QUE NUNCA TENHAMOS DE O CHORAR
Nunca fui um salazarista, pelo menos na acepção corrente do termo.
Cumpre explicar porquê, pois adivinho laivos de escândalo nalguns, e
acrescentar, que talvez venha um dia a sê-lo. Não posso dizer que fui
salazarista na medida em que não fui, nem sou incondicional de ninguém. Só
da minha Fé e das minhas Ideias. De Deus e dos Valores. E se é bom guardar
a lucidez e o espírito crítico perante os grandes deste mundo, tenho uma certa
pena por não ter sentido aquela devoção cega a um Chefe, a dádiva sem
limites, a gloriosa loucura da abdicação de nós, que faz as grandes fidelidades,
os grandes e silenciosos sacrifícios.
Posto isto, traçadas que são as fronteiras e situações, não tenho dúvidas
em falar dum Homem que vi pela primeira vez no dia da sua morte e a quem
então beijei as mãos; e falar, dizendo um pouco do muito de que deveria ser
dito, sem pretender fazer análises, mas apenas, com humildade e respeito, dar
testemunho.
Salazar é para mim e para os da minha geração (os que pensamos,
cremos e queremos por igual medida) nascidos depois da Segunda Guerra,
formados nos anos sessenta quando a Europa e o Ocidente, se arrependeram
e culparam do melhor que foram, o Homem das apostas contra a Decadência,
da Vontade inflexível perante os factos, ao serviço constante da Verdade. É
Vida. Exemplo. Raiz. Deus, as Pátrias, os outros homens assim: que vivam
para os seu ministério, a privarem-se das coisas que para o comum (e não só)
importam: um Lar, uma Família, Filhos, bens palpáveis, pequenas ou grandes
não interessa, mas de sua pertença exclusiva, afectos certos, que são nossos,
se fazem e se perpetuam, que são esperança, e depois razão, e depois
vínculo, e continuidade, só nossos, por um certo tempo e num certo espaço.
Ele a tudo isto renunciou. Confundindo-se num dado instante com sua Missão
e Serviço, com o Poder e o Estado, renunciou a tudo, ganhando tudo.
Escolheu, como grande que era, senhor de sua vida e de seu Futuro. E as
opções são difíceis, não pelo que se segue, mas pelo que se deixa para trás...
Há tanto de singular neste Homem: a coerência, a fidelidade, a si e suas
ideias, o sentido da hierarquia e da permanência, o modo sóbrio, o querer
inquebrantável. Na Grécia seria talvez um Sábio, em Roma um cidadão dos
que geriam a República até ao fim dos dias, se abriam as veias perante a
iniquidade do Príncipe; na Idade Média a meditar sobre a História de Deus ou,
chanceler zeloso do Bem Comum, a exorcizar maus sacerdotes. Um grande na
Renascença, obscuro em Setecentos; e não o vejo senão no seu Vale de
Lobos no «estúpido século XIX».
Mas a Providência deu-o a nós, em nosso Tempo. Penso, com Huxley,
que as coisas mais importantes são a Graça e a Predestinação. E aí conta para
mim (e hoje para quase todos...) o Salazar de Abril de 61, o Salazar da
Resistência, o Salazar imperturbável perante a imensidade dos obstáculos e
dos trabalhos. Lembro-me, da noite em que em breves palavras nos explicou
porque íamos fazer a guerra, porque íamos para um tempo de sangue e
lágrimas: Angola.
E Angola para além da tragédia concreta era um símbolo do que de
maior tem o País e a gente. Era o Bojador, as Tormentas, a Índia, a História, o
Sangue, o Império, o Futuro. Angola era um desafio, uma encruzilhada.
Chegava o nosso tempo. Éramos postos à prova. Éramos livres de partir ou
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ficar. De perder ou sair vitoriosos. Ele não hesitava. Era um Homem de Deus
que pode significar ser um Homem de Estado, na mais nobre e grande
acepção. Falou o que era preciso e como era preciso. Sem dramatizar nem
minimizar. Foi, como diria o Pessoa, o Homem-Média, a soma de nós todos e
dos melhores. Alma da Raça. Intérprete e íamos ficar criados.
A grandeza daquele velho, que sabia pôr em pé um Povo, que sabia
tocar clarim, que sabia traduzir as Razões por que os outros podem e devem
morrer. E eu, que tinha quinze anos e admirava os condottieris que arriscavam
fisicamente a pele, os grandes chefes de guerra e aventura que morrem jovens
e em combate e são enterrados à luz de archotes, compreendi que se pode ser
Herói aos setenta anos, num gabinete de trabalho, em silêncio, entre papéis e
livros, ensinando a boa administração, a viver habitualmente.
E talvez devo-o a Salazar. Como lhe devo o reforço da convicção que
sempre tive de ser a Verdade uma categoria independente do tempo, do lugar,
dos números, dos votos, das opiniões, das penas, dos riscos, da morte! E ter
preservado esta terra, mantendo-a grande e partida pelo mundo.
E este orgulho em ser Português, em pertencer aos únicos que
desafiaram e venceram a ofensiva dos ventos da História, e uma herança que
temos oportunidade de conservar e dar aos nossos filhos, uma Nação plena de
espaços e aventura, onde a vida ainda não é contabilizada e planificada à
maneira dum corpo sem vontade ou alma.
Era um grande senhor, duma estirpe que vai sendo rara. Tinha a
consciência da Razão de Estado, do Poder como coisa rara, que vem de Deus
e só a Ele, a cada instante, e na hora última se deve dar contas. Que não pode
ser profanado, nem malbaratado, nem estar à mercê da rua, dos grupos de
interesses, dos fluxos da opinião. Sabia que governar não era agradar mas
servir. Não descia ao povo, não o adulava (nem aos poderosos, aliás...) não o
cultivava. Mas o Povo compreendia-o, guardava-lhe respeito e amor, e, mais,
para o fim, uma grande ternura; não o culpava dos males e erros que em seu
tempo, como em todos houve, e que foram graves. Porque todo o humano tem
limites, até o génio.
Salazar morreu numa manhã de Verão, dum dia de sol que foi belo e ele
já quase não viu. A essa hora em Angola, em Moçambique, na Guiné, os
Portugueses batiam-se pelo que ele se bateu e mostrou ser mais importante
que a vida de cada um. No décimo ano da Defesa, tínhamos vencido, graças à
sua Acção, o pior inimigo: a Dúvida.
Creio que, como nos ensinou tão bem, não devemos chorá-lo. Eu sou
contra os elogios fúnebres e tal, por paradoxo que pareça, é uma das razões
porque escrevo sobre Salazar.
Ele vive agora entre nós, em sua Obra. Ele vive em suas Palavras e
seus Actos, que aqui estão e hão-de ficar, se formos dignos deles e os
soubermos preservar.
Só devemos chorar os mortos se os não merecermos. Só devemos
chorar Salazar, se por nosso desânimo, medo, fraqueza, inércia, por nossa
culpa, Portugal for mais pequeno que o que nos legou; se o erro, a mentira, o
oportunismo, a decadência, a abdicação triunfarem; se a integridade da
soberania for atingida e, se a Nação perecer, então sim, devemos chorar o
Homem, porque lhe desbaratámos a Obra, e viveu e morreu em vão.
Mas tal não há-de suceder. Agora que ele se foi definitivamente, o
Futuro de todos pertence mais a cada um. Tomemos pois em nossas mãos o
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que ficou, o que é bom e merece amor. E vamos amar mais e querer com mais
força o que está por fazer. E vamos continuá-lo. E merecê-lo. Para que nunca
tenhamos de o chorar.
Jaime Nogueira Pinto
In Política, n.º 14/15, 15/30.07.1971, pág. 3.
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