O Peso da Tradição: a Influência do Modelo Mental dos Gestores no Desenvolvimento das Capacidades Dinâmicas Autoria: Rubens Mussolin Massa Resumo Neste artigo analiso como os conceitos de paradigma, cultura organizacional e cognição de recursos influenciam o modelo mental dos gestores e enviesam a escolha de quais capacidades dinâmicas devem ser desenvolvidas por uma organização no processo de inovação e mudança. Na esfera empírica realizo um estudo de caso da editora A Recreativa, tradicional empresa de 64 anos. Os resultados evidenciam como os conceitos descritos, aplicados à rotina da organização, tendem a deixar a mesma gradativamente mais alinhada consigo mesma em detrimento das reais demandas do ambiente, colocando em risco sua sobrevivência a longoprazo e revelando o peso da tradição. Introdução A inovação organizacional envolve, ao longo do tempo, a mudança dos recursos organizacionais e das competências, acompanhada da renovação dos produtos (FLOYD; LANE, 2000). O conceito de capacidades dinâmicas se refere à habilidade da empresa de se renovar em função das mudanças do ambiente (TEECE; PISANO; SCHUEN, 1997). Neste artigo, valho-me da literatura clássica e atual sobre capacidades dinâmicas, associada a uma revisão da literatura de mudanças estratégicas (QUINN, 1980; SPENDER; GRINYER, 1979; PETTIGREW, 1985; JOHNSON, 1987), com o objetivo de argumentar e demonstrar empiricamente, através do estudo de caso da Editora A Recreativa, como os paradigmas organizacionais enviesam a escolha de quais capacidades dinâmicas devem ser desenvolvidas nas organizações, causando um alinhamento destas com seus próprios paradigmas, em detrimento das reais demandas do meio-ambiente. Considerando capacidades dinâmicas como processos internos de uma empresa, assumo neste artigo uma lente organizacional empírica, e não econômica (BARNEY, 1991 apud EISENHARDT, 2000). Busco também demonstrar que capacidades dinâmicas não são tautológicas e vagas como se tem discutido, mas, sim, processos bem conhecidos, que envolvem alianças, desenvolvimento de produtos e decisão estratégica ‒ conceitos estudados à parte da tradicional RBV ‒ mas com valiosa contribuição para os estudos de vantagem competitiva por sua habilidade em criar, integrar, recombinar e economizar recursos (EINSENHARDT; MARTIN, 2000). Referencial Teórico A inovação organizacional envolve a mudança dos recursos organizacionais e competências ao longo do tempo, acompanhada da renovação dos produtos (FLOYD; LANE, 2000). O conceito de capacidades dinâmicas se refere à habilidade da empresa de se renovar em função das mudanças do ambiente (TEECE; PISANO; SCHUEN, 1997). Eisenhardt e Martin (2000) afirmam que a base de recursos da organização pode ser alterada de 4 (quatro) maneiras diferentes: alavancando os recursos existentes; criando novos recursos; acessando recursos externos; ou economizando nos recursos. Entretanto, há pouco conhecimento de como a capacidade dinâmica é exercida. Mecanismos de funcionamento das capacidades dinâmicas Segundo Winter (2003), capacidades dinâmicas são similares a capacidades organizacionais, que ele define como uma coleção de rotinas, que junto com inputs no fluxo de execução, fornecem à gestão de uma organização um leque de decisões estratégicas para produzir outputs significantes de um tipo particular, o que implica em dizer que não há capacidade dinâmica se não houver um objetivo definido. Assim, dá-se uma discussão sobre o que são capacidades dinâmicas e o que não são. Winter (2003) utiliza-se do termo adhoc problem solving para se referir a movimentos de mudança de comportamento no tempo que não são capacidades dinâmicas, ou seja, que não são rotinas, não seguem padrões e não são repetitivos. Alguns dos principais mecanismos de aprendizado de capacidades dinâmicas são: a prática repetida; a codificação da experiência; os erros e a velocidade da experiência. A prática repetida, como demonstram inúmeros estudos empíricos (ZOLLO; SINGHS, 1998), combinada com a codificação da experiência em novas tecnologias e procedimentos, tornam a experiência mais fácil de aplicar e acelera a construção de rotinas (ARGOTE, 1999). Os estudos sobre erros igualmente demonstram que estes, quando são grandes e estratégicos, 2 colocam barreiras à ação dos gestores, enquanto que, quando pequenos, incentivam o aprendizado interno nas organizações para se readequar em busca de corrigi-los (EISENHARDT; SULL, 2001). A velocidade das experiências também afeta as capacidades dinâmicas: ao passo que experiências muito intensas levam os gestores a não conseguir transformá-las em um aprendizado significativo e experiências infrequentes podem levar a esquecer o que foi aprendido previamente. O resultado é pouco conhecimento acumulado (ARGOTE, 1999). A definição de rotinas moderada pela dinâmica do mercado Rotinas no processo de desenvolvimento de capacidades dinâmicas, em uma visão expandida do processo de rotinas (CYERT; MARCH, 1963; NELSON; WINTER, 1982), podem ser moderadas pela dinâmica do mercado estudado. Estudos (WALLY; BAUM, 1994; FREDRICKSON, 1984; EISENHARDT; TABRIZI, 1994) demonstram que organizações com processos muito bem estruturados são capazes de produzir produtos mais rapidamente; entretanto, frequentemente estes não estão em consonância com as demandas do mercado. Ao passo que empresas sem estrutura alguma, com processos orgânicos, são igualmente ineficazes (BROWN; EISENHARDT, 1997). Sabese que à medida que se ganha conhecimento neste processo, para torná-lo mais eficaz, tendese a transformá-lo em rotinas progressivamente mais formais para que possam atingir seu objetivo com mais eficácia. Explico a relação: a literatura mainstream do tema teoriza que em mercados com dinâmica moderada, onde mudanças ocorrem com frequência, seguem padrões lineares e previsíveis e as condições competitivas são bem definidas, os gestores são capazes de trabalhar com o histórico e desenvolver planos estruturados com base nestes (HELFAT, 1997). Entretanto, em mercados muito dinâmicos, ou seja: onde as fronteiras do mercado não estão claras, não existem modelos de negócio claramente de sucesso, os players de mercado são ambíguos e estão em constante mudança (Einsenhardt, 1989), assim as mudanças tendem a ser não-lineares e menos previsíveis. Salienta-se que mesmo nestas condições é importante considerar rotinas que permitam que as decisões não sejam desestruturadas e orgânicas, valendo-se de procedimentos mais simples focados em pontos essenciais, mas capazes de gerar poucas regras eficazes em especificar fronteiras de ação e determinar prioridades. Neste contexto o uso de experimentos que gerem aprendizado rápido supre a falta de procedimentos muito estruturados, utilizando-se de protótipos capazes de gerar e ganhar mais conhecimento rapidamente de maneira a embasar mais adequadamente as decisões estratégicas para a construção de novos recursos eficazes na criação de novas vantagens competitivas (ARGOTE, 1999; SITKIN, 1992). O viés na decisão de desenvolvimento de capacidades dinâmicas Isto, entretanto, não explica integralmente porque algumas organizações são capazes de se renovar em face das mudanças ambientais enquanto outras sucumbem, deixando gaps teóricos importantes. Um deles, identificado por Danneels (2010), afirma que o que é feito no exercício das capacidades dinâmicas depende da cognição dos executivos sobre os recursos da firma, demonstrando através de aplicação empírica que o que uma empresa pode fazer depende fortemente da visão dos gestores sobre a organização, uma vez que o modelo mental dos executivos influencia na identificação de recursos, no entendimento de sua fungibilidade, em que direção a organização deve seguir e outras dimensões relevantes. O autor chamou isto de “esquema de recursos”, ou seja, modelos mentais simplificadores da realidade que os gestores adotam em suas empresas para gestão dos 3 recursos. Estes contêm respostas para perguntas que levarão à aplicação dos recursos de acordo com a sua visão e lógica particular; entretanto, podem omitir detalhes importantes e decisivos nos rumos da organização. Assim, é relevante atentar-se não somente às questões postas na literatura sobre capacidades dinâmicas, mas também às questões políticas e socioculturais que influenciam na escolha de quais capacidades dinâmicas desenvolver, para que estas estejam comprometidas e alinhadas com o meio-ambiente e não somente com o paradigma da organização. Isto pode explicar, por exemplo, porque em pesquisas citadas por Brown e Eisenhardt (1997) empresas com processos muito bem estruturados são capazes de produzir produtos mais rapidamente, todavia, frequentemente estes não estão em consonância com as demandas do mercado. Links entre estratégia e cultura organizacional Uma quantidade relevante de trabalhos tem sido desenvolvidos na última década mostrando as ligações entre a estratégia e a cultura organizacional, citando também os problemas que envolvem a inércia estratégica e a necessidade dos gestores em gerenciar o contexto cultural para buscar mudanças estratégicas que permitam e sustem mudanças para o sucesso de longo prazo. Um dos pontos relevantes neste processo, é considerar as implicações da ação dos gestores. Em mercados de pouca dinâmica, as mudanças tendem a ser incrementais, utilizandose do conceito de “incrementalismo lógico”, que significa que no decorrer de longos períodos a estratégia vai se desenvolvendo incrementalmente e o passado tem grande relevância na forma como a empresa molda o futuro (QUINN, 1980). Entretanto, existem outras explicações para como os padrões emergem. As pesquisas em gestão estratégica apontam que as decisões emergem pela aplicação da experiência gerencial como um filtro para estímulos internos e internos dentro de um ambiente social e político; assim, é razoável afirmar que a orientação estratégica está diretamente relacionada com as premissas, valores e crenças presentes na experiência organizacional de seus gestores e na cultura organizacional vigente. Se existem interpretações individuais, de certo modo, existe um conjunto de crenças compartilhadas entre os gestores, denominado como paradigma (SCHEIN, 1986), que se configura por atuar de maneira inconsciente no nível mais profundo das crenças e premissas entre os gestores, formando visões “tidas como certas” que moldam a maneira como a organização se vê e enxerga o ambiente. Assim, por sua natureza, o paradigma é uma estrutura cognitiva presente, em maior ou menor intensidade, dentro de todas as organizações. Isto permite que a organização internalize suas competências únicas e habilidades especiais que serão a base para atingir vantagens competitivas (JOHNSON, 1992). Entretanto, isto também pode gerar problemas. Forças ambientes e capacidades organizacionais afetam a performance de uma organização mas não são elas propriamente ditas que criam a estratégia organizacional. Quem faz isso são as pessoas, e um dos mecanismos que influenciam este processo são os paradigmas (JOHNSON, 1992). Explica-se: certamente aspectos internos e externos à organização afetam, de forma individualizada, a forma como os gestores desta percebem os fatos, o que influencia diretamente o direcionamento de tomada de decisão nesta. Este viés interpretativo pode ser ilustrado pelo fato cotidiano de dois diferentes espectadores verem o mesmo lance em um jogo de futebol de maneira diferente, ou analisarem uma mesma decisão de investimento na bolsa de valores de maneiras opostas. O processo é então reiterado por uma série de artefatos culturais: as rotinas da organização, os rituais, os controles formais vigentes. 4 Tomada de decisão enviesada Deparando-se com situações de mudança, executivos tendem a lidar melhor com situações que estejam alinhadas com seus paradigmas, a cultura e os demais aspectos sociais e normas políticas vigentes na organização. Isso torna difícil tomar decisões que fujam deste contexto, principalmente que mudem “o modo de fazer as coisas por aqui”. Assim, a tendência dos gestores será sempre primeiramente modificar o que não fuja ao paradigma vigente, eliminar informações que não estejam de acordo com o mesmo e absorver as informações que estão de acordo com este. Entretanto, este viés, ao longo do tempo, faz com que a estratégia da empresa se torne cada vez mais descolada das mudanças ambientais, um processo que tende a ser negligenciado pelos gestores até que comece a afetar os resultados. O resultado deste processo é que a organização tende a desenvolver estratégias alinhadas com o que pensam os gestores da empresa e não com o que realmente ocorre no ambiente. Entretanto, em um paradoxo, as forças do ambiente afetarão o desempenho da empresa e prejudicarão o seu resultado ao longo do tempo. A cognição de recursos é um conceito extensivamente explorado na psicologia e na economia comportamental. No contexto deste trabalho é capaz de unir a teoria sobre paradigma e cultura aos conceitos de capacidades dinâmicas. Sua definição é de extremo valor para o caso a ser analisado. Mas o que o termo significa? Quais suas implicações? De maneira objetiva, cognição de recursos significa: identificação de recursos e o entendimento de sua fungibilidade, resultando em esquemas de recursos, ou seja, modelos mentais que os gestores aplicam em suas empresas que determinam quais são os recursos percebidos naquela empresa e quais as aplicações potenciais daqueles recursos, resultando num processo subjetivo de escolhas e identificação (DANEELS, 2010; TEECE, 1982; HAMEL; PRAHALAD, 1994) valioso para o objetivo deste estudo. Metodologia Estudos de caso são adequados quando as questões “como” e “por quê” são colocadas, o observador tem pouco controle sobre os eventos e o foco são fenômenos contemporâneos que ocorrem no contexto real (YIN, 2001). São particularmente interessantes por existirem poucos dados sobre as variáveis analisadas, evidências de várias formas capazes de permitir uma triangulação dos dados e quando existem preposições teóricas anteriores capazes de guiar a coleta de dados (YIN, 2001). Este é o caso deste estudo. Portanto, utilizaremos para desenvolvimento deste estudo os procedimentos propostos por Yin (2001). A editora A Recreativa é, particularmente, uma unidade de análise interessante para contribuir com o objetivo deste trabalho por ser uma empresa familiar de cultura muito forte e rotinas muito bem estabelecidas, que atua no mercado editorial desde 1.950, sendo a pioneira no desenvolvimento de revistas de Palavras Cruzadas e passatempos no Brasil. Após 5 décadas de estabilidade, a empresa, nos últimos 15 anos, enfrenta dificuldades em lidar com a necessidade de inovar, inerente às mudanças ambientais que ameaçam o seu negócio principal. O estudo foca nos últimas 2 décadas do ciclo de vida da editora, realizando uma análise longitudinal, que abrange os últimos 5 anos de estabilidade da editora e acompanha as ações que foram realizadas nos últimos 15 anos visando inovar e sair da situação de declínio em que se encontra. Devido ao meu trabalho na organização como gestor e posteriormente como consultor e sócio, meu acesso à mesma se tornou fácil. Como objetos de análise, foram entrevistados em profundidade os sócios gestores da empresa, que por questões éticas serão referidos como entrevistado 1, entrevistado 2 e entrevistado 3, bem como os balanços financeiros e os 5 demonstrativos de resultado do exercício nos anos considerados e relatórios de acompanhamento de mercado fornecidos pela empresa Primeiramente, foram desenvolvidos os conceitos que envolvem os construtos utilizados: as 4 dimensões no desenvolvimento de capacidades dinâmicas propostas por Eisenhardt e Martin (2000); alavancagem de recursos; criação de novos recursos; acesso a recursos externos e economia de recursos ‒ associadas a uma quinta dimensão, proposta por Danneels (2010), interligando-as posteriormente com o construto de paradigma, sob a ótica da literatura de mudança estratégica desenvolvida no referencial teórico e demais literatura demandada no decorrer da análise do material. Posteriormente, foram realizadas 6 entrevistas em profundidade com 3 dos 4 gestores da empresa nos últimos 20 anos. Em seguida, os dados coletados foram codificados e confrontados com a literatura e os dados financeiros e econômicos coletados. Uma breve história da Editora A Recreativa Fundada em outubro de 1950, na cidade de São Paulo, a editora A Recreativa é a realização do sonho do seu fundador, Owen Ranieri Mussolin, grande admirador das revistas de passatempos italianas, suas grandes companheiras no período que passou na Itália em sua primeira infância. Sentindo que não havia nada parecido no Brasil, fundou a Gazeta A Recreativa, a primeira revista de Palavras Cruzadas do Brasil, em outubro de 1950. Nesta época, Owen conciliava sua rotina como bancário com a criação dos passatempos, editava a revista com a ajuda dos leitores colaboradores e escrevia um dicionário pessoal de termos para Palavras Cruzadas. Após se aposentar, em 1974, mudou-se para a cidade de Poços de Caldas e se dedicou integralmente à edição de suas revistas de palavras cruzadas, até o ano de 1998, quando, acometido por uma doença degenerativa aposentou-se, vindo a falecer em 2002. Seus filhos, um deles já junto de Owen desde o início da década de 80, deram sequência ao seu trabalho e administram até hoje a empresa, sendo os gestores em uma sociedade de 5 irmãos e 2 sócios. Historicamente, a empresa apresenta um quadro de funcionários enxuto, com 10 colaboradores, o que a permite ter uma estrutura simples composta de dois setores: administrativo e criação. O restante das atividades são terceirizadas a prestadoras de serviço especializadas. Por se tratarem de revistas de passatempos, com um elevado nível de dificuldade, se comparado a suas concorrentes, a editora atua sozinha em um grupo estratégico de mercado. De acordo com uma pesquisa realizada pela empresa, em um questionário inserido nas revistas para os clientes, seus consumidores são essencialmente da terceira idade, sendo 80% acima de 80 anos, aposentados, com bom poder aquisitivo; 70% dos leitores possuem renda superior a 10 salários mínimos e elevado grau de formação, e 70% dos leitores possuem nível superior completo. A empresa, ao longo de suas décadas de existência, construiu uma base de clientes muito fiéis, alguns deles colecionadores das revistas da editora desde a primeira edição. Entretanto, devido a mudanças ambientais, dentre elas novos hábitos da população idosa, principalmente o envelhecimento do seu público-base e a dificuldade de renovação deste, vem provocando uma queda de vendas geral nos produtos de A Recreativa, nos últimos 15 anos. A empresa, acostumada à estabilidade de 5 séculos sem crises acentuadas, precisa agir para sobreviver. Ao longo dos últimos 15 anos, a empresa buscou se manter fiel à sua tradição de produzir passatempos com elevado teor de cultura, concentrando-se em uma estratégia de lançar novos títulos no mercado com as mesmas características, buscando, através de uma segmentação maior por tipo de passatempos e sub-níveis de dificuldade (sempre do médio ao difícil), atrair um novo público - especialmente migrando leitores das revistas Coquetel para a 6 editora A Recreativa. Posteriormente, buscou também lançar títulos infantis e oferecer passatempos semelhantes aos das revistas Coquetel, confiando na fungibilidade da sua marca e na percepção de que sua imagem de qualidade se transporia do seu segmento para todo o mercado. Outras tentativas descritas no caso foram realizadas. Entretanto, não surtiram os efeitos esperados. Este estudo de caso longitudinal abrange os últimos 20 anos de histórico da editora, sob a perspectiva das dificuldades que o peso da tradição impõe buscando compreender porque a editora A Recreativa falhou até aqui no seu objetivo de atender às novas demandas que o mercado dinâmico exigia, guiando-se pelo referencial teórico que busca responder à questão: como os paradigmas organizacionais enviesam a escolha de quais capacidades dinâmicas devem ser desenvolvidas nas organizações? Descobertas O histórico da editora A Recreativa demonstra que a empresa atingiu grande sucesso e atendeu às demandas do mercado ao longo de mais de 5 décadas. Entretanto, nos últimos 15 anos a editora encontra dificuldades em readequar às mudanças e reestabelecer seu antigo patamar financeiro, correndo risco de morte. Ou seja, considerando seu ciclo de vida, a empresa se encontra em fase de declínio precisa reverter esta situação. Inúmeras tentativas foram realizadas, embora sem sucesso. Sob a teoria das capacidades dinâmicas, esta seção é organizada considerando as 4 dimensões em que a base de recursos de uma empresa pode ser alterada (EISENHARDT; MARTIN, 2000), e a quinta dimensão proposta por Danneels (2010), traçando um paralelo geral com a evolução do paradigma na empresa e seu desempenho financeiro nos últimos 20 anos. O Estudo de Caso da Editora A Recreativa Alavancando os recursos existentes Alavancar os recursos existentes significa se utilizar dos recursos presentes para aplicar em novas formas de uso. Recursos podem ser categorizados em 2 tipos diferentes: relacionados ao mercado e relacionados à tecnologia. A editora Recreativa, ao longo das 5 primeiras décadas de sua existência, desenvolveu a capacidade de criar novos produtos sempre que havia uma alteração no seu resultado financeiro, passando incólume por momentos históricos brasileiros, como o congelamento dos preços imposto pelo plano Collor, tendo a habilidade de lançar títulos paralelos sempre que a situação demandava. O know-how neste tipo de atividade, de caráter tecnológico, é tão grande que a empresa, de um mês para outro consegue, montar e desmontar uma linha de produção mantendo a qualidade, como itera o entrevistado 2: “[...] ao longo dos anos, passando principalmente pelas dificuldades, impostas pelo congelamento dos preços do plano Collor, aprendemos a construir uma equipe muito flexível, composta por dezenas de colaboradores que atuam sob demanda, tendo ampla experiência”. Entretanto, uma vez questionados se estes produtos atingiam um novo público, os 3 gestores são enfáticos em dizer que a editora nunca precisou se preocupar com atrair mais pessoas, pois tinha uma base fiel de clientes que se encarregavam, por si só, de disseminar as revistas da editora entre os amigos e parentes. “O caso de “A Recreativa” é incrível. Nunca conheci uma empresa com uma base de clientes tão fiel. Alguns deles já chegaram a deixar sua herança pra editora por perceberem ela como uma companheira de vida” complementou. Esta crença demonstra como a empresa conseguiu lidar bem com a tecnologia, para manejar as crises e oscilações que ocorriam, mas se despreocupou em lidar com as situações externas, ocorridas no mercado. Disse o entrevistado 2: 7 [...] nunca nos preocupamos em fazer análises ou mesmo com os preços da concorrência. Até hoje acho que as revistas de A Recreativa não tem ligação direta com qualquer outra produto do mercado [...]. Temos o nosso público, e os outros meios têm o deles. Só não encontramos a forma de lidar com a renovação deste público, porque tenho certeza que existir, ele sempre vai existir [...]. O conhecimento do consumidor reflete um modelo mental integrado de identidade, necessidades, estilo de vida e comportamentos (DANNEELS, 2003). No parágrafo acima, é possível perceber como o paradigma da empresa a respeito do conhecimento do seu consumidor sofre influência de um viés. Ao lançar os novos produtos, os editores imaginavam que apenas os seus leitores atuais seriam uma base suficiente para atingir novos públicos através da indicação destes para seus conhecidos. Entretanto, esta percepção tornou-se falha em dois aspectos principais prováveis: o primeiro é que os consumidores não estavam dispostos a apresentar os produtos aos amigos e/ou os amigos não estavam dispostos a conhecer os novos produtos. O que ocorre por diversos aspectos relacionados ao seu modelo mental e de comportamento social que no decorrer dos anos vão se transformando. A editora A Recreativa é distribuída nacionalmente pela empresa FC Comercial, sendo a cliente mais antiga desta empresa. Ao lançar novos produtos, A Recreativa acreditava que poderia se utilizar do relacionamento construído ao longo de seis décadas para obter apoio. Entretanto, o que aconteceu foi que no ínterim dos lançamos, a distribuidora foi atingida por uma grande crise e vendida para a outra empresa do segmento, a DINAP, que juntas formaram um monopólio do segmento brasileiro de distribuição de revistas. Dentro desta nova realidade, a empresa perdeu seu histórico poder de barganha com o fornecedor e passou a ser vista como apenas mais um cliente. Importantes mudanças contratuais foram realizadas e os custos de operação do processo de distribuição cresceram muito, bem como as condições mínimas de venda. Com isto, a empresa foi, gradativamente, obrigada a manter apenas produtos rentáveis, uma vez que a distribuidora se negava a investir em novos títulos por um período, uma vez que se encontrava em situação de crise. Disse o entrevistado 3: Pensamos que teríamos o apoio da FC ao lançarmos os novos títulos. Revista é imprevisível, você tem que lançar e apostar nela por pelo menos seis números para ver se o mercado responde. Não nos deram essa chance e ainda aumentaram os valores de multas por não atingir padrões mínimos de venda. Aí ficou difícil. Além do lançamento de novos produtos dentro da sua categoria, a editora A Recreativa buscou novas alternativas que estivessem dentro do escopo do paradigma vigente da empresa, ser uma “editora de Palavras Cruzadas impressas”, praticando uma estratégia de extensão de marca, definida como: a utilização de marcas existentes para entrar em novas categorias de produtos (KELLER; AAKER, 1992 apud DANNEELS, 2010). Segundo os autores, três tipos de associação de marca impactam na fungibilidade de uma marca: associações a categorias de produtos (palavras cruzadas), associação a benefícios (qualidade) e associações referentes à usabilidade (divertidas). A editora optou por oferecer conteúdo ao mercado, através da venda de edições direcionadas, ou seja, de venda de conteúdo para projetos especiais corporativos como: campanhas educativas e revistas de publicação direcionada (exclusivas para venda em determinadas redes, publicadas com a marca da rede). Segundo o entrevistado 3, “[...] sabíamos que as vendas em banca trabalhavam contra nós, os números caíam constantemente enquanto os custos de operação da distribuidora só aumentavam. Chegou um momento que ficou claro que não poderíamos pensar apenas nas vendas de banca mais”. Persistindo dentro do paradigma organizacional, a empresa optou novamente pela inovação incremental. Entretanto, a decisão gerencial sobre a fungibilidade da marca novamente se 8 mostrou ineficaz, pois a única associação de marca que se demonstrou, na prática, foi a de associação de categoria de produtos. [...] pensávamos que ao lançar novos produtos conseguiríamos transpor pra eles nossa imagem voltada para a qualidade, uma vez que nosso concorrente tinha uma visão quantitativa, mas não sei o que aconteceu, não conseguimos o respaldo do mercado que pensávamos. As pessoas nos reconheciam como uma marca importante, nos recebiam bem, mas sempre perdíamos as licitações que participávamos, mesmo com preços abaixo da tabela (Entrevistado 3). Claramente, os novos clientes não perceberam a nova categoria de produtos desenvolvida pela editora A Recreativa como algo que trouxesse algum benefício adicional ao que já existia no mercado. Ou seja, os produtos, apesar do reconhecimento de marca, não adicionavam valor algum. O que era feito dentro do seu nicho, não se mostrou fungível a novas categorias. Sendo incapazes de exercer a capacidade de alavancar os recursos existentes, as organizações devem buscar desenvolver a capacidade de criar novos recursos que juntos formarão uma nova competência (GRANT, 1991 apud DANNEELS, 2010). Nesta dimensão, a editora A Recreativa se mostrou inábil. Segundo o gestor 1: “[...] sempre soubemos que o que devíamos fazer estava dentro da nossa competência, que é desenvolver palavras cruzadas e passatempos de qualidade com muito conteúdo” complementado pelo gestor 3 “Até hoje acho que pensar diferente é perder o foco. Todos nós aqui dentro pensamos assim”. Como se nota, os gestores da empresa compartilham a visão, até a presente data, de que a empresa deve se concentrar na inovação incremental e que o desenvolvimento de novas capacidades que gerariam novas competências é tratado como algo negativo para empresa, por estar associado à perda de foco na competência de produzir passatempos de qualidade com “conteúdo relevante”. Este paradigma corrobora para que a empresa não se preocupasse em desenvolver formas estruturadas, capazes de desenvolver a capacidade dinâmica atrelada à criação de novos recursos, o que corroborou para o desalinhamento entre a organização e o meioambiente em processo citado no referencial teórico. Infiro que, por estar em um ambiente pouco dinâmico, a empresa conseguiu se perpetuar ao longo de décadas sem esta capacidade; entretanto, quando ocorreu uma mudança ambiental significativa, a empresa passou a contar apenas com os recursos já existentes, inadequados ao novo contexto. É possível constatar, pela análise dos balanços da empresa, que a falta de foco na inovação não está relacionada à escassez de recursos financeiros, estando relacionada ao paradigma dos gestores da organização de que as inovações devem ser incrementais e dentro das competências existentes. O entrevistado 2 cita que “[...] conhecemos bem o negócio, não perdemos dinheiro com pesquisas e outras coisas. Temos que manter a empresa saudável financeiramente” o que evidencia a noção de que apenas gastar menos significa “manter a empresa saudável” e o gestor 1 complementa que “[...] com o tempo aprendemos a economizar. “Essa é uma das razões do sucesso da empresa até hoje” ‒ mostrando como apesar da queda das vendas e dos resultados financeiros acentuadamente decrescentes os gestores da empresa ainda tem uma visão de “sucesso” sobre a forma como a gestão é realizada. Acessando recursos externos Segundo a classificação que utilizamos, outra dimensão capaz de modificar os recursos de base de uma organização é acessar recursos de fora da organização. Alianças e aquisições são duas formas de realizar isto (EISENHARDT; MARTIN, 2000). A editora A 9 Recreativa, ao longo de seu processo de queda de vendas e de margens de lucro, utilizou o fundo da empresa para investir no segmento de livros, adquirindo uma empresa de impressão de livros sob demanda, mantida anônima neste por questões contratuais, denominada aqui simplesmente como editora “Livro Novo”. Segundo o entrevistado 2, a expectativa era “[...] comprar um negócio já formada para adaptá-lo à cultura da editora sem riscos”, ou seja, acessar recursos complementares ao seu para desenvolver futuramente novas competências. Como recursos para a editora Livro Novo a editora A Recreativa oferecia dinheiro para acelerar o seu desenvolvimento e sua rede de contatos de distribuição para gerar alcance à distribuição de livros da editora, que pretendia o fazer através do canal de bancas de revista. Para a editora A Recreativa, a editora Livro Novo oferecia, como supracitado, novos recursos que poderiam gerar novas competências em um mercado de interesse para a editora A Recreativa, o mercado independente de livros. O plano demonstrou-se inviável. A editora Livro Novo se iniciou pela iniciativa de dois jovens sócios que perceberam uma carência na impressão de livros sob demanda para autores interessados em publicar seus trabalhos e com dificuldades ou aversão a procurar grandes editoras para isto. Baseados em histórias de sucesso no exterior, baseadas neste modelo, de conhecimento de um dos sócios que residiu um período fora, a editora resolver investir sem muito planejamento, apenas intuitivamente, de acordo com o consenso entre os sócios. Nos primeiros meses, entretanto, a incompatibilidade entre o modelo mental de tomada de decisão dos gestores da editora A Recreativa e os gestores da editora Livro Novo se tornaram evidentes, o que tornou a tomada de decisão da empresa, ainda uma startup, lento para os fundadores e muito dinâmico para os gestores de A Recreativa. Não tardou para isto resultar em desavenças insolúveis, como afirma o entrevistado 3, Não dava. No primeiro momento, os meninos pareciam dispostos a seguirem um desenvolvimento mais lento e seguro, como estamos acostumados. Mas nos primeiros meses ficou evidente que eram crianças ainda, que não tinham muito mais do que uma boa ideia na cabeça. Perdemos algumas centenas de milhares de reais mas decidimos sair do negócio, não nos adaptamos. Ficamos em uma situação difícil [...]. Também, os planos iniciais de expansão se mostraram mais onerosos do que inicialmente se demonstravam e as mudanças relativas à fusão da distribuidora FC Comercial tornaram os planos de distribuição através de bancas inviáveis. Assim, os recursos recíprocos, diferentemente do que pensam os gestores envolvidos na negociação, se tornaram desinteressantes para ambos, deixando a situação mais difícil ainda. “Chegou um momento em que nossa sociedade não fazia mais qualquer sentido. Não nos suportávamos”, frisou o entrevistado 1. A editora A Recreativa se deparou com a mais fundamental das premissas de sucesso do processo de alianças ou aquisições. “As empresas precisam ter recursos para buscar recursos” (EINSENHADT; SCHOONHOVEN, 1996 apud DANNEELS, 1996). Os fatos denotam atitudes aparentemente precipitadas de buscar recursos através de aquisições, sem se atentar a questões básicas, evidenciando a inaptidão da empresa em acessar recursos externos através de aquisições e fusões. Economizando recursos Economizar recursos é a última das capacidades dinâmicas (EISENHARDT; MARTIN, 2000) que a literatura tradicional aborda. E esta é a capacidade que foi exercida com mais frequência na empresa ao longo do período analisado. Entretanto, o que se verifica é que, apesar da preocupação dos gestores em trabalhar com o mínimo de recursos possíveis, isso contribui negativamente para o processo de inovação, uma vez que impede, muitas vezes, 10 que sejam construídos processos mais adequados de criação de novos recursos ou mesmo de alavancagem dos recursos existentes. Para a alavancagem de recursos existentes, tendo como base a lógica incremental em mercados de baixa dinâmica, supõe-se processos estruturados que se utilizem de dados do passado capazes de gerar planos mais estruturados de futuro para a empresa. O que se nota, entretanto é, como citado pelo entrevistado 2, “[...] conhecemos bem o negócio, não perdemos dinheiro com pesquisas e outras coisas. Temos que manter a empresa saudável financeiramente”, ou seja, há um consenso de que os executivos conhecem tão bem o negócio que apenas uma gestão intuitiva é suficiente. Como implicações na criação de novos recursos, frases citadas na entrevista conjunta entre os gestores são emblemáticas ao demonstrar a cultura da empresa. Indagados sobre como eles percebem a queda constantes nas vendas em relação às mudanças ambientes, frases como “somos competentes fazendo e imprimindo palavras cruzadas, sempre existirão pessoas que gostam de papel e de letras”, “não acredito que o computador vá acabar como nosso mercado. As crianças são alfabetizadas com lápis e papel, mesmo com tanta tecnologia” e “todas as nossas experiências fora da nossa área de know how” foram catastróficas demonstram como o paradigma dos gestores da organização continua a ser que a editora A Recreativa é uma editora de Palavras Cruzadas impressas e assim deve continuar. Um ponto relevante é que apesar da histórica economia de recursos, a organização não os investe em melhorias. De acordo com declarações como a do entrevistado 3 que diz que “[...] toda a família depende deste negócio, temos que corresponder. Nosso negócio é estável, não precisamos gastar dinheiro com isto. Uma hora vamos achar o caminho”, demonstram que a economia de recursos tem a função apenas de trazer benefícios imediatos aos sócios, não exercendo a função estratégica de buscar melhorias e a sobrevivência da empresa ao longo do tempo. Contando para isto, aparentemente apenas com a sorte. Cognição de recursos Danneels (2010) propõe e testa empiricamente uma nova dimensão capaz de alterar todos os demais recursos da empresa, denominada cognição de recursos. Suas premissas são que para entender como as empresas exercitam suas capacidades dinâmicas é preciso considerar antes como os executivos da empresa as exercitam e as enxergam. A cognição de recursos é um conceito extensivamente explorado na psicologia e na economia comportamental e se refere à identificação de recursos e o entendimento de sua fungibilidade, resultando em esquemas de recursos, ou seja, modelos mentais que os gestores aplicam em suas empresas que determinam quais são os recursos percebidos naquela empresa e quais as aplicações potenciais daqueles recursos, resultando num processo subjetivo de escolhas e identificação (DANNEELS, 2010; TEECE, 1982; HAMEL; PRAHALAD, 1994). No caso da editora A Recreativa, mesmo diante dos fatos demonstrados pelo resultado financeiro da empresa questões internas e ambientes demonstradas, como as mudanças de hábitos da população idosa, o advento de novas tecnologias, a queda da receita e da margem de lucro, existe a crença que a lógica da mudança incremental é o único caminho para a empresa reverter esta situação. Isto influencia a forma como os gestores da empresa enxergam e tomam decisões acerca de como e quais capacidades dinâmicas a empresa precisa desenvolver para alterar suas bases de recurso. Os gestores da organização evidenciam que não acreditam na extinção gradativa do mercado editorial de revistas, nem no potencial de substituição das palavras cruzadas por outras formas de lazer e cultura, o que é determinante na forma como exercitam suas capacidades dinâmicas. No caso da editora A Recreativa, investindo apenas em alavancagem dos recursos já existentes, mesmo assim, de maneira desestruturada, na captação de recursos externos como uma ameaça ao paradigma vigente, na 11 economia de recursos apenas para benefícios imediatos dos sócios e na criação de novos recursos como algo negativo que tira o foco da empresa do seu negócio principal: produzir revistas impressas de palavras cruzadas e passatempos. Discussão Partindo do entendimento dos conceitos referentes às capacidades dinâmicas, proponho colaborar com o preenchimento do gap teórico proposto por Danneel (2010), argumentando que somente planos estruturados e rotinas não são suficientes para guiarem adequadamente o processo de mudança estratégica nas organizações. Devido à sua complexidade, é importante considerar as questões socioambientais capazes de influenciá-lo. A teoria nos diz que ao se deparar com mudanças, os executivos tendem a lidar melhor com situações que estejam alinhadas com seus paradigmas, a cultura e os demais aspectos sociais e normas políticas vigentes na organização, sendo a tendência destes sempre tentar primeiro inovar através do que não fuja a estes, eliminando informações que não estejam de acordo com o mesmo e absorvendo informações que corroborem (GRYNIER; SPENDER, 1979). O caso apresentado analisa empiricamente esta questão teórica, demonstrando a importância do paradigma organizacional no processo de decisão acerca de quais capacidades dinâmicas a organização desenvolverá ou não, o que é um fator relevante no estudo da razão pelo qual algumas organizações sobrevivem às mudanças do ambiente enquanto outras sucumbem. Algumas perguntas devem ser respondidas ao se estudar capacidades dinâmicas, questões de cunho teórico importantes para a adequação do modelo de análise. A primeira delas é: até que ponto a inovação na empresa é exercida realmente através de capacidades dinâmicas? Explico: A teoria demonstra que para se exercer capacidades dinâmicas é preciso que haja rotina e um objetivo bem definido (WINTER, 2003). Alguns dos principais mecanismos de aprendizado para seu exercício são a prática repetida, a codificação da experiência, o aprendizado pelos erros e a velocidade da experiência (ZOLLO; SINGH, 1998), sendo que, à medida que se ganha conhecimento no processo, tende-se a transformá-lo em rotinas progressivamente mais formais, para que possam atingir seu objetivo com mais eficácia. O estudo de caso, entretanto, demonstra que, de maneira geral, os gestores da editora A Recreativa atuam de maneira intuitiva, sem nenhum planejamento formal de longo prazo, o que os impede de exercer o processo de decisão estratégica de maneira estruturada como se sugere em mercados pouco dinâmicos, como é o caso (HELFAT, 1997). Mesmo assim, é perceptível que em alguns processos, mesmo sem se utilizar de ferramentas técnicas, os gestores conseguiram desenvolver na empresa muito bem uma das capacidades dinâmicas propostas, a de alavancagem dos recursos existentes. Proponho aqui que isto ocorra pelo fato de que a empresa passou por crises anteriores, que a colocaram diante da necessidade de desenvolvê-la, como o congelamento de preços do plano Collor citado no estudo, criando um processo repetido por inúmeras vezes que permitiu a empresa codificar a experiência, aprender com os erros de maneira a gradativamente desenvolver um processo eficaz na criação de novos produtos para o seu público já existente. Entendo que isto permitiu que a empresa prolongasse seu ciclo de vida com sucesso. O incrementalismo lógico pressupõe que a estratégia da empresa se desenvolve incrementalmente em um modelo, no qual o passado tem grande relevância na forma como a empresa molda o futuro (QUINN, 1980). Baseado neste conceito, sugiro que este “sucesso” através da alavancagem de recursos existentes corroborou para a construção de um forte paradigma (JOHNSON, 2003), que atua negativamente, impedindo o desenvolvimento de outra dimensão fundamental das capacidades dinâmicas propostas por Einsenhard e Martin 12 (2000), a criação de novos recursos. Neste processo, a visão histórica de que apenas alavancar os recursos existentes é suficiente para manter a empresa saudável, reforçou o paradigma organizacional e não permitiu que os gestores da empresa tomassem decisões de caráter realmente inovador, criando novos recursos para desenvolver novas competências. Enquanto ela percorria o seu ciclo de vida, essas competências não se mostraram necessárias, tornandose evidentes somente no momento em que o meio-ambiente exigiu que mudanças fossem feitas, mostrando-se como fatores críticos de sucesso. Entretanto é uma capacidade que a empresa não desenvolveu. É importante considerar que corrobora para a formação do paradigma vigente e a análise sob a ótica do incrementalismo lógico, a experiência da empresa em tentar exercitar a terceira das dimensões das capacidades dinâmicas (EISENHARD; MARTIN, 2000): a aquisição de recursos externos. Ao buscar crescer a adquirir novas competências rapidamente, buscando atuar em um novo segmento, a empresa teve uma experiência mal sucedida. Os gestores da editora A Recreativa, sem experiência prévia, baseados apenas na percepção pessoal dos gestores e das críticas compartilhadas, ou seja, os paradigmas fizeram a aquisição da editora Livro Novo confiando em premissas que não se mostraram verdadeiras. Ao final, a editora A Recreativa não pôde mais oferecer os recursos que interessavam ao Livro Novo, como distribuição abrangente em bancas e dinheiro, e a Livro Novo não podia oferecer um modelo de negócios que se enquadrasse no paradigma dos gestores de A Recreativa. Não havia, portanto, uma relação baseada em troca de recursos, como pressupõe uma relação de aquisição de recursos, e, portanto, a parceria perdeu o sentido. O que ocorre é que os gestores não enxergaram a situação desta maneira e se fecharam a novas parcerias, atribuindo a esta modalidade de esforço também uma conotação negativa, ao invés de tentar codificar a experiência, aprender com os erros e buscar novos caminhos que procurassem desenvolver a capacidade dinâmica de adquirir recursos. A análise do caso deixa evidente que os paradigmas organizacionais enviesam a escolha de quais capacidades dinâmicas devem ser desenvolvidas, priorizando nas escolhas aquelas que estejam de acordo com o paradigma organizacional. Como consequência, a organização tende a ficar alinhada com estes, ao invés de se alinhar com realidade do meioambiente. Explico melhor: As alterações do ambiente, com as mudanças de hábito, rotinas e perfil dos idosos brasileiros, colocam em risco à sobrevivência da editora A Recreativa. O estudo demonstra como é latente a necessidade de desenvolver capacidades dinâmicas para se conseguir ir ao encontro destas alterações ambientais. Entretanto, é demonstrado que o modelo mental de tomada de decisão dos gestores, afetado pelo paradigma organizacional, é um fator impeditivo para que isto ocorra, fazendo com que a organização se alinhe com este paradigma e não com o ambiente efetivamente. Sendo esta a principal contribuição deste trabalho: demonstrar como isto ocorre. No processo supracitado, os gestores tendem a desconsiderar informações do ambiente que não se alinhem com o seu paradigma, como, por exemplo, que o mercado de revistas impressas, apesar da expansão da base brasileira com poder aquisitivo suficiente para investir em lazer, decresce a uma média de 3% ao ano (ANER, 2012) e que os idosos de hoje, por exemplo, tem novos hábitos e expectativas, considerando informações que reforcem suas crenças, como, por exemplo, que a população de idosos está crescendo. Este processo influencia diretamente a tomada de decisão estratégica dos gestores e, consequentemente, a escolha de quais capacidades dinâmicas a empresa desenvolverá. Este fenômeno é denominado por Danneels (2010) como “esquema de recursos”, ou seja, modelos mentais simplificadores da realidade que os gestores adotam em suas empresas para conseguir lidar com a complexidade e gerir seus recursos, contendo respostas a perguntas que levarão a aplicação dos recursos através de sua visão e lógica particular. Entretanto, por 13 serem modelos simplificadores, podem omitir detalhes importantes e decisivos no rumo da organização (DANNEELS, 2010), como demonstrado pelo exemplo acima e pela clareza das opiniões emitidas pelos gestores da empresa ao acreditarem que a mesma não deve buscar outras oportunidades que não aquelas que abranjam sua competência atual: produzir revistas impressas de palavras cruzadas. Assim, desprezando as informações do ambiente que não estão de acordo com ela e considerando outras que corroboram com a visão em um esquema mental distorcido que influencia perigosamente a organização. A economia de recursos ficou evidenciada no estudo de caso como uma prática frequente no decorrer do exercício da empresa. Entretanto, ao averiguar o objetivo deste percebe-se que não tem função estratégica determinada, é utilizada apenas como forma de gerar mais distribuição de lucro aos sócios para objetivos particulares. Mesmo assim, entendo que esta pode ser considerada uma capacidade dinâmica por atender aos requisitos propostos por Winter (2003) e Zollo e Singh (1998). Analisando o contexto, é possível inferir que este é um dos exemplos do enviesamento das escolhas no processo de tomada de decisão dos gestores, pois o meio-ambiente exige que a empresa se reinvente e desenvolva novas competências, mas, mesmo assim, o modelo mental reforçado pelo paradigma dos gestores enxergam o investimento na criação de novos recursos como algo negativo e um desperdício de dinheiro, o que demonstra, como supra proposto, que os paradigmas organizacionais fazem a empresa tender a se alinhar mais com seus próprios paradigmas do que com o ambiente, enviesando a escolha de quais capacidades dinâmicas desenvolver para ser capaz de promover as mudanças e então a inovação que permita que ela não entre, ou, no caso da editora A Recreativa, saia da situação de declínio no seu ciclo de vida. Permeando como premissa todas as 04 dimensões das capacidades dinâmicas (EISENHARDT; MARTIN, 2000), está a quinta dimensão proposta por Danneel (2010), a cognição de recursos, que tem relação direta com o conceito de “esquemas de recursos”. Procurei evidenciar na análise de cada uma delas como o modelo mental de tomada de decisão dos gestores influencia diretamente a escolha de quais capacidades dinâmicas devem ser desenvolvidas na organização. Meu objetivo foi demonstrar empiricamente como a cognição de recursos influencia quais capacidades dinâmicas uma organização desenvolve e o resultado empírico foi que: a força dos paradigmas faz com que a organização se alinhe cada vez mais consigo mesma, desconectando-se gradativamente do meio-ambiente. Hoje, a editora A Recreativa continua a sofrer com a queda de sua receita, mantendose viva com a contribuição significativa das capacidades dinâmicas que desenvolveu ao longo de sua trajetória: a alavancagem dos recursos existentes e economia de recursos. Entretanto, mostra-se incapaz de reinventar-se à frente dos desafios que o meio-ambiente impõe a uma editora de revistas impressas de Palavras Cruzadas, justamente por não buscar novas competências de alguma forma enviesada pelo esquema mental construído ao longo dos seus quase 65 de atuação revelando o peso da tradição. Contribuições O artigo traz contribuições teóricas e práticas importantes. A primeira delas é que poucos artigos demonstram as capacidades dinâmicas através de estudos de caso, e destes, poucos discutem o que são capacidades dinâmicas e o que não são, tratando qualquer forma de inovação adhoc problem solving (WINTER, 2003) como um exercício de capacidade dinâmica, o que foge ao conceito teórico da abordagem. O artigo, então, se preocupa em discutir esta confusão teórica, tentando elucidá-la. Entretanto, como supracitado e seguindo seu objetivo, demonstra empiricamente a importância do paradigma organizacional no processo de decisão de quais capacidades 14 dinâmicas a organização desenvolverá ou não, o que é um fator preponderante no estudo de porque algumas organizações sobrevivem às mudanças do ambiente enquanto outras sucumbem. A análise deixa claro que, como proposto, os paradigmas organizacionais enviesam a escolha de quais capacidades dinâmicas devem ser desenvolvidas e como consequência deixam a organização alinhada com seus próprios paradigmas ao invés da realidade do meio-ambiente. Referências ARGOTE, L. Organizational learning: creating, retaining, and transferring knowledge. Boston, MA: Kluwer Academic Publishers, 1999. BARNEY, J. Strategic factor markets: expectations, luck, and business strategy. Management Science, v. 32, n. 10; Oct. 1986. BROWN, S. L.; EISENHARDT, K. M. 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