxarifado de Cabo Verde e não do Conselho da Fazenda25. O ouvidor geral e desembargador de Cabo Verde José da Costa Ribeiro escreveu a 16 de Abril de 1731 ao rei, D. João V, expondo-lhe “o estado em que se encontrava a governação das ilhas, a liberdade em que viviam os seus moradores e a necessidade de se mandar dar remédio a tudo isso, tanto no espiritual como no temporal”21. Concomitantemente indicava as medidas por ele consideradas necessárias para o bom governo das ilhas22. Data da mesma época a aplicação de outras medidas no que concerne a tributação pelo mesmo ouvidor: em 1730 institui o pagamento de direitos sobre o sal que os estrangeiros adquiririam na ilha do Maio26 e um imposto sobre as provisões que os navios estrangeiros buscavam na vila da Praia27. Para além disso, em 1729 e em 1731 queixava-se da falta de navios nos portos de Cabo Verde, aconselhando a imposição de castigos aos prevaricadores23, uma vez que foi abolido o direito de ancoragem, de modo a atrair os navios para os portos do arquipélago, como forma de combater a crise. Tendo em conta os graves problemas nas finanças e a situação precária das ilhas, o provedor achou por bem não reintroduzir o direito de ancoragem. Normalmente o lucro das mercadorias que eram remetidas para Santiago e que estavam sujeitas a tributação, ficavam em depósito, aguardando ordens régias24. Possivelmente, tendo em conta este rendimento, em 1730 e 1731 o dito ouvidor recorreu ao rei, solicitando que as receitas da Boavista revertessem a 21 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27, 16 de Abril de 1731. Relatório do desembargador e ouvidor geral de Cabo Verde, José da Costa Ribeiro para o rei [D. João V], sobre as reformas administrativas que estavam sendo implantadas nas ilhas de Santiago, Santo Antão, São Nicolau, Boavista, Maio e Brava. O direito sobre o sal acima mencionado, cobrado na ilha de Maio e também na de Boavista, assim como os artigos que os estrangeiros traziam para vender em Cabo Verde, eram os únicos produtos tributados em géneros, enquanto os direitos de saída, fixados em 5%, eram cobrados em dinheiro, registando excepções nos momentos em que os estrangeiros estavam desprovidos de numerário e pagavam a taxa devida em produtos, estimados pelo seu valor intrínseco e não comercial28. O corpo institucional proposto para as ilhas em 1731, referente a organismos da Fazenda, era o mais diminuto possível: a nomeação de três feitores, um para a ilha de São Nicolau, outro para a de Santo Antão e outro para Boavista, todos estritamente dependentes da feitoria instalada na Ribeira Grande de Santiago. “Quando a fazenda se deve conservar em cada Ilha destas hum feitor como agora há com o seo escrivão próprio, este feitor seja trienal e leito por este governo com fiança ou nomeado pelos officiais da Camara 22 Idem. 23 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 29, 30 de Abril de 1731. Parecer do Conselho Ultramarino sobre o ofício de José da Costa Ribeiro. 25 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 7 e 29, 10 de Maio de 1730 e 30 de Abril de 1731 . Parecer do Conselho Ultramarino sobre os ofícios de José da Costa Ribeiro. 24 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 9, doc. 42 A; AHU, Conselho Ultramarino, códice 478, fls 156 – 156 vº. Carta do cabido do bispado de Cabo Verde para o rei [D. João V), de 26 de Fevereiro de 1706. Diziam as suas dignidades que, depois daquela morte, “ficarão as obras do seminário por acabar, e sem consignação alguma para se adiantar a dita obra”. A 23 de Outubro do mesmo ano, o Conselho Ultramarino remeteu requerimento para o Conselho da Fazenda, negando jurisdição sobre o caso. 26 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos cx. 17, doc. 15, 19 de Fevereiro de 1734, Santiago. Carta do ouvidor José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade de Ribeira Grande. 27 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos cx. 16, doc, 39, 28 de Setembro de 1736, Santiago. Carta do ouvidor geral das ilhas de Cabo Verde José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade de Ribeira Grande. 28 Idem. 128 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 que nesse caso abonão, e se lhe deva dar a copia do regimento da Fazenda que há nesta Ilha pelo que tocas ao despacho dos navios e aos almoxarifes e feitor com as obrigações que agora bem como he não fazerem lá pagamentos nem despesas sem conhecimento e mandados desta Provedoria remeterem a ella o rendimento de cada anno a entregar a este almoxarife que asigna o conhecimento da entrega para abono da sua conta. Quanto á fazenda nas Ilhas de Mayo e Ilha Brava se não necessita de feitor ao mesmo juízes se lhe deve carregar o que houver pertencentes a elle porem na Boavista deve haver feitor com seo escrivão como agora lhe e como bem e devem ter as duas Ilhas de S. Antão e S. Nicolau” 29. Na época apontada na proposta, 1731, os feitores de São Nicolau e Boavista já vinham exercendo, por acumulação, o cargo de capitão de cada uma daquelas ilhas e cabia ao “ ouvidor geral passar uma vez no seu triénio à Boa Vista e São Nicolau para pôr em forma a administração da justiça”30. De resto continuariam os feitores dos rendeiros destas ilhas, em caso de insubordinação ou crime de algum morador, a dar “parte ao governador ou ouvidor de Cabo Verde, para castigarem como merecer o seu delito”31. As observações feitas pelo ouvidor geral, em 1731, assinalavam uma realidade administrativa desigual entre as ilhas periféricas, elevando algumas delas ao patamar de segundo grupo dotado de condições para implantar órgãos administrativos. Na liderança deste grupo, encontravamse Santo Antão, São Nicolau e Boavista. Atrás trilhando o mesmo caminho mas 29 Idem. 30 Cristiano José de Sena Barcelos, op.cit, parte II, p. 170. 31 Idem 129 guardando alguma distância apareciam Maio e Brava. Assim, em 30 de Agosto desse mesmo ano o Conselho Ultramarino aprovava o regulamento civil e militar que o desembargador Costa Ribeiro dera às ilhas de Santo Antão, Boavista e São Nicolau e este foi publicado em 1732 no Livro de registo da ilha da Boavista32. Na provisão que consta deste documento referente à Fazenda Real, reafirmava-se a escolha para as ilhas de Santo Antão, São Vicente e Boavista de um feitor (um para cada ilha) como seu escrivão próprio e que a escolha desse feitor fosse trienal, eleito pelo governador-geral, com fiança, depois de ouvidos os oficiais da câmara municipal de Santiago. Os feitores eleitos para São Nicolau e Santiago governariam de acordo com regimento da Fazenda da ilha de Santiago. Não podiam fazer pagamentos nem despesas sem o conhecimento e mandado da provedoria de Santiago e eram obrigados a remeterem para o almoxarifado de Santiago todos os rendimentos de cada ano. O mesmo juiz deveria continuar responsável pelos assuntos da fazenda das ilhas de Maio e Boavista33. Segundo aquela provisão, Santo Antão devia ser a cabeça do governo das ilhas de São Nicolau e São Vicente34. No primeiro ponto do citado livro de registos encontra-se estabelecido o seguinte: 32 Provisão de José a Costa Ribeiro de 11 de Abril de 1732, publicado in António Carreira, «Alguns aspectos da administração pública em Cabo Verde no século XVIII», separata do nº 105 do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, 1972, pp. 168-191. 33 Idem. 34 Idem; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27 e 28, 16 de Abril de 1731 . Consultas do Conselho Ultramarino; AHN, SGG, A1/0001, fld. 72 v- 74 v e 101-103, 16 de Abril de 1731, Santiago. Informação de José da Costa Ribeiro, feita na cidade de Ribeira Grande, citada na obra de André Pinto de Sousa Dias Teixeira, A ilha de São Nicolau de Cabo Verde nos séculos XV a XVIII, dissertação de mestrado em História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Nova de Lisboa, 2004, p. 78.. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 “A forma por que o Feitor deve dar despacho a todos os navios de qualquer nação que forem e que venham comerciar a esta Ilha», da Boa Vista”35. Previa-se neste capítulo o processo prático de como devia ser feito o fornecimento aos navios, a título de refrescos, livros de direitos, das frutas da terra, gado, perus e coisas semelhantes. Estipulou-se que o mantimento requerido pelos navios, caso constassem de milhos, feijão, porcos, vacas e cabras, o vendedor estava sujeito ao pagamento da taxa de 5 %. Porém a compra dos mesmos géneros alimentícios e de gado pelos capitães dos navios, ficava condicionada à licença da Câmara, a fim de evitar o esgotamento das provisões necessárias aos habitantes36. Outro aspecto que se debruçou o respectivo documento foi a cobrança do dízimo do gado. Efectivamente, no arquipélago desde o início do seu povoamento assinalou-se a existência de gado, utilizado como meio de troca nas transacções comerciais. Após os governadores terem sido proibidos de participar directamente no comércio com a Guiné em 169837, estes acabam por recorrer ao comércio de gado, alegando possuírem direitos reais que lhes atribuíam primazia na venda de gado aos navios que aportava em Santiago, como forma de melhorar os seus rendimentos. Todos queriam deter o controlo do comércio de gado com os estrangeiros, gerando tensões e conflitos entre as várias autoridades, até ao ponto do ouvidor José da Costa Ribeiro, de modo a por termo ao clima de tensão, propor em 1732 a existência de um almoxarife38 próprio para a receita do gado e que este deveria ser eleito pela câmara, presidindo para a sua eleição o ouvidor geral, o qual seria obrigado a dar contas trienalmente e que teria de ordenado 10%, das vacas vendidas, isto é, de cada dez vacas que se vendessem, uma seria para o almoxarife. Ao seu escrivão se pagaria 200 réis por dia, com excepção dos feriados39. A questão da cobrança do dízimo do gado seria outra vez realçada em 1736, quando em 20 de Dezembro, o rei atendeu ao pedido do governador sobre a fortificação da vila da Praia, feito em 20 de Junho de 1732. Este solicitava que a fortificação fosse custeada pelo produto da venda das vacas concedida ao povo e à câmara. Consultando, primeiramente o ouvidor geral e depois os oficiais da câmara, a nobreza e o povo, que votaram favoravelmente pela construção de fortes com o rendimento das vacas, o rei em carta de 30 de Janeiro de 1737 deu o seu parecer favorável40. A mesma provisão permitia o negócio com os estrangeiros, excepto na venda de “panos da terra” e por consequência o algodão e determinava que as fazendas vendidas, ou dadas contra géneros da terra, pelos navios, pagavam 10% de direitos de entrada41. Reafirmava, também, a proibição de os oficiais da Fazenda Régia de participarem em todo o trato e comércio42. 35 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos cx. 15, doc . 8, 11 de Março de 1733, Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino sobre a urzela. 38 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 78, 20 de Junho de 1732, Santiago. Carta do ouvidor, José da Costa Ribeiro ao rei, escrita na cidade de Ribeira Grande; Cristiano José da Sena Barcelos, op. cit., parte II, p. 276. 36 Provisão de José a Costa Ribeiro de 11 de Abril de 1732, publicado in António Carreira, op. cit., «Alguns aspectos…», p. 169. 39 Provisão de José da Costa Ribeiro de 11 de Abril de 1732, publicado in António Carreira, op. cit., «Alguns aspectos…», p. 169. 37 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 8, doc. 101, 18 de Novembro de 1698. Carta régia proibindo a participação dos oficias régios no comércio com os rios da Guiné; Cristiano José da Sena Barcelos, op. cit.,parte II, p. 145. 40 Idem. 41 Idem, p. 175. 42 Idem. 130 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 No entanto, a reforma empreendida por José da Costa Ribeiro, não teve o alcance desejado em todas as ilhas mencionadas no seu relatório, ficando a ilha de São Nicolau aquém do desejado, ao contrário da Boavista que sobrevalorizada em deferimento da ilha de São Nicolau no que se refere ao domínio da fazenda como no governo político, dado que aquele aspecto foi sobretudo trabalhado na ilha da Boavista43. Também devemos ter em conta que o sistema de administração das finanças públicas estava numa fase incipiente e consequentemente apresentava grandes insuficiências, uma vez que as autoridades centrais do arquipélago não conseguiam controlar a arrecadação dos tributos devidos à Coroa. De acordo com a opinião do governador de Cabo Verde na época, Bento Gomes Coelho, seria mais proveitoso para a Coroa, de modo a recolher os rendimentos das ilhas de Barlavento, proceder ao seu arrendamento a um privado. Bento Gomes Coelho também realçava a situação de grande promiscuidade vivida entre os oficiais da Fazenda Real daquelas ilhas44. Administração da justiça O ouvidor e desembargador geral das ilhas de Cabo Verde, no seu relatório referente às reformas administrativas que estavam a ser implantadas nas ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Boavista, Maio e Brava, elaborado no ano de 1731, afirmava o seguinte: “São sinco Ilhas povoadas que há sem administração sem administração da justiça nem forma dellas pertencentes ao Governo e Correição desta de S. Tiago a Ilha de S. 43 André Pinto de Sousa Dias Teixeira, op. cit., p. 78. 44 AHN, SGG, A1/ 0002, fl. 254. Carta do governador de Cabo Verde, Bento Gomes Coelho, feita na cidade da Ribeira Grande de 26 de Outubro de 1736 citado por André Pinto de Sousa Dias Teixeira, op. cit, p. 79. 131 Antão, a Ilha de S. Nicolau e da Boavista, Ilha de Mayo, e a Ilha Brava. A Ilha de S. Antão que se compreende mais de 360 fogos, todos dentro na povoação apelidada Cidade da Ribeira grande e a Ilha de S. Nicolau que com o nome de vila da Ribeira Brava consta o lugar de mais de 260 vizinhos, ambas tem suficiente capacidade de se crearem villas com juízes ordinários, vereadores, e mais oficiais de Camara, e outros a elle concenentes, pois em o numero de moradores de cada huma das duas Ilhas não hé possível deixar de haver vinte e quatro capazes de servirem doze em cada três annos e se tirarem delles os mais officios” 45 Da proposta esboçada é possível extrair o seguinte: primeiro, que da descoberta até os anos 30 do século XVIII, apenas as ilhas de Santiago e Fogo tinham sido dotados de estruturas administrativas camarárias e régias; e segundo, que, do conjunto das restantes ilhas, somente duas, São Nicolau e Santo Antão estariam no segundo quartel de setecentos, aptas a constituírem câmaras e albergar um certo número de órgãos de administração régia. Este defendia que as povoações da Ribeira Grande de Santo Antão e da Ribeira Brava de São Nicolau deviam ser elevadas a vilas e que nelas fossem instituídos concelhos, com juízes eleitos, tal como existia no Fogo em Santiago. Estes governar-se-iam pelas leis gerais do Reino, não necessitando de um regimento especial, e funcionando como qualquer município da Metrópole, no entanto, aconselhava José da Costa Ribeiro, que seria conveniente que alguns oficiais camarários acumulassem cargos, como acontecia em algumas vilas do Reino46: 45 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27, 16 de Abril de 1731, Santiago. Exposição de José da Costa Ribeiro. 46 Idem. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 - O escrivão da câmara seria simultaneamente do público, judicial, notas e almotaçaria, sendo renumerado pela autarquia. - O alcaide exerceria as funções de carcereiro, devendo o salário ser pago igualmente pelo concelho. - Um dos juízes deveria se também dos Órfãos, optando-se, no entanto, que o cargo de escrivão destes, constituísse um oficial separado. Pela primeira vez, se preconizava a separação das administrações da fazenda, da guerra e da justiça. A administração da justiça caberia às recém instituídas câmaras municipais, mantendo-se, no entanto, com uma frequência trienal. Estas seriam feitas quando o ouvidor-geral se deslocava a cada uma das ilhas, para fazer inquéritos dos casos mais graves, as chamadas devassas47. Para as ilhas de Boavista e Maio, com populações reduzidas, foi proposto a criação de “lugares” com um juiz anual em cada uma delas, “com seu alcaide e escrivão do judicial e notas”. Evidentemente estariam submetidos à Ouvidoria sito em Ribeira Grande, para onde seriam remetidos todos os autos de devassas realizados nas ilhas “para se pronunciarem e passarem as ordens necessárias contra os culpados48” Estas propostas de José da Costa Ribeiro foram bem aceites pelos procuradores da Coroa e Fazenda e pelo Conselho Ultramarino, sendo sancionadas favoravelmente a 30 de Agosto de 1731 pelo Conselho Ultramarino 47 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 27 e 28, 16 de Abril de 1731. Consultas do Conselho Ultramarino. Nas suas cartas anexas nas consultas, José da Costa Ribeiro manifestou a opinião de que as ilhas da Boavista, Maio e Brava, não estavam preparadas para receber câmaras municipais, pelo que a nomeação, a partir de Santiago, de um juiz, que na primeira ilha seria acompanhado por um feitor, bastaria para a sua administração. 48 Idem. Assim, sabemos que as visitas do ouvidor terão iniciado no ano seguinte partindo para as ilhas de Barlavento a 25 de Abril, a fim de pôr em prática as reformas, dirigindo-se primeiro a Santo Antão e prevendo depois passar em São Nicolau e Boavista50. 49 Em 1733, o rei confirmou o regimento dado por José da Costa Ribeiro, o qual foi inscrito nas câmaras das vilas criadas, por ordem do governador-geral Bento Gomes Coelho51. Com as alterações inseridas, o governador das novas câmaras funcionou sem grandes sobressaltos nos anos seguintes. Por exemplo, em 1736, deu-se uma feliz articulação de poder, ao nível da aplicação da justiça, entre os juízes da câmara de São Nicolau e o ouvidor-geral; nesta altura, foi enviado da vila da Ribeira Brava para a ilha de Santiago um preso acusado de ter morto um capitão de um navio inglês. José da Costa Ribeiro considerava que o único obstáculo ao normal funcionamento das instituições era o próprio governadorgeral do arquipélago, com quem estava então em litígio pessoal52. Administração militar Anterior ao ano de 1731, foi ensaiada a intuição de um capitão regional, que deteria jurisdição sobre as ilhas de Barlavento. 49 AHU, Conselho Ultramarino, códice 486, fls. 251-251 v. Consulta do Conselho Ultramarino; AHN, SGG, A1/000Um, fls. 72.72v e v00v-10, 12 de Julho de 1731, citado por André Teixeira, op. cit., p. 34. Parecer favorável do Conselho Ultramarino. 50 AHU, Cabo Verde. Papéis Avulsos, cx. 14, doc, 68, 5 de Junho de 1732, Santiago. Carta do governador Francisco de Oliveira Grans ao rei escrita na cidade de Ribeira Grande. Desconhecem-se os episódios ligados à visita às ilhas de São Nicolau e Boavista. 51 AHU, Conselho Ultramarino, códice 486, fl. 277, 10 de Março de 1733. Provisão régia que confirmava os regimentos de José da Costa Ribeiro; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 15, doc. 12, 6 de Junho de 1733, Santiago. Carta de Bento Gomes Coelho escrita na cidade de Ribeira Grande. 52 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 16, doc. 53, 31 de Outubro de 1736, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro ao rei escrita na cidade de Ribeira Grande. 132 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 O nomeado foi Sebastião de Mendonça e Zuniga que em 1729 recebeu a patente de “capitão-mor da ilha de Santo Antão, São Nicolau e São Vicente” por um período de três anos53. A quando da nomeação de Sebastião de Mendonça e Zuniga para o posto de capitão-mor da ilha de Santo Antão, São Nicolau e São Vicente, este argumentando que o regimento lhe conferia capacidade para governar nos aspectos militar, civil e político, como na administração da justiça e Fazenda Real, tentou assumir o posto de feitor e capitão das ditas ilhas. Realmente no sexto ponto do seu regimento existia a indicação para o dito capitão ter “ cuidado nos rendimentos das Ilhas de São Nicolau, e Boavista, tocantes a fazenda Real”, ou seja, ao nomeado capitão-mor de Santo Antão, foi atribuída a competência de vigiar os feitores das ilhas, ficando estes sob a alçada de Mendonça e Zuniga, que assim desempenharia um lugar intermédio entre o governador-geral de Cabo Verde e os capitães feitores daquelas ilhas do Barlavento. A fim de confirmar esta posição, o rei estabeleceu que fosse passada a Zuniga a patente já mencionada de capitão-mor das ilhas de Santo Antão, São Nicolau e S. Vicente. Em cartas dirigidas ao rei o ouvidor e o governador acusavam o dito capitão de roubar a Fazenda Real, recusando enviar os rendimentos para Santiago e falsificando certidões dos réditos que ele remetia; de desrespeitar e desobedecer ao poder superior do governador, ignorando as cartas que este lhe enviava; de permitir aos estrangeiros comerciar sem pagar os devidos da alfândega ordinário e de 53 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 21, 30 de Março de 1729, Lisboa. Provisão nomeando Sebastião de Mendonça e Zuniga para o posto de capitão-mor das ilhas de Santo Antão, São Nicolau e São Vicente por três anos. 133 usurpação da jurisdição sobre as ilhas que não lhes estavam confiadas, nomeadamente Boavista, Santa Luzia, São Vicente e São Nicolau54. Sebastião de Mendonça e Zuniga acabaria por ser destituído do posto e face à prematura falência do modelo experimental de capitão-regional, José da Costa Ribeiro projectou para São Nicolau, tal como para Santo Antão, a criação do cargo de capitão-mor com função exclusivamente militar e circunscrito à defesa de cada uma dessas ilhas55. Este deveria ser eleito pelos oficiais do município, aprovado pelo governador-geral e confirmado pelo soberano; os providos podiam igualmente ser afastados do posto em qualquer momento, por ordem superior. Nestas determinações voltara a insistir-se que a defesa das ilhas deveria obedecer ao regimento das ordenanças do Reino, uma vez que todos os moradores eram considerados soldados. O capitão-mor tinha como função realizar o alistamento dos capazes de servir na defesa da ilha, propor os oficiais que lhe parecessem mais adequados e organizar a sua vigilância, nomeadamente nos portos e zonas da costa de desembarque mais fácil56. No entanto, tendo em conta as queixas em 1733 do governador-geral do arquipélago sobre a tentativa que fez para cobrar os direitos referentes ao trato da urzela e 54 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 43, 24 de Abril de 1730- 2 de Maio de 1732. Pareceres, consultas e informação do Conselho Ultramarino sobre os excessos que estavam sendo praticados pelos capitães-mores da praça de Cacheu, João Perestrelo e ilha de Santo Antão, Sebastião de Mendonça e Zuniga, 55 AHN, SGG, A1/000um, fls. 72-72v; AHN, SGG, A1/0001, fls. 72v-74v e 101-103, Abril de 1731, Informação de José da Costa Ribeiro, citado por André Teixeira, op. cit, p. 54; AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc 27 e 28, 16 de Abril de 1731. Consultas do Conselho Ultramarino. 56 Idem. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 de outros bens na ilha de São Nicolau, alegando que se afigurava difícil, porque os agentes da Coroa na ilha diziam ter falta de artilharia para o impor57, concluímos que a nomeação do capitão-mor e a criação de companhias de ordenança não resolveu eficazmente o problema da segurança da ilha. Em termos práticos a aplicação do projecto no campo da administração militar traduziu-se na criação nas ilhas de São Nicolau e Santo Antão de companhias de ordenança, “nomeando capitães, tenentes e alferes”; e mandou fazer eleição em São Nicolau, para o posto de capitão-mor58. Para Santo Antão foi nomeado o segundo capitão-mor, Cláudio Roquete da Silva59, mas já sem os amplos poderes que usufruía o seu antecessor. Foi-lhe atribuído um Regimento que lhe consagrava apenas um governo militar e estava declarado que pertencia exclusivamente à câmara o governo político da ilha “ e que esta seria isenta da jurisdição do capitão-mor, como também o feitor60. O novo capitão-mor também perdeu a jurisdição que detinha o anterior capitão sobre as ilhas de São Nicolau e São Vicente. Para as restantes ilhas do Barlavento seriam nomeados capitães-cabos, instituídos para “exercer as mesmas obrigações que naquelas duas devem ter os capitãesmores”61. 57 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 65, 6 de Abril de 1732, Santiago. Carta de Francisco de Oliveira Grans para o rei, escrita na cidade da Ribeira Grande. 58 Cristiano José de Sena Barcelos, op. cit., parte II, p. 272. Sobre a criação, cerimónia de empossamento e reunião de José da Costa Ribeiro com o corpo de oficiais camarários ver Maria José Lopes, «A câmara municipal de Santo Antão: criação e evolução (1732-1870), Africana, nº 5, 1988, p. 111. 59 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14, doc. 67, Maio de 1732. Ofício de Cláudio Roquete da Silva informando a sua chegada a Cabo Verde e tomada de posse. 60 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 13, doc. 23 de 30 de Março de 1729. Requerimento de Cláudio Roquete da Silva, capitão- mor da ilha de Santo Antão. 61 Zelinda Cohen, «A Administração das ilhas de Cabo Verde Pós- Nomeação de oficiais No relatório apresentando pelo ouvidor e desembargador, este debruçou-se também sobre o quadro de pessoas que considerava necessárias para ocuparem as funções administrativas do arquipélago, argumentando que uma das razões fundamentais para que na altura não houvesse ainda instituições administrativas nas outras ilhas, era o facto de a Coroa Portuguesa não nomear os moradores das ilhas, composto essencialmente por mestiços e negros, para os mesmos postos62. A resistência em nomear os mestiços e pretos explica-se pela mentalidade, leis e pelos critérios utilizados para a escolha dos que deveriam ocupar os postos da administração pública. No Antigo Regime os critérios, ao contrário dos actuais que primam pela competência, baseavam-se na ascendência familiar, pureza de sangue e a religião63. “Ser branco, cristão e sem qualquer indício de ascendência de outras cor ou religião eram, sem sombra de dúvida, condições elementares para se pretender algum oficio no quadro do oficialato régio” 64. Qualquer suspeita sobre a origem étnica do candidato ou oficial podia comprometer a sua nomeação ou ascensão na carreira. Os judeus, os cristãos-novos e os negros, eram os considerados inaptos para tais União Ibérica: Continuidades e Rupturas, in HGCV, op. cit., vol, III, p. 150. 62 AHU, Cabo Verde, Papéis Avulsos, cx. 14,doc. 27, 16 de Abril de 1731, Santiago. Carta de José da Costa Ribeiro para o rei, escrita na cidade da Ribeira Grande. 63 Mafalda Soares da Cunha, «Governo e governantes no Império português do Atlântico (século XVII)», in Modos de governar: ideias e práticas politicas do Império português: século XVI a XIX, org. Maria Fernanda Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini, 2ª edição. São Paulo, Alameda, 2005, pp. 69-87. 64 Zelinda Cohen, «Entre os proscritos e os seleccionáveis: contribuição para o estudo do perfil do funcionalismo régio insular (Cabo Verde: do século XV a meados do século XVIII)», Africana, dir. João da Silva Cunha, nº 6, 2001, p. 79. 134 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ofícios, visto serem de outra religião e de outra raça, ou seja não tinham o sangue limpo e lhes faltava qualidade. Os critérios acima mencionados aplicados às ilhas de Cabo Verde apresentam-nos um contra-senso, visto que a sociedade cabo-verdiana da época era constituída essencialmente por mestiços (designados brancos da terra), sendo pouco os brancos oriundos do Reino. Daí que se entenda que nestas ilhas, devido às suas condições e a recusa de os portugueses ali se fixarem, existir uma certa flexibilidade por parte da Coroa na escolha das pessoas para o oficialato local, principalmente nos de menor prestígio social e de menor responsabilidade, como os de porteiro, meirinho65. Enfim a presença e relativa tolerância dos brancos da terra era uma realidade, sobretudo a partir de 1608, quando foi promulgada a lei que reconhecia o direito aos naturais a ocuparem os postos vagos na sua própria terra66. Evidentemente que nos casos dos postos de governadores, ouvidores-gerais, feitores e provedores, ou seja o topo da hierarquia assente em Cabo Verde, o acesso dos naturais foi sempre muito mais dificultado. Estes eram cargos que de certa maneira ainda exigiam uma experiência bastante consolidada e, principalmente a confiança do monarca; confiança, esta que só era possível estabelecer com pessoas que já tinham prestado à Coroa determinados serviços e que já tinham dado prova das suas competências. 65 Zelinda Cohen, Controle e resistência no quadro do funcionalismo régio insular, (Cabo Verde – século XV a meados do XVIII), tese de mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1999, p. 120. 66 Zelinda Cohen, op. cit., «Entre os proscritos …», p. 79-80. 135 Conclusão O relatório do ouvidor e desembargador José da Costa Ribeiro nos comprova que todas as intenções manifestadas nos anos anteriores, de dotação àquelas ilhas dos seus próprios organismos de administração, não se haviam realizado até então. Fora a constituição da capitania de Santo Antão, São Nicolau e São Vicente (e mesmo assim sem regimento próprio), pouco se havia avançado nos planos de consolidação da administração régia nas outras ilhas do arquipélago. Os diversos cargos que foram sendo criados em Cabo Verde eram, em grande medida semelhante aos existentes no Reino. O objectivo principal era transplantar a estrutura institucional do Reino para Cabo Verde, respeitando a especificidade do arquipélago. A multiplicação de postos administrativos anuncia uma tentativa, por parte da Coroa, de prover o arquipélago de meios organizativos próprios, capazes de controlar as crescentes trocas comerciais que se iam registando e restringir os poderes e a influência dos donatários e de outros indivíduos poderosos que haviam chamado a si, ilegalmente, privilégios e regalias, cientes do afastamento do Reino. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Abreviaturas AHN- Arquivo Histórico Nacional (Cabo Verde). AHU – Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal). ANTT- Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Portugal). HGCV – História Geral de Cabo Verde. AHCV-CD- História Geral de Cabo Verde, Corpo Documental. AUC – Arquivo da Universidade Coimbra. Fontes e Bibliografia Manuscritas AHN, Secretaria-geral do Governo. AHU, Cabo Verde, Papeis Avulsos, cxs. 8 a 18. AHU, Conselho Ultramarino, códices 478 e 486. ANTT, Chancelaria de D. João V, Ofícios e Mercês. ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo. ANTT, Registo Geral de Mercês. AUC - Os Livros da Matricula e os Livros dos Autos e Graus. Impressas Provisão de José a Costa Ribeiro de 11 de Abril de 1732. In CARREIRA, António. «Alguns aspectos da administração pública em Cabo Verde no século XVII». Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nº 105, 1972, pp. 168-191. 136 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Referências AMARAL, Ilídio de (2007). Santiago de Cabo Verde: a terra e os homens. 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Através da análise dos relatos dos missionários entendemos o estado da igreja em São Nicolau e das demais ilhas do arquipélago, na segunda metade do século XVII. Palavras-chave: século XVII; São Nicolau; evangelização; capuchinhos; Propaganda Fide. In 1666 two Capuchin Spanish province of Andalusia were shipwrecked on the island of Sao Nicolau, Cape Verde. The two belonged to the religious mission of the kingdoms of the bold since the year 1647, attended the diocese of Cape Verde, at the behest of the Congregation for the Propaganda Fide, a body of the Church of Rome, that “disputed” in the missionary overseas with the standards of the Iberian countries. By analyzing the reports of missionaries understand the state of the church in São Nicolau and other islands of the archipelago but in the second half of the seventeenth century. Keywords: seventeenth century; island of São Nicolau; evangelization; capuchin; Propaganda Fide. 1 Carlene Recheado é doutoranda em História da Expansão Portuguesa pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do Centro de História e Além Mar - Universidade Nova de Lisboa / Universidade dos Açores (CHAM). 141 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 A Evangelização das ilhas de Cabo Verde Neste artigo, pretendemos analisar a assistência religiosa na ilha de São Nicolau, na segunda metade do século XVII, através do relato de dois capuchinhos1 espanhóis da província da Andaluzia, enviados pela Congregação para a Propaganda Fide2 para a missão da costa da Guiné, acabando por viver por mais de um ano na ilha, na sequência de um naufrágio, quando regressavam ao continente europeu. A ilha de São Nicolau3, uma das dez ilhas que compõem o arquipélago de Cabo Verde4, tal como as restantes ilhas do arquipélago, com a excepção das ilhas de Santiago e Fogo, permaneceu, ainda durante o século XVII, sem a presença de estruturas políticas, económicas e militares, sendo a única autoridade da ilha, o feitor do donatário. A ilha não conheceu grandes iniciativas de povoamento e teve como principal actividade económica, a criação de gado. Até 1696, data que findou o regime senhorial na ilha passando a mesma para a administração do Conselho da Fazenda, ela esteve na posse dos condes de Portalegre, depois dos marqueses de Gouveia. Só após este período passou a ter um pároco permanente. 1 A ordem dos frades menores capuchinhos, surgiu por volta de 1525, na província das Marcas, Nordeste italiano, junto ao Adriático e constituiu uma das maiores reformas surgidas no seio da Ordem Franciscana. O seu fundador foi Mateus de Bascio, um jovem sacerdote que na Província das Marcas, fazia parte dos observantes, grupo que reclamava a faculdade de observar à letra a regra franciscana. 2 A Propaganda Fide, organismo criado em Junho de 1622, encarregado de dirigir a acção apostólica, como uma certa independência dos poderes leigos. 3 Ver André Pinto de Sousa Dias Teixeira, A ilha de São Nicolau de Cabo Verde nos séculos XV a XVIII, Centro de História de Além - Mar, Universidade Nova de Lisboa, 2004. 4 Ver História Geral de Cabo Verde, vol. I, coordenação de Luís Albuquerque, vol. II e vol. III, coordenação de Maria Emília Madeira Santos; Lisboa, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Instituto de Investigação Cientifica Tropical; Praia, Direcção Geral do Património de Cabo Verde - Instituto Nacional de Cultura de Cabo Verde, 1991, 1995 e 2002; Christiano José de Senna Barcellos, Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, Lisboa, Academia Real das Ciências, 1899. A assistência religiosa no arquipélago começou em 1466, com a presença de dois religiosos, frei Jaime e frei Rogério5. Ambos franciscanos do Convento de São Bernardino da Atouguia em Lisboa. Essa assistência foi efémera, terminando no decorrer de um conflito entre os frades e o capitão Bartolomeu de Noli6, que teria mandado matar frei Rogério e prender o seu companheiro. Sendo o arquipélago geograficamente próximo das áreas de resgate e, ao contrário da “terra firme da Guiné”, os portugueses não encontraram resistência à fixação dos mecanismos de gestão comercial. Santiago funcionou como a sede da “feitoria do trato da Guiné”. Esta associação Guiné - Cabo Verde serviu de base para a formação da diocese de Cabo Verde7. A pedido de D. João III, o papa Clemente VII, em 31 de Janeiro de 1533, criou a diocese de Santiago e confirmou o seu primeiro Bispo, D. Brás Neto. Para acolher a diocese, a vila de Ribeira Grande de Santiago foi elevada a cidade e nasce o projecto da construção da catedral de Ribeira Grande8. O bispado, para além de abranger as ilhas do arquipélago, estendia-se por uma faixa territorial de cerca de 320 léguas, que iniciavam no rio Gâmbia e iam até ao rio de Santo André, actualmente Sassandra, situada na Costa do Marfim. A área abrangida pela ampla diocese ultrapassava os limites de influência portuguesa, principalmente a sul, onde 5 Christiano José de Senna Barcelos, Ob. cit. Parte I, p. 28. 6 Bartolomeu de Noli foi o primeiro capitão donatário de Ribeira Grande de Santiago, fixou-se aí em 1466, constituindo o primeiro núcleo de povoamento do arquipélago. 7 Maria Emília M. Santos, Maria João Soares, “Igreja, missionação e sociedade” in História Geral de Cabo Verde, Lisboa, Vol. II, Junta de Investigação Científica Tropical: Direcção Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 1995, p.371. 8 cf. António Brásio, Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, vol II, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1958. pp. 232 – 234. 142 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 abrangia territórios como a Serra Leoa, e uma parte do Golfo da Guiné9. Dada a vastidão do território continental do bispado, a sua heterogeneidade física, étnica, religiosa e cultural, (onde se encontravam povos animistas, islamizados e depois alguns grupos de cristianizados), os bispos, muitas vezes não conseguiam cumprir com as visitas anuais10 estipuladas pelo Concílio de Trento, pelo que a assistência religiosa não era igual em todo o território. A actividade religiosa do bispado era semelhante à praticada na Europa cristã quinhentista. Este modelo foi transportado também para as restantes ilhas do atlântico e para o Brasil. Deste modo, a diocese de Cabo Verde encontrava-se organizada numa rede de paróquias. A expansão da igreja no arquipélago esteve intimamente ligada às vicissitudes do processo de povoamento. A ilha de Santiago foi a primeira a ser habitada, uma vez que possuía bons portos e boas nascentes de água doce. As ilhas de Santo Antão e São Nicolau também encontravam-se dotadas de boas nascentes de água, mas em contrapartida, não usufruíam de grandes portos. Nas restantes ilhas, excepto a ilha da Brava, praticamente não havia água. A segunda ilha a ser povoada foi a do Fogo, dada a proximidade de Santiago e por ser uma grande produtora do algodão. As ilhas de Santo Antão e São Nicolau, já na década de 70 do século XVI, ostentavam pequenos núcleos populacionais. As restantes ilhas do arquipélago, só tardiamente, já no século XVII, foram devidamente povoadas, embora estivessem a ser aproveitadas para a criação de gado, como nos dá a conhecer Valentim Fernandes11. O sargento mor da ilha de Santiago, Francisco de Andrade, no seu relatório sobre a vida económica e social do arquipélago de Cabo Verde, datada de 26 de Janeiro de 1582 informa que “ […] En todas estas ylhas nomeadas há ygrejas, tirando a ylha do Sal, Santa Luçia, Sant Vicente […]”12. Em 1595, o tesoureiro-mor da Sé de Santiago, Fernando Novais de Queiroga, encontrava-se em Lisboa para solicitar a construção de uma igreja na ilha de São Nicolau e a colocação de um pároco à custa dos dízimos da ilha, à semelhança do que já acontecia em Santo Antão. Esta informação consta de um documento de 7 de Setembro do mesmo ano e entra em total contradição com a relação do sargento-mor. A solicitação do tesoureiro deixou bem patente o problema da falta de clérigos, que se fazia sentir na diocese, a excepção das ilhas de Santiago e Fogo - “ […] na ilha de San Nicolau pasava de três annos que se não confesavam nem admistravam os sacramentos por falta de cura […]”13. Para além de ser em número reduzido, o corpo clerical de Cabo Verde recebia com irregularidade os seus ordenados. Para solucionar este problema o monarca português, em carta régia de 28 de Setembro de 1571, ordenou que se “ […] lhes fizesem aos tempo e da maneira que comtinha e era declarado em suas cartas e provisões […]14. Em inícios da década de setenta do século XVI, os capelães das igrejas do bispado com menos de duzentos fogos por freguesia viram os seus ordenados aumentados em mais 30 mil réis por 9 Maria Emília M. Santos, Maria João Soares, ob. cit. p. 371. 12 Relação de Francisco de Andrade publicado in António Brásio, Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, vol III, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1968, p. 98. 10 Emília Madeira M. Santos, Maria João Soares, ob. cit., p.266. 13 MMA, 2ªsérie,Vol. III, p.381. 11 Valentim Fernandes, ob. cit.,pp.741-745. 14 MMA, 2ªsérie,Vol. III, p.21. 143 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ano, com a condição de ensinarem a doutrina cristã ao povo, quando o bispo determinasse15. Notamos uma certa preocupação no que toca a evangelização na diocese. Também, preocupado com a evangelização das ilhas, André Álvares de Almada, o autor do Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde, de 1594, recordou nesta obra as diligências que fez em Lisboa e Madrid, para que fosse fundada, em Santiago, uma casa para religiosos da Companhia de Jesus ou de outra ordem16. Lopo Soares de Albergaria, fidalgo da casa real e membro do Conselho de Estado, na sua relação sobre a Guiné e Cabo Verde, datada do ano de 1600, lamentava a falta de assistência religiosa na Guiné e o descuido na conversão dos gentios17. A ilha de Santiago, que segundo Francisco de Andrade18 contava em 1582 com 508 vizinhos, possuía já oito paróquias, sendo elas, a de S. João Baptista (Ribeira de António), Santa Catarina do Mato, Santo Amaro (Ribeira do Tarrafal), São Miguel (Ribeira dos Flamentos), Santiago (Ribeira Seca), São Lourenço (Ribeira dos Órgãos), São Nicolau Tolentino (Ribeira de São Domingos), e a de Nossa Senhora da Luz (Ribeira de Alcatrazes), com os seus curas, que administravam diariamente o sacramento da Eucaristia. Para além dessas freguesias, a ilha estava dotada de uma série de ermidas de devoção onde também se rezava a missa. Na ilha do Fogo havia duas paróquias com as respectivas igrejas, a primeira de invocação a Santiago e São Filipe, e a igreja de São Lourenço, com os seus 15 MMA, 2ªsérie Vol. III, pp.28- 31. 16 MMA, 2ª série, Vol. III, p. 303. 17 Relação de Lopo Soares de Albergaria sobre a Guiné do Cabo Verde in António Brásio, Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, Vol. IV, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1968, p. 4. 18 Relação de Francisco de Andrade publicado in MMA, 2ª série, Vol. III, p.98. respectivos vigários. As ilhas de Santo Antão, Boavista, Maio e Brava, ainda não estavam organizadas segundo o sistema de freguesias, mas já possuíam igrejas e um capelão que administrava os sacramentos temporariamente ou em momentos mais importantes do ano litúrgico, como a Quaresma. Em 1582 as pequenas comunidades das ilhas de São Nicolau19, São Antão, Boavista e Maio dispunham de uma igreja, enquanto as ilhas de São Vicente e do Sal, as últimas a serem povoadas, permaneceram até o século XVII, sem nenhuma estrutura religiosa. No período compreendido entre as últimas décadas do século XVI e meados do Século XVII, a história das ilhas de Cabo Verde foi marcada por uma crescente desaceleração da economia, pois a sua importância como entreposto comercial foi diminuindo, o que culminou, em 1647, na perda a favor de Cacheu da sua função de centro de controlo de todo o tráfico português nos Rios dá Guiné20. Esta medida resulta da necessidade de Portugal assegurar a continuidade dos seus interesses na costa africana, fazendo face às investidas francesas, inglesas e holandesas21. Ao longo da segunda metade do século XVII o tráfico foi administrado a partir de Cacheu. O século XVII cabo-verdiano foi marcado pelo crescente empobrecimento das ilhas. O arquipélago continuou a ser um ponto de escala no Atlântico, de embarcações de várias nacionalidades, mas à excepção de alguns produtos, como a urzela, o sal, e os 19 André Pinto de Sousa Dias Teixeira, ob. cit. p. 181. 20 André Teixeira, “A Economia - O Comércio do Regaste no Litoral Africano ao Comércio Transatlântico. A Recolecção, A Pecuária e a Agricultura. A Tributação e as Finanças” in Nova História da Expansão Portuguesa, tomo 2 dir. de Joel Serrão e A. H. Oliveira Marquês, coord. de Artur Teodoro de Matos, Editoral Estampa, 2005, p 111. 21 Ver: Filipe Nunes Carvalho, “A disputa pelo domínio dos portos e ilhas de África” in Portugal no Mundo, dir de Luís de Albuquerque, Vol. V, Publicações Alfa, pp. 125 -138. 142 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 panos da terra, já não tinha muito para oferecer. Aquela que fora uma sociedade mercantil, nos séculos XV e XVI voltou-se lentamente para uma economia agrária escravocrata centrada nas fazendas do interior das ilhas de Santiago e Fogo22. De 1604 a 1642 estabeleceu-se na diocese uma missão jesuítica23, que tinha como principal objectivo a missionação nos rios da Guiné. O padre Baltazar Barreira foi escolhido para superior da missão, com ele chegam às ilhas de Cabo Verde, os padres Manuel de Barros e Manuel Fernandes, e o irmão Pedro Fernandes. No arquipélago a missão ficou restringida às ilhas de Santiago e Fogo. Franciscanos capuchinhos espanhóis na ilha de São Nicolau Entretanto, a partir da década de 30 do século XVII, frades da família franciscana, capuchinhos franceses da Província da Normandia, capuchinhos espanhóis da Província da Andaluzia e os Capuchos24 portugueses da província da Piedade, bem como capuchos da recém-criada província da Soledade, missionaram na diocese de Cabo Verde, correspondendo ao apogeu da evangelização principalmente nos Rios da Guiné. Os religiosos portugueses foram enviados pelo Padroado Português, enquanto os capuchinhos estrangeiros foram enviados pela Propaganda Fide. A missionação dos capuchinhos espanhóis da província da Andaluzia 22 Cf. António Leão Correia e Silva, “A Sociedade Agrária, Gentes das Águas: Senhores, Escravos e Forros” in HGCV , vol II. p. 275 – 357. 23 Cf. Nuno da Silva Gonçalves, Os Jesuítas e a Missão de Cabo Verde (1604 -1642), Lisboa, Brotéria, 1996. 24 A ordem dos frades conhecidos por Descalços, Alcantarinos ou Capuchos, surgiu em 1561. Os frades da estrita observância em Espanha recebem o nome de “Descalços” (porque os mais rigorosos nem usavam sandálias), “Alcantarinos” (por influencia marcante de São Pedro de Alcântara no movimento) e em Portugal “Capuchos” ou membros do “Instituto Capucho” (devido ao formato pontiagudo do capelo). 145 iniciou-se em 1647, em plena da Guerra da Restauração (1640 - 1668) e perdurou por um período de 40 anos. O objectivo desta missão era a conversão dos rios da Guiné e da Serra Leoa, onde durante o tempo de missionação desembarcaram dezenas de religiosos espanhóis. Em 1666, dois dos religiosos que permaneciam na missão da Serra Leoa, frei Teodoro de Bruxelas e frei Basílio Cabra, saíram de Cacheu com destino à Europa, naufragaram acidentalmente na ilha de S. Nicolau, no arquipélago de Cabo Verde, onde foram obrigados a residir por mais de um ano. Estes religiosos faziam parte da leva de missionários espanhóis que chagaram a Guiné25 em 1664. O grupo era constituído por 8 religiosos, sendo eles, frei José de Málaga, frei Teodoro de Bruxelas, frei Paolo Jerónimo de Fregenal, frei Inácio de Canárias, frei Basílio de Cabra, frei Eusébio de Granada, Frei Diego de Rute e o Irmão, frei Jerónimo de Antequera. A experiência desses dois capuchinhos nesta ilha chegou até nós, através do relato de Teodoro de Bruxelas, em carta de 1 de Janeiro de 1670, quando o missionário já se encontrava em Sevilha. Através do documento apercebemo-nos da vida espiritual da ilha, bem como, das restantes ilhas do arquipélago. A ilha de São Nicolau que ele descreveu como tendo cerca de 900 a 1000 habitantes na época do naufrágio não dispunha de um sacerdote para a administração dos sacramentos mais importantes na vida de um cristão, como era o caso da preparação para a morte. Durante o tempo que os religiosos ficaram retidos na ilha, cuidaram 25 António Brásio, Monumenta Missionária Africana, 2.ª série, Vol VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1991, p.309. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 da assistência religiosa da população administrando-lhes os sacramentos, ensinando a doutrina cristã, uma vez que “por faltar-lhes sacerdotes estava com grande ignorancia de las cosas de la dotrina christiana, la qual se les enseno y explico com la mayor claridad que há sido possivel”26 Frei Teodoro de Bruxelas diz que para além da ilha de São Nicolau, as ilhas de Boavista e Maio não tinham nenhum sacerdote, que contavam com 500 e 200 habitantes respectivamente. Enquanto que a ilha de Santo Antão, com cerca de 5 000 habitantes, tinha um “sacerdote viejo y muy sordo”, a ilha do Fogo, a segunda a ser povoada, contava com cerca de 10 000 habitantes e tinha dois sacerdotes. Não se referiu à ilha Brava que, tanto quanto sabemos, no século XVII já se encontrava povoada. A assistência espiritual das ilhas que não tinham os seus próprios párocos, ficava a cargo dos visitadores, que eram geralmente nomeados pelo bispo, entre o cabido de Santiago, e deslocavam anualmente para as ilhas, normalmente na época pascoal, auferindo uma ordinária de 10 000 réis, segundo o caderno das ordinárias pagos na ilha de Santiago, de 161327. Em 165228 pagaram-se 28 000 réis ao cónego Francisco Correia de Alvarenga, pela visita que fez às ilhas de São Nicolau, Boavista e Maio. Frei Teodoro de Bruxelas chegou à ilha de São Nicolau no ano de 1666. Na sua carta informava que os visitadores só se dirigiam à ilha, quando para ela deslocavam-se os navios para ir buscar couro, criticando a sua curta estadia, de cinco a seis dias, a sua má conduta e acusando-os de extorquir dinheiro à população. 26 Idem, p. 282. 27 AHU - Cabo Verde, Cx. 1, doc. 26. 28 Folha de ordinária dos sacerdotes, feita em Santiago, a 26 de Junho de 1652, AHU - Cabo Verde, Cx. 4, doc. 39. Em 1670 os dois capuchinhos já haviam regressado a Sevilha, onde, junto dos seus superiores, procuraram obter licença para voltar ao arquipélago de Cabo Verde, com a intenção de criar uma missão com vista à evangelização daquelas ilhas, que ao contrário da ilha de Santiago, onde se verificava uma grande concentração de clérigos, continuaram, ao longo do século XVII, com uma fraca assistência religiosa. Entretanto, frei Teodoro de Bruxelas faleceu em 167229, não cumprindo o desejo que alimentava de voltar ao arquipélago. É interessante notar este desfasamento em relação ao avanço da igreja católica nas ilhas. Este desfasamento estava relacionado com o processo de povoamento e da dinâmica das actividades económicas que aí se desenvolviam. Desta forma, a igreja encontrava-se mais implementada nas duas principais ilhas (Santiago e Fogo), deixando as restantes ilhas remetidas a uma fraca existência do clero secular. As periféricas ilhas do Oriente, Norte e Brava, não tiveram nesta época uma grande assistência religiosa, como as ilhas de Santiago e Fogo, na medida que o fenómeno da evangelização estava intimamente associada à conjuntura política e económica dos territórios colonizados. Um outro factor que contribuiu para esta disparidade, foi o facto do grupo clerical ser durante estes séculos muito reduzido, o que era agravado pela regular falta de bispos na diocese, devido ao corte das relações entre Portugal e a Santa Sé (1460 - 1668), pelo não reconhecimento da Restauração da Independência Lusa por parte da Igreja de Roma, e, a partir de inícios de Seiscentos, quando a emigração do reino diminuiu significativamente, fezse também notar no número de clérigos. 29 MMA, vol. VI p. 317. 142 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Uma vez que a promoção de clérigos às ordens sacras e ordenações sacerdotais era uma prerrogativa exclusiva do prelado30, foi impossibilitado aos nativos a ordenação sacerdotal na diocese, durante o período da Guerra da Restauração (1640 -1668). A ilha de São Nicolau, bem como as restantes ilhas do Oriente, Norte e Brava, ocupavam uma posição periférica no bispado de Cabo Verde. No que toca 30 Maria Emília Santos, Maria João Soares ob. cit. p. 414. ao século XVII, é pela carta de frei Teodoro de Bruxelas que temos conhecimento do estado espiritual da ilha. Neste sentido, a presença, ainda que acidentalmente destes religiosos, levantou a questão da falta de clero nas ilhas do Barlavento. As missões dirigidas para o arquipélago tinham como principal foco a costa africana. Para a ilha de Santiago, cabeça administrativa do arquipélago e sede da diocese, afluíam muitos clérigos. Fontes e Bibliografia Fontes Manuscritas Arquivo Histórico Ultramarino Cabo Verde, Papeis Avulsos, caixas 1 a 9 Fontes impressas: COELHO, Francisco Lemos, Duas descrições seiscentistas da costa da Guiné, manuscritos inéditos publicados com introdução e anotações históricas de Damião Peres, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1953 Notícia Corográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde, dos Exmos. Bispos, Governadores e Ouvidores, e os sucessos mais memoráveis e verídicos, tirados dos livros e papéis antigos. E assim mais algumas insinuações dos meios mais conducentes para o restabelecimento deles por se achar na última decadência, apresentação, notas e comentários por António Carreira, Lisboa, Instituto Cabo-Verdiano do Livro, 1985. Monumenta Missionária Africana, (coligida e anotada por António Brásio), II série, Vols. I; II; III; IV; V, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1952-1971. Referências ALBUQUERQUE, Luís, SANTOS, Maria Emília (dir.) (1990). - História Geral de Cabo Verde, Vol I e II, Lisboa: Junta de Investigação Científica Tropical: Direcção Geral do Património Cultural de Cabo Verde. ALBUQUERQUE, Luís de (Dir.) (1994). Dicionário de História dos Descobrimentos, 147 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Lisboa: Caminho. ALMEIDA, Fortunato de (1967 - 1971). História da Igreja em Portugal, nova ed. 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Este artigo, que tem como objectivo apresentar os resultados de uma experiência de utilização da plataforma Moodle na Uni-CV, insere-se numa perspectiva de demarcação metodológica de utilização da plataforma apenas como complemento e reforço das aulas ministradas em regime presencial. Com este texto pretende-se fornecer subsídios para uma reflexão sobre novas estratégias de aprendizagem na Uni-CV e contribuir para o incentivo à adopção de trajectórias de implementação de práticas bem sucedidas no processo de ensino-aprendizagem. Palavras-chave: ensino a distância; plataforma Moodle; modelos de aprendizagem a distância. At a time when virtual learning environments are becoming increasingly relevant and topical, technological devices, whose main support is the Internet, are emerging as an innovative alternative as opposed to learning methodologies primarily and merely based on classroom teaching. This paper aims to present the results of an experiment in using the Moodle platform at Uni-CV as part of a new approach to the teaching-learning process and a methodological demarcation from traditional educational processes. It reports on the experiment carried out as a complement and reinforcement of classroom-based teaching. This text aims to provide tools for reflection on new learning strategies at Uni-CV and to be an incentive for the implementation of successful practices in the teachinglearning process. Keywords: distance learning, Moodle platform, ICT, distance learning models. 1 Elisabeth Alves Andrade é Licenciada em Informática - Vertente Ensino e Mestre em Engenharia Electrónica e Telecomunicações – Vertente Sistemas de Informação pelas Universidades de Cabo Verde e de Aveiro – Portugal, respetivamente. É membro efetivo do Conselho Pedagógico do Departamento de Ciências e Tecnologias na Uni-CV e desempenha, desde 2011, as funções de Vogal – área administrativa do Conselho Directivo do DCT. Maria Luísa Soares Inocêncio é Mestre e Doutora em Ciências da Educação pelas Universidades Federal de Campinas – Brasil (em 1999) e de Aveiro – Portugal (em 2008), respetivamente. É membro efetivo dos Conselhos Científico e Pedagógico do Departamento de Ciências Sociais e Humanas na Uni-CV e docente do DCSH. Desempenha, desde 2009, as funções de assessora de Ensino a Distância na Uni-CV. 151 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Introdução As rápidas transformações que se vêm operando nos domínios científico, tecnológico, social e cultural num mundo em acelerada mutação globalizante têm originado desajustes na integração de inovações nos processos educativos provocando alterações no modus operandis das comunidades educativas e organizações. Os métodos e as estratégias de ensino e aprendizagem, antes largamente pautados em estruturas convencionais de aprendizagem, têm conhecido transformações profundas decorrentes da necessidade de se adaptarem aos novos modelos e práticas de aprendizagem baseados na Web e nos serviços que lhe estão associados, o que coloca às instituições de formação e aos formadores perante novos e complexos desafios. Os Sistemas Interactivos de Comunicação (SIC), cuja complexidade e riqueza extrapolam a mera visão tecnológica de processos e procedimentos (CORREIA & TOMÉ, 2007), e o potencial de que lhes está associado têm dado origem a um intenso e continuado debate que, hoje em dia, está a acontecer em torno da problemática das novas abordagens do processo educativo testemunhando a evidência teórica e empírica da sua relevância e actualidade. A necessidade de se alargar o acesso à informação, formação ao longo da vida e ao desenvolvimento de novas competências capazes de assegurar o necessário e adequado crescimento sócio-económico das sociedades estáão a implicar novas formas de organização dos sistemas educativos e, a integração e convergência da realidade e da virtualidade que, por sua vez, conduzem a “novas conceptualizações e modelos organizacionais do ensino superior (MIRANDA, 2007, p.162). Daí que, actualmente, das instituições do ensino superior esperam-se respostas atempadas e ajustadas às expectativas das sociedades em permanentes mudanças, determinadas pelo crescimento exponencial do volume de informação e pelo reconhecimento da importância que os recursos cognitivos assumem em relação aos recursos materiais (DELORS et al., 1996, p.119 citado por MIRANDA, 2007). Num mundo cada vez mais tecnológico e informacional, marcado pelas novas exigências educativas, o e-Learning, intrinsecamente assente e mediatizada pela Internet, consubstancia um modelo de ensino a distância (EaD) que tem assumido uma relevância crescente ao nível das políticas educativas. A aposta neste novo veículo e suporte de informação e comunicação, que está a revolucionar o processo de ensino e aprendizagem, apresenta vantagens extraordinárias no acesso, produção e distribuição de conteúdos, assim como na criação de comunidades virtuais de aprendizagem. Desta forma, a educação a distância e a emergência de novas formas de ensino baseadas nas TIC´s têm vindo a revelar-se como importantes estratégias dos sistemas de educação de grande parte das instituições educativas de nível superior actuais e futuras. (MIRANDA, 2007, p.168) A ubiquidade das tecnologias do e-Learning, uma das formas de praticar o ensino a distância, permite aos intervenientes do processo educativo usufruir de uma vasta diversidade de ferramentas e serviços de comunicação que lhes facilitam o acesso aos repositórios de informação e uma comunicação em tempo útil, independentemente da descontinuidade espácio-temporal entre eles existente (GOMES, 2005). 152 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Com a emergência do e-Learning, cujo conceito foi cunhado “precisamente para referir todas as formas de aprendizagem via web” (DAMÁSIO, 2007, p.244), surge a possibilidade de ocorrência de verdadeiras mudanças de paradigma de ensino a distância que passa a conhecer uma nova fase da sua evolução, referida por GOMES (2008) de 4ª geração. Marcado pela utilização de serviços e ferramentas como os blogues, wikis, podcasting e outras Web sociais, o EaD ganha novo dinamismo graças às tecnologias que lhe estão subjacentes permitindo, como sustenta a mesma autora, conceber cenários de formação em que a disponibilização da informação deixa de ser um apanágio exclusivo do professor/ formador e da instituição de ensino/formação para poder incluir as produções dos próprios alunos/formandos, quer individuais quer colectivas (…) (Ibidem, p. 191) As exigências da sociedade em permanente transformação e a dinâmica da evolução dos conteúdos de ensino-aprendizagem (TAVARES, 2005) e da sua mediatização quer através da produção e distribuição, quer por meio da interacção educacional (GOMES, 2008, p.182) desafiam a comunidade educativa a alterar os seus comportamentos, posturas e mentalidades face ao conhecimento. O recurso à Web e às tecnologias digitais passam a exigir dos agentes intervenientes no processo educativo não só competências tecnológicas instrumentais como também, um conjunto de e-competências nos domínios de produção, distribuição e comunicação de conteúdos didácticos e da sua transacção educacional. Convém notar, no entanto, que a interiorização de inovações na praxis educativa é um processo que não ocorre 153 de imediato e nem é isento de atropelos, já que as novas ideias, conceitos e formas de saber necessitam de tempo para que possam ser apropriados e consolidados. Se por um lado, é por demais lembrado que resistências e bloqueios à mudança fazem parte do processo, não é menos verdade que a interiorização e generalização do novo requer dos actores envolvidos reconhecimento das vantagens e benefícios que a inovação é capaz de lhes agregar à sua prática educativa e vida profissional. Por outro lado, para que as inovações tenham o impacto esperado e sejam efectivamente integradas na praxis educativa, impõe-se que se apresentem precedidas por um processo de acompanhamento, monitorização e avaliação imprescindíveis ao sucesso de qualquer processo de integração de inovações na prática educativa. As TIC´s, ao potenciarem uma nova geração de serviços Web com capacidade de integrar, num único espaço, um conjunto de funcionalidades antes dispersas, por várias interfaces (PIMENTA & BAPTISTA (2004), abrem novas perspectivas geradoras de oportunidades de aprendizagens flexíveis numa utilização plena das TIC´s e do seu potencial. Actualmente, apresentados numa única interface coerente e integrada, essas funcionalidades acrescentam valor tanto à mediatização de conteúdos como à organização do trabalho colaborativo que se sustenta em ferramentas de comunicação síncrona e assíncrona com capacidade de transmissão pela Internet de som, vídeo e texto. Imprescindíveis ferramentas de mediatização de conteúdos e da relação pedagógica entre sujeitos envolvidos em situações de ensino a distância - (GOMES, 2008, p.231), as TIC´s, diríamos com SANTOS, (2000, p.25) promovem padrões de comunicação e de difusão da informação susceptíveis de serem mediados por sistemas virtuais de aprendizagem e comunicação Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 com capacidade de agregarem elementos inovadores aos sistemas estabelecidos. Efectivamente, os métodos de acesso ao conhecimento e de aquisição de competências nos contextos de EaD configuram-se radicalmente diferentes dos utilizados nos sistemas formativos tradicionais em que o processo educativo ocorre em presença. A influência das potencialidades e características das TIC´s exercida sobre a arquitectura pedagógica dos eventos de formação on-line, a economia de recursos e de procedimentos que a utilização das ferramentas tecnológicas são capazes de agregar à prática educativa e a flexibilidade espácio-temporal com que estas tecnologias permitem aos estudantes gerir de forma autónoma o seu percurso formativo constituem elementos que marcam a diferença e conferem eficiência ao processo educativo. Tanto assim é verdade que, com o surgimento da Web no final da década de 90, emergiu um novo paradigma de aprendizagem impulsionado pela comercialização de sistemas integrados como Blackboard, WebCT FirstClass, e-Classroom, Web-4M e Groupware (MOORE & KEARSLEY, 2010, p. 94). Assiste-se, com frequência, à utilização da comunicação síncrona por voz (áudio-conferência), por conferência via textual (chat) e/ou por vídeo-conferência e ao recurso aos Fóruns de Discussão e do Correio Electrónico enquanto modos de comunicação assíncrona por excelência. As ferramentas de escrita colectiva (wikis, glossários, blogues), as comunidades e redes de aprendizagem virtuais que promovem a partilha e construção colaborativa de saberes e a produção e publicação colaborativa de conteúdos surgem como outras estratégias capazes de potenciar e estimular a construção colaborativa do conhecimento, tendo subjacente as tecnologias da Web e outras redes sociais. É enquadrado nesta linha de pensamento que a Uni-CV, empenhada num projecto de construção de uma universidade em rede, aspira ao que de mais moderno existe tanto na vertente mediatização de conteúdos e de recursos didácticos digitais como na de mediatização de processos interactivos e transaccionais, através de criação de comunidades e redes de aprendizagem on-line. 1. Enquadramento teórico-conceptual O modelo de ensino a distância em processo de implementação na Uni-CV encontra o seu fundamento em teorias de ensino/aprendizagem que incorporam os mais modernos pressupostos teórico-metodológicos da aprendizagem significativa de que são exemplos as abordagens construtivista e sócio-construtivista, cujos principais precursores são J. Piaget e L. Vigotsky que balizam o conhecimento pedagógico actualmente. Analisadas à luz do EaD, estas teorias de aprendizagem encaram o conhecimento como algo que é construído na interacção social, através de uma gestão flexível espácio-temporal do processo formativo e orientam-se pelo respeito ao ritmo de aprendizagem individual dos envolvidos. Nesta linha de pensamento, GOMES (2008) considera como um traço de supremacia o desenvolvimento de práticas do EaD que se fundamentem em princípios das teorias sócio-construtivista de aprendizagem, quando comparado com outros modelos que não têm subjacentes tais pressupostos teóricos. Sustentamos, com a mesma autora que, as tecnologias que suportam o e-Learning estão, pela primeira vez na história do EaD, a permitir aos ambientes virtuais de aprendizagem colocar em prática essas teorias. Contudo, a prática tem mostrado que a opção por uma ou outra teoria de aprendizagem 154 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 depende muito mais do contexto onde se pretende realizar o evento formativo e de outros factores ligados às condições existentes do que da actualidade da teoria em si. Dependendo das situações, torna-se recomendável a complementaridade de várias teorias ao mesmo tempo. Reportando-se à abordagem do e-Learning utilizado na Uni-CV, diríamos que o enfoque deste modelo incide sobre estratégias de aprendizagem de natureza essencialmente instrutivista (GOMES, 2007) resumindo a actuação do docente à uma mera extensão virtual da sala de aula presencial e de tutoria on-line. Tais procedimentos consistem, fundamentalmente, na disponibilização de informações, conteúdos programáticos e de outros recursos didácticos relacionados com as disciplinas ministradas para consulta pelos estudantes, privilegiando o estudo independente em contraposição à uma perspectiva construcionista que integra variáveis colaborativas e transaccionais. Do exposto decorre a importância de se direccionar as estratégias de ensino e formação, antes orientadas para consumo da informação e de acesso aos conteúdos de suporte à aprendizagem para uma cultura de incentivo e à partilha, exposição de perspectivas entre pares, em que a rede constitui o motor e o objecto da construção colaborativa do conhecimento. Ou seja, fazer a passagem da construção individual do saber e de auto-aprendizagem intermediada para um processo de múltipla interacção transaccional recorrendo-se ao diálogo síncrono e assíncrono. A este propósito, partilhamos do pressuposto de que é preciso fazer “a passagem do paradigma da Web 1.0 para a Web 2.0, com a sua ênfase na facilidade de comunicação, interacção, cooperação, colaboração e publicação online” (GOMES & COSTA, s/d, p.3). 1.1. Razão da adopção da plataforma Moodle na Uni-CV Os ambientes de gestão virtual de aprendizagem que se encontram disponíveis online de forma permanente e independentemente de o utilizador estar ou não conectado (VAGOS, et al, 2009) e de que é exemplo a plataforma do e-Learning Moodle1, revestem-se de grande interesse no contexto educativo. Para a comunidade educativa na Uni-CV, esses ambientes, acentuados na flexibilização de acesso aos recursos de aprendizagem, têm-se revelado excelentes fontes documentais de suporte às disciplinas implicadas. No entanto, não obstante a expansão de novas interfaces da Web que desenham novas opções de flexibilização das aprendizagens colaborativas e de incremento progressivo de iniciativas de aprendizagem virtual, a utilização das potencialidades da plataforma Moodle como dispositivo potenciador da interactividade entre professores e alunos e estes entre si está, ainda, aquém das expectativas necessidades sentidas. Contudo, estratégias precisam ser incrementadas numa tentativa de recentrar o foco da aprendizagem nos processos de comunicação e interacção em que conceitos como publicação, comunicação em rede, compartilhamento de informações e (re) construção de conhecimentos, saberes e experiências ganham relevância. Tendo como suporte tecnológico a Internet, a Moodle apresenta interfaces que permitem gerir conteúdos e mediatizar transacções educacionais com base pedagógica orientada por abordagens sócio-constrituvistas da educação (OLIVEIRA & CARDOSO, 2009). Esta plataforma assume-se como uma ferramenta de gestão que “conjuga um 1 Acrónimo de Modular Object-Oriented Dynamic Learning. Sistema que permite assegurar a gestão, o armazenamento e a distribuição de conteúdos, possibilita a comunicação síncrona e assíncrona entre os actores da comunidade educativa envolvida. 155 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 sistema de administração de actividades educacionais com um pacote de software desenhado para ajudar os educadores a obter alto padrão de qualidade em actividades de educação online.” (p.58). O Sistema de Gestão de Aprendizagem Moodle consiste numa aplicação Web que possibilita ao docente criar e publicar conteúdos e informações, interagir com os estudantes e, ainda, aceder e publicar conteúdos curriculares bem como interagir com os colegas facilitando a intercomunicação. Porém, a par destas funcionalidades de carácter pedagógico, PIMENTA & BAPTISTA (2004) indicam outras, desta feita, de ídole administrativa às quais o docente se recorre para rentabilizar uma boa parte das suas tarefas, designadamente: (…) a gestão de turmas e calendários, a alocação de formadores, gestão de planos de formação (…) o planeamento e gestão de cursos e de conteúdos de aprendizagem (pelo formador) , o acessos dos alunos aos materiais de formação, a actividades, a avaliações (eventualmente automáticas) das competências dos formandos, permitem a comunicação entre o formador e os formandos através de mecanismos básicos de comunicação como e email, os fora, os chats ou salas virtuais, etc.. (Ibidem, p.100) De facto, a tendência está a ser direccionada para a estruturação de modelos de e-Learning Management System - LMS que satisfaçam ambas as necessidades tanto administrativa como pedagógica, incorporando num único sistema todas as funcionalidades possíveis, tornando-se, assim, confortável a utilização integrada e no mesmo espaço de ferramentas previamente criadas. A título de síntese, diríamos que o processo de transferência do foco da acção educativa do ensino transmissivo norteado por um paradigma comportamental para a aprendizagem construtivista passa, necessariamente, pela potenciação de um novo patamar de evolução do EaD gerador, na perspectiva de DAMÁSIO (2007), de “(…) consequências cognitivas, comportamentais e sociais qualitativamente positivas para o(s) sujeito(s), para a comunidade envolvida (…)” (p. 31); isto é, guiado para a transição de um desenho pedagógico essencialmente instrutivista, que desvaloriza os processos holísticos de interacção e de construção conjunta realizados pelos actores do processo educativo, para uma configuração pedagógica capaz de promover maiores fluxos de comunicação e de interacção facilitados graças a um conjunto de ferramentas de interacção incorporado na própria plataforma. O Fórum de Discussão, Chat e Correio Electrónico são algumas ferramentas de comunicação em rede que, associadas ao Teste, Lição, Glossário, Referendos e Inquéritos, fazem parte do naipe de ferramentas Web disponíveis na plataforma Moodle. Uma boa utilização desses recursos potencia posturas mais activas face ao processo de aprendizagem pelo facto de possibilitarem espaços de comunicação de modo síncrono (em tempo real) e assíncrono (em diferido) entre os actores da aprendizagem. É no contexto de grande interesse e de aposta no “desenvolvimento mais consistente, continuado e rentável das iniciativas no domínio do e-Learning” (PIMENTA & BAPTISTA, 2004, p.100) que se optou, na Uni-CV, pela utilização da plataforma Moodle como Sistema de Gestão da Aprendizagem (SGA), por excelência, cujos princípios de funcionamento se fundamentam em teorias sócio-construtivistas de aprendizagem a distância. Perspectiva-se, assim, que na Uni-CV 156 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 a dimensão social seja uma componente central do processo educativo de forma a esperar do estudante uma postura de co-construtor activo do conhecimento e não de mero consumidor de repositórios. Do estudante espera-se assunção de responsabilidade pelo seu projecto de aprendizagem, tornando-se autónomo na gestão do seu percurso formativo. O aluno deve evoluir-se de um espectador passivo e consumidor de conteúdos para um protagonista do processo educativo e participante activo em ambientes construídos num esforço de participação, partilha e construção conjunta do conhecimento, representações e experiências. É nestes pressupostos que se ancora a linha de pensamento que está subjacente à descrição de uma experiência cuja metodologia abaixo se refere. 2. Contribuição empírica 2.1 Considerações preliminares No fim do ano lectivo 2009/2010, deuse início, na Uni-CV, ao estudo sobre a implementação da segunda edição de uma experiência piloto assente nas designadas novas TIC´s, particularmente, com o uso da plataforma Moodle, ferramenta que potencia e se revela poderosa nos contextos e aprendizagem. Embora o projecto não represente, na verdadeira acepção do termo, uma experiência de e-Learning, enquadrase, todavia, numa linha de aprendizagem electrónica suportada pela Internet e de utilização da Moodle como complemento às aulas presenciais que tem por objectivo criar novos contextos educativos, inovar o processo de ensino e aprendizagem e criar hábitos de utilização da Internet em actividades de estudo. Trata-se do recurso à plataforma Moodle como ferramenta de suporte às actividades de complemento 157 à formação presencial. Este estudo surgiu como resposta aos novos desafios que se colocam à Uni-CV induzidos pela premência de incrementar a literacia tecnológica, pedagógica e comunicacional em contexto on-line, numa tentativa de demarcação dos limites da sala de aula. Ainda em pleno processo de construção, a utilização da plataforma Moodle na Uni-CV tem se centrado no ensaio de estratégias orientadas para a redução da carga presencial lectiva a favor do aumento da carga da actividade virtual, numa óptica de complementaridade e de articulação entre as actividades presenciais e a distância. Todavia, não obstante a evolução do recurso a este novo ambiente de aprendizagem online, o processo de introdução de práticas inovadoras no processo educativo na instituição tem sido gerido com convicção de que se está perante um procedimento cuja dinâmica requer um percurso de interiorização gradual e uma avaliação permanente. 2.2. Metodologia adoptada Após o enquadramento teórico-conceptual do projecto de implementação do e-Learning na Uni-CV, passa-se, de seguida, a abordar as opções metodológicas que presidiram ao processo investigativo. Neste estudo, utiliza-se uma abordagem epistemológica interpretativa, reflexiva e sugestiva que se baseia numa análise evolutiva da dinâmica de integração do e-Learning na instituição, tendo como suporte os resultados apurados pela equipa que desenvolveu esse projecto. Apoiados em traços metodológicos de natureza quantitativa, o foco de análise irá centrar-se na interpretação dos dados estatísticos obtidos relativos ao processo de adesão e utilização pelos docentes das Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 potencialidades educativas oferecidas por este novo sistema de gestão on-line de aprendizagem. Enquadrado numa linha de investigaçãoacção e de cariz descritivo, o processo que presidiu à recolha de dados teve como objectivos essenciais: (i) identificar as disciplinas inscritas na plataforma; (ii) distinguir as disciplinas consideradas activas das não activas; (iii) aferir o grau de utilização das ferramentas de comunicação mais utilizadas pelos docentes e (iv) identificar estratégias potenciadoras de dinâmicas interactivas de aprendizagem. As hipóteses que configuraram as finalidades e os objectivos deste estudo e que se tentou comprovar são as seguintes: (i) a adesão dos docentes e alunos à utilização da plataforma encontra-se em processo de permanente crescimento e (ii) o desenho pedagógico subjacente ao funcionamento da plataforma orientase, essencialmente, para a actividade de distribuição e consumo do repositório da informação nela disponibilizado. De notar, que qualquer reflexão teórica precisa de um ponto de partida ou pistas de investigação que sustentam a abordagem do objecto de estudo de modo a não perder de vista o que efectivamente é essencial esclarecer. Assim, a questão para a qual se pretendeu encontrar resposta foi a seguinte: “Será o recurso à plataforma Moodle tem sido uma actividade potenciadora de práticas educativas inovadoras? Que estratégias devem ser adoptadas para a promoção e integração de inovações pedagógicas na prática docente? Este estudo constitui-se de um públicoalvo composto por docentes pertencentes aos Departamentos de Ciência e Tecnologia (DCT), Ciências Sociais e Humanas (DCSH), Engenharia e Ciências do Mar (DECM) e da Escola de Negócios e Governação (ENG). Integrando um total de 3118 inscritos no universo de pouco mais de 4.000 utilizadores da plataforma, o público-alvo, na sua maioria, beneficiou de acções de capacitação em utilização do Moodle, tendo sido dotado de competências instrumentais básicas adequadas à gestão on-line das respectivas disciplinas. Assim, fizeram parte do estudo apenas os docentes com disciplinas inscritas na plataforma. Como técnica de recolha de dados utilizou-se a análise documental que, como sugere SOUSA (2005), consiste, à semelhança de outras formas de investigação, em conhecer os factos com maior objectividade e o menor número de distorções dentro de uma situação particular estudada. Recorremos aos registos electrónicos do sistema e-Learning de gestão on-line da aprendizagem utilizado na Uni-CV, tendo sido acedidas a todas as disciplinas consideradas activas assim como às participações dos docentes nas conferências electrónicas (fóruns, chats) e identificado o grau de utilização das ferramentas de escrita colaborativa, nomeadamente da Wiki. Fez-se, também, uso de uma grelha2 de recolha de dados previamente concebida pela equipa de investigadores envolvidos neste estudo. Para além de “papel electrónico” referido por MERRIAM (1998, p.122) citado por GOMES (2004, p.200), utilizaram-se outras fontes de informação estatísticas, nomeadamente, relatórios e comunicações em Powerpoint apresentadas pela equipa que implementou, em 2008, a primeira experiência piloto de utilização da plataforma Moodle, na Uni-CV. É importante ser lembrado que, com o 2 Nesta grelha definiu-se um conjunto de critérios que nortearam a selecção das disciplinas (consideradas activas ou não activas), os respectivos regentes e as ferramentas de interacção colaborativa utilizadas. 158 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 advento das novas tecnologias de informação e comunicação, para além dos documentos escritos, a análise documental é, também, aplicada sobre imagens, documentos audiovisuais e conteúdos digitais. A opção por esta técnica justifica-se por nos parecer uma escolha acertada, já que se adequa melhor aos objectivos formulados e aos propósitos que se pretendia alcançar. Paralelamente, recorreu-se à revisão da literatura sobre a temática em estudo para se fundamentar as análises e reflexões articuladas. Partindo do pressuposto advogado por VILELA (2009) de que “(…) Quando se usam múltiplos observadores, e ao triangularem-se as observações, remove-se o risco potencial que pode surgir quando é apenas uma pessoa e, portanto, assegurase assim uma considerável fiabilidade nas observações (…)” (p.346), procedeu-se à triangulação de investigadores como estratégia que nos pareceu conferir maior fiabilidade, consistência e validade aos dados coligidos na plataforma Moodle. Em termos de procedimentos, é de se referir que a recolha dos dados na plataforma, consulta e análise dos relatórios desenrolaram-se ao longo de 3 meses. A equipa que realizou o estudo era constituída por 3 docentes, dos quais 2 afectos ao Campus do Palmarejo e 1 ao DECM3. Para a análise dos dados, recorreu-se do programa informático de tratamento de dados – Excel, na medida em que se trata de uma ferramenta informática que nos pareceu mais ajustada ao tratamento deste tipo de dados. Foi, inicialmente, feita uma abordagem descritiva dos dados avançando-se, posteriormente, para um 3 Departamento de Engenharia e Ciências do Mar situado no Campus da Ribeira do Julião, em S. Vicente. 159 tratamento mais apurado, utilizando correlações de variáveis quando este procedimento se mostrou necessário. Importa referir que, os resultados, que no quadro abaixo se reproduzem, foram obtidos a partir do tracking realizado ao LMS que nos deu conta do número de disciplinas criadas por cada departamento consideradas activas e/ou não activas, de professores e de alunos que actuam na plataforma bem assim das ferramentas de comunicação interactiva utilizadas. 2.3 Apresentação e discussão dos resultados obtidos Reportando-se ao ano lectivo 2008/20094, altura em que se deu início o processo de implementação do eLearning na UniCV, o número de docentes envolvidos na experiência não ultrapassava os 30 e o de discentes rondava os 700. Das 36 disciplinas, 17 foram registadas no DCT, 18 no DECM e 1 na ENG5. Do total das disciplinas, apenas 23 foram activadas, isto é, encontravam-se em plena utilização. E o número de cursos envolvidos foi de 19. Saliente-se, neste quadro, o modo como as disciplinas, os cursos e os docentes estão distribuídos por departamentos, referindo-se, concretamente, à relação entre disciplinas registadas e disciplinas activas, entendidas as últimas como as que, efectivamente, são utilizadas pelos docentes na sua prática diária. Outrossim, os dados deste quadro evidenciam uma clara necessidade de se definir estratégias que estimulem e incentivem os docentes a não desistirem 4 SANTOS, A. M., FERREIRA A. C. & PEREIRA, M. P. (2010). Implementação da educação a distância na Universidade de Cabo Verde: análise de uma experiência-piloto. Revista Educação Formação & Tecnologia 3, (2), 45.60. 5 Escola de Negócios e Governação, situado no Campus da Achada Stº António. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Quadro nº1 - Relação de Disciplinas/Cursos/Docentes Inscritos na Plataforma (Ano lectivo 2009/2010) do recurso à plataforma como espaço capaz de trazer valor acrescentado à sua actividade profissional. Torna-se, deste modo, imperativo desencadear um conjunto de acções de sensibilização e de capacitação no sentido incentivar a cultura de utilização da plataforma para gestão do processo educativo. O Gráfico nº 1, abaixo, indica a evolução do número de disciplinas, docentes e discentes registados na plataforma. Fazendo uma abordagem comparativa entre os resultados obtidos no ano lectivo 2008/2009 e os apurados no seguinte, diríamos que as estatísticas apontam para uma significativa evolução do número de disciplinas e docentes inscritos - de 36 para 163 e de 30 para 113, respectivamente - e de utilizadores registados, de 700 para 3.118. Estes resultados levam-nos a certificar uma evolução muito significativa do número de utilizadores da plataforma, o que parece siginificar o reconhecimento das vantagens que a utilização das TIC´s e das metodologias de ensino a distância podem trazer à gestão do processo educativo/formativo. Efectivamente, a emergência da educação virtual parece imparável nesta academia. A consciência da relevância da actividade digital no processo educativo parece que está a aumentar já que a não adopção destas metodologias de aprendizagem electrónica pode significar uma perda de oportunidades de adequação aos tempos modernos de cujos benefícios a academia não pretende prescindir. Interessa destacar ainda, que dos 3.118 utilizadores existentes na plataforma, 2.126 encontram-se na Praia (incluindo o Campus do Palmarejo e a ENG) e 992 em S. Vicente. Embora ainda se evidencie uma larga percentagem dos docentes cujas disciplinas não se encontram criadas na plataforma, ou seja, apenas 44%, (89 docentes do universo de 202), da leitura do gráfico nº1, assinala-se uma inquestionável evolução das diferentes variáveis registadas neste espaço de aprendizagem virtual. Em contrapartida, torna-se evidente uma preocupação para a qual é preciso encontrar solução. A maioria 160 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Gráfico nº 1 - Evolução do Número de Disciplinas/Docentes/Discentes (56%) dos docentes não usa a Moodle como instrumento facilitador no processo de ensino aprendizagem e, consequentemente, muito menos como favorecedor de um processo de aprendizagem construtivista, o que não contribui para o desenvolvimento da autonomia dos estudantes e nem estimula uma aprendizagem colaborativa. Se por um lado, esses resultados são reveladores do recohecimento da importância do recurso à plataforma como instrumento de suporte ao processo de ensino aprendizagem na Uni-CV, por outro, contrariamente ao que se almeja, este sistema de gestão da aprendizagem on-line ainda é, preferencialmente, utilizado como respositório de conteúdos e recursos de suporte ao processo de ensino- 161 aprendizagem aos quais os alunos podem aceder. Trata-se, pois, de uma prática de ensino a distância em que os docentes encaram o LMS como um mero veículo informação em que a colaboração e interacção são pouco exploradas, descurando o valor das potencialidades que o mesmo lhes possa oferecer. Na verdade, a plataforma, dada sua arquitectura ergonómica, traz incorporada um naipe de ferramentas essenciais de comunicação que, uma vez exploradas, podem tornar o acto educativo numa experiência aprazível, atraente e eficaz. Não faz sentido e nem é pedagogicamente rentável utilizar o LMS apenas como reservatório de consumo passivo de conteúdos e de informações propostos pelos docentes. É imprescindível que os actores do processo educativo tirem Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 o máximo de partido das aplicações e potencialidades educativas que a plataforma lhes possa oferecer, designadamente, como espaço de interacção, debate, exposição e partilha de ideias, experiências e projectos e, sobretudo de produção coloborativa de conhecimentos e saberes. Por outro lado, torna-se premente que sejam criados espaços de emersão tecnológica devidamente equipados com infraestruturas que possibilitam aos docentes e alunos ensaiar e testar as diferentes funcionalidades tecnológicas de modo a incorporar as tecnologias à sua actividade pedagógica e passem a utilizar a Moodle como ferramenta de apoio em suas disciplinas. À medida que as tecnologias se tornam mais acessíveis, os professores tendem a descobrir e explorar as novas opções e os seus impactos e implicações na sua actividade docente. Tornam-se mais conscientes das oportunidades que se lhes apresentam o que lhes permite superar as suas limitações em contemplar actividades que exigem dos alunos a mobilização de capacidades cognitivas mais complexas e, consequentemente, melhor a sua prática educativa. A tomada de consciência das inúmeras oportunidades e possibilidades que as TIC´s lhes oferecem, os docentes sentem-se estimulados e entusiasmados na sua utilização, o que aumenta as suas expectativas, à medida que navegam e interagem entre si (Harasim et al, 2005). É importante que a criação de ambientes de emersão tecnológica seja alinhada com a realização de acções de formação contínua no domínio da Moodle para que o docente seja capaz de criar ambientes de aprendizagem com tecnologias, adaptando os meios à metodologia de ensino e possa implementar inovações no processo educativo O gráfico, abaixo, aponta para a necessidade de se imprimir dinâmicas mais eficazes do recurso às ferramentas e serviços disponíveis na plataforma capazes de proprorcionar aos seus utilizadores novas e diversas oportunidades de comunicação digital. As tecnologias de suporte ou ferramentas de comunicação (fóruns e chats) e de escrita colaborativa (wikis, glossários), continuam a ser pouco exploradas e preteridas a favor da mera consulta de informações, de textos em linha (conteúdos programáticos, textos e ficheiros para leitura e download, envio de links sugeridos,). Assim, do total de disciplinas criadas, apenas 23 fizeram uso Gráfico nº 2 – Grau de Utilização das Ferramentas de Comunicação Assíncrona 162 Fóruns de Discussão, 9 Chat, 8 Glossário e apenas 1 utilizou Wiki. Estes resultados evidenciam uma clara utilização da Moodle preferencialmente como repositório de conteúdos digitais e não como espaço de partilha e de colaboração, tornando-se necessária a deslocação da tónica actualmente fortemente centrada nas funcionalidades tecnológicas potenciadoras de facilidades de acesso e consumo de conteúdos para aspectos comunicacionais de transaccção pedagógica que possibilitem o desenvolvimento de capacidades cognitivas e metacognitivas assim como o estabelecimento de relações interpessoais e sociais entre os diferentes actores do processo de aprendizagem. Resumindo, as aplicações associadas à Web 2.0 são, na generalidade, pouco usadas em contexto educativo pelos docentes o que, no nosso entender, não favorece o desenvolvimento da autonomia dos estudantes e nem estimula uma aprendizagem colaborativa, considerados cerne do processo educativo. De facto, os softwares de apresentação e de processador de textos são os mais utilizados, contemplando poucas actividades que exigem dos estudantes mobilização de capacidades cognitivas mais complexas. 2.4. Principais conclusões e expectativas Deste estudo destacam-se algumas conclusões que entendemos como pertinentes, embora mais do que conhecimentos definitivos, procura-se abrir novas pistas para a reflexão em torno das novas estratégias de integração de inovações nas práticas educativas plasmadas nas TIC´s. Como se pode verificar pela da discussão dos dados obtidos ficou patente que a 163 Moodle é pouco utilizada num contexto de aprendizagem construtivista. Desta situação decorre a premência de se privilegiar estratégias de mediatização da comunicação interactiva que se fundamentem em contactos bi e multidireccionados para o debate, interacção, reflexão e possibilitam a geração de conflitos sócio-cognitivos (CORREIA & TOMÉ, 2007). A passagem de uma utilização da plataforma e da Internet apenas como veículo por onde circulem e se consultem informações para ambientes de aprendizagem activa orientadas para a partilha informação, saberes e projectos e construção colaborativa de conhecimentos, conteúdos e experiências configura-se como mais um dos desafios do NaEaD. Outra conclusão, decorrente da ideia anterior, prende-se com a necessidade de formação contínua dos formadores que integram o NaEaD com competências digitais de inovação de práticas educativas de modo a se sentirem confortáveis ao utilizar as ferramentas tecnológicas e motivados a apoiar os docentes na implementação de práticas inovadoras com recurso às TIC´s. São, neste sentido, elucidativas as palavras de GOMES (2004) que defende que um formador com experiência de formação em regime presencial necessitará, forçosamente, de “competências e perfis adequados ao desenvolvimento da actividade de formador em ambientes de aprendizagem a distância via Internet, baseados na interacção e na colaboração” (p.355). Efectivamente, é da responsabilidade da equipa dotar os docentes de competências de modo a lidarem de forma adequada com a Moodle centrando a aprendizagem nos contextos, na interacção e colaboração; orientar e acompanhar os docentes e estudantes na produção e integração dos recursos digitais de apoio à aprendizagem online e off-line e prestar apoio aos intervenientes Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 do processo educativo encorajando-os e motivando-os a prosseguir o seu percurso formativo (INOCÊNCIO, 1999). O apetrechamento do Núcleo com equipamento, recursos e infra-estruturas tecnológicas adequadas ao seu pleno funcionamento é outra tarefa que se impõe, já que como refere INOCÊNCIO (1999) “(…) Só a prática de uma vivência virtual de aprendizagem pode facilitar o processo e transição de uma situação presencial para uma virtual de aprendizagem.” (p.126). Sendo o contexto tecnológico uma condição para o sucesso do processo de inovação, o Núcleo deve constituir-se como centro irradiador de novas práticas com TIC e catalizador de inovações, razão pela qual o seu apetrechamento com equipamentos e infra-estruturas tecnológicas em quantidade e qualidade assume uma enorme relevância. Outrossim, a sensibilização dos docentes e estudantes para a inovação das práticas educativas com TIC, atitudes e comportamentos face ao novo paradigma educativo enuncia-se como mais um dos importantes desafios que se coloca ao Núcleo, à sua equipa e à Uni-CV. Efectivamente, as representações dos docentes e alunos sobre as TIC é determinante para o modo como as utilizam na sua actividade pedagógica. Trata-se, portanto, de implementar novas estratégias de actuação, nomeadamente, organização de encontros de reflexão, sessões de debate e socialização de práticas bem sucedidas e discussão de projectos inovadores da prática educativa delineando-se um novo caminho no sentido da desmaterialização e virtualização do sistema do ensino superior na Uni-CV, em particular, e em Cabo Verde, em geral. 2.4.1. Conclusões finais e implicações práticas Numa altura em que modelos não presenciais de ensino ganham credibilidade no seio académico, os programas de formação que pretendem fugir à lógica do ensino tradicional a favor de modelos como o e-Learning devem ser estimulados e incentivados. A dinâmica da adesão à utilização da plataforma traduzida em novas tentativas de ensinar e aprender resulta evidente neste estudo, pelo que sugerimos a continuidade da sua evolução. Mais uma vez, importa referir que é preciso redireccionar o foco do processo de aprendizagem centrado nos aspectos ligados à distribuição e acesso aos conteúdos digitais, para situações de uma maior interactividade on-line entre professores/ alunos e alunos/alunos. A abordagem do ensino transmissivo deve dar lugar à uma abordagem facilitadora baseada a interacção, que estimula o espírito crítico e uma concepção da aprendizagem que acrescente valor em termos pedagógicos. É o nosso entendimento que o baixo índice de interacção e colaboração entre os docentes e alunos pode estar relacionada com a falta de formação por parte dos docentes para potenciar o uso das tecnologias na sua prática educativa. Reconhece-se, contudo, que se trata de um processo laborioso, cuja curva de aprendizagem apenas está a iniciar. Todavia, se queremos que ela ganhe dinamismo e que os docentes usem a tecnologia em prol de uma construção colaborativa do conhecimento, saberes e experiências, torna-se imprescindível investir fortemente na formação dos docentes em TIC. A definição de políticas e de estruturas de operacionalização de procedimentos que promovem o processo de mudanças e de renovação de modos de ensinar e aprender. 164 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 Concluindo, é nosso entendimento que a divulgação destas reflexões em torno da aprendizagem electrónica, a par de pretender dar a conhecer à comunidade académica o trabalho realizado no âmbito deste estudo, objectiva despertar o interesse para o recurso aos novos modelos de aprendizagem online. Este trabalho pretende constituir um contributo de referência à construção de novas representações sobre o e-Learning, modalidade de aprendizagem que tem vindo a conquistar adeptos na Uni-CV. Refêrencias CORREIA, Carlos, TOMÉ, Irene (2007). 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Lisboa: Edições Sílabo. 166 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ENTRE EUROPEIZAÇÃO E AFRICANIZAÇÃO A CONSTRUÇÃO VISUAL DE CABO VERDE NOS POSTAIS DO PERÍODO COLONIAL1 Roberto Zaugg2 Resumo/Abstract Partindo da premissa que os media visuais têm um papel crucial na construção de “identidades” e de um certo tipo de ‘imaginário’ colonial, este artigo examina como os postais das primeiras décadas do século XX retratavam Cabo Verde e os seus habitantes. Analisa as representações europeístas das paisagens urbanas, a função do género na definição do “tipo étnico” cabo-verdiano e a encenação artificial de uma cultura tribal (inexistente). E finalmente, mostra como os cabo-verdianos se apropriaram de certos elementos iconográficos, que se manifestaram no contexto do imaginário colonial, e as carregaram de novos significados. Palavras-chave: imaginário colonial; media visuais; exotismo; racismo; iconografia pós-colonial. Assuming that visual media play a crucial role in the construction of “identities” and of colonial imageries, this essay examines how post cards from the first decades of the 20th century represented Cape Verde and its inhabitants. It analyses the Europeanising depiction of urban landscapes, the function of gender in the definition of the Cape Verdean “ethnic type” and the artificial staging of a (non-existing) tribal culture. Further, it discusses the relation between texts and images with regard to the subjective interpretation of post cards. And finally, it shows how Cape Verdeans have appropriated iconographic elements, which had emerged in the context of a colonial imagery, and have filled them with new meanings. . Keywords: colonial imagery; visual media; exoticism; racism; postcolonial iconography. 1 Uma versão anterior deste ensaio foi publicado em língua alemã com o título: ZAUGG, Roberto (2010). “Zwischen Europäisierung und Afrikanisierung. Zur visuellen Konstruktion der Kapverden auf kolonialen Postkarten”, in STARL, Timm; TROPPER, Eva (eds). Zeigen, grüssen, senden. Aspekte der fotografisch illustrierten Postkarte, número monográfico de Fotogeschichte. Beiträge zur Geschichte und Ästhetik der Fotografie, vol. 30, n. 118, p. 17-28, (www.fotogeschichte.info). Agradeço a “Fotogeschichte” pela cortês autorização concedida para a sua republicação (de forma parcialmente reelaborada e ampliada) na “Revista de Estudos Caboverdianos”. Agradeço também à minha mulher, Francisca Rodrigues Faria, pelas estimulantes discussões que acompanharam a redacção deste texto. 2 Roberto Zaugg é docente de história moderna na Universidade de Basileia, em Suíça. Estudou em Florença, Paris e Nápoles e foi pesquisador convidado na Universidade do Gana. As suas pesquisas se concentram no comércio mediterrâneo e atlântico, nos fenómenos migratórios, nas escritas autobiográficas e nas relações entre Europa e África Ocidental. 167 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 A construção da “identidade cabo-verdiana” é uma temática que, nos últimos anos, tem sido enfrentada por um importante filão de estudos (veja sobretudo ANJOS 2002, FERNANDES 2002, FERNANDES 2006, BRITO-SEMEDO 2006). Além do mais, estes estudos têm analisado as dinâmicas através das quais, no tempo, os actores sociais têm seleccionado e reunido diversos elementos de matriz africana, europeia e americana, que convergiram para a formação da sociedade cabo-verdiana, evidenciando a heterogeneidade das motivações e dos resultados destas construções culturais. Tais questões foram examinadas a partir de uma multiplicidade de fontes escritas (literárias, jornalísticas, políticas, administrativas, etc.) e orais, e também a partir da observação de uma pluralidade de práticas sociais. Neste quadro analítico, rico e complexo, as fontes visuais têm estado até agora relativamente pouco presentes. Portanto, elas oferecem ainda muitas pistas para explorar. O presente ensaio, centrado nos postais do período colonial, tenta percorrer uma dessas pistas. O papel da fotografia na elaboração do imaginário colonial foi evidenciado por numerosos estudos (por exemplo, JENKINS 1993; HARTMANN & SILVESTER & HAYES 1998; LANDAU & KASPIN 2002; ZELLER 2010), que mostraram que – longe de reproduzir objectivamente a realidade – estes media visuais tendem a criar e a veicular juízos de valor e representações estereotipadas. Em relação à história colonial, a atenção dirigida à fotografia foi focada quer nos géneros “elevados” (fotografias artísticas e etnográficas) quer nos produtos mais efémeros, como, por exemplo, os postais1. Como meio de comunicação popular, estandardizado e munido de uma função circulatória, o postal influenciou de forma não marginal as imagens ocidentais de povos e países colonizados. Ele constitui um objecto de análise interessante e ao mesmo tempo complexo, considerando que o processo de produção da sua semântica foi plasmado por uma pluralidade de actores sociais, interesses e expectativas. Ao escolher e retratar os seus objectos, o fotógrafo pode exprimir as suas preferências estilísticas, a sua sensibilidade pessoal e mostrar as suas capacidades técnicas. Ao mesmo tempo, porém, o seu trabalho é condicionado por discursos visuais e géneros estéticos e deve ter em conta os pedidos do editor, que por sua vez são ditados por prioridades comerciais. De facto, para o editor trata-se de pôr no mercado um produto capaz de satisfazer (ou de gerar) o pedido de uma clientela, a maior possível. Com este objectivo, ele influencia o processo produtivo quer a priori, aceitando certos tipos de fotografias em detrimento de outras, quer a posteriori, inserindo as fotografias no layout do postal e dando-lhes títulos: duas operações que não são meramente técnicas, mas que contribuem para orientar a interpretação das imagens. No que diz respeito ao comprador do postal, este serve quer de consumidor quer de produtor da sua semântica. A nível colectivo, o comprador faz parte de um público cujas expectativas o produtor procura intuir e satisfazer. A nível individual, pelo contrário, cada consumidor pode, por sua vez, contribuir para a produção de significado no momento da redacção. Com efeito, o processo de 1 O debate sobre os postais da época colonial foi aberto pelo trabalho de Malek Alloula (1981), que transpôs a perspectiva crítica de Edward Saïd para a fotografia. Na esteira do seu trabalho – e por vezes em polémica com este – foram depois elaborados numerosos outros estudos, entre os quais CORBEY 1988; PROCHASKA 1991; DeROO 1998; MATHUR 1999; STURANI 2001; YEE 2004. Para uma perspectiva mais ampla acerca dos postcard studies veja-se PROCHASKA & MENDELSON 2010. 168 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 semântica não termina com a impressão do postal, mas continua mesmo depois da venda do mesmo. Aqui convém notar que, mesmo que os textos escritos pelos remetentes reproduzam frequentemente fórmulas mais ou menos estandardizadas, o acto da escrita pode contudo desembocar em textos individualizados, que muitas vezes modulam notavelmente a interpretação das imagens. Por fim, a percepção por parte do destinatário é um factor que o comprador tem em conta quer no acto de compra quer no momento da redacção. Os postais são pois, para todos os efeitos, “um meio de comunicação dotado de muitos estratos” (JÄGER 2006, p. 141). Novas imagens para uma nova cidade A grande maioria dos postais sobre o Cabo Verde colonial concerne a São Vicente. Como veremos, esta primazia devia-se à íntima relação que ligava a produção de postais ao tráfego transatlântico que passava pelo Porto Grande. Santiago e as outras ilhas ocupavam uma posição decisivamente secundária. A Cidade Velha e os seus monumentos históricos, que no Cabo Verde pós-colonial se tornaram importantes lugares da memória, nos postais da época colonial eram completamente marginais. Os postais de São Vicente, que, por conseguinte, estão no centro deste trabalho, representam um material de grande interesse. Em geral, porque os postais produzidos durante o império português são ainda pouco estudados2. E em termos específicos, porque no caso 2 Por isso, as edições de João Loureiro (1997a, 1997b, 1997c, 1998a, 1998b) oferecem uma óptima base empírica. No que diz respeito aos postais sobre Capo Verde, muitos estão disponíveis também em rede: www.dokkumenta.com/cverdepostaisantigos; www.heuijerjans.net/ CapeVerde/postcards/CaboPostcards.html; http://www.tvciencia.pt/ tvcicn/pagicn/tvcicn01.asp. Infelizmente, não fui capaz de identificar os fotógrafos das imagens aqui analisadas. 169 de São Vicente o processo de colonização e a criação de representações coloniais foram plasmados por actores, perspectivas e interesses muito diversos entre eles. Como é sabido, o crescimento económico e demográfico do Mindelo foi determinado pelo estabelecimento dos depósitos de carvão – necessários para abastecer os grandes vapores que no século XIX tinham iniciado a cruzar o oceano – e pela construção da central telegráfica, por onde passava o cabo que em 1885 ligou pela primeira vez a Europa à América do Sul. Neste sentido, São Vicente fazia parte de dois impérios. Em termos político-territoriais pertencia a Portugal, enquanto a nível económico estava inserido no informal empire britânico. Como notava o jornalista britânico Archibald Lyall, que visitou Cabo Verde em 1936, São Vicente era, para todos os efeitos, uma “criação da revolução industrial” (LYALL 2007, p. 61). A economia portuária, animada por uma intensa circulação humana e comercial, transformou a ilha numa autêntica “Babel cabo-verdiana” (CORREIA E SILVA 2000, p. 128). Junto com um grande número de cabo-verdianos oriundos das ilhas vizinhas, em Mindelo estabeleceram-se, com efeito, pequenos empresários italianos, hebreus marroquinos e uma centena de empregados comerciais e técnicos britânicos. Além disso, transitava pelo Porto Grande uma grande quantidade de transatlânticos, que costumava transportar muito mais de cem mil passageiros por ano. Na maioria dos casos tratava-se de pobres emigrantes que de portos como Liverpool, Hamburgo ou Génova viajavam para Buenos Aires ou Montevideu. A sua passagem por Mindelo durava apenas o tempo que a tripulação levava a abastecer os navios de carvão, mas o seu trânsito deixou também os seus traços – mesmo relativamente à imagem Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 visual de São Vicente. Os postais analisados neste estudo remontam todos a esta época. As imagens impressas são, na maioria dos casos, fotografias, obviamente todas a branco e preto, embora em alguns casos tenham sido sucessivamente coloridas à mão. Embora uma datação precisa nem sempre seja possível, com base em características técnicas e noutros indícios pode-se circunscrever a produção da grande maioria destes postais nos primeiros quinze anos do século XX: um período que coincide com o boom mundial dos postais e simultaneamente com o apogeu do imperialismo europeu. No caso de São Vicente é interessante notar que a construção de imagens através dos postais iniciou-se só poucas décadas depois do nascimento da cidade. Por conseguinte, as fotografias reproduzidas nos postais não podiam remontar a uma tradição iconográfica anterior, mas foram precisamente elas a criar ex novo a iconografia urbana da ilha. Encontrava-se em acto um duplo processo. Por um lado, naqueles anos o espaço urbano estava a ser construído fisicamente, estruturado socialmente e conotado semanticamente. Por outro lado, esta realidade ‘das muralhas’ estava selectivamente a ser reproduzida por uma realidade das imagens, que foi posta em circulação a nível global através daqueles media comerciais que eram os postais. Obviamente, não surpreende que muitos postais retratem os espaços do poder colonial português, como por exemplo a alfândega (LOUREIRO 1998a, n. 6), o quartel militar (LOUREIRO 1998a, n. 28) ou o edifício pomposo da capitania (LOUREIRO 1998a, n. 16). Construído entre 1918 e 1921, este último representa – como é sabido – uma imitação da Torre de Belém: constitui portanto uma conexão simbólica importante, com o propósito de ligar a colónia à metrópole. Esta função propagandista era ainda mais explícita nos postais que serviam para fixar e pôr em circulação as imagens fotográficas de eventos políticos, como por exemplo a visita do príncipe Luís Filipe em 1907 ou as festas republicanas celebradas após a revolução portuguesa de 1910 (fig. 1). A encenação da “ordem” e da “civilização” promovidas pelo domínio português espelhase, porém, também em outras imagens, cuja natureza política é menos directa. É o caso das representações fotográficas do centro do Mindelo (LOUREIRO 1998a, n. 30, 32, 35), com as geometrias lineares que evocam imediatamente uma ideia de racionalidade ocidental, ou da imagem frontal do hospital (LOUREIRO 1998a, n. 29), construído em 1898. Ou das fotografias da rectangular Praça Nova e dos seus pavilhões em estilo belle epoque (fig. 2), que lembram, por sua vez, uma atmosfera tipicamente europeia. Noutros postais não é tanto a imagem em si que produz este efeito quanto a moldura ornamental que a circunda. No “Salut de Saint Vincent” esta moldura elimina as periferias caoticamente desfeitas da povoação urbana e, extrapolando a cidade do Mindelo do seu ambiente subtropical, insere-a num contexto docemente floral (fig. 3). Desta forma, a construção iconográfica da paisagem produz uma domesticação da natureza e uma disciplinação visual da cidade. Como se observou para as fotografias tiradas nos territórios alemães da hodierna Namíbia, nestes postais a “diferença entre colónia e metrópole era reduzida ao mínimo” com o objectivo de “representar as colónias como uma parte da pátria” (JÄGER 2008, § 11-12). 170 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 1 FIGURA 2 171 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 São Vicente, dissemos, estava profundamente inserida na rede da talassocracia britânica. Por conseguinte, entre os motivos recorrentes encontramos também a estação telegráfica e os depósitos de carvão (LOUREIRO 1998a, n. 7 e 14), o arenoso campo de golfe (fig. 4), onde os britânicos e as elites locais praticavam a sua socialidade exclusiva, ou então o cais (fig. 5). O postal “Ponte de desembarque” retrata carris e gruas, símbolos de modernidade, e homens brancos vestidos num estilo tipicamente colonial, com sapatos brancos, chapéus de palha e até um elmo tropical. As pessoas de pele escura aparecem só na segunda fila. Estes documentos transmitiam aos seus destinatários uma imagem europeia de São Vicente, ou pelo menos sugeriam que a colónia estava a beneficiar de um processo de modernização que a teria aproximado da civilização da metrópole. Celebravam o estado português e o capitalismo britânico. Estes permitiam aos soldados, aos administradores e aos empregados comerciais residentes na ilha que mostrassem aos seus parentes distantes que eles viviam em condições “civis” e que a sua transferência para o arquipélago vinha com um certo bemestar. Na economia semântica deste tipo de imagens, os crioulos de pele escura estavam de todo ausentes, ou então desempenhavam um papel meramente ornamental. Projecções etnográficas entre raça e género Se compararmos a construção visual de São Vicente nos postais que apresentámos com os discursos que se encontram na literatura de viagens coeva, notamos imediatamente evidentes contradições. Especialmente os autores britânicos mostram-se pouco impressionados pela “civilização” promovida pelo imperialismo português. Tomemos o exemplo do britânico Alfred B. Ellis (1852-1894), um oficial e autor de livros etnográficos que passou por São Vicente em 1873. Na sua narração de viagem, impregnada de estereótipos racistas, ele expunha à “derisão de todo o mundo civilizado o modo como as colónias portuguesas eram geridas” (ELLIS 1885, p. 159). Mindelo “é a cidade mais mísera e imoral que alguma vez vi”, escrevia, e aos seus habitantes – entre os quais notava as “senhoras portuguesas mestiças castanhas e amarelas” e as “crianças nuas” – atribuía uma “rapacidade de abutres” (ELLIS 1885, p. 127 s., 144). Também Lyall, que chegou à ilha muitos anos depois, não ficou decerto positivamente admirado pelos resultados do colonialismo português. O que o impressionou foi antes de mais a miséria em que naqueles anos de crise vivia boa parte da população: “Desembarcando no porto era-se assediado por uma multidão de mendigos; alguns sentavam-se na calçada; outros no lixo; cegos, decrépitos, paralíticos e sifilíticos” (LYALL 2007, p. 63). Além disso ficou fascinado pela “mistura racial”. A este propósito, por um lado, Lyall pareceu distanciar-se da condenação obsessiva que a cultura colonialista anglo-saxã exprimia sobre as colónias portuguesas, mas, por outro, foi beber precisamente à linguagem do racismo biologista para dar forma às suas impressões: “A população é a mistura mais maravilhosa que se possa encontrar no mundo. [...] foi-lhe acrescentado o sangue de quase todas as nações do mundo, dos hindus aos índios do Brasil, e em São Vicente encontrarás todo o tipo de mistura, força e variação do género preto [nigger]. (Peço desculpa aos meus leitores de cor mas não há outra palavra para exprimir o conceito). Encontrarás 172 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 3 FIGURA 4 173 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 5 174 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 pretos chineses com olhos amendoados [...]; pretos escoceses com cabelos ruivos; pretos alemães com olhos azuis; pretos hebreus com o nariz adunco; [...] pretos com olhos castanhos cor de avelã; pretos louros e descolorados; pretos com a cara vermelha e com as bochechas como maçãs; pretos com lábios finos e narizes aquilinos como o Duque de Wellington3. Se São Vicente de certa forma se parece com o inferno, pelo menos deve ser um paraíso para os etnólogos, para os medidores de crânios e para os estudiosos de Mendel”4 (LYALL 2007, p. 54 s.). A imagem belle epoque de uma São Vicente europeia, tal como era apresentada nos postais analisados anteriormente, era contradita drasticamente pelas percepções dos viajantes, que viam apenas a pobreza, as nuances nas cores da pele e os costumes dos crioulos. Por isso, estes aspectos – removidos das imagens europeístas – vinham à tona noutros postais. De facto, os postais eram produzidos em função de intenções comunicativas muito heterogéneas. Os europeus residentes na ilha, que provavelmente eram dentre os principais compradores dos postais europeístas, verosimilmente eram uma clientela só secundária e para manter os contactos com os parentes usavam seguramente quase só as cartas, que permitem uma comunicação mais extensa e mais íntima. Portanto, a clientela mais importante eram indubitavelmente os passageiros dos transatlânticos, que aproveitavam da paragem em São Vicente para mandar cumprimentos aos familiares e aos conhecidos. Para eles, as imagens da Praça Nova ou da capitania não ofereciam grandes estímulos e não incorporavam nenhuma 3 Lyall provavelmente refere-se a Arthur Wellesley (1769-1852), o primeiro duque de Wellington. 4 Gregor Mendel (1822-1884), um dos principais precursores da genética moderna. 175 mais-valia simbólica. Os postais, com os quais mostravam aos correspondentes que se tinha entrado em contacto com a África “selvagem”, podiam, pelo contrário, suscitar admiração. E os inúmeros coleccionadores, que pediam que lhes enviassem os postais sem nunca ter posto os pés no arquipélago, estavam certamente mais interessados em representações do “tipo étnico” dos “indígenas” que em imagens do centro do Mindelo. O género desempenhava um papel crucial na descrição da população caboverdiana. Em coerência com um típico discurso colonialista, os homens eram frequentemente retratados como figuras ridículas e em farrapos (LOUREIRO 1998a, n. 188, 193 e 202), enquanto que eram bastante raras as imagens de crioulos que se dedicavam a actividades laborais. A construção visual das mulheres caboverdianas – que constituíam um objecto de estudo muito mais frequente – obedecia, ao invés, a modelos diferentes. Em muitos postais estão de facto retratadas crioulas que trabalham: vendedeiras no mercado (LOUREIRO 1998a, n. 168, 170 e 182), lavadeiras (LOUREIRO 1998a, n. 187) ou domésticas que pilam o milho nos pilões (fig. 6). O título deste último postal (“Costumes”) indica, todavia, que a intenção do fotógrafo não consistia tanto em documentar uma actividade laboral quanto em tipificar os costumes e a cultura local. Neste sentido, os corpos destas mulheres – de pele escura, descalças, com a cabeça coberta por um lenço e quase sempre com um ‘canhoto’ na boca (fig. 7) – servia de superfície onde eram fixadas as características “típicas” que, aos olhos do fotógrafo, representavam as especificidades distintivas da cultura cabo-verdiana. Para usar as palavras de Susan Shifrin (2002), estes postais usavam as “mulheres como sítios de cultura”. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 6 FIGURA 7 176 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 O postal “Cubata indígena” (fig. 8) demonstra uma importante diferença relativamente aos hodiernos postais turísticos, cuja retórica visual bebe fortemente do imaginário colonial. Nesta imagem, com efeito, se retrata uma cena de pobreza extrema: um motivo que no mundo edulcorado da economia turística constitui um elemento de incómodo e, por conseguinte, um tabu. O título do postal, portanto, parece sugerir que esta mísera habitação não era tanto o produto da pobreza dos seus habitantes quanto uma “típica” expressão da cultura “indígena”. Como é sabido, em Cabo Verde, o uso de materiais vegetais na construção das casas rurais era muito difuso e, em parte, persiste ainda hoje. Estas habitações, todavia, eram e são relativamente espaçosas e a sua fabricação correspondia e corresponde a precisos princípios técnicos e estéticos (veja-se, por exemplo, CARREIRA 2000, p. 524 segs.). A cubata reproduzida neste postal, pelo contrário, é pouco mais do que um refúgio montado ‘como calha’, em que só sobrevive uma recordação de todo degradada dos estilos arquitectónicos de origem africana. Neste postal (e também em muitos outros) uma situação de pobreza economicamente determinada é pois reinterpretada como especificidade étnica, de modo a torná-la apresentável a um público ocidental. O adjectivo “indígena”, neste caso, dá azo a desinformação, visto que entre o fim do século XIX e inícios do século XX a maior parte dos habitantes cabo-verdianos de São Vicente tinha chegado à ilha havia poucos anos ou quando muito havia uma geração (CORREIA E SILVA 2000, p. 128). As pessoas retratadas neste postal, mais do que serem “indígenas” (isto é, autóctones) eram migrantes sub-proletários de origem rural, como se encontravam aos milhões nos subúrbios das cidades industriais europeias. 177 Hipopótamos, leopardos e guerreiros tribais Dentre os mais activos editores de postais havia as grandes lojas da ilha: o Bazar Oriental Augusto Figueira, a London House João Joaquim Figueira, o Union Bazar, o Bon Marché e sobretudo o Bazar Central Miniati & Frusoni / Bazar Central Bonucci & Frusoni5. Para os passageiros dos transatlânticos, estes empórios eram importantes pontos de referência durante a sua breve estadia cabo-verdiana. E os seus proprietários sabiam como saciar os desejos exóticos dos seus fregueses. Embora exprimam uma estética marcadamente colonial, os postais até agora analisados muito provavelmente não satisfaziam a expectação de todos os viajantes. No imaginário popular ocidental a “África” era antes de mais um mundo de tribos primitivas e de animais selvagens. Portanto, os operários portuários e as cabras de São Vicente corriam o risco de desiludir as expectativas “etnográficas” dos passageiros europeus. Apesar disso, o viajante ansioso por mostrar que durante a travessia do oceano tinha ultrapassado os confins da “civilização”, podia ser contentado. Para ficarmos com uma ideia (pelo menos parcial) das mercadorias oferecidas pelas lojas do Mindelo, podemos examinar um postal – produzido com objectivos publicitários – em que se retrata o interior do Union Bazar (fig. 9). O empório aparece como um pequeno gabinete de curiosidades, cujas peças em exposição (humanas e zoológicas) servem como representantes simbólicos do mundo africano. Duas crianças nuas estão sentadas em cima 5 Os italianos Pietro Bonucci e Giuseppe Frusoni, além de um certo Miniati, chegaram a São Vicente no fim do século XIX. Giuseppe Frusoni, que com os seus sócios Bonucci e Miniati geria um empório na hodierna Rua Lisboa, era o pai do célebre poeta cabo-verdiano Sérgio Frusoni (MESQUITELA LIMA , 1992) Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 8 FIGURA 9 178 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 do crânio de um hipopótamo. Atrás delas há presas de elefante esculpidas, e na estante um leopardo empalhado, uma estatueta que representa um animal e várias conchas esperam por um comprador. E se este não devesse encontrar espaço na bagageira para arrumar o crânio de um paquiderme ou se simplesmente não estivesse disponível a comprar o felino morto, o Union Bazar oferecia-lhe um souvenir mais pequeno e decisivamente menos caro, ou seja, postais, expostos na estante por detrás da criança. Alguns postais apresentam uma imagem completamente inventada do arquipélago e dos seus habitantes. Em “Native costumes” (fig. 10), por exemplo, encena-se uma “tribo”. Um grupo de cerca de sessenta pessoas é retratado em pose à frente de um fundo caracterizado por tectos de palha e uma vegetação exuberante. Na sua maioria, trata-se de jovens homens africanos. Dois vestem um uniforme, um tem uma espingarda. No centro há um homem sentado, que veste um boubou da África ocidental e que denota uma atitude de autoridade. No grupo há também dois brancos: um homem barbudo que, sentado de maneira relaxada entre os negros, parece mostrar que estabeleceu relações pessoais com eles, e um homem armado com o olhar feroz de um caçador. Os dois brancos representam, de certa forma, o alter ego do remetente, que através deste postal pode comunicar ao destinatário que entrou em contacto com a “cultura tribal” de África. À direita, há três mulheres, que são abraçadas por um homem. As mulheres trazem panos compridos, uma mostra o seio nu – sinais visuais que o olho ocidental descodifica imediatamente como aspectos “tipicamente africanos” e que o fotógrafo provavelmente inseriu na imagem precisamente com este propósito. De forma análoga, esta hipótese pode ser 179 formulada para o homem junto deles, cujos atributos estéticos (calças xadrez, chapéu de palha) revelam fortes semelhanças com a figura caricatural do “black dandy”6. Neste postal, tal como em muitos discursos colonialistas, os negros ou são sujeitos completamente fechados no seu contexto tribal ou, quando muito, mostram-se “más imitações” dos brancos7. “Tipo Indígena” (fig. 11) retrata três homens numa savana. Dois vestem saias de fibras vegetais e o terceiro um pano com desenhos abstractos. Os seus peitos nus estão adornados por colares compridos. Trazem armas brancas e juntos empunham uma lança. Esta imagem pertence a uma categoria de postais especializada na representação de “tipos étnicos”. As pessoas fotografadas nestes postais não eram indivíduos, mas exemplares. Neste caso, a pretensa autenticidade “etnográfica” pode ser facilmente desconstruída. A pose dos três guerreiros é evidentemente artificial, a coreografia é orquestrada pelo fotógrafo. A expressão dos três actores revela uma forte separação relativamente às suas personagens8. A imagem era um disfarce. Obviamente, não se tratava de uma encenação artificial mas fiel à realidade, como muitas vezes era praticada pelos etnógrafos9, mas simplesmente de uma montagem completamente arbitrária. A estética das personagens fotografadas é um pastiche tribal, inventado pelo fotógrafo e afim àquelas espécies de 6 Os “dandies negros” tornaram-se populares pelas chamadas minstrel shows, um tipo de cabaret da América do norte, em que os actores brancos com a cara artificialmente escurecida ridicularizavam os negros (SOTIROPOULOS 2006). 7 Para o conceito de bad copy veja-se MUDIMBE 1988, p. 53, e GABLE 2002. 8 Neste sentido, trata-se de um exemplo que ilustra de forma eficaz a agency que os indivíduos “indígenas” podiam ganhar na produção fotográfica, gerando por vezes efeitos discordantes em relação às intenções do fotógrafo. Para a questão do counter-gaze dos indivíduos subalternos como forma de resistência relativamente ao olhar colonial, veja-se BHABHA 1994, p. 67, e ZELLER 2010, p. 17 s. 9 A este propósito, veja-se, por exemplo, a imagem que retrata o etnólogo Franz Boas enquanto põe em pose e faz fotografar uma índia (publicada em CLIFFORD 1999, p. 186). Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 10 FIGURA 11 180 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 ‘jardim zoológico’ humano, tão populares no mundo ocidental dos inícios do século XX (MAXWELL 1999; BANCEL et al. 2004). Em todo o caso, nada tinha a ver com a realidade cabo-verdiana, onde o único “guerreiro” realmente existente era um individuo posto à entrada da Union Bazar que verosimilmente era pago para acolher os clientes no mundo consumista de uma África imaginária (fig. 12). Os postais ‘africanizantes’ (fig. 10 e 11) são collages, ou melhor, combinações manipuladoras de fotografias (tiradas provavelmente no continente africano) e de títulos (que ligam as imagens a São Vicente). Eram os produtos de uma estratégia comercial dirigida para os gostos dos consumidores europeus e, para os satisfazer da falta de uma cultura tribal em São Vicente, compensava-se com uma obra de invenção inspirada no imaginário ocidental. A primazia das motivações comerciais não exclui portanto a existência de intenções tipicamente políticas. O postal “O Chefe da rebelião de Santha Catharina” (fig. 13) ilustra-o de maneira deveras eloquente. A imagem pretende retratar o líder da revolta do Ribeirão Manuel, que se desencadeou em 1910 no interior de Santiago (CAMILO PEREIRA 2010). Na verdade, trata-se de uma foto tirada num estúdio. A espada curva, o peito nu e adornado por um colar, além das plantas selvagens pintadas no fundo de tela, situam a personagem num contexto tribal. O postal sugere pois uma leitura étnica do conflito – “indígenas selvagens” contra o “poder colonial civilizador” – e deste modo oculta quer as complexas dinâmicas (sócio-económicas, religiosas, políticas) que tinham levado à insurreição , quer à liderança feminina da mesma. Através desta encenação, o fotógrafo reduzia a revolta (que as elites sociais e coloniais tinham seguido com grande preocupação) a um inócuo objecto estético, deslegitimava as suas reivindicações e inventava um “líder”, cuja estética exótica o tornava um bem de consumo potencialmente atraente. Saudações coloniais O postal é um meio de comunicação de massa produzido a nível industrial, mas pode ser utilizado de maneira individual. Por conseguinte, a heterogeneidade semântica não se dá só pelos diversos postais. Pelos textos escritos, pelos remetentes, ela pode ser gerada também relativamente a postais idênticos. Assim que são imprimidos, os postais podem ser interpretados e usados de várias maneiras por parte dos seus compradores (TROPPER 2010). E isto pode determinar divergências também notáveis em relação às intenções dos fotógrafos e dos editores. “Souvenirs d’une soirée passée avec une bougnoule” (“Recordações de um serão passado com uma preta”)10: esta mensagem bastante explícita foi enviada a 3 de Março de 1910 por um certo Edouard a um seu amigo residente em Avrenches (França)11. A imagem que tinha no verso estas palavras não representava nem uma pessoa nua nem uma prostituta. Tais motivos eram deveras difusos na época e podem ser encontrados nos postais mais variados dos países coloniais e europeus. No caso de São Vicente, pelo contrário, faltavam completamente, apesar de nesta cidade portuária a prostituição ser um fenómeno difuso e conhecido (CORREIA E SILVA 2000, p. 137). Em ausência de ilustrações mais apropriadas à mensagem, 10 O termo “bougnoule” vem do jolofo e originariamente indicava a cor “preta” ou uma “pessoa de pele escura”. No fim do século XIX a palavra entrou para o léxico francês e transformou-se progressivamente numa expressão pejorativa de tipo racista para indicar todos os súbditos não brancos do império colonial. (DIALO 1990, p. 66). 11 Colecção privada R. Zaugg. 181 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 12 FIGURA 13 7 182 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 o francês teve que se contentar com um postal mais sóbrio em que aparecia a caserna do Mindelo. Os textos podiam também encontrar-se em absoluta discrepância relativamente à imagem. Noutros casos, pelo contrário, os remetentes comentavam de maneira individual as imagens ou integravamnas com anedotas pessoais, orientando deste modo a recepção por parte do destinatário. Entre os postais de São Vicente há alguns que retratam jovens que mergulham no mar saltando de barcos a remos. “Mergulhadores” é o título – não muito eloquente – de um destes postais (fig. 14). À primeira vista, a actividade apresentada neste postal parece pouco clara. Para tornar inteligível a motivação que impelia os jovens a se mergulharem nas ondas, havia a necessidade de um comentário manuscrito. O remetente escreveu “Une vue de nègres plongeant pour attraper des sous” (“Uma imagem dos pretos que mergulham para apanharem moedas”), explicando ao destinatário o ritual recorrente que decorria entre os passageiros dos transatlânticos e os gaiatos mindelenses. O marinheiro Walter Dawson, que passou por São Vicente em 1914 num navio militar britânico, anotou no seu diário: “os ‘rapazes-mergulhadores’ indígenas [...] chegam perto do navio e gritam aos marinheiros ‘Atira, que eu mergulho’ – isto é, ‘Atira o dinheiro e eu mergulho para o apanhar’. [...] não lhes custa nada estar debaixo de água por dois ou três minutos e mergulham até profundezas tremendas. Raramente regressam à superfície sem o objecto desejado” (citado em McKEE 2002, p. 166 s.). Duas décadas depois, Lyall escreveu a propósito da sua chegada ao Porto Grande: “Divertimo-nos a atirar moedinhas às crianças negras nuas, que mergulham corajosamente na água límpida e regressam à tona com o dinheiro entre 183 os dentes, apesar de há uns meses atrás um tubarão ter devorado um engenheiro italiano a poucas jardas da praia” (LYALL 2007, p. 26). O interessante é que postais análogos eram produzidos em todo o mundo, das Filipinas a Dakar até às Bahamas. A imagem de indígenas que mergulhavam atrás das moedinhas tornou-se, graças também à indústria dos postais, um topos colonial-turístico e um rito que – como denunciou V.S. Naipaul (1967) num dos seus romances – reduzia os nativos a um elemento estilístico dos trópicos e os infantilizava através de um jogo paternalista. Os textos manuscritos podiam acompanhar a interpretação das imagens, mas ao mesmo tempo as imagens não deixam de influenciar a recepção dos textos. Em 1903 Zeca Araújo enviou ao sr. Ferreira d’Abreu, residente em Portugal, um postal de São Vicente que trazia a seguinte mensagem: “Por estas cartas de S. Vicente podes ficar com uma ideia do estado de civilização em que isto se encontra. Foram necessários 400 anos de domínio para se conseguir tal maravilha. Somos uns verdadeiros colonizadores, não é verdade?”. O postal que veiculou estas palavras estava adornado com duas pequenas fotografias (fig. 15). A imagem da esquerda retratava uma moça descalça e vestida pobremente, que numa praça arenosa leva pela mão uma criança e traz outra às costas, da qual se vê apenas uma perna. À direita há uma foto com uma mulher de pele escura que tem um elegante vestido branco, na mão, uma sombrinha, e olha para um rapazinho, que – embora esteja descalço – está vestido com roupas brancas e limpas. As duas imagens sugerem uma sequência “antes e depois”, onde a pobreza e a nudez são substituídas por bem-estar e roupas “civis”. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 14 FIGURA 15 184 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 A interpretação da mensagem de Zeca não é fácil. Não é claro, de facto, se o texto é a expressão de um genuíno orgulho imperialista de ter realizado a própria missão civilizadora, ou se pelo contrário deve ser lido como uma crítica irónica em relação ao plurissecular domínio português e aos seus (modestos) resultados. O destinatário verosimilmente não teve nenhuma dificuldade em interpretar a mensagem, pois podia relacioná-la com outros postais que Zeca lhe enviara junto com este e que são mencionados no seu texto. Ao invés, para nós , as intenções do remetente permanecem ambíguas. Não sabemos se outros postais representavam os pavilhões da Praça Nova ou se, pelo contrário, retratavam uma mísera cubata. Sem as imagens que faltam, não podemos compreender o texto de forma clara. Apropriações pós-coloniais Os media visuais fazem recair sobre eles – de forma mais ou menos explícita – os sinais dos contextos em que foram produzidos. Todavia, a sua semântica não pode ser de todo reduzida a estes últimos. Estes media não espelham somente relações de força contingentes, mas desenvolvem também dinâmicas autónomas. As imagens não têm só origens, têm também vidas sucessivas. Nesta última parte procurarei dar dois exemplos disso, adentrando-me no período pós-colonial e alargando a análise a outros tipos de media. O primeiro exemplo concerne ao pilão: um objecto que, notoriamente, chegou ao arquipélago na bagagem cultural dos escravos africanos que para lá foram deportados. O pilão era antes de mais um humilde utensílio doméstico e durante séculos provavelmente foi percepcionado essencialmente como tal. Os fotógrafos que em inícios do século XX começaram a tirar 185 fotos de domésticas que se aprestam a pilar o milho e os editores que inseriram tais fotografias nos seus postais (LOUREIRO 1998a, n. 184, 191, 200, 209 e 210) viram, pelo contrário, no pilão, um objecto que incorporava materialmente os costumes crioulos. Fotografar uma mulher com um pilão significava portanto visualizar e tornar comunicável a cultura cabo-verdian. A este propósito, o postal “Costumes de São Vicente de Cabo Verde” (fig. 18) é particularmente significativo. Contrariamente a outras fotografias de mulheres com pilões, que se conformam a um padrão estilístico de tipo etnográfico e que, por conseguinte, são tiradas ao aberto, esta imagem foi produzida em estúdio fotográfico. O fundo consiste numa tela, na qual estão pintadas plantas e uma coluna, que parece aludir mais a um jardim do que a uma floresta. É provável que este fundo romântico fosse usado para as foto-retratos e – no fundo – teria podido figurar perfeitamente um estúdio qualquer de Londres, Paris ou Lisboa. Em primeiro plano, o fotógrafo colocou uma mulher com um pilão. O lenço, a saia e a camisa com o colarinho bordado são brancos e marcam um nítido contraste relativamente à pele escura. (A fotografia a branco e preto deixa pouco espaço para as mil nuances da pigmentação cutânea: é-se, ou branco ou preto). Em posição erecta e um pouco rígida a mulher impunha um pau e mantém-no acima do pilão. O olhar dirige-se para a máquina fotográfica. Contrariamente aos outros postais, nesta imagem não se representa um gesto de trabalhador. O que o fotógrafo propõe ao seu público é, pelo contrário, uma representação estilizada da mulher cabo-verdiana e, per extenso, da cultura cabo-verdiana. Os postais, produzidos para os consumidores ocidentais, transformaram um gesto quotidiano e fadigoso e o seu Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 utensílio de madeira num símbolo cultural: um símbolo que no tempo foi enriquecido com novos significados, penetrando em outros meios de comunicação e tornando-se assim um sinal de reconhecimento de Cabo Verde. Na poesia Ritmo de pilão o escritor António Nunes (1917-1951) dedicou-lhe versos de grande força (NUNES: 1975): “Bate, pilão, bate, Que o teu som é o mesmo Desde o tempo dos navios negreiros [...] O branco deu aos negros cartas de alforria Mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor... [...] Bate, pilão, bate, Que o teu som é o mesmo, E em nosso músculo está Nossa vida de hoje Feita de revoltas! Bate, pilão, bate! ...” Nunes associa o pilão às raízes africanas do povo cabo-verdiano, à escravidão e à luta persistente pela vida. Também ele faz do pilão um símbolo, mas dirige-o explicitamente contra o domínio colonial. Em Nunes o pilão torna-se “a matriz maior da cultura cabo-verdiana, enquanto metáfora das origens e da busca do pão que é o milho” (HOPFFER ALMADA 1995, p. 71). A africanidade (incorporada no pilão) é revalorizada positivamente e celebrada como força potencialmente revolucionária. Durante a luta anticolonial e depois da independência, impulsos culturais deste tipo foram enfatizados com o sentido de “reafricanização dos espíritos”. Neste novo contexto político, o pilão continuou a simbolizar a cultura popular cabo-verdiana e as suas origens africanas, de modo que em 1989 até foi inserido na nota de 100 escudos. Com a mudança e a chegada ao poder do MPD a política cultural reorientouse, como é sabido, para ocidente. Esta descontinuidade manifestou-se também e sobretudo na esfera simbólica e visual, como bem se evidencia pelo abandono da velha bandeira, fiel à cromática panafricanista, vermelho-amarelo-verde, e pela adopção da nova bandeira, cujas cores e simbologia apresentam referências à União Europeia e aos Estados Unidos da América. Porém, as referências a África não desapareceram. De facto, com o desenvolvimento da economia turística renasceu uma forte demanda exógena de objectos e imagens chamados a representar – de forma mais ou menos credível – um sentido de “africanidade”. Não por acaso, nos dias de hoje o motivo iconográfico do pilão é reproduzido em insígnias publicitárias (fig. 16) e numa ampla variedade de souvenirs (T-shirts, estatuetas, porta-chaves, etc.). O pilão não é, porém, só um banal símbolo turístico para os consumidores estrangeiros. Na mesma comunicação intracaboverdiana, ele continua a representar as raízes culturais e a ligação com a terra mãe. A estátua de Domingos Luísa na marginal do Porto Novo (fig. 17) – dedicada à “mulher das terras de Cabo Verde”12 e que representa uma mulher que parece cumprimentar um marido ou um filho que parte para emigrar, ficando em casa com uma criança e um pilão – é um óptimo exemplo. A apropriação pós-colonial de imagens e motivos criados nos postais da época colonial é ainda mais directa no caso do mercado da Praça Estrela. Inaugurado em 1999, ele está decorado com grandes painéis de azulejos brancos e azuis, produzidos em Portugal e doados pela Câmara Municipal do Porto. O objectivo declarado destas decorações, que representam cenas do 12 Inscrição na base da escultura. 186 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 16 FIGURA 17 187 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 FIGURA 18 FIGURA 19 188 Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4 passado da cidade, é “evoca[r] e homenage[ar] o trabalhador humilde de S. Vicente”13. O que é interessante é que todos os 20 painéis são cópias fiéis de outros tantos postais (confira p.e. fig. 19 e LOUREIRO 1998a, n. 182). Em alguns casos, os azulejos trazem até os subtítulos impressos nos postais. As imagens editadas no Cabo Verde colonial como bens de consumo efémeros para uma clientela ocidental tornaram-se assim memórias visuais da história local, fabricados na antiga metrópole e monumentalizados para o público pós-colonial de Cabo Verde. No seu conjunto, a imagem de Cabo Verde veiculada pelos postais oscila entre o progresso e a miséria e entre uma urbanística europeia e a encenação de indígenas mais ou menos exóticos. Esta heterogeneidade aparentemente contraditória é o resultado de um processo de produção e de consumo em que se encontrava envolvida uma pluralidade de actores sociais. De facto, seria redutivo querer interpretar estes postais simplesmente como a expressão hegemónica do colonialismo português. O discurso apologético do poder colonial está certamente presente nestas imagens, mas não era o único motor da construção visual. No fundo, os postais não eram publicados pelos detentores do poder político, mas por pequenos empresários interessados em interceptar um pedido heterogéneo. De um ponto de vista comercial, a europeização da paisagem urbana, as estilizações pseudoetnográficas e os disfarces exóticos não eram estratégias visuais contraditórias, mas complementares. De resto, a heterogeneidade destas imagens faz com que muitas delas continuem a circular e a serem usadas em contextos muito diferentes relativamente àqueles em que nasceram. Neste sentido, os exemplos do pilão e dos azulejos, por um lado, mostram o efeito condicionante que o olhar dos “outros” tem sobre a auto-percepção. Por outro, realçam que os sujeitos representados de modo estereotipado podem apropriarse das imagens produzidas sobre eles e carregá-las de significados novos e positivos Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina 13 Inscrição numa lápide comemorativa. Referências ALLOULA, Malek. (1981). Le harem colonial. Images d’un sous-érotisme. ParisGenève, Garance/Slatkine. ANJOS, José Carlos. (2002). Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde. Lutas de definição da identidade nacional. Porto Alegre-Praia, Editora da UFRGS & INIPC. BANCEL, Nicolas Bancel; BLANCHARD, Pascal; BOËTSCH, Gilles; DEROO, Eric; LEMAIRE, Sandrine (eds) (2004). Zoos humains. Au temps des exhibitions humaines, Paris, La Découverte. BHABHA, Homi K. (1994). The location of culture. London-New York, Routledge. BRITO-SEMEDO, Manuel. (2006). A construção da identidade nacional. Análise da Imprensa entre 1877 e 1975. 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