PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO EDUARDO IWAMOTO CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO: FUNÇÃO SOCIAL, DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE CURITIBA/PR JANEIRO/2009 2 EDUARDO IWAMOTO CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO: FUNÇÃO SOCIAL, DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito à obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Luiz Alberto Blanchet. CURITIBA/PR JANEIRO/2009 3 EDUARDO IWAMOTO CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO: FUNÇÃO SOCIAL, DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito à obtenção do título de Mestre em Direito. Aprovada pela comissão examinadora abaixo assinada. COMISSÃO EXAMINADORA ___________________________________________ Prof. Dr. Luiz Alberto Blanchet Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PPGD Orientador ___________________________________________ Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PPGD Membro ___________________________________________ Professora Doutora Regina Maria Macedo Nery Ferrari Universidade Federal do Paraná Convidado Curitiba, ____ de _________ de 2009. 4 À Cleide, meu amor, meu conforto, meu carinho, meu tudo..., pela luz que me guia, pela alegria que me contamina e pelo amor que aquece minha vida! 5 AGRADECIMENTOS À Deus por todas as coisas boas da vida. Aos meus pais Osvaldo Chizuo Iwamoto e Tereza Emiko Iwamoto que sempre me acompanharam em todos os momentos, estimulando, se preocupando e torcendo pelo sucesso. Com profundo amor, carinho e gratidão. Ao meu Tio Beto, pela amizade e pela ajuda imprescindível no início do curso de mestrado, muito obrigado! Aos meus irmãos e cunhadas por terem suportado minha ausência nas reuniões de família e me apoiado em todos os momentos. Aos meus sobrinhos, Allan, Gustavo, Isabela e Beatriz, que alegram minha vida. Agora o Tio pode brincar! Agradeço aos professores do PPGD da PUC/PR pelo convívio agradável e pelos inestimáveis ensinamentos. Ao Prof. Dr. Luiz Alberto Blanchet pela orientação do presente trabalho; por me acolher em seu escritório de advocacia; pelas edificantes e agradáveis horas de convívio e ensinamentos pessoal, profissional, moral e cultural; por inúmeras vezes me causar perplexidade com demonstrações de generosidade, caráter, bondade, equilíbrio e sabedoria incomparáveis; pelos gestos de amizade. Muitíssimo obrigado! À Profª Dra. Fabiane Lopes Bueno Netto Bessa, pela sua dedicação ao magistério e pela simpatia sempre constante. À Cleide de Oliveira, companheira de todos os momentos, que desde a preparação para o concurso de ingresso ao mestrado tem dividido todas as emoções do curso, como noiva e colega de mestrado. Aos amigos que contribuíram direta ou indiretamente à conclusão do presente trabalho. 6 RESUMO “Concessão do serviço público: função social, desenvolvimento e sustentabilidade” intitula o projeto de pesquisa que se propõe executar, o qual se insere na linha de pesquisa Estado, Atividade Econômica e Desenvolvimento Sustentável . O regime jurídico administrativo da concessão de serviço público vincula diretamente o titular da outorga, no exercício da atividade, aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, notadamente o desenvolvimento nacional. A noção de desenvolvimento deve considerar três aspectos: social, econômico e ambiental. Os quais devem se inter relacionar de forma harmônica e sustentável. O desenvolvimento pode ser promovido por intermédio da função social da concessão de serviço público, através do desenvolvimento de todos os agentes envolvidos na atividade. Devido a importância econômico-social do tema a sua discussão no meio acadêmico, bem como o aprofundamento do seu estudo, são necessários para buscar alternativas com aplicações práticas a fim de viabilizar um desenvolvimento sustentável da Sociedade com ênfase no bem-estar social e eficiência administrativa. Palavras-chave: Desenvolvimento, Sustentabilidade, Função Social, Serviço Público, Cooperação, Regime Jurídico Administrativo, Regulação, Teoria do Contrato Organização. 7 RÉSUMÉ “Concession de service publique: fonction sociale, développement e soutenabilité” sert de titre pour le projet de recherche qu’on se propose à exécuter, lequel est compris dans la ligne de recherche État, Activité Économique et développement soutenable. Le régime juridique administratif de la concession de service publique conditionne l’exécution de l’activité par le concessionaire à l’observance directe des objetivos fondamentaux de la République Fédérative du Brésil, notamment le développement national. La notion du développement doit considérer trois aspects: social, économique e environnemental. Ces aspects doivent avoir une action réciproque harmonique et soutenable. Le développement peut être réalisé par moyen de la fonction sociale de la concession de service publique, au moyen du développement de tous les agents attachés à l’activité. À cause de l’importance économique et sociale du thème, la discussion du sujet chez les académiciens, et même l’approfondissement de son étude, deviennent nécessaires afin de chercher des solutions alternatives par des applications pratiques dévouées à rendre possible le développement soutenable de la société réalisé avec emphase sur le bien-être social et l’efficience administrative. Mots-clés: Développement, Soutenabilité, Fonction Sociale, Service Publique, Coopération, Regime Juridique Administratif, Régulation, Téorie du Contrat Organization. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10 2 SERVIÇO PÚBLICO....................................................................................... 13 2.1 Noções de serviço público .................................................................................13 2.2 Finalidade da conceituação de serviço público ................................................22 2.2.1 Regime jurídico administrativo .......................................................................23 2.2.2 Regime jurídico privado ..................................................................................29 2.3 Concessão de serviço público ...........................................................................31 2.3.1 Conceito ..........................................................................................................31 2.3.2 Natureza Jurídica ............................................................................................36 2.3.3 O poder de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares ................38 2.3.4 As relações jurídicas entre o Poder Público e o particular............................41 3. DESENVOLVIMENTO................................................................................... 45 3.1 Noções preliminares de desenvolvimento ........................................................45 3.1.1 Desenvolvimento como crescimento econômico...........................................46 3.1.1.2 Adam Smith e a Riqueza das Nações ........................................................48 3.1.1.3 Crescimento econômico ..............................................................................50 3.1.2 O mito do desenvolvimento ...........................................................................51 3.1.3 Desenvolvimento social ..................................................................................53 3.1.4 Desenvolvimento sustentável.........................................................................56 3.1.5 O desenvolvimento e a ordem jurídica brasileira ..........................................60 4 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA................................................................... 66 4.1 Breves considerações sobre a noção de empresa...........................................66 4.1.1 A teoria contratualista clássica.......................................................................67 4.1.2 A teoria contratualista moderna .....................................................................68 4.1.3 A teoria institucionalista publicista .................................................................69 4.1.4 A teoria institucionalista integracionista ou organizativa...............................70 4.1.5 A empresa sob a análise econômica do Direito ............................................71 4.1.6 A teoria do contrato organização ...................................................................72 4.2 O contrato de concessão sob a perspectiva da teoria do contrato organização ..................................................................................................................................74 4.3 A função social da empresa ..............................................................................76 5 A FUNÇÃO SOCIAL DAS PRESTADORAS DE SERVIÇO NA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO ............................................... 82 5.1 A função social da concessão de serviço público ............................................83 5.1.1 A análise da função social da concessão do serviço público na promoção do desenvolvimento. .....................................................................................................87 5.2 Instrumentos jurídicos aptos a exigir a realização da função social da concessão do serviço público ..................................................................................90 5.2.1 A alteração das cláusulas regulamentares e a promoção do desenvolvimento.......................................................................................................91 5.2.2 Regulação e desenvolvimento .......................................................................92 5.2.3 O controle pelas entidades civis e Ministério Público ...................................97 5.3 Alguns aspectos limitadores da abrangência da função social da concessão de serviço público.....................................................................................................99 5.3.1 Limites quantitativos da função social da concessão de serviço público .....99 9 5.3.2 Limites qualitativos da função social da concessão de serviço público .....100 5.4 O Teorema de Pareto como uma proposta de equacionamento entre a qualidade do serviço público e o lucro do particular.............................................102 6 CONCLUSÃO .............................................................................................. 108 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 111 10 1 INTRODUÇÃO A análise do Instituto concessão de serviço público a partir da função social, do desenvolvimento multidisciplinar. e sustentabilidade, exige uma abordagem Não apenas aquela relativa aos diversos ramos do Direito, mas também de conceitos utilizados por outras ciências, especialmente a Economia. O presente trabalho se propõe a realizar uma análise jurídica sobre a relação entre concessão de serviço público, função social e desenvolvimento, apropriando-se, de forma pontual, de alguns elementos de diferentes áreas do conhecimento, indiretamente relacionadas ao Direito, a fim de traçar algumas considerações sobre a aplicação destes Institutos. O interesse pelo assunto inspirou-se no, aparente, vazio conceitual de determinados bens jurídicos, que, por sua demasiada abrangência teórica, ou utilização desmesurada, muitas vezes inviabiliza sua aplicação concreta. Por tal razão pretende-se, também, através do presente trabalho buscar algumas respostas, de aplicação prática, sobre os Institutos da concessão de serviço público, função social, desenvolvimento e sustentabilidade. O enunciado “função social” pode ser analisado sob diversas perspectivas, sejam elas sociais, políticas, antropológicas, econômicas, enfim, é um tema que exige conhecimentos de diversas áreas. Ao tratar da função social da concessão do serviço público, abordou-se o tema sob a perspectiva jurídica, utilizando-se alguns conceitos de Economia já empregados pelo Direito. O termo “desenvolvimento”, objeto do presente estudo, é aquele relativo ao Desenvolvimento Nacional, institucionalizado no artigo 3º, da Constituição de 1988, como um dos objetivos da República Federativa do Brasil, cuja perspectiva jurídica é evidente. Não obstante sua natureza jurídica, foram utilizados alguns conceitos multidisciplinares, a fim de apresentar algumas noções sobre a aplicação concreta do mencionado preceito fundamental. 11 O presente trabalho possui quatro capítulos, quais sejam: o serviço público, o desenvolvimento, a função social da empresa, e a função social das prestadoras de serviço na promoção do desenvolvimento social e econômico. O primeiro capítulo busca desenvolver algumas noções de serviço público, os regimes jurídicos aplicáveis, o conceito de concessão de serviço público e algumas relações jurídicas entre o Poder Concedente e o Particular. O regime jurídico administrativo aplicado na Administração Pública foi analisado, especificamente no que se refere ao serviço público, bem como foi objeto de estudo a aplicação subsidiária de regime privado administrativo proposto por Romeu Felipe BACELLAR FILHO (2007, p. 102). No item referente à concessão de serviço público foram tratados alguns dispositivos constitucionais e infraconstitucionais atinentes ao tema, bem como os limites constitucionais de outorga do serviço público proposto por Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 636), a análise do regime jurídico aplicável nas relações provenientes da concessão, a prerrogativa do Poder Público de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares do contrato de concessão e as relações jurídicas existentes entre o Poder Concedente e o concessionário. No segundo capítulo foram abordadas algumas definições sobre desenvolvimento, o qual, segundo José Eli da VEIGA (1948, p. 17), possui três grandes correntes de interpretação. Uma que relaciona desenvolvimento com crescimento econômico; outra que representa uma corrente crítica ao desenvolvimento, por entender que é uma pretensão inexeqüível, utilizada pelos países ricos para semidesenvolvidos, desviar às o foco providências dos países realmente subdesenvolvidos importantes ao ou seu desenvolvimento; a terceira via é uma saída mediana aos dois argumentos anteriores, a qual inclui aspectos sociais no desenvolvimento. O item desenvolvimento sustentável representa, de certa forma, a “atualização” do conceito de desenvolvimento, fundamentado primordialmente nos seguintes aspectos: econômico, social e ambiental. Após a análise das noções de desenvolvimento, o último item do capítulo trata de sua institucionalização no ordenamento jurídico e apresenta algumas reflexões de Calixto SALOMÃO FILHO (2002, p. 41-56) para promoção do desenvolvimento através da cooperação entre o Poder Público e os cidadãos. 12 O terceiro capítulo refere-se à função social da empresa, cuja construção é feita através da análise da noção de empresa sob a perspectiva jurídicoeconômica, até o desenvolvimento da teoria do contrato organização. O penúltimo item tratou de fundamentar uma possível análise do contrato de concessão de serviço público pela teoria do contrato organização. Ao final do capítulo analisou-se a possibilidade de existência de função social da empresa e quais seriam seus limites. O último capítulo abordou todos os elementos apresentados nos capítulos anteriores, a fim de realizar a análise da existência ou não da função social da concessão do serviço público na promoção do desenvolvimento nacional sem comprometer os Direitos do particular titular da outorga. 13 2 SERVIÇO PÚBLICO 2.1 Noções de serviço público Dentre as tarefas mais árduas do Direito Administrativo sobressai a definição de serviço público1. Muito já se discutiu e ainda se discutirá, ao que parece, sobre o conceito dessa figura essencial para o Estado. Desde o seu surgimento, o fenômeno a que denomina serviço público tem gerado muito mais indagações do que respostas. Afirmar-se simplistamente que toda atividade levada a efeito pelo Estado seria serviço público2 há muito já se mostrou inútil e, pior, prejudicial para a busca de uma definição juridicamente adequada para tal Instituto. E assim é, especialmente porque, além da imprecisão e abrangência, o enunciado sofre direta influência das expansões e contrações da atividade estatal. A construção de um conceito universal de serviço público começa a ser possível somente a partir do momento em que a Doutrina passa a buscar traços comuns nas atividades desempenhadas pelo Estado, a fim de delinear conceituações a partir de similaridades juridicamente relevantes. Uma plausível análise relativamente ao serviço público leva à constatação de que sua conceituação pode ser embasada na descrição de um fato; fato aqui, no sentido de determinada atividade promovida direta ou indiretamente pelo Estado. A constatação do fenômeno serviço público está vinculada, assim como a de outros fenômenos igualmente relevantes para o Direito, a fatos; assim foi, por exemplo, com um dos grandes momentos na evolução do Direito Administrativo: a 1 Nesse sentido: ODETE MEDAUAR, CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, HELY LOPES MEIRELLES, MARIA SILVIA ZANELLA DI PIETRO, e outros. 2 Escola do Serviço Público, cujos defensores afirmavam que o serviço público representava praticamente toda a Administração Pública. 14 responsabilização do Estado3; a partir desse fato, a Doutrina desenvolveu profícuos estudos sobre a atuação da Administração Pública. A noção de serviço público reflete a forma de atuação do Estado, desse modo, seu estudo representa uma análise política da relação entre o Estado e os particulares. Adelaide Musetti GROTTI (2003, p. 87) define bem a relação política da atuação do Estado com a prestação de serviço público, ao defender que o povo de cada país determina o que é serviço público em seu ordenamento jurídico, e que a qualificação de determinada atividade como serviço público pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em determinado momento histórico (GROTTI, 2003, p. 87). Essa vinculação político-jurídica entre serviço público e vontade popular pode variar de acordo com o critério utilizado, pois é possível identificar a noção de serviço público com base em diversos de seus aspectos característicos. Diógenes GASPARINI (2004, p. 277), seguindo a doutrina tradicional, enfoca a noção de serviço público com base em três elementos característicos: orgânico, material e formal4. O aspecto orgânico ou subjetivo levaria a conceber o serviço público como extensão de um organismo público. Dessa forma, a identificação do serviço público vincular-se-ia à idéia de “um complexo de órgãos, agentes e meios do Poder Público” (GASPARINI, 2004, p. 277). Para GROTTI (2003, p. 43), o enfoque subjetivo tem ampla abrangência, visto que se reporta a todas as atividades realizadas pelo Poder Público. Assim, para se identificar um serviço como público, bastaria que tivesse como prestador uma pessoa pública. Em suma, a característica subjetiva trata da vinculação funcional direta da atividade à Administração Pública. Problema, todavia, de difícil solução é discernir das atividades que efetivamente se caracterizam como serviço público, aquelas que, embora exercidas pelo Poder Público, não sejam serviços públicos, tais como as funções legislativas e judiciárias. 3 Caso BLANCO, decisão paradigmática que tratou de uma ação de responsabilidade civil do Estado, em relação ao pedido de indenização formulado pelo pai da menina Agnes Blanco, atropelada por um vagão de trem pertencente ao Estado Francês, julgado pelo Tribunal de Conflitos em 08 de Fevereiro de 1873 4 O Autor define estes elementos característicos como sentidos. 15 A afirmação no sentido de que todas as atividades desenvolvidas pelo Estado seriam serviços públicos, além de absorver as atividades efetivamente relativas a serviço público e abarcar tantas outras que não o são, resulta em outro problema: torna discutível a caracterização da atividade na hipótese de outorga da execução de serviço público a particulares. Contudo, a característica orgânica ou subjetiva predominou durante o apogeu da teoria do serviço público na França, tanto na jurisprudência quanto na doutrina (GROTTI, 2003, p. 44). O século XX foi um período de surpreendentes mudanças. Contrapondo-se ao período Liberal, o Estado passou a intervir diretamente na Economia, sob a influência de economistas como John Maynard KEYNES, que defendiam a atuação do Estado na macroEconomia para realizar a manutenção do mercado. Desse modo, determinadas atividades econômicas que competiam exclusivamente aos particulares passaram a ser desempenhadas diretamente pelo Estado. Essa nova forma de atuação estatal aumentou significativamente a quantidade de órgãos públicos, tornando extremamente onerosa sua manutenção. O demasiado inchaço da máquina estatal culminou na “crise fiscal”, que a partir da década de 1970, propiciou um movimento de privatização e, pois, retração da esfera pública5. A partir desse novo panorama, a Doutrina Nacional6 buscou novos elementos para traduzir uma noção satisfatória de serviço público. O foco da definição de serviço público deixou de ser vinculação da atividade com o Poder Público, passando a ser aquelas atividades que tivessem por objeto a satisfação de necessidades ou interesses gerais, coletivos, públicos, de utilidade coletiva, etc. (GROTTI, 2003, p. 44-45). A característica material do serviço público, segundo BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 623-624) trata de prestações consistentes no oferecimento de utilidades ou comodidades materiais aos usuários em geral, que podem ser fruíveis singularmente, e que o Estado assume como próprias, por serem consideradas imprescindíveis, necessárias ou correspondentes a conveniências 5 Os instituto da concessão passou a ser utilizado de forma mais ampla, destaque-se que a concessão não era novidade à época, pois muito antes os serviços públicos eram outorgados pelo Poder Público. 6 Celso Antônio Bandeira de Mello, Marçal Justen Filho, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Hely Lopes Meirelles, etc. 16 básicas da sociedade em dado momento histórico, atividade prestada sob regime de Direito público, diretamente ou por meio de alguém qualificado para tanto. Assim, o aspecto material do serviço público refere-se àquelas atividades que tenham por finalidade satisfazer o interesse geral, ou até mesmo realizar as funções essenciais do Estado, sendo prestadas diretamente ou não. A crítica ao critério centrado na característica material incide justamente sobre a indefinição da expressão interesse público. Admitir que determinada atividade trata de serviço público justamente por atender aos interesses da sociedade não parece ser o critério mais adequado para atribuir status de serviço público. BANDEIRA DE MELLO (GROTTI, 2003, p. 50 apud 1991,p. 167 ) adverte que admitir status de serviço público exclusivamente a atividades que atendam às necessidades coletivas, repercutiria na aplicação do regime jurídico de Direito público sobre atividades que não guardam qualquer relação com a Administração Pública, pois se forem consideradas determinadas atividades como serviço público exclusivamente em razão de sua própria natureza, necessariamente prescindir-se-ia da previsão legal reconhecendo seu status de serviço público. Conforme BANDEIRA DE MELLO (GROTTI, 2003, p. 50 apud 1991,p. 167), tal conceituação não serve ao jurista, visto que o intérprete, juiz ou doutrinador, deve examinar o que a lei determina, e não o que a lei deveria determinar. Na mesma linha de raciocínio, GROTTI (2003, p. 49) argumenta que definir se determinada atividade está ou não de acordo com as necessidades e anseios da coletividade, não compete ao jurista, e sim ao economista, ao sociólogo, etc., em auxílio ao legislador, já que deve considerar aspectos que ainda não são jurídicos. Destarte, tais considerações teriam sua utilidade ao auxiliar o legislador na criação normativa e não posteriormente ao jurista ao aplicar a norma. Dessa forma, é possível concluir que a presença por si só do aspecto material não é suficiente para definir um serviço como público. Em contraposição ao aspecto material, o aspecto formal notabilizou-se por tratar de atividades sujeitas ao regime jurídico de Direito público. O critério formal também sofreu críticas. Eros Roberto GRAU (1998, p. 139-140) critica a definição de serviço público pelo substrato formal, por sua impropriedade semântica. Segundo esse critério, serviço público é conceituado como atividade sujeita a regime de serviço 17 público, ocorre que a atividade está sujeita a regime de serviço público porque é serviço público, e não ao contrário. Não se pode conceituar um objeto pelo seu efeito, mas sim pelos traços que o caracterizam, os quais, em se tratando de Instituto jurídico, devem necessariamente ter base normativa. O critério formal ainda considera que nem toda atividade submetida a regime de Direito público representa serviço público, pois existem atividades que se submetem a regime jurídico de Direito público, contudo não são abrangidas por esse regime (Carlos Alberto Martins RODRIGUES, 1981, p. 143). Por outro lado, existem atividades que se sujeitam a normas que integrariam o chamado regime de Direito privado, no entanto são considerados como serviços públicos (GROTTI, 2003, p. 52). Não é, enfim, recomendável que se busque sempre identificar um determinado regime como de Direito público ou de Direito privado, e sempre, e só, ou um ou outro. O que há efetivamente são situações concretas que repercutem sobre interesses jurídicos, daí a necessidade de se identificar os comandos normativos que sobre tal situação incide; ao se identificar tais comandos, identifica-se o tratamento jurídico pertinente e, pois, o regime jurídico próprio daquela situação concreta. Falar-se em regime jurídicoadministrativo é, portanto, muito mais apropriado do que continuar-se a utilizar as vetustas expressões regime público e regime privado. O estudo dos três aspectos desenvolveu-se por um processo de superações, consoante GROTTI (2003, p. 45), em princípio o aspecto orgânico foi utilizado para definir serviço público, restando superado pelo aspecto material, a partir do momento em que o Estado passou a transferir a execução de algumas atividades a particulares. Finalmente, a concepção material foi substituída pela concepção formal que definiu o conceito de serviço público pela aplicação do chamado regime jurídico de Direito público. Ocorre que esse critério também foi superado, porque aplicado isoladamente não é suficiente para fornecer definição jurídica segura para serviço público. A saída encontrada pela Doutrina nacional foi mesclar duas das concepções, ou até mesmo as três, para propor noções de serviço público7. 7 Nesse sentido, Celso Antonio Bandeira de Mello, Maria Zanella Di Pietro, Luiz Alberto Blanchet, Odete Medauar e outros. 18 Hely Lopes MEIRELLES (1989, p. 289) conceitua serviço público, como toda atividade prestada diretamente pela Administração Pública ou por seus delegados, para satisfazer necessidades “essenciais ou secundárias” da coletividade, ou simples conveniência do Estado, sob normas e controles estatais. Segundo o Autor, serviços essenciais são aqueles necessários para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado8; tais atividades somente poderiam ser prestadas diretamente pelo Estado, pois exigem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados (MEIRELLES, 1989, p. 289). Por outro lado, os serviços secundários seriam aqueles que objetivam “facilitar a vida do indivíduo na coletividade”, colocando à disposição do usuário utilidades que lhe proporcionarão mais conforto e bem-estar9, podendo ser prestado por particulares mediante remuneração (MEIRELLES, 1989, p. 290). Apesar da caracterização marcantemente material, MEIRELLES (1989, p. 289) ressalta que não é a atividade em si que tipifica o serviço público, mas sim a vontade soberana do Estado. Assim, o Autor apresentou um conceito híbrido unindo as características formal e material. Ocorre que o conceito de serviço público apresentado por MEIRELLES é demasiadamente amplo, visto que não distingue função legislativa e judiciária do Estado e poder de polícia entre outras atividades não consideradas como serviço público. Luiz Alberto BLANCHET (2004, p. 55) é mais preciso em seu conceito de serviço público. O Autor leciona que serão considerados serviços públicos aquelas atividades que sejam assim consideradas por força de normas constitucionais ou legais, podendo ser prestadas diretamente pelo Estado ou por aqueles a quem foi outorgada a execução, ainda que nem a Constituição nem a lei tenham sequer utilizado a expressão serviço público, pois o que interessa é a essência e não o rótulo. Contudo, a atividade submete-se permanentemente ao regime jurídico-administrativo, visando à satisfação de necessidades ou criação de utilidades de interesse coletivo. Tal definição conjuga os critérios formal e material, remetendo ao legislador a competência para determinar a materialidade do que será considerado serviço público. 8 9 Atividades como defesa nacional, polícia, preservação da saúde pública, etc. Tais como: transporte coletivo, energia elétrica, gás, telefone, etc. 19 O Autor vincula as atividades relativas ao serviço público à determinação da Constituição e das leis, podendo ser executadas pelo Estado ou por particulares. O Autor corresponde à parte da Doutrina10 que vincula a atividade administrativa aos ditames normativos, tendo por base maior as normas constitucionais, porém, define o objeto do serviço público como aquelas atividades relativas à satisfação de necessidades ou à criação de utilidades de interesse coletivo. Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2006, p. 114) afirma que a materialidade da atividade considerada como serviço público decorre de lei, cujo objetivo é a satisfação das necessidades coletivas, sendo prestado diretamente pelo Estado ou por seus delegados, podendo ainda ter regime jurídico total ou parcialmente público. Além de determinar objetivamente o que é interesse público, a Autora considera necessária a determinação legal, admitindo que o serviço público não se submete apenas a regime jurídico público, mas também a regime privado. O enfoque de DI PIETRO corrobora a superação da clássica dicotomia do Direito, público e privado, e converge para o posicionamento de Celso Antônio que alude a regime jurídico-administrativo e não a regime de Direito público. Do mesmo modo, tal afirmação exerce impacto em relação aos pilares mais profundos do ordenamento jurídico, pois é possível admitir regime jurídico híbrido de determinadas atividades consideradas como serviço público; ao se utilizar o termo, faz-se apenas para facilitar o entendimento, pois seu sentido pressuporia a existência dos dois domínios – Direito público e Direito privado. O regime jurídico do serviço público repercute também, naturalmente, no regime jurídico das prestadoras do serviço, e este é um dos pontos fundamentais para os fins do presente estudo, pois é um dos elementos que vai determinar a abrangência11 da função social da empresa. JUSTEN FILHO (2006, p. 487), por outro lado, salienta que o escopo do serviço público é a satisfação de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um Direito fundamental, sob regime de Direito público. JUSTEN FILHO (2006, p. 487) fundamenta ainda que 10 Neste sentido Romeu Felipe Bacellar e Marçal Justen Filho. O termo abrangência foi adotado para determinar o tratamento jurídico das prestadoras de serviço público e seu regime jurídico, pois, em se tratando de regime jurídico público, possui tratamento diferenciado. 11 20 é uma atividade pública e administrativa, pois é de titularidade exclusiva do Estado podendo sua execução ser outorgada a particulares. O raciocínio pressupõe naturalmente a competência constitucional, de que é titular o Estado, para promover a realização dos Direitos fundamentais, e se cinge ao âmbito da atividade administrativa, excluídas, portanto, as funções legislativa e jurisdicional. A inovação trazida pelo Autor foi vincular a materialidade do serviço público à concretização de um Direito fundamental e não a um interesse coletivo. Ao realizar uma análise perfunctória constata-se que determinados serviços públicos não guardam vinculação direta com Direitos fundamentais, como ocorre com os serviços de: loteria federal e esportiva, dragagem, etc. Ademais, ao se vincular diretamente um interesse a um Direito fundamental pode-se muitas vezes incorrer em considerações objetivamente vazias, visto que não são raros os Direitos fundamentais cujo alcance atinge amplitude tal que, não raro costeia a fluidez 12. BANDEIRA DE MELLO (2003, p. 620) é mais preciso em sua definição, pois limita-se àquelas atividades que oferecem utilidades ou comodidades materiais, cujo objetivo é a satisfação da coletividade em geral, podendo ser prestado diretamente ou indiretamente, sob regime de Direito administrativo, tutelando interesses de natureza pública por definição expressa ou implícita do ordenamento jurídico. O conceito apresentado é mais preciso quanto à definição de serviço público. Tal conceito será utilizado como “definição orientadora” de serviço público, com a utilização maior ou menor dos conceitos trazidos por outros Autores. Contudo, há que se ponderar alguns aspectos de alta relevância jurídica acerca da noção de serviço público. Em primeiro lugar, o serviço público possui fluidez conceitual inerente à sua própria natureza. A atividade estatal denominada “serviço público”, nada mais é do que a manifestação das opções políticas de um determinado Estado em determinada época. Desse modo, a apresentação de um conceito universal de serviço público subsiste apenas até o momento que se apresente um novo conceito, ou seja, a definição de serviço público está sujeita a constantes 12 Direitos fundamentais como: dignidade da pessoa humana, Direito de liberdade, Direito à educação, Direito à saúde, etc. 21 modificações, aprimorando-se de acordo com a evolução do Estado e da sociedade. Outra situação relativa à definição de serviço público é a incapacidade do jurista, ou operador do Direito, em determinar o conteúdo material de interesses público, coletivo, local, etc. Tal atribuição compete ao sociólogo, ao antropólogo, ao economista, cuja orientação permitirá ao político definir quais atividades serão consideradas serviço público (GROTTI, 2003, p. 49). O jurista passa a analisar a partir da incorporação da atividade no ordenamento jurídico. Diante da remessa de competência da Constituição ao legislador infraconstitucional em definir o que é serviço público, a Doutrina13 constatou que determinadas atividades possuem regime jurídico misto, ora público, ora privado. Veja-se como exemplo a concessão de serviço público. O regime jurídico da prestação do serviço público é de Direito público, mas os contratos firmados com a concessionária relativos à prestação do serviço são de natureza privada14. Dessa ponderação é possível afirmar que, em tese, cada serviço público possui regime jurídico diferente, devendo cada delegação ser analisada de acordo com suas peculiaridades. Nesse sentido, determinado serviço público “A” diante de suas peculiaridades admite a aplicação de princípios ou normas de Direito privado, como exemplo o Código de Defesa do Consumidor15, por outro lado, determinado serviço público “B”, não admite a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, mas sim a Lei de Transporte Rodoviário de Cargas, que possui natureza mercantil (comercial)16. Tal situação já reflete a complexidade dos regimes jurídicos híbridos, denominado por BACELLAR FILHO (2007, p. 102) de Direito privado administrativo, presentes nos casos demonstrados. Dessa forma, o regime jurídico do serviço público deve ser analisado de acordo com as peculiaridades de cada atividade de acordo com a evolução da função administrativa do Estado, bem como da sociedade. 13 Marçal Justen Filho e Maria Zanella di Pietro. Neste sentido, têm-se as operadoras de telefonia móvel, em que a relação jurídica entre o usuário e o concessionário é natureza de Direito privado, em que pese à regulação por agências. 15 Nesse sentido o serviço de telefonia. 16 Nesse sentido o transporte de derivados de petróleo. 14 22 2.2 Finalidade da conceituação de serviço público O estudo sobre o conceito de serviço público é fundamental para identificar qual o regime jurídico incide sobre a atividade. Principalmente em relação àqueles serviços públicos outorgados a particulares, cujo regime jurídico definirá a incidência das normas e princípios orientadores correlatos. Esta avaliação (aplicação de regime jurídico correspondente) possui influência direta na tomada de decisão sobre a forma de gestão do particular, do serviço público e do usuário. Em outras palavras, o regime jurídico definirá os princípios a serem utilizados na elaboração de regras procedimentais na consecução ao bom funcionamento do serviço público, orientará a forma de tratamento ao usuário, o regime de responsabilidade do particular titular da outorga, o regime tarifário, a qualidade do atendimento ao usuário, etc. Uma vez definido o regime jurídico aplicável ao serviço público as regras e princípios oriundos desse regime aplicam-se de forma sistêmica. Assim, determinadas obrigações decorrentes do regime jurídico adotado, os quais necessariamente não possuem relação direta com o serviço prestado, devem ser considerados na gestão da execução do serviço público. Tome-se, por exemplo, a maior vinculação do particular prestador de serviço público ao desenvolvimento nacional, um dos objetivos fundamentais da República do Brasil, na hipótese de regime de Direito público. Do mesmo modo, no caso de regime de Direito privado a utilização de valores na interpretação dos contratos como a prevalência da intenção sobre a forma nas declarações de vontade, conforme o artigo 112, do Código Civil. Além da verificação do regime jurídico aplicável sobre o serviço público em questão devem ser consideradas também aquelas outras obrigações, não diretamente relacionadas com a prestação do serviço, que devem ser consideradas de acordo com o regime jurídico adotado. Ao se afirmar que determinada atividade submete-se a regime de Direito público, é interpretar e aplicar regras e princípios decorrentes desse regime, contudo, ao verificar a existência de regime de Direito privado, é interpretar e aplicar regras e princípios decorrentes desse outro regime. 23 Não obstante a aparente contradição da aplicação de dois mundos tão distintos (público e privado) sobre um único objeto (o serviço público outorgado), o ordenamento jurídico é um sistema constitucional, portanto, os dois regimes jurídicos devem coexistir de forma harmônica (BACELLAR FILHO, 2007, p. 81). O serviço público, consoante demonstrado anteriormente, possui grande indefinição conceitual, todavia, o que se percebe é que não é apenas o conceito de serviço público que se encontra em questionamento, a própria noção de Direito público e Direito privado encontram-se em crise. A definição do regime jurídico do serviço público outorgado pela Administração é um instrumento importante para analisar a relação dessas empresas com o desenvolvimento, sustentabilidade e responsabilidade social. É importante destacar que as empresas que executam serviços públicos em nome do Estado possuem função social ainda maior do que as empresas privadas sem nenhuma relação com a Administração, pois, além da universalização do serviço público ser considerada como instrumento de realização de Direitos fundamentais, a aplicação conjunta da natureza jurídica privada e pública admite uma nova perspectiva do sistema jurídico brasileiro. Contudo admitir uma natureza jurídica “mista” do serviço público outorgado não é das tarefas mais simples, prescinde de análise dos aspectos de cada regime jurídico. 2.2.1 Regime jurídico administrativo O Direito público é um grande ramo do Direito, abrangendo uma série de outros ramos de estudo. Basicamente refere-se a determinados bens jurídicos submetidos à tutela específica em razão da valoração imposta pelo ordenamento jurídico. Esses bens jurídicos com especial tutela do Estado possuem normas próprias tais como: Direito penal, Direito internacional, Direito do trabalho, Direito tributário, Direito administrativo, Direito constitucional, Direito militar, etc. 24 Evidentemente que apesar desses ramos do Direito pertencerem ao mesmo grande grupo, Direito Público, possuem regras e princípios específicos e distintos entre si. Com base nessa observação, BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 45-50) corretamente delimitou o sistema jurídico relativo à função administrativa do Estado ao regime jurídico-administrativo; afirma que justamente esse conjunto de normas e princípios é que lhe conferem identidade: Diz-se que há uma disciplina jurídica autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e normas que lhe dão identidade, diferenciando-as das demais ramificações do Direito. Só se pode, portanto, falar em Direito Administrativo, no pressuposto de que existam princípios que lhe são peculiares e que guardem entre si uma relação lógica de coerência e unidade compondo um sistema ou regime: o regime jurídico-administrativo. A farta e excelente bibliografia internacional de Direito Administrativo não tem, infelizmente, dedicado de modo explícito atenção maior ao regime administrativo, considerado em si mesmo, isto é, como ponto nuclear de convergência e articulação de todos os princípios e normas de Direito administrativo. Quer-se com isto dizer que, embora seja questão assente entre todos os doutrinadores a existência de uma unidade sistemática de princípios e normas que formam em seu todo o Direito Administrativo, urge incrementar estudos tendentes a determinar, de modo orgânico, quais são abstratamente os princípios básicos que o conformam, como se relacionam entre si e quais os subprincípios que deles derivam. Pretende-se que é instrumento útil para evolução metodológica do ramo do Direito Administrativo considerar o regime administrativo enquanto categoria jurídica básica, isto é, tomado em si mesmo, ao invés de considerá-lo apenas implicitamente, como de hábito se faz, ao tratá-lo em suas expressões específicas consubstanciadas e traduzidas nos diferentes institutos. Acredita-se que o progresso do Direito Administrativo e a própria análise global de suas futuras tendências dependem, em grande parte, da identificação das idéias centrais que o norteiam na atualidade, assim como da metódica dedução de todos os princípios subordinados e subprincípios que descansam, originariamente, nas noções categorias que presidem sua organicidade. O que importa sobretudo é conhecer o Direito Administrativo como um sistema coerente e lógico, investigando liminarmente as noções que instrumentalizam sua compreensão sob uma perspectiva unitária. É oportuno aqui recordar as palavras de Geraldo Ataliba: “O caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos cerca e o caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as realidades que pretende estudar, sob critérios unitários, de alta utilidade científica e conveniência pedagógica, em tentativa de reconhecimento coerente e harmônico da composição de diversos elementos em um todo unitário, integrado em uma realidade maior.” “A esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina sistema.” A este sistema, reportado ao Direito administrativo, designamos regime jurídico-administrativo. 25 O regime jurídico-administrativo na qualidade de sistema específico, coerente e harmônico com o ordenamento jurídico, possui como fundamentos dois princípios primordiais que lhe conferem a identidade proposta por BANDEIRA DE MELLO, quais sejam: supremacia do interesse público sobre o privado; indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos. Nesse ponto, é necessário fazer uma ressalva. O “interesse público” apresentado nesses princípios possui característica instrumental diferente do “interesse público” utilizado para definir o serviço público anteriormente analisado. O “interesse público” relativo ao serviço público refere-se a um interesse coletivo promovido pelo Poder Público na realização de atividades que geram facilidades e comodidades à Sociedade. O papel do Instituto jurídico do “interesse público” nesse caso é instrumental, mas a definição material do que é “interesse público” cabe ao legislador. Por outro lado, o “interesse público” relativo aos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade dos interesses públicos possui abrangência ainda maior, pois trata da relação do indivíduo perante a Administração Pública. Segundo BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 52/53) é um interesse geral singularmente considerado: O que fica visível, como fruto destas considerações, é que existe, de um lado, o interesse individual, particular, atinente às conveniências de cada um no que concerne aos assuntos de sua vida particular – interesse, este, que é da pessoa ou grupo de pessoas singularmente consideradas -, e que, de par com isto, existe também o interesse igualmente destas mesmas pessoas ou grupos, mas que comparecem enquanto partícipes de uma coletividade maior na qual estão inseridos, tal como nela estiveram os que os precederam e nela estarão os que virão a sucedê-los nas gerações futuras. Pois bem, é este último interesse o que nomeamos de interesse do todo ou interesse público. Não é, portanto, de forma alguma, um interesse constituído autonomamente, dissociado do interesse das partes e, pois, passível de ser tomado como categoria jurídica que possa ser erigida irrelatadamente aos interesses individuais, pois, em fim de contas, ele nada mais é que uma faceta dos interesses dos indivíduos: aquela que se manifesta enquanto estes – inevitavelmente membros de um corpo social – comparecem em tal qualidade. Então, dito interesse, o público – e esta já é uma primeira conclusão -, só se justifica na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro. Logo, é destes que, em última instância, promanam os interesses chamadas públicos. 26 Dessa definição, é possível concluir duas situações: o interesse público prevalece sobre o privado, uma vez que possui como fundamento o interesse individual, mesmo que contrarie um interesse pessoal, de manutenção do corpo social ou coletivo; o interesse público representa os interesses do Estado. BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 58) ressalva que suas considerações sobre interesse público constituem apenas uma referência sobre sua estrutura, e que caberia ao Direito Positivo qualificar os diversos interesses como públicos. No mesmo sentido, entende-se que cumpre ao político a análise do que se considera interesse público, ao jurista cabe o papel de analisar o Direito. Com base nessas considerações é possível identificar o conteúdo jurídico dos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade dos interesses públicos. O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, como o próprio nome diz, trata da prevalência do interesse coletivo sobre o individual na hipótese de embate entre os dois interesses (GASPARIN, 2004, p. 19). A tutela diferenciada segundo Luiz Alberto BLANCHET (2004, p. 12), não contraria o princípio da isonomia nem suprime o interesse privado, ao contrário, a supremacia do interesse público decorre do princípio da isonomia, pois a igualdade se aplica proporcionalmente de acordo com as peculiaridades de cada um: “o titular do interesse público apresenta peculiaridades juridicamente diferentes do titular do interesse privado.” Desse modo, não há incompatibilidade nenhuma desse princípio com o ordenamento jurídico. BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 60-64) apresenta duas conseqüências ou princípios subordinados: posição privilegiada de zelar pelo interesse público nas relações com os particulares; supremacia em relação ao particular. A primeira refere-se aos instrumentos que a Administração Pública possui a fim de assegurar o bom desempenho na proteção dos interesses públicos em relação aos particulares, tais como: fé-pública; prazos processuais maiores em relação aos particulares; prazos especiais para prescrição em que é parte o Poder Público; inversão de ônus da prova; etc. (BANDEIRA DE MELLO, 2004, p. 61). A segunda refere-se à Autoridade que a Administração Pública possui perante os particulares, relativa aos atos de gestão dos interesses públicos em conflito com os interesses privados, tais como: constituir obrigações perante os 27 particulares de forma unilateral; modificar relações já estabelecidas de forma unilateral; etc. (BANDEIRA DE MELLO, 2004, p. 61). A supremacia do interesse público sobre o privado visa tão-somente tutelar interesses da coletividade, possuindo tratamento diferenciado e Autoridade perante os particulares. A indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos trata a impossibilidade da Administração Pública, ou quem quer que seja, de dispor dos interesses ditos públicos, por serem inapropriáveis. Conforme BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 65): “Em suma, o necessário – parece-nos – é encarecer que na administração os bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador”. A titularidade dos interesses públicos é do Estado e não da Administração. O Estado exerce a tutela dos interesses públicos por meio de sua função administrativa, mas dispõe sobre estes interesses pela ordem legal. Decorrentes da indisponibilidade dos interesses públicos, BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 65-66) aponta alguns princípios necessários para a realização das finalidades pretendidas: a) da legalidade, com suas implicações ou decorrências; a saber: princípios da finalidade, da razoabilidade, de proporcionalidade, da motivação e da responsabilidade do Estado; b) da obrigatoriedade do desempenho de atividade pública e seu cognato, o princípio da continuidade do serviço público; c) do controle administrativo ou tutela; d) da isonomia, ou igualdade dos administrado em face da Administração; e) da publicidade; f) da inalienabilidade dos Direitos concernente a interesses públicos; g) do controle jurisdicional dos atos administrativos. O regime jurídico-administrativo possui como base estrutural a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade dos interesses públicos e dos princípios decorrentes. Contudo, esses princípios não encerram a totalidade dos princípios a serem considerados no regime jurídico-administrativo, especialmente em relação ao serviço público prestado por particulares. 28 A Constituição da República em seu artigo 17517 determina expressamente que o Poder Público determinará, nos termos da Lei, o regime das empresas concessionárias. O comando prescrito no artigo supra-citado, além de remeter à competência de definição do regime jurídico dos concessionários, Autoriza que o seja feito por normas infra-constitucionais, agências reguladoras e poder de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares do contrato de concessão. O fato de o serviço público ser executado por particular não lhe retira a natureza nem a titularidade do Poder Público, vinculando-o aos comandos do 3718da artigo Constituição da República aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Dessa forma, há vinculação constitucional expressa das empresas particulares que possuem a outorga, e não a titularidade, da prestação do serviço público ao regime jurídico–administrativo. Além dos princípios próprios do Direito administrativo, a função administrativa do Estado deve estar de acordo com os comandos constitucionais, tais como os objetivos fundamentais da República positivados no artigo 3º da Constituição da República como: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Estes princípios possuem aplicação imediata e eficácia vertical em relação à prestação do serviço público (Ingo Wolfgang SARLET, 2001, p.242). Apesar da natureza jurídica privada, os concessionários do serviço público não deixam de possuir maior vinculação no cumprimento da função social decorrente de comandos constitucionais explícitos e implícitos em relação a empresas privadas que não possuem vinculação com o Poder Público. 17 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; 18 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 29 É claro que a Administração Pública não pode transferir ao particular titular da outorga a tarefa de promover justiça social por meio da função social. O poder de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares do Poder Concedente deve estar respaldado aos princípios do Estado Democrático de Direito e ao Direito do outorgado em restabelecer o equilíbrio financeiro do contrato. 2.2.2 Regime jurídico privado Conforme os ensinamentos de BACELLAR FILHO (2007, p. 80-87), não é exclusividade do Direito público sofrer inúmeros questionamentos acerca de sua definição, o Direito privado também padece de crise conceitual. Segundo o Autor, um dos fatores responsáveis pela crise da dicotomia Direito privado e público é a adoção do conceito de supremacia da Constituição e a sua penetração em toda a malha do ordenamento jurídico (BACELLAR FILHO, 2007, p. 81). Em contraposição ao individualismo e materialismo do Código Civil de 1916, o atual Código Civil e diversas leis esparsas possuem direta relação com os princípios e valores introduzidos pela Constituição de 1988, fenômeno denominado “constitucionalização do Direito Civil”. A introdução de valores no Direito Civil em contraposição ao materialismo do início do século XX modificou profundamente as relações contratuais civis do ordenamento jurídico brasileiro, tais como: boa-fé19; prevalência da intenção sobre a forma nas declarações de vontade20; validade dos atos atrelada à ordem pública, bons costumes e inocorrência de arbítrio21; inversão do ônus da prova em relação à parte hipossuficiente22, etc. Renato ALESSI (1978, p. 18 apud BACELLAR, 2007, p. 97) apresenta duas diferenças básicas entre os regimes jurídicos público e privado. A primeira referese à natureza distinta dos dois regimes, submetendo-se a sistemas de regras e 19 Código Civil arts. 113, 187, e 422. Código Civil art. 112. 21 Código Civil art. 122. 22 Código de Defesa do Consumidor art. 6º. 20 30 princípios independentes entre si. No entanto, admite a possibilidade de a Administração Pública aplicar de forma excepcional normas disciplinadoras de Direito Privado. A segunda diferenciação refere-se aos “princípios inspiradores dos dois ordenamentos, ligados à diversidade de natureza e de posição jurídica dos sujeitos.” (1978, p. 18-19 apud BACELLAR FILHO, 2007, p. 97). A diferença entre o status dos sujeitos também decorre do regime jurídico aplicável à espécie. No Direito Privado, o tratamento dos sujeitos se baseia na igualdade jurídica, que por meio do sistema normativo admite a prática de tratamento diferenciado perante uma das partes a fim de sujeitá-los à igualdade material. Em contrapartida, o Direito Público está calcado na superioridade do sujeito público em relação ao sujeito privado. Esse tratamento desproporcional traduz-se na superioridade de valores ou de interesses (públicos ou coletivos) e nas prerrogativas instrumentais para a sua consecução. Contudo, consoante ALESSI, a Administração Pública nem sempre se encontra em posição de supremacia, e excepcionalmente pode se submeter aos princípios de Direito privado. Porém, esse regime de Direito privado não é idêntico ao regime aplicado entre particulares sustenta Maria João ESTORNINHO (1996, p. 351 apud BACELLAR FILHO, 2007, p. 102), pois os limites da aplicação dos Direitos público e privado já não subsistem devendo a Administração Pública aplicá-los de forma conjugada em cada caso. Segundo ESTORNINHO (1996, p. 360 apud BACELLAR FILHO, 2007, p. 103), dois movimentos contribuíram para essa situação: a publicização do Direito privado (causado pela invasão do Direito Público nos mais variados setores da vida social) e a privatização de setores administrativos (alargamento da Administração Pública sob formas jurídico-privadas). Dessa forma é possível admitir o tratamento jurídico privado em relações jurídicas de cunho eminentemente de Direito público, uma vez que a dicotomia do Direito entre privado e público já demonstra sinais de superação, se é que já não se pode afirmar que resta superado. 31 2.3 Concessão de serviço público 2.3.1 Conceito O artigo 175, da Constituição da República determina que a prestação do serviço público deve ser feita diretamente ou sob regime de concessão ou permissão23, entretanto não apresenta uma definição conceitual do que seja o regime de concessão de serviço público, atribuição reservada à norma infraconstitucional. Somente em 1995, foi suprimida a ausência de norma infraconstitucional, pela Lei 8.987/95, que regulamentou os Institutos da permissão e concessão de serviço público. O artigo 2º, da Lei de Concessões, introduziu alguns conceitos para análise24. De acordo com o inciso I, do artigo 2º, da Lei de Concessões, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem outorgar a prestação de serviços públicos mediante concessão ou permissão, precedidos ou não de obras 23 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os Direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado. 24 Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se: I - poder concedente: a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município, em cuja competência se encontre o serviço público, precedido ou não da execução de obra pública, objeto de concessão ou permissão; II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado; III - concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado; IV - permissão de serviço público: a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco. 32 públicas, desde que o respectivo Ente possua a correspondente titularidade sobre o serviço. A Lei de Concessões ao definir os sujeitos titulares da outorga limita a atuação do legislador infraconstitucional às competências impostas pela Constituição da República. Desse modo, somente o que a Constituição prescreve como serviço público é passível de outorga a particulares. BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 636) sustenta que a Constituição da República define a prestação do serviço público consoante a competência. Que podem ser determinadas pelas seguintes categorias: (i) serviços de prestação obrigatória e exclusiva do Estado; (ii) serviços de prestação obrigatória do Estado e em que é também obrigatório outorgar em concessão a terceiros; (iii) serviços de prestação obrigatória pelo Estado, mas sem exclusividade; (iv) serviços de prestação não obrigatória pelo Estado, mas não os prestando é obrigado a promover-lhes a prestação, tendo, pois, que outorgá-los em concessão ou permissão a terceiros. Os serviços de prestação obrigatória e exclusiva do Estado são aqueles que não podem ser objeto de outorga (BANDEIRA DE MELLO, 2004, p. 637). São apenas duas hipóteses: serviço postal e correio aéreo nacional. A exclusividade ocorre pelo fato das atividades referidas não estarem elencadas no rol do inciso XII, do artigo 21, da Constituição da República25. 25 Art. 21. Compete à União: ...omissis... X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional; XI - explorar, diretamente ou mediante Autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:) XII - explorar, diretamente ou mediante Autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:) b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária; d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; f) os portos marítimos, fluviais e lacustres; ...omissis... XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional; 33 Os serviços em que o Estado tem a obrigação de prestar e de conceder, mediante concessão, permissão e Autorização, trata da observância do princípio da complementariedade previsto no artigo 223, da Constituição da República26, abrangendo os serviços de radiodifusão sonora ou de sons e imagens (BANDEIRA DE MELLO, 2004, p. 637). Conforme o próprio dispositivo legal determina, necessariamente, a outorga do serviço deve observar os sistemas privado, público e estatal, sob pena de não produzir efeitos legais. Os serviços que o Estado tem obrigação de prestar, mas sem exclusividade de terceiros mediante concessão, permissão e Autorização (BANDEIRA DE MELLO, 2004, p. 636-637) são: (i) de educação27; (ii) de saúde28; (iii) de previdência social29; (iv) de assistência social30; (v) de radiodifusão sonora e de sons e imagens31. Além da obrigatoriedade do Estado em desempenhar as atividades relativas a esses Direitos constitucionalmente consagrados, são livres à atividade privada sem exclusividade na sua prestação. Os serviços que o Estado não é obrigado a prestar, mas, não os prestando, terá de promover-lhes a prestação, mediante concessão ou permissão (BANDEIRA DE MELLO, 2004, p. 637). Os serviços referentes a esta categoria são os de telecomunicações, conforme o inciso XI, do artigo 21 da Constituição da República. Com base no edificante ensinamento de BANDEIRA DE MELLO, é possível traçar os limites da abrangência do Poder Público em outorgar o serviço público, bem como analisar as situações em que sua outorga é obrigatória. O inciso II, do artigo 2º, da Lei 8987/95, apresenta o conceito de serviço público passível de outorga o que torna possível extrair suas principais características: a existência de um poder concedente; a obrigatória submissão de b) sob regime de permissão, são Autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006) c) sob regime de permissão, são Autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006) d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006) 26 Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e Autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. 27 Artigos 205, 208, 211 e 213, da Constituição da República. 28 Artigos 196 e 197, da Constituição da República. 29 Artigos 201 e 202, da Constituição da República. 30 Artigos 203 e 204, da Constituição da República. 31 Artigo 223, da Constituição da República. 34 licitação na modalidade de concorrência para a outorga do serviço público, o que indica a formalização por instrumento contratual submetendo-se aos preceitos legais relativos à espécie (MEDAUAR, 2000, p. 375); o outorgado pode ser pessoa jurídica ou consórcio que demonstrem capacidade para seu desempenho; a atividade correrá por conta e risco do outorgado; o contrato de outorga do serviço público determinará prazo para o seu término. Objetivamente, o conceito de serviço público, segundo o dispositivo legal, não traz grande contribuição para a análise desse Instituto, que necessariamente prescinde de uma leitura sistêmica de acordo com o ordenamento jurídico. A concessão de serviço público, conforme BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 652), pode ser definido da seguinte forma: Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceite prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço. A exploração econômica da atividade é imprescindível para a caracterização da concessão de serviço público, sem a remuneração pela sua execução trataria de outro Instituto. Todavia, um dos aspectos da contraprestação pela remuneração do serviço público é assumir os riscos da atividade, que possui um complexo sistema de princípios e regras a serem cumpridos, bem como da submissão ao Poder Concedente o poder de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares do contrato de concessão de serviço público. Por outro lado, o titular da outorga possui o contrato de concessão ou permissão32 que é uma garantia para evitar “abusos” do poder concedente em relação à prestação da atividade, sendo um de seus principais recursos a restauração do equilíbrio econômico. A busca da eficiência da Administração Pública é uma das finalidades do Instituto de outorga do serviço público. A transferência da prestação do serviço público, sob a titularidade do Estado, possui vários fundamentos, dentre elas a crença de que os entes privados possuem maior eficiência na consecução de 32 O contrato de permissão possui diferenças em relação ao contrato de concessão principalmente em relação à sua precariedade. 35 uma atividade. Desse modo, a finalidade última da concessão é a melhor prestação do serviço público à comunidade. Ao analisar o Instituto da outorga com maior profundidade, é possível perceber a existência de um certo grau de incompatibilidade do interesse público com a assunção do risco da atividade pelo titular da outorga. É correto afirmar que um dos riscos da outorga do serviço público é a inviabilidade financeira da atividade e a conseqüente interrupção da prestação do serviço, que resultaria em diversos prejuízos à coletividade. Logo, não seria absurdo admitir a possibilidade de haver interferência do Poder Concedente no sentido de subsidiar parte do custo da atividade, a fim de que o interesse da coletividade seja resguardado. JUSTEN FILHO (2003, p. 96) defensor do subsídio estatal nas outorgas de serviço público, conceitua o Instituto da seguinte forma: Concessão de serviço público é um contrato plurilateral, por meio do qual a prestação de um serviço público é temporariamente delegada pelo Estado a um sujeito privado que assume seu desempenho diretamente em face dos usuários, mas sob controle estatal e da sociedade civil, mediante remuneração extraída do empreendimento, ainda que custeada parcialmente por recursos públicos. Da definição apresentada pelo Autor, é possível abstrair três aspectos distintos do conceito apresentado por BANDEIRA DE MELLO. A primeira refere-se aos sujeitos envolvidos no contrato de prestação de serviço público. Consoante JUSTEN FILHO (2003, p. 61-63) a participação da Sociedade Civil na discussão dos termos do contrato de outorga trata promoção da participação democrática de uma das partes interessadas na concessão do serviço público. Ressalva que não se trata de atribuir status diferenciado da Sociedade Civil como uma espécie de “curadora” da Administração Pública, nem submeter a validade dos atos administrativos do Poder Concedente a uma “chancela popular”, mas sim propiciar a participação da Sociedade como um dos componentes interessados na prestação do serviço público afim de trazer ao Instituto da delegação maior participação da comunidade e o aumento da sensação de realização do bem-comum. 36 O segundo aspecto trata do controle da Sociedade Civil no desempenho da prestação do serviço público, que possui diversos instrumentos jurídicos para desempenhar tal controle. O terceiro aspecto, já mencionado, relaciona-se ao subsídio Estatal na atividade delegada, a fim de que não haja maiores prejuízos por parte do Estado e da coletividade na eventual não realização do serviço público pelo fracasso financeiro da empresa delegada. JUSTEN FILHO (2004, p. 96) ressalta que o conceito apresentado indica um gênero que contempla várias espécies, por exemplo: a concessão de serviço precedido de obra pública33, concessão de exploração de obra pública a ser edificada, concessão de exploração de obras já existentes. No presente trabalho não se pretende apresentar um rol taxativo das espécies de concessão de serviço público, mas sim analisar as regras gerais sobre a noção do Instituto. 2.3.2 Natureza Jurídica A concessão do serviço público somente pode delegar a execução de atividades consideradas como serviço público, sendo que a titularidade permanece do Estado. Conforme já apresentado, a Constituição da República apresenta um rol taxativo das atividades assim consideradas. Desse modo, é possível verificar duas situações relativas à natureza jurídica da concessão, uma atinente ao regime jurídico-administrativo do serviço público, outra às especificidades do próprio Instituto. A natureza jurídica, quanto ao regime jurídico-administrativo, decorre da natureza do próprio serviço público outorgado, visto que o fato de ser executado por um particular não afeta a aplicação das normas e princípios dela decorrentes. Quanto às especificidades do Instituto, cumpre afirmar que a natureza jurídica do contrato de concessão segundo Hely Lopes MEIRELLES (2008, p. 390) é um contrato, bilateral, oneroso, comutativo e realizado intuitu personae, 33 Celso Antonio Bandeira de Mello entende que a Lei 8789/95 fez grande confusão ao apresentar a definição de dois Institutos diferentes. Define o Autor que a concessão de serviço público precedida de obra pública não trata de espécie de concessão de serviço público, mas sim de concessão de obra pública. (2004, p. 659). 37 tratando-se de um acordo administrativo em que as partes obtêm vantagens e encargos recíprocos, considerando o interesse coletivo e o interesse individual do particular. A teoria do contrato administrativo da delegação do serviço público é um posicionamento criticado por BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 662) que afirma tratar-se de “uma relação jurídica complexa, composta de um ato regulamentar do Estado que fixa unilateralmente condições de funcionamento, organização e modo de prestação do serviço”. Trata de um “ato-união” ou ato unilateral estabelecido pelo Poder Público, ao qual o particular voluntariamente se submete, e de um contrato cuja finalidade é garantir a equação econômicofinanceira, a fim de resguardar o objetivo de lucro do particular. Não obstante as críticas formuladas por BANDEIRA DE MELLO (2008, p. 662), o Direito brasileiro vem adotando a denominação de contrato administrativo, teoria adotada no presente trabalho. O contrato de concessão de serviço público submete-se aos princípios norteadores do contrato administrativo, o qual possui cláusulas exorbitantes ou regulamentares, que podem modificar o contrato de forma unilateral e cláusulas econômicas ou financeiras, que apresentam as condições relativas ao equilíbrio econômico-financeiro. Em que pese o poder regulamentar do Poder Público, no sentido de alterar de forma unilateral o contrato, existem imposições legais e contratuais que vedam abusos em detrimento ao particular, tais como: as decisões devem submeter-se ao devido processo legal; devem ser motivados; o exercício regular da competência deve ser plenamente fundamentado; não pode alterar a equação econômico-financeira; as próprias garantias previstas no contrato (JUSTEN FILHO, 2003, p. 169-170). A Lei 8987/95 determina que o serviço objeto da outorga deve ser adequado ao pleno atendimento dos usuários34. A própria Lei de Concessões 34 Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. § 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. § 2o A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço. § 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e, 38 descreveu os elementos que compõem o critério de adequação do serviço, quais sejam: regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia e modicidade das tarifas. A adequação, segundo JUSTEN FILHO (2003, p. 305), trata da eficiência da prestação do serviço público sob o ponto de vista técnico-econômico da necessidade que motivou sua instituição. O Autor define eficiência como desempenho concreto das atividades necessárias à prestação das utilidades materiais, com a finalidade de satisfazer as necessidades dos usuários, da forma que se aplique o menor encargo possível, inclusive do ponto de vista econômico (JUSTEN FILHO, 2003, P. 302). Segundo o Autor, regularidade, continuidade e segurança não vários aspectos do conceito de eficiência, que podem ser traduzidos da seguinte forma: regularidade refere-se aos padrões quantitativos e qualitativos do serviço público que devem ser uniformes; continuidade trata da ausência de interrupção da atividade desenvolvida; a segurança trata realização da atividade sem colocar em risco a integridade física e emocional de usuários e não-usuários (JUSTEN FILHO, 2003, p. 302). 2.3.3 O poder de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares As alterações unilaterais dos contratos administrativos estão previstas no artigo 65, da Lei 8.666/9335, podendo ocorrer nas seguintes situações: quando houver modificação do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica aos seus objetivos; quando necessário modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto. II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade. Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: I - unilateralmente pela Administração: a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos; b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei; 35 39 É necessário promover a devida distinção entre os contratos administrativos “comuns” e os contratos administrativos de “outorga de serviço público”. Conforme a distinção proposta por JUSTEN FILHO (2003, p. 162), cada contrato administrativo possui peculiaridades que as distinguem umas das outras, não podendo receber tratamento idêntico, pois muitas vezes a natureza distinta dos objetos das diversas espécies de contratos não poderia admitir essa situação. De forma diferente não poderia ocorrer com os contratos de concessão de serviço público, que inclusive devem receber tratamento específico de acordo com a natureza jurídica do serviço outorgado. O poder de alteração unilateral das cláusulas regulamentares confere à Administração Pública a possibilidade de alterar as condições de realização do serviço. Consoante BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 676), o Poder Concedente pode impor ao particular modificações relativas à organização, ao funcionamento e à relação com os usuários, bem como ao valor das tarifas cobradas, não podendo se opor ou esquivar-se de cumprir as alterações exigidas. MEIRELLES (2008, p. 398) restringe a alteração unilateral do contrato apenas às cláusulas regulamentares ou de serviços a fim de melhorar a qualidade ao atendimento ao público. JUSTEN FILHO (2003, p. 298-301) caracteriza a natureza regulamentar da seguinte forma: a permanência da natureza pública do serviço objeto da concessão; a titularidade estatal privativa para regulamentar o serviço público; a competência para inovar e alterar a situação anterior; enquadramento da competência regulamentar no regime democrático; relevância das condições originais da outorga. A permanência da natureza pública do serviço objeto da concessão relaciona-se com o regime jurídico administrativo a que deve se submeter a atividade independentemente de sua execução por um particular. A titularidade estatal privativa para regulamentar o serviço público relaciona-se à fixação de condições técnicas e jurídicas para a prestação do serviço público realizado pelo particular. Segundo o Autor, essa característica se dá pelo antagonismo de dois interesses, um da Administração Pública cujo interesse pela ampliação e extensão da qualidade do serviço público com a 40 menor tarifa possível, outro pelo interesse do particular em obter a maior lucratividade no desempenho da atividade. A competência para inovar e alterar a situação anterior refere-se ao poderdever do Estado em proporcionar a adequação permanente do serviço à satisfação do interesse público, regulamentando situações não previstas no contrato original e situações supervenientes que produzem modificações no estado de fato. O enquadramento da competência regulamentar no regime democrático refere-se às garantias do particular titular da outorga em relação ao poder de alteração unilateral das cláusulas regulamentares baseado nos princípios decorrentes do Estado Democrático de Direito. O outorgado necessariamente deve subordinar-se às alterações sempre que o Poder Concedente o faça. Contudo, essas alterações devem ser realizadas de forma fundamentada conforme os requisitos de existência e validade dos atos administrativos e do regime jurídico administrativo. A relevância das condições originais da outorga é fundamental para determinar certas relações existentes entre os particulares, a Administração Pública e os usuários. De acordo com JUSTEN FILHO (2003, p. 301): As condições originais fixam uma relação específica e determina entre as vantagens e encargos de ambas as partes, de modo que todas as modificações supervenientes deverão fazer-se de modo integrado e sistêmico. As condições originais da outorga servem como garantia do Concessionário no desempenho de sua atividade, a fim de se resguardar em relação à Administração Pública de atos que inviabilizem economicamente a prestação do serviço público, podendo exigir do Poder Concedente a restauração do equilíbrio econômico concomitante ao ato regulamentar que apresente custo em sua implementação. MEIRELLES (2008, p. 398-399) sustenta que a remuneração do serviço, nos moldes pré-definidos no contrato, constitui um Direito fundamental e adquirido pelo concessionário, imutável perante a Administração Pública. 41 2.3.4 As relações jurídicas entre o Poder Público e o particular O Instituto da concessão de serviço público considera a existência de um ordenamento jurídico setorial (JUSTEN FILHO, 2003, p. 289-291), que representa a reunião de interesses diversos para a consecução de uma finalidade em conjunto. No caso das concessões, a finalidade a ser atingida é a execução da atividade exercida pelo Poder Público somado à perseguição de lucro pela empresa. Este pequeno ordenamento submete-se a determinados princípios integradores tais como a composição harmônica de interesse público e privado e o princípio da associação. A concessão é um instrumento de composição dialética entre princípios e interesses de ordem diversa, que rompe com a concepção tradicional de passividade de um dos agentes perante a cobrança de outro (JUSTEN FILHO, 2003, p. 290). No caso das concessões as partes possuem uma recíproca divisão de Direitos e deveres; em sua maioria prepondera os Direitos do Poder Concedente, todavia não retira a característica de reciprocidade do Instituto. Nessa relação, há de se considerar a existência de diversos Institutos decorrentes de regimes jurídicos diferentes, tais como a supremacia do interesse público sobre o privado e o Direito de propriedade do particular. Sob essa perspectiva é necessário fazer uma análise cuidadosa, haja vista que a supremacia do interesse público possui limitações no plano dos Direitos fundamentais. Outrossim, o Poder Concedente não pode estabelecer modificações sobre as cláusulas regulamentares de tal modo a tornar a atividade inviável; nesse caso, deverá ser realizada a adequação correspondente na tarifa a ser cobrada ao usuário. A princípio por meio dessa análise é possível concluir que a esfera de atuação de cada agente se limita a dois interesses: a adequação do serviço público e o lucro do empreendimento. O serviço público deve ser orientado pelos princípios relativos à Administração Pública, tais como: continuidade, universalidade, legalidade, moralidade, etc. 42 No entanto, os serviços públicos promovidos pela concessão ainda existe um plus além do regime jurídico administrativo, qual seja: o Direito do usuário, o qual o particular titular da outorga e ao Poder Concedente concorrem na efetivação desses Direitos. O artigo 175 da Constituição da República e a Lei de Concessão dispõem sobre os Direitos dos usuários sobre informação, da qualidade do serviço, liberdade de escolha, incentivo à organização de associações. O rol de Direitos dos usuários pode ainda ser incrementado de acordo com o contrato de concessão e suas alterações, normas infraconstitucionais que disponham sobre a matéria e por meio de agências reguladoras. Além da tutela específica dos Direitos dos usuários deve existir uma permanente preocupação do Poder Concedente na adequação do serviço público. A obrigação de manter o serviço adequado é um comando expresso do inciso IV, do artigo 175, da Constituição da República, regulamentado pela Lei 8.987/95. O serviço adequado, segundo o artigo 6º, da referida Lei, é aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade e cortesia na sua prestação, mediante o pagamento de tarifas módicas. Parece inconteste que a norma infraconstitucional instituiu princípios, e não regras, orientadores referentes à qualidade do serviço outorgado a fim de conceder liberdade de definição ao Poder Concedente a cada licitação para concessão, respeitando suas peculiaridades. O caput do artigo 6º reforça ainda mais essa noção. Para JUSTEN FILHO (2003, p. 302-303) serviço adequado é um conceito indeterminado. Indeterminado indeterminável diante das enquanto no peculiaridades texto de normativo, cada porém situação não concreta particularmente considerada, devendo, portanto, o administrador especificar os fatores peculiares imprescindíveis para a adequação do serviço em cada licitação, delimitado-o objetivamente em sua aplicação prática. O Poder Concedente dispõe de competência jurídica para regulamentar a prestação do serviço público, esta competência; porém, deve, naturalmente, ser exercida antes da apresentação da proposta pelo futuro concessionário. Tal 43 competência permite - e obriga - o Poder Público a definir prévia e clara e detalhadamente todos os aspectos relevantes da execução da atividade objeto da concessão sem cujo conhecimento o futuro concessionário não prestaria adequadamente o serviço. Segundo MEIRELLES (2008, p. 392), o poder regulamentar da Administração Pública é tão abrangente que absorve desde a organização da empresa até sua situação econômica e financeira, seus lucros, o modo e a técnica da execução dos serviços e até sobre o valor das tarifas em limites razoáveis e equitativos para a empresa e os usuários. Em decorrência dessa permanente busca pela qualidade do serviço público, o artigo 25 da Lei de Concessões ainda subordina a execução dos contratos realizados entre o outorgado e terceiros fornecedores de produtos e serviços às normas regulamentares da Concessão. Claro, todavia, é, que o valor da tarifa é objeto de cláusula contratual e não de cláusula regulamentar; assim, este é proposto pela concessionária então proponente na licitação para concessão. Os limites razoáveis e eqüitativos para o concessionário e para os usuários são aqueles definidos no edital da licitação e jamais poderão ser alterados unilateralmente pelo Poder Concedente posteriormente à adjudicação. A mutabilidade unilateral que eventualmente pode refletir-se sobre o valor da tarifa não será imotivada. O motivo fático para alterações, já então do próprio contrato de concessão, deve configurar um fator superveniente ao momento em que as propostas apresentadas na licitação não podem mais ser alteradas pelo proponente, deve ser imprevisível pela parte à qual interessará o reequilíbrio econômico, inevitável por esta mesma parte (devem ser inevitáveis também os seus efeitos), e deve ter alcance geral ou objetivo (BLANCHET, 2005, p. 149), ou seja, repercutiria sobre o contrato qualquer que fosse o executor do serviço e não apenas o concessionário. Motivos da mesma ordem e somente eles poderiam legitimar atos da Administração relacionados à organização da empresa, sua situação econômicofinanceira, lucros, modo e métodos executivos dos serviços. Jamais poderá, enfim, o concessionário ser surpreendido por normas pretensamente regulamentares definidas ulteriormente ao momento em que o particular não pode mais alterar sua proposta. Não somente para concessões, 44 mas para todo e qualquer objeto, uma licitação é um procedimento administrativo, não uma armadilha. 45 3. DESENVOLVIMENTO 3.1 Noções preliminares de desenvolvimento O termo “desenvolvimento” é (envolve) um conceito em permanente evolução. Exige análise complexa de inúmeras variáveis multidisciplinares e intimamente vinculadas a peculiaridades culturais e históricas, sem a qual não atinge valores sequer aproximados para uma razoável definição. Outrora considerado sinônimo de crescimento econômico, o desenvolvimento pode ser entendido como um processo econômico, social, cultural e político cujo objetivo é o bem-estar de toda a população e na distribuição justa de seu resultado (Jose Afonso da SILVA, 2006, p. 47). Outros afirmam que o desenvolvimento deve também criar condições para que se manifeste de forma permanente de forma auto-sustentável (Fábio NUSDEO, 2002, p. 17) Ocorre que o desenvolvimento possui origem histórica e acompanha a evolução do homem. Deve-se ressaltar também que o termo desenvolvimento pode ser analisado sob diversas perspectivas; para o presente trabalho serão considerados, sobretudo, os de caráter econômico e social, cuja construção se dará a partir da noção de crescimento econômico. O desenvolvimento econômico, segundo José Eli da VEIGA (1948, p. 17), possui três tipos básicos de definição: (i) sinônimo de crescimento econômico; (ii) ilusão, crença, mito, ou manipulação ideológica; (iii) desenvolvimento social. É preciso destacar que não há consenso sobre uma definição de desenvolvimento, mas algumas correntes doutrinárias que utilizam dessas correntes apresentadas pelo Autor que inclusive possui forte caráter ideológico. Tais correntes serão analisadas detidamente nos tópicos seguintes. De qualquer modo, buscar-se-á, no presente trabalho, a identificação de elementos juridicamente relevantes que possibilitem a identificação do fenômeno 46 desenvolvimento sob o enfoque jurídico. Enfoques meramente ideológicos, e excludentes dos demais, serão desprezados para fins de conclusão desta dissertação, ressalvados apenas aqueles cuja avaliação foge ao objeto do presente estudo, influenciaram a criação ou configuração de normas jurídicas, porque, uma vez juridicizados, desde que compatíveis com a Constituição, ficam imunizados de discussão jurídica até que nova norma os altere ou elimine. 3.1.1 Desenvolvimento como crescimento econômico Durante os últimos três séculos, os economistas se debruçaram sobre o estudo do crescimento econômico. Desde Adam SMITH até os neoclássicos o desenvolvimento econômico era e ainda é analisado de forma macroscópica, utilizando apenas critérios matemáticos para representar a riqueza de um país (Daniel R. FUSFELD, 2003, p. 262-265). Cristiane DERANI (1997, p. 98) afirma que “tem sido um dos postulados da moderna ciência econômica que somente um constante crescimento econômico garante a base para se obter objetivos prioritários da Economia social de mercado”. Essa afirmação possui como fundamento a crença de que o crescimento econômico naturalmente contribuiria com o aumento do bem-estar da população. Para o melhor entendimento das relações de crescimento econômico, é necessário estudar os fatos que contribuíram para a origem do estudo da Economia. Dois momentos históricos possuem papel relevante na contribuição do surgimento das Doutrinas Econômicas, que continuam influenciando os economistas na atualidade. O Mercantilismo e Adam SMITH foram fundamentais para o surgimento do estudo da Economia como Ciência e da forma de organização de riqueza no mundo. Deve-se desde logo antecipar que a visão exclusivamente econômica do desenvolvimento não foi a eleita pelo legislador constituinte. 47 2.1.1.1 O Mercantilismo O período denominado Mercantilismo corresponde a uma época de grande desenvolvimento intelectual, político e geográfico na Europa. Alguns fatos ocorridos nesta época foram primordiais para fundamentar as primeiras teorias econômicas, quais sejam: o Renascimento; a laicização do pensamento; o retorno dos métodos de observação e experiência; a reforma de João Calvino que exaltou o individualismo e o materialismo fundamentando assim o capitalismo; a centralização monárquica a partir do século XV, que deu início à verdadeira política nacional; surgimento da concepção de Estado como unidade política e econômica; noção de balança comercial; as grandes descobertas; o aumento da tecnologia das navegações; e diversas outras (Paul HUGON, 1984, p. 59-64). Todos esses fatos contribuíram para o desenvolvimento da concepção metalista do Mercantilismo, cuja noção considerava que a quantidade de ouro representava a riqueza de um país. O conceito metalista poderia ser representado pela seguinte afirmação: “a prosperidade dos países parece estar em razão direta da quantidade de metais preciosos que possuem” (HUGON, 1984, p. 85). Os mercantilistas não atribuíam ao ouro e à prata o status de única riqueza existente, mas como o mais perfeito instrumento para sua aquisição. Os metalistas atribuíram o status de riqueza ao ouro e à prata por algumas características inerentes a esses materiais, tais como: qualidade de instrumento de troca, a sua durabilidade, a facilidade de transporte, e a necessidade de dinheiro para custear guerras. Iniciou-se,então, uma irracional corrida em busca de metais preciosos com severas restrições para a saída de metais a fim de garantir a permanência do ouro e da prata em território nacional. Esse fato deu início à noção de crescimento econômico cujo objetivo era a manutenção da soberania dos Estados, tratando-se de interesse nacional. Importante ressaltar que o objetivo do mercantilismo era o fortalecimento e riqueza do Estado, desconsiderando qualquer interesse social ou econômico da população. Fato que gerou indescritíveis arbitrariedades por parte dos monarcas, 48 os quais à custa de muita exploração, tanto do país que utilizava o Mercantilismo, como política nacional, quanto dos países colonizados, como instrumentos de enriquecimento cada vez maior. A indústria, o comércio e a agricultura sofreram grande retrocesso diante das abusivas regulamentações. Especialmente a agricultura que, diante da tentativa de estimular a produção industrial, sofreu rígidas restrições de preços dos insumos, que incorreu no abandono do campo gerando estado de miserabilidade da população rural. Essa situação culminou em uma tríplice reação: uma de caráter científico em detrimento daquela noção de “arte” econômica; uma liberal em detrimento ao intervencionismo do Estado excessivamente abusivo; uma individualista contra a sujeição do indivíduo ao Estado (HUGON, 1984, p. 88). Nesse período, como se vê, o homem ainda estava longe do grau de evolução que levou à noção de desenvolvimento que integra nossa Constituição da República. 3.1.1.2 Adam Smith e a Riqueza das Nações Adam SMITH publicou sua obra-prima “A Riqueza das Nações”, em 1776. Ao lado dos fisiocratas assumiu a paternidade da Economia Política. SMITH concentra seu trabalho na atividade produtiva, e ao compreender o trabalho como fonte de riqueza, reage contra a concepção metalista do mercantilismo e a noção exageradamente agrária dos fisiocratas. Salienta ainda que a eficácia do trabalho é mais importante que a quantidade de trabalho. A resposta para a eficácia deste trabalho é a especialização e a divisão do trabalho. Dessa forma, se na confecção de um produto o trabalho for dividido, e cada segmento de sua produção se tornar mais especializada naquela tarefa atribuída, mais eficaz se torna a produção do produto, que será produzido em maior quantidade por menor número de trabalho empregado e em menor tempo. 49 Para SMITH (1988, p. 25-26), a divisão do trabalho contribuiria para o desenvolvimento da Nação, inclusive porque aumentaria o poder de compra da população e, por conseqüência, o consumo. Esse interesse pessoal de aumentar o consumo espontaneamente levaria o homem a exercer uma atividade que, com o fruto de seu trabalho, incorreria no bem comum. Dessa maneira, o interesse pessoal, ou egoísta, do homem acabaria coincidindo com o interesse geral contribuindo para o enriquecimento da Nação. Assim, SMITH (1988, p. 7), como um liberal, buscava a liberdade de atuação,pois acreditava que naturalmente os capitais se multiplicariam e afluiriam para onde mais livremente se pudesse dispor deles. Essa relação de equilíbrio entre a divisão de riqueza e oferta e procura ocorre de forma extremamente pacífica e natural, não sendo necessário qualquer tipo de intervenção do Estado. Num discurso pronunciado em 1755, SMITH afirmou que “para arrancar um Estado do mais baixo grau de barbárie e elevá-lo a mais alta opulência bastam três coisas: a paz, impostos módicos e uma tolerável administração da justiça. Tendo-se isso, tudo o mais virá com o decurso natural das coisas” (HUGON, 1995, p. 108). Essa manifestação deixou claro seu posicionamento liberal, avesso às fortes regulamentações impostas à época. A ruptura proposta por SMITH modificou a concepção econômica existente na era mercantilista, a qual valorizava o metal como instrumento de riqueza, passando agora a ser o Homem. É importante ressaltar que a riqueza não se restringia apenas à valorização do Homem, como fonte de riqueza, mas sim aos meios eficazes de produção, ou seja, a riqueza de um país poderia ser representada pelos seus meios de produção. A partir da concepção de SMITH, o trabalho humano passou a ser considerado como um elemento da Economia. O conceito de riqueza de um país ser aferido pelos meios de produção subsiste até hoje, por meio do PIB. O Mercantilismo e as idéias de Adam Smith influenciaram profundamente a modernidade, especificamente para a questão do desenvolvimento, um por introduzir o conceito de acumulação de riqueza outro por apresentar os instrumentos de acumulação de riqueza ainda vigente. 50 Desse modo, a partir de SMITH, a riqueza de um país passou a ser aferida pela quantidade de produtos produzidos (VEIGA, 2005, p. 18-19). A noção de desenvolvimento,nesse caso, possui caráter eminentemente econômico, pois o que efetivamente é medido é a riqueza material de determinado país. Genial, sem dúvida absolutamente nenhuma, Adam SMITH, mesmo assim, não foi perfeito, como aliás, ninguém jamais será, pois devemos estar constantemente buscando novos e mais adequados entendimento dos fenômenos que nos rodeiam. De regra, pressupunha, Adam SMITH, em sua observação do mundo, um mercado, um consumidor, um padeiro, etc. estereotipados. O mundo, todavia, não é tão uniforme, repetitivo, previsível. A realidade é extremamente mutável; em especial a realidade que envolve e interessa ao ser humano. Ainda aqui, portanto, apesar de Adam SMITH fornecer elementos de riqueza inquestionável para melhor entendimento do fenômeno desenvolvimento, não se pode considerá-los suficientes para um conceito de desenvolvimento coerente com nossas normas constitucionais. 3.1.1.3 Crescimento econômico O crescimento econômico não deve ser analisado como um fim do Estado, mas como um instrumento de aferição de riqueza de um país. Contudo, desde a formação dos Estados Modernos, a busca pela riqueza era sinônimo de “poderio econômico”. O status estratégico que o crescimento econômico atribuiu aos Estados influenciou muitas doutrinas econômicas e políticas públicas implementadas em diversos países. O instrumento de medição de riqueza de um país é mensurado pelo Produto Interno Bruto que representa a soma de todos os bens e serviços produzidos em um país, durante determinado período de tempo. É um dos indicadores mais utilizados na macroEconomia para a medição da atividade econômica de uma região. 51 O crescimento econômico é um instrumento utilizado desde a época do Mercantilismo para aferir a riqueza de um país, não considerando aspectos sociais e ambientais. O desenvolvimento analisado pura e simplesmente pelo crescimento econômico vem sendo objeto de muitas críticas, pois não proporcionou o prometido bem-estar social que era promessa do Estado Intervencionista. 3.1.2 O mito do desenvolvimento A corrente do mito do desenvolvimento não passa de ilusão basicamente sofre críticas pela relação entre os países desenvolvidos, subdesenvolvidos e semidesenvolvidos. Para Celso Furtado (1996, p. 89) o desenvolvimento econômico é inexeqüível, uma vez que não haveria possibilidade de países menos desenvolvidos desfrutarem da qualidade de vida dos países desenvolvidos. Essa falsa idéia de desenvolvimento tem sido utilizada para desviar as atenções para a tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais desses países. Segundo RIVERO (2002, p. 132 apud. VEIGA, 2005, p. 22-23), o desenvolvimento é um mito, pois: São os gurus do mito do desenvolvimento que têm uma visão quantitativa do mundo. Ignoram os processos qualitativos histórico-culturais, o progresso não-linear da sociedade e as abordagens éticas, e até prescindem dos impactos ecológicos. Confundem crescimento econômico com o desenvolvimento de uma modernidade capitalista que não existe nos países pobres. Com tal perspectiva, eles só percebem fenômenos econômicos secundários, como o crescimento do PIB, o comportamento das exportações, ou a evolução do mercado acionário, mas não reparam nas profundas disfunções qualitativas estruturais, culturais, sociais e ecológicas que prenunciam a inviabilidade dos ‘quase-Estados-nação subdesenvolvidos’”. As Nações tidas como industrializadas, possuem vantagens quantitativa e qualitativa muito superiores aos não industrializados ou semi-industrializados, pois os seus Estados foram concebidos pelo surgimento da burguesia e seus 52 mercados. Nos países em desenvolvimento o capitalismo surgiu após a concepção do Estado. Consoante RIVERO (2002, p. 135 apud. VEIGA, 2005, p. 23-24), as nações em desenvolvimento padecem de dois vírus que inviabilizam o crescimento econômico, quais sejam: miséria científico-tecnológica e explosão demográfica urbana. A miséria científico-tecnológica trata da grande desvantagem comercial dos países em desenvolvimento por não disporem dos recursos tecnológicos dos países desenvolvidos, tornando-se, desse modo, fornecedores de matéria-prima de baixa rentabilidade. A miséria científico-tecnológica combinada à explosão demográfica urbana não permite assegurar recursos suficientes para a criação de empregos e a satisfação das necessidades da população. Fatores que contribuem para a pobreza e o subdesenvolvimento dessas nações. Essas duas situações impedem o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos, tendendo a torná-los Economias Nacionais Inviáveis (VEIGA, 2005, p. 24). Outro argumento em relação à inexequibilidade do desenvolvimento foi o surgimento da renda estratégica decorrente da guerra fria (VEIGA, 2005, p. 25). As superpotências envolvidas na guerra fria necessitavam de apoio e aliados políticos. Os países classificados como de terceiro mundo optavam pelo apoio de uma das superpotências, recebendo, desse modo, uma renda estratégica desses países. Ao término da guerra fria, muitos países deixaram de receber subsídio estrangeiro, exceto alguns que possuem localização estratégica comercial. Outra forma de renda estratégica proposta pelo Autor, é o perigo que decorre da instabilidade que determinados países pobres representam a países ricos. Alguns países ricos optam por subsidiar países vizinhos pobres para evitar sua desestabilização e conter a migração (VEIGA, 2005, p. 26). Com base nesses fatos, RIVIERO (2002, p. 215 apud. VEIGA, 2005, p. 2627) propõe abandonar o mito do desenvolvimento e substituir a agenda da riqueza das nações pela agenda da sobrevivência das nações. Propõe ainda a estabilização do crescimento urbano e o aumento da disponibilidade de água, energia e alimento, a fim de evitar um colapso nas cidades de países pobres. 53 3.1.3 Desenvolvimento social A terceira via, do desenvolvimento social, é uma alternativa mediana em relação às duas alternativas propostas. Até o início da década de 1960, não se sentia a necessidade de realizar a distinção entre desenvolvimento e crescimento econômico, pois eram poucas as nações que haviam se tornado ricas com o advento da industrialização (VEIGA, p. 18-19). Após a 2ª Guerra Mundial, foi possível perceber um fenômeno social ocorrido em diversos países semi-industrializados. Na década de 1950, esses países demonstraram intenso crescimento econômico, por meio do aumento da renda per capita. Ocorre que o crescimento econômico desses países não repercutiu em acesso da população mais pobre aos bens materiais e culturais, especialmente saúde e educação (VEIGA, p. 19). Até 1960, os termos “desenvolvimento” e “crescimento econômico” eram utilizados como sinônimos, a distinção conceitual entre os dois termos sofreu grande influência da ONU, que, em 1961, instituiu o 1º Programa das Nações Unidas (1961-1970) para o desenvolvimento36, a fim de acelerar o progresso no intuito do crescimento auto-sustentado das nações. A iniciativa da ONU no papel desenvolvimentista decorreu da constatação de que o problema do subdesenvolvimento adquiria caráter global, devendo ser solucionado pela solidariedade internacional (Claudia PERRONE-MOISÉS, 1999, p. 18). Porém, somente em 1990, o PNU lançou o Índice de Desenvolvimento Humano37 (IDH) utilizando critérios econômicos e sociais. A partir do IDH foi possível iniciar a análise da relação crescimento econômico versus desenvolvimento. Amartya SEM, ganhador do prêmio Nobel de 1998, muito bem apresentou a noção de desenvolvimento. O Autor refuta o argumento de que o crescimento 36 37 Resoluções 1710 e 1715. combina três indicadores: expectativa de vida, grau de escolaridade e alfabetização e nível de renda per capita. 54 econômico trará consigo o bem-estar social. Utiliza como argumento as contradições existentes entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Defende que o desenvolvimento deve ser trabalhado inclusive nos países muito ricos. Cita como exemplo os contrastes intergrupais existentes nesses países, que refletem situações de subdesenvolvimento. É muito comum afirmar que afro-americanos são relativamente mais pobres que os americanos brancos, mas se reunissem todos os negros dos Estados Unidos e formassem um país, eles se tornariam o 11º PIB do mundo; no entanto, eles possuem menor chance de chegar à idade adulta do que as pessoas que vivem em sociedades como China, Sri Lanka ou partes da Índia, que possuem diferentes sistemas de saúde, educação e relações comunitárias (VEIGA, 2005, p 36). Essas distorções também se estendem ao verificar longevidade, ou expectativa de vida, dos afroamericanos em relação a China e aos habitantes de Kerala. SEN demonstra que um país considerado muito rico pode apresentar resultados inferiores no quesito desenvolvimento a países considerados muito pobres. A partir desse fato é possível constar que um PIB altíssimo, ou uma alta renda per capita, necessariamente, não significa qualidade de vida de seus nacionais, mas sim o tratamento social a eles atribuído. Outro exemplo trazido por VEIGA (2005, p. 38), foi a análise da mortalidade e expectativa de vida nas Economias industriais avançadas durante um lapso temporal. A Inglaterra, no início do século XX, era a principal Economia de mercado mundial. Contudo, apresentava números de expectativa de vida inferiores aos dos países hoje considerados pobres. As duas Grandes Guerras Mundiais foram necessárias para que a Inglaterra se submetesse a um rápido processo de expansão. A situação de guerra produziu maior compartilhamento dos meios de sobrevivência como os serviços de saúde e o suprimento limitado, por meio de racionamento e alimentação subsidiada. Mesmo que a disponibilidade de alimentos tenha diminuído consideravelmente durante a Segunda Grande Guerra, os casos de subnutrição declinaram abruptamente, e a subnutrição extrema desapareceu quase por completo. Houve também diminuição acentuada na taxa 55 de mortalidade38, e por ironia, nas duas décadas correspondentes às guerras, o crescimento da renda per capita foi mais lento. Estudos apontaram que em tempos de paz o aumento desses índices foi mais lento. Evidentemente que os estudos apresentados podem não ter abrangido todas as hipóteses para interpretar esses fenômenos, mas segundo SEN (VEIGA, 2005, p. 39): A explicação mais plausível, segundo SEN, reside nas mudanças do grau de compartilhamento social durante as décadas de guerra e nos pronunciados aumentos do custeio público de serviços sociais nas áreas de nutrição e saúde que acompanharam essas mudanças. (VEIGA, 2005, P. 39) De acordo com o Autor, é possível concluir que o melhoramento da qualidade de vida da população39, necessariamente, não possui relação com o crescimento econômico, mas com o desenvolvimento. A partir da análise das três correntes acerca do que é desenvolvimento, é possível constatar que o crescimento econômico e o desenvolvimento estão intimamente ligados, todavia são conceitos diferentes, ao passo que este é qualitativo e aquele é quantitativo (VEIGA, 2005, p. 56). O desenvolvimento é o projeto social que prioriza a melhoria de condição de vida da população (FURTADO, 2004, p. 484, apud. VEIGA, 2005, p. 82.) Do mesmo modo que o crescimento econômico pode ser considerado com um instrumento de aferição de riqueza de um país, o desenvolvimento social também pode ser objeto de índices de aferimento de melhorias sociais. O Índice de Desenvolvimento Humano hoje é utilizado como instrumento para identificar melhorias na condição de vida social somadas ao crescimento econômico40, contudo ainda há muito o que melhorar em relação à distribuição de riqueza e o bem-estar social. 38 Nesse caso não contabilizando a mortalidade decorrente da guerra. Considerando os índices de taxa de mortalidade e diminuição de subnutrição, bem como as políticas públicas na área de saúde e nutrição. 40 PIB per capita, expectativa de vida e grau de escolaridade e alfabetização. 39 56 3.1.4 Desenvolvimento sustentável O conceito de desenvolvimento sustentável foi proposto na Comissão Mundial da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, presidida por BRUNTDLAND, em 1987. Nessa comissão, foi entregue um documento denominado “Our Common Future”, ou também conhecido como relatório Bruntdland, apresentando a definição de desenvolvimento sustentável (BRUNDTDLAND, 1991, p. 46 apud. Ana Luiz de Brasil CAMARGO, 2003, p. 71) : “desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”. Considera-se que a noção de desenvolvimento sustentável é a evolução do conceito de desenvolvimento, pois analisa o aspecto ambiental além dos aspectos social e econômico. É difícil um consenso sobre a definição precisa de desenvolvimento sustentável, seja pela sua própria indefinição conceitual, seja pela complexidade de elementos multidisciplinares relacionados ao tema (CAMARGO, 2003, p. 76). Para Dália MAIMON (1996, p. 10), o conceito de desenvolvimento sustentável é: O desenvolvimento sustentável busca simultaneamente a eficiência econômica, a justiça social e a harmonia ambiental. Mais do que um novo conceito, é um processo de mudança onde a exploração de recursos, a orientação dos investidores, os rumos do desenvolvimento ecológico e a mudança institucional devem levar em conta as necessidades das gerações futuras. A exploração do meio ambiente atingiu níveis críticos, e qualquer atividade que envolva desenvolvimento deve considerar indicadores ambientais, uma vez que a natureza, na qualidade de bem jurídico, não é renovável. São inúmeros os problemas ambientais, uma relação enorme poderia ser elaborada sobre os impactos ambientais causados pelo Homem. Entretanto, é possível descriminar três gêneros (Guilhermo FOLADORI, 2001, p. 104): (i) 57 depreciação de recursos41; (ii) poluição por causa de detritos; (iii) superpopulação e pobreza. Os três gêneros de impacto ambiental podem ter origem no alto crescimento econômico bem como no crescimento descontrolado da população mundial. Ao se analisar as causas dos problemas ambientais, é possível concluir que as questões econômicas e sociais devem ser tratadas de forma conjunta com as questões ambientais. FOLADORI (2001, p. 104) vai além, argumenta que os três aspectos mencionados são efeitos externos ao processo econômico (processo produtivo), os recursos depreciados não estão no processo de produção, os resíduos decorrentes do processo de produção também não são considerados dentro desse sistema, a questão da superpopulação e a pobreza são constituídas por pessoas que não conseguem ingressar no processo de produção. O Autor destaca que “as relações no interior do processo produtivo não são discutidas, mas apenas seus efeitos” (FOLADORI, 2001, p. 104). Para sustentar sua afirmação, o Autor informa que o sistema produtivo envolve três elementos: o Homem, a Natureza e o processo produtivo. Essa relação consiste na essência da produção e da relação sociedade-meio ambiente; relação esta que pode ser subdividida pela sua forma e conteúdo. O conteúdo trata da relação do trabalhador com os meios de produção e com a natureza; é uma relação técnica cuja importância é o conhecimento do processo de trabalho, desse modo, o Autor considera o conteúdo e a relação técnica como sinônimos. A forma é a maneira que os diferentes sujeitos se inter-relacionam para produzir. Relaciona-se com as relações de propriedade e/ou apropriação dos meios de produção e da natureza, determinando o processo de produção (FOLADORI, 2001, p. 104). Para ilustrar a forma e o conteúdo, FOLADORI (2001, p. 104-105) apresenta o seguinte exemplo: Suponhamos um carpinteiro que elabora uma mesa. O processo de trabalho relaciona uma atividade (oficio de carpinteiro) com meios de produção (serrote etc.) e com a natureza (árvore etc.). Até aqui se trata de uma relação técnica, que implica habilidade e conhecimentos particulares (ofício de carpinteiro); é o conteúdo material do processo produtivo em questão. Mas, visto por esse prisma, tecnicamente, nada nos diz sobre as 41 Por exemplo: o solo, a água, as florestas, etc. 58 relações sociais de produção que esconde. Nosso carpinteiro pode ser um escravo da Antiguidade clássica, um servo feudal, um artesão de um regime tributário estatal, um operário assalariado, um artesão independente que vende seu produto no mercado, uma pessoa que tem por hobby a carpintaria e produz uma mesa para seu uso particular etc. Essas diversas possibilidades dão conta de um mesmo conteúdo técnico, mas que toma diferentes formas sociais. O escravo não é dono nem do produto, nem dos meios de produção, nem de si mesmo. O trabalhador assalariado é dono de sua vida, mas não o é dos meios que trabalha, nem do produto. O artesão é dono de sua vida, de seu instrumento e do produto e assim por diante. Essas diferenças na forma social de produção são decisivas na determinação de que materiais usar, do ritmo com que são usados e do relacionamento com o meio ambiente, assim como da eventual existência e da particularidade da população excedente. Conforme a ilustração do Autor, a Economia, ou o modo de visão de um sistema capitalista, percebe os meios de produção apenas pelo seu conteúdo material (aspecto técnico), perspectiva que não demonstra os inúmeros aspectos sociais envolvidos. O método segundo o qual é avaliado o crescimento econômico não considera aspectos sociais e ambientais por não se enquadrarem nos meios de produção tradicionais. De fato, a análise de SMITH (1988, p. 17-23) sobre os meios de produção considera apenas a técnica utilizada para a otimização da produção, cuja divisão do trabalho e o seu correspondente aprimoramento melhoram os resultados da produção; se o agente produtivo é escravo, empregado, artesão ou até mesmo uma máquina, os aspectos sociais não são considerados. FOLADORI demonstra que não é somente o conteúdo material, ou técnico, que contribui para desequilíbrio ambiental, o desenvolvimento de novas tecnologias para o melhor aproveitamento dos meios de produção também contribuem para a destruição do meio ambiente. O aprimoramento de novas tecnologias do sistema produtivo possui relação direta com a forma social de produção, pois são decisivas na determinação dos instrumentos a serem utilizados na produção, bem como o seu ritmo e a sua relação com o meio ambiente. FOLADORI (2001, p. 105-106) cita como exemplo a relação escravagista da Antiguidade Clássica. O escravo ao desenvolver uma atividade produtiva, não possuía interesse pelo aprimoramento dos meios de produção do trabalho, menos ainda a sociedade antiga, que considerava o trabalho degradante. Novas tecnologias não eram desenvolvidas a fim de aprimorar o processo produtivo, não 59 causando maiores impactos à natureza, pois toda a matéria-prima dela é extraída, pela velocidade de regeneração do meio ambiente em relação ao consumo de insumos dela extraídos. Por outro lado, a Economia mercantil se caracteriza pelo incentivo à concorrência, o que acarretou no rápido desenvolvimento de tecnologias no processo produtivo. Conseqüentemente, tornou a produção mais eficiente exigindo ainda mais matéria-prima na produção de seus produtos. Assim, a velocidade da natureza em repor os bens dela retirados foi superada pela velocidade que a Indústria dela os retirava. A partir desse momento, a sustentabilidade existente entre o Homem e a Natureza passou a entrar em risco. O que o Autor ressalta é a forma como o estudo das relações sociais é negligenciado em relação ao conteúdo material – técnico – dos meios de produção, pois, conforme demonstrado, é um aspecto fundamental para a análise dos problemas sociais e ambientais vividos hoje. Essa miopia dos analistas em não “perceber” as externalidades sociais e ambientais do processo produtivo se deve ao fato de que elas não pertencem à lógica de mercado. Duas situações podem ser apontadas nesse sentido (FOLADORI, 2001, p. 146/147): a complexidade da avaliação dos custos sociais ou ambientais e a dificuldade de aferição de preço de bens inestimáveis. A avaliação dos custos sociais ou ambientais sempre foi um aspecto difícil de ser identificado nos meios de produção, uma vez que a lógica de mercado sempre esteve estruturada no binômio oferta e procura. Se não é possível aferir valor pecuniário de um produto ou bem, este é ignorado ou não faz parte do mercado. Um exemplo de externalidade negativa ambiental são os resíduos decorrentes do consumo de materiais de polipropileno, cuja absorção pela natureza demora centenas de anos. O fabricante de sacos plásticos ou garrafas descartáveis não possui a preocupação de contabilizar o dano ambiental causado pelo uso de seu material, seja por indiferença ou por não dispor de instrumentos necessários para aferir o impacto que aquele produto na natureza pode causar. É senso comum que a poluição causada por esse material já atingiu proporções mundiais, atingindo oceanos, rios, matas, etc. 60 Não menos difícil de aferir é o custo social da atividade fim da empresa, porque o próprio produto produzido pode diretamente resultar em externalidades negativas, tais como: fábricas de armas de fogo, cervejarias, herbicidas, etc. A aferição de custo de bens inestimáveis também é um desafio presente na Economia. A dificuldade de traduzir valor pecuniário a bens que tradicionalmente não possuem valor seja pela sua abundância, tais como o ar, a água, ou pela sua singularidade. A alternativa para corrigir essas distorções do mercado, é inserir essas externalidades na lógica de mercado atribuindo valor a estes elementos. Apesar da difícil aferição de valor pecuniário, algumas alternativas têm sido estudadas tais como a taxação de determinados insumos e a criação de mecanismos de controle e planejamento do uso de recursos naturais e de geração de resíduos. É possível concluir que o desenvolvimento sustentável é um instrumento que busca a harmonia entre três eixos principais: crescimento econômico, justiça social e meio ambiente. O desenvolvimento desses três elementos deve ocorrer de forma permanente e de forma sustentável sem comprometer seu equilíbrio. 3.1.5 O desenvolvimento e a ordem jurídica brasileira A busca por desenvolvimento ainda influencia profundamente o comportamento do Estado brasileiro, de tal forma que se encontra na base do ordenamento jurídico. O desenvolvimento nacional é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil42, que possui eficácia vertical em relação às três esferas do Poder, especialmente em relação ao legislador, à realização dos preceitos do desenvolvimento nacional. 42 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 61 Segundo CANOTILHO (2000, p. 1130), os preceitos definidores do Estado são princípios constitucionais impositivos os quais “subsumem-se todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo o legislador, a realização de fins e execução de tarefas”. O desenvolvimento nacional, na qualidade de princípio constitucional impositivo, impõe ao Estado a realização e execução de preceitos definidores dos fins do Estado. O legislador possui papel fundamental na realização do desenvolvimento nacional, que, por meio da legislação vigente, indicará ao Estado a forma que se promoverá esse desenvolvimento. Ronald DWORKIN (1987, p. 22 apud. GRAU, 1997, p. 84), por outro lado, não define esses preceitos do Estado como princípios, mas como diretrizes, que seriam “pautas” que estabelecem objetivos a serem alcançados, que geralmente referem-se a aspectos econômicos, políticos ou sociais. A Constituição da República ao atribuir status de preceito fundamental ao desenvolvimento nacional, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro um programa social e econômico a ser perseguido por todos os Poderes, de tal maneira que o Estado obrigatoriamente deve desenvolver mecanismos de desenvolvimento nacional. Conforme estudado no tópico anterior, o termo desenvolvimento não é sinônimo de crescimento econômico, mas de desenvolvimento social, cultural e ambiental. Destaque-se que trata de um desenvolvimento qualitativo, e não quantitativo. Assim, a idéia de desenvolvimento representa a realização de um processo de mobilidade social, contínua e intermitente. O processo de desenvolvimento deve promover o avanço das camadas sociais, a fim de que haja uma concreta elevação de estrutura social, bem como a elevação do nível econômico e do nível cultural-intelectual (GRAU, 1997, p 238-239). O Estado deve atuar de forma positiva, no sentido de promover o desenvolvimento nacional, por meio do Poder Legislativo, regulamentando as diversas formas de implementação do desenvolvimento, e do Poder Executivo na realização de políticas públicas para sua concretização. O artigo 174 da Constituição da República é um desses instrumentos relativos ao desenvolvimento nacional. Além de atribuir ao Estado o status de agente normativo e regulador da atividade econômica, determina que a norma infraconstitucional estabeleça diretrizes e base de planejamento para o 62 desenvolvimento nacional equilibrado, compatibilizando os planos nacionais e regionais de desenvolvimento43. SALOMÃO FILHO (2002, p. 41-56), adepto da teoria do desenvolvimentismo44, fundamenta que o desenvolvimento pode ser alcançado da seguinte forma: Confrontada essa constatação com a existência de absoluta concentração de poderes estrutural em tais Economias, o segredo para o desenvolvimento está, exatamente, em descobrir um método para eliminar essas imperfeições estruturais através da, ou fomentando a, difusão do conhecimento econômico. Sendo estas imperfeições estruturais decorrentes, precisamente, da inexistência de processo de formação de conhecimento econômico e de escolha social próprias, o principal objetivo de uma teoria jurídica desenvolvimentista deve ser exatamente este. A teoria jurídica desenvolvimentista, segundo o Autor (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 41-56) possui três princípios regulatórios desenvolvimentistas que regem o Instituto: redistributivo, difusão do conhecimento econômico e estímulo à cooperação. O princípio redistributivo possui como fundamento a gestão de valores e não de objetivos econômicos, devendo cumprir um papel de redistribuição de riquezas que o mercado não assumiria. De certa forma, o Estado já cumpre o papel distributivo mediante a tributação, recolhendo impostos de quem possui maior capacidade contributiva e distribuindo por meio de serviços públicos e políticas públicas. Essa redistribuição não é atividade exclusiva do Direito Tributário, nem deve ser apenas objeto de estudo do ramo do Direito. Os manuais de administração, por exemplo, indicam que quanto mais próxima ao problema e maior especialidade houver na gestão, haverá maior eficiência. A maior eficiência poderá ser obtida pela redistribuição setorial, e não apenas de forma macroeconômica. 43 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. 44 Teoria que afirma que os processos de desenvolvimentos dependem de instituições e valores. 63 A redistribuição de riqueza pode ser realizada de várias formas, algumas mais eficazes conjugam instrumentos tributários setoriais com medidas regulatórias (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 41-42). O princípio da difusão do conhecimento econômico parte do pressuposto de que a centralização ou teorização do conhecimento econômico leva a resultados econômicos socialmente negativos. Cabe, dessa forma, a promoção da transmissão do conhecimento econômico à sociedade por meio de regulação. Conforme esse princípio, o conhecimento econômico não deve ser centralizado ou teorizado, deve ser universalizado para que seja aplicado individualmente pelos membros da sociedade a fim de garantir o melhor uso dos instrumentos de conhecimento da Economia e de proporcionar uma visão mais democrática dos seus mecanismos de funcionamento para que seus partícipes possam formular escolhas livremente (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 44-50). O princípio do estimulo à cooperação é fundamental para a construção de um desenvolvimento permanente. Pode ser considerado como o último estágio para a aplicação dos princípios anteriormente mencionados. A democracia econômica, com a difusão do conhecimento econômico de todos os membros da sociedade, é um instrumento importante para que os agentes econômicos sejam capazes de escolher livremente. Porém, para proporcionar a plena democracia econômica, é necessário que ocorra a inclusão de participantes no processo de escolha por meio da redistribuição de riqueza, pois a exclusão social e a concentração de poder econômico não permitem a livre escolha (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 50-56). Contudo, essas medidas apenas garantem que os participantes do processo econômico sejam capazes de escolher livremente, é preciso que seja possível que os agentes possam comparar escolhas individuais com escolhas sociais. A questão da cooperação gira em torna da questão “Como, e em que circunstância, é possível fazer com que o indivíduo, naturalmente e de esponte própria, coopere com seu semelhante.”(SALOMÃO FILHO, 2002, p. 50). A resposta, consoante SALOMÃO FILHO (2002, p. 50), indica que a existência ou não de cooperação decorre da função direta da existência de condições e instituições que permitam o seu desenvolvimento. O surgimento da cooperação depende de informação sobre os participantes do processo 64 econômico, para que tenham liberdade de optar entre o individualismo e o cooperativismo. Um exemplo trazido pelo Autor relativo à questão do individualismo/cooperativismo é o do dilema do prisioneiro45, cuja decisão individual se sobrepõe à decisão cooperada. O dilema do prisioneiro, analisado sob a perspectiva da teoria dos jogos, possibilita concluir que para se atingir o sucesso de soluções cooperadas, é necessário ter três condições mínimas: pequeno número de participantes, existência de informação sobre os demais e a relação de existência de relação continuada entre os agentes. A relação continuada entre os agentes, bem como a existência de informação, são condições que propiciam a maior possibilidade de existência de cooperação. Ocorre que as relações de mercado não contribuem para o surgimento dessas condições. Os fatores são inúmeros, ocorrem desde a falta de informação à ausência da noção de relações continuadas. A partir desse ponto, é necessário que o Estado crie regras claras e justas para que estimule os agentes do mercado a agirem de forma cooperada. Um instrumento são as agências reguladoras, que podem estabelecer regras para estimular a opção da cooperação. Entretanto, o Autor critica a forma de intervenção econômica estabelecida no Brasil, baseada na crença de que possuem conhecimento de todas as informações necessárias para determinar as variáveis de mercado, informações baseadas apenas no preço e quantidade produzida. Para corrigir essa distorção é necessário que o Estado crie instrumentos para conhecimento, e de forma setorial especializada, para que, em um segundo momento, possa criar regras compatíveis para estimular a cooperação entre os agentes (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 59-60). 45 O dilema do prisioneiro é um dos primeiros modelos teóricos sobre o qual se estruturou a moderna teoria dos jogos. Sua estrutura é bastante simples. Imaginem-se dois prisioneiros, a serem interrogados pela prática do mesmo crime, e suponha-se que a cada um deles é dito que, se confessar e delatar o outro, será perdoado e o outro terá pena máxima (por hipótese, 20 anos), no entanto que se ambos confessarem e delatarem, ambos terão a pena básica do crime (por hipótese, 10 anos). Por outro lado, se nenhum dos dois confessar, serão aplicadas penas de 5 anos para cada um, relativa ao crime mais simples (por hipótese, o único que é possível demonstrar sem a confissão). O comportamento estratégico individual leva ambos os jogadores a confessarem. Essa é, seguramente, a melhor estratégia individual, pois qualquer que seja o comportamento do outro jogador (e imaginando-se sempre que o outro jogador adotará uma estratégia individual), o comportamento mais conveniente será sempre confessar (pois se o outro não confessar, o primeiro jogador estará livre e se o outro confessar, o primeiro jogador terá evitado a pena máxima). O que ocorre é que, nesse caso, as estratégias individuais representam para os prisioneiros uma opção pior que o comportamento que visa à maximização da utilidade coletiva (que ocorreria se nenhum dos dois confessasse) (SALOMÃO FILHO, 2005, p. 51). 65 É preciso ressalvar que o Estado possui inúmeros instrumentos para realizar a normatização46 do mercado tais como: tributos parafiscais, leis, poder de polícia da Administração Pública, agências reguladoras, etc. Por meio desses instrumentos normativos, o Estado pode implementar políticas públicas47, podendo alterar as relações sociais existentes e promovendo o pleno desenvolvimento nacional. 46 O termo normatização foi aqui utilizado para ressaltar a abrangência do poder de regulamentação do Estado, o qual não se restringe a agências reguladoras. 47 As políticas são chamadas de públicas, quando estas ações são comandadas pelos agentes estatais e destinadas a alterar as relações sociais existentes. São políticas públicas porque são manifestações das relações de forças sociais refletidas nas instituições estatais e atuam sobre campos institucionais diversos, para produzir efeitos modificadores na vida social. São políticas públicas porque empreendidas pelos agentes públicos competentes, destinados a alterar as relações sociais estabelecidas. (DERANI, 2002, p. 239) 66 4 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA 4.1 Breves considerações sobre a noção de empresa As empresas econômicas, sociais privadas e são agentes ambientais; foram fundamentais instrumento nas de relações revoluções, influenciaram a cultura e as relações sociais, promoveram desenvolvimento, financiaram guerras, desenvolveram tecnologias nunca antes vistas, geraram miséria e também bem-estar social. São tantos aspectos contraditórios que despertam vários sentimentos no Homem. A função das sociedades empresariais foi objeto de diversas transformações no decorrer da história, o que indica um vasto número de teorias sobre o assunto. Não é pretensão do presente estudo esgotar todas as teorias referentes às sociedades empresariais, apenas promover uma construção teórica sobre a função das sociedades empresariais e da relação jurídica e econômica entre a empresa e a sociedade. Indispensável é a análise das teorias do contratualismo e institucionalismo, entretanto, essas teorias, não esgotam todo o estudo sobre a matéria, pois foram elaborados em períodos econômicos muito diferentes ao vivido atualmente, porém fundamentais para compreender o desenvolvimento de algumas teorias hoje utilizadas. A diferença básica entre as duas teorias segundo SALOMÃO FILHO (2002, p. 26) é: (i) a concepção da sociedade como contrato; (ii) a sociedade concebida e organizada como instituição. A concepção contratualista pode ser dividida em clássica e moderna, cujo objeto em ambas reduz-se ao interesse dos sócios, a concepção institucionalista, por outro lado, considera a complexidade da organização empresarial, cuja teoria pode ser dividida em publicista e integracionista. Essas teorias foram fundamentais para desenvolver as teorias modernas sobre a empresa. 67 A seguir demonstrar-se-ão, de forma sucinta, os fundamentos dessas teorias. 4.1.1 A teoria contratualista clássica Basicamente, as teorias contratualistas possuem como fundamento o interesse social das sociedades empresarias. Ao contrário do que a expressão sugere, o “interesse social” refere-se ao único e exclusivo interesse dos sócios. Toda a atividade desenvolvida pela empresa possui como base a satisfação do interesse dos sócios, o qual, em regra, limita-se à lucratividade da empresa. Ainda que não se deva considerar única e exclusivamente o interesse dos sócios, este sobressai soberanamente em muitas oportunidades. Essa é uma verdade que emerge sempre que uma empresa passa por alterações ou é dissolvida pelos sócios, que podem fazê-lo se e quando desejarem (desde que, obviamente, não esbarrem em nenhum comando normativo), sem que para isto devam indicar os motivos; ninguém senão os sócios podem modificar ou extinguir sem motivação uma empresa. Esta observação, ressalte-se, é apenas ilustrativa e, portanto, insuficiente para antecipar conclusões ou, pior, generalizações juridicamente indevidas. O assunto, enfim, não se esgota aqui, não é simples e exige a avaliação de outros aspectos que, na seqüência serão objeto de análise. Um dos principais defensores da teoria contratualista clássica foi P. G. JAEGER (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 27); para o Autor, o interesse social representa um conceito concreto, definível apenas quando comparado com o interesse do sócio para a aplicação de regras sobre conflito de interesses, ou seja, o interesse dos sócios é soberano não sendo admitida qualquer interferência na decisão da sociedade. Assim, a empresa nada mais seria do que um instrumento dos sócios a fim de otimizar a lucratividade desenvolvida pela atividade. Deve-se observar que nem sempre o aumento da lucratividade representa resultados benéficos à sociedade empresarial. 68 Algumas decisões tomadas pelos sócios podem ter repercussões favoráveis para a majoração do lucro, mas podem ser catastróficos para a sobrevivência da empresa48. Diante dessa perspectiva, a noção de interesse social passou a considerar também o interesse dos sócios futuros, visto que a busca imensurada pelo lucro representava a falência da sociedade, trazendo perspectivas de longo prazo à empresa visando a sua preservação. Na prática, o contratualismo clássico sob a perspectiva dos sócios futuros pouco se distingue da teoria institucionalista (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 27), pois pode sofrer controle do Estado. 4.1.2 A teoria contratualista moderna A teoria contratualista clássica não poderia sobreviver às empresas de capital aberto, porque não pode, e não deve, ter o seu interesse exclusivamente definido pelos sócios atuais (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 29). A teoria contratualista moderna rompe com a absoluta autonomia dos sócios, uma vez que a sociedade passa a não considerar apenas o interesse do grupo de sócios atuais, atribuindo a eles (sócios atuais) a responsabilidade de tutelar os interesses de sócios futuros introduzindo a noção de preservação da empresa. Tal modificação no conceito de interesse social atribui ao sócio atual maior responsabilidade em suas decisões, mantendo a maximização do lucro conjugada ao interesse na preservação da empresa. Esta teoria adota a prédefinição do interesse social da empresa, não podendo ser alterado pelos sócios atuais, ou gestores, tutelando o interesse dos futuros sócios acionistas. As decisões da empresa passaram a ter outra perspectiva, o que Autorizou a interferência do Estado sobre a conduta dos sócios, seja sob a instituição de regras ou pela atuação do Poder Judiciário. 48 tais como: demissão não planejada de grande número de funcionários, a aquisição de insumos de baixo preço comprometendo a qualidade do produto, a venda da empresa, etc. 69 4.1.3 A teoria institucionalista publicista Foi na Alemanha que esta teoria obteve sua maior contribuição. Inspirada nas repercussões negativas do primeiro pós-guerra, desenvolvida por W. RATHENAU, economista e homem de negócios, pretendia utilizar as grandes empresas para promover a reconstrução da Alemanha . RATHENAU entendia que as grandes sociedades privadas seriam instrumentos de renascimento econômico da Alemanha arrasada pela primeira Grande Guerra, pois cumpriam uma função imprescindível para o desenvolvimento da nação, voltada para o crescimento econômico e a contratação da mão-de-obra do operariado alemão. A concepção da grande sociedade, segundo RATHENAU, era de uma “instituição não-redutível ao interesse dos sócios” (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 31). A teoria de Rathenau traduziu em termos jurídicos a função econômica da macroempresa voltada para o interesse público e não ao interesse privado dos sócios, ou seja, não voltado exclusivamente ao lucro. Essa mudança de perspectiva da grande empresa ocorreria por meio da valorização do “órgão de administração” da sociedade por ações, por se tratar de um órgão neutro apto à defesa do interesse empresarial49. A valorização do órgão de administração ensejou a diminuição da importância da Assembléia e dos sócios minoritários (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 32). A partir da metade do século XX, a teoria institucionalista publicista entrou em crise, sofrendo severas críticas em relação à independência e irresponsabilidade dos administradores em relação aos acionistas, culminando na atuação do Estado, pela normatização das relações entre administração e acionistas, restabelecendo o papel da Assembléia de acionistas e garantindo o Direito dos acionistas minoritários (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 32) A teoria institucionalista publicista fracassou porque muitas vezes a função social da empresa não despertava o interesse dos sócios, cujo objetivo principal era o lucro. 49 Os críticos dessa teoria argumentam que a administração não é um órgão neutro de defesa do interesse social, mas sim dos interesses dos sócios majoritários, em detrimento do interesse dos sócios minoritários. (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 32 apud P. G. JAEGER, p. 29) 70 4.1.4 A teoria institucionalista integracionista ou organizativa O legado deixado pela teoria institucionalista publicista, não obstante o seu fracasso, foi a produção de uma rica construção doutrinária e uma oportuna produção normativa do Estado Alemão sobre as relações internas das sociedades abertas, especialmente sobre a participação operária nos órgãos de direção dessas empresas (SALOMÃO FILHO, 2002. p. 32-33). Até o surgimento da respectiva regulamentação sobre os princípios institucionalistas, a Doutrina Alemã já alertava sobre o não reconhecimento dos interesses dos trabalhadores, dos acionistas minoritários e da coletividade, das normas que regulamentavam as sociedades de capital aberto à época, as quais conferiam o controle da empresa ao órgão controlador vinculado com os interesses dos acionistas majoritários. A teoria integracionista possuía como finalidade a preservação da empresa, ao contrário da teoria publicista que buscava a satisfação do interesse público. A grande diferença do integracionismo, é que o sistema normativo Alemão buscou harmonizar os interesses dos sócios e dos operários, integrando os trabalhadores nas decisões no processo produtivo o qual participavam (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 34). Essa nova forma de institucionalismo representou uma grande modificação do modelo anterior; a preocupação passou a ser relativa à forma de organização da empresa, deixando o conceito de personalidade jurídica para segundo plano. Essa mudança de enfoque propiciou o avanço do estudo do modelo organizacional mais apto a compor a tutela do interesse não redutível ao interesse do grupo de acionistas majoritários e do interesse na manutenção da empresa. A modificação ocorreu de tal modo que a concepção de empresa deixou o aspecto do contrato social, que representava a empresa, e passou a ser uma instituição vinculada a um tipo de organização mais apta para garantir a sua existência (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 35). 71 4.1.5 A empresa sob a análise econômica do Direito Atualmente, o Direito societário é analisado sob uma perspectiva interdisciplinar, não apenas comunicando-se com outros ramos do Direito, mas também alimentando-se dos estudos e noções produzidos no âmbito das outras ciências, especialmente a Economia. Esse estudo visa analisar os efeitos econômicos das regras societárias, que passam a ser identificadas com a chamada “Teoria da Eficiência”, que segundo SALOMÃO FILHO (2002. p. 38-40), pode ser identificada da seguinte forma: O que a teoria da eficiência aplicada ao Direito pretende é, na verdade, atribuir valor absoluto às premissas econômicas, capazes de indicar diretamente o sentido das regras jurídicas, sem que isso possa ser contestado com base em considerações valorativas ou distributivas. Isso é feito através da utilização de conceitos econômicos aos quais pretende-se atribuir certeza matemática. O Autor apresenta críticas quanto à aplicação da análise econômica do Direito. Fundamenta que, inobstante a existência de interdisciplinariedade entre o Direito e a Economia naquelas situações em que o operador do Direito necessariamente deve considerar as relações causais sugeridas pelas teorias econômicas, as premissas utilizadas para o desenvolvimento dessas teorias não devem ser utilizadas automaticamente, porque desconsideram a valoração da aplicação da norma jurídica. Em outras palavras, a teoria aplicada não deve ser utilizada de forma exclusivamente analítica, deve atribuir-lhe caráter valorativo, para que o exame da teoria atinja sua verdadeira utilidade (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 40). Essa ressalva apresentada pelo Autor é de fundamental importância para o desenvolvimento do presente trabalho, pois diversas teorias foram apropriadas do ramo da Economia. Por conta dessa apropriação, aprioristicamente, algumas noções trazidas à lume podem ser incompatíveis às noções tradicionalmente consagradas pelo Direito, se analisadas exclusivamente sob essa perspectiva, hipótese que se pretende dirimir com o desenvolvimento do trabalho. 72 Conforme os teóricos clássicos da análise econômica do Direito, a empresa é vista como um feixe de contratos, ou como um “agente subscritor” de um grupo de contratos, iniciando pelos contratos assinados pelos sócios, fornecedores, clientes, trabalhadores até os contratos de empréstimo utilizados para capitalizar a empresa (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 41). Essa teoria utiliza conceitos de Direito, no caso os contratos, de forma a adequar a sua correspondente manifestação econômica por meio dos agentes envolvidos no processo produtivo. O grande problema para esse tipo de estrutura organizacional é a forma de controle sobre ela exercida. São diversos os fatores a serem considerados na gestão dessa forma de atividade50. Consoante SALOMÃO FILHO (2002, p. 42), a conseqüência de todos esses fatores é a conclusão de que o interesse da empresa não pode mais ser identificado como o exclusivo interesse dos sócios51, nem tampouco à sua imensurada autopreservação52. O interesse da empresa deve estar vinculado “à criação de uma organização capaz de estruturar de forma mais eficiente – no caso eficiência distributiva, não alocativa – as relações jurídicas que envolvem a sociedade”. A empresa seria reconhecida como um feixe de contratos que envolveria todos os agentes envolvidos no processo produtivo objeto da atividade. 4.1.6 A teoria do contrato organização Apesar da grande influência da ciência Econômica na concepção do contrato organização, não é uma teoria econômica, mas sim jurídica (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 43). O não há redução do interesse da sociedade representado por uma organização direcionada ao objetivo da otimização da lucratividade. A análise da sociedade como uma organização é garantia da melhor gestão dos interesses envolvidos e na solução dos conflitos nela existentes. 50 Nesse caso, devem ser consideradas duas formas de controle: a interna e a externa. A interna relaciona-se ao controle acionário dos sócios, que pode possuir equivalência substancial ao controle externo, no caso dos interessados nos contratos vinculados com a empresa. 51 Como ocorria na teoria do contratualismo. 52 Conforme no período mais extremado do institucionalismo. 73 Ao contrário do contratualismo e do institucionalismo, que buscavam interesses voltados para fora da empresa, o contrato organização possui como objetivo a formação de uma estrutura organizacional capaz de solucionar os conflitos entre os feixes de contrato existentes na atividade empresarial. O fundamento da teoria do contrato organização refere-se à noção de empresa como uma entidade ou agente econômico que administra um feixe de contratos relativos à atividade por ela desenvolvida. Os partícipes desse feixe de contratos são todos os agentes envolvidos no processo produtivo, tais como: empregados, fornecedores, consumidores, sócios majoritários e minoritários, concorrentes, meio ambiente, etc. A valorização da institucionalização do processo organizativo empresarial busca valores distintos na realização da atividade. A gestão de interesses ou a capacidade de dirimir conflitos entre os agentes envolvidos no processo produtivo é a ferramenta principal dessa teoria. Na hipótese da incapacidade da empresa em gerir determinados conflitos, o Estado pode interferir como agente regulador destes conflitos. Segundo SALOMÃO FILHO ( 2002, p. 44), essa nova concepção jurídica sobre sociedade empresarial, corresponde a novas formas de organização econômica, como por exemplo os consórcios modulares. Os consórcios modulares são muito utilizados pelas montadoras de veículos, cuja empresa passa a ser um centro de integração entre vários fornecedores. Esse instrumento faz com que a montadora apenas forneça o espaço físico para que os fornecedores montem as peças diretamente no veículo. A empresa passa a ser uma forma pura de feixe de contratos, que permite a diminuição dos custos e melhoria na qualidade, pois a mão-de-obra empregada teoricamente é mais especializada quanto às características do produto. De certo modo, a teoria organizacionista já se manifesta de diversas formas na atividade empresarial. Não é rara a existência de funcionários terceirizados que executam sua atividade dentro da estrutura física da empresa tomadora do serviço, veja-se, por exemplo, as atividades de faxina e segurança. Outras empresas vão além, terceirizam até mesmo a atividade fim de seu objeto social. É praxe entre as empresas de construção civil organizar sua estrutura com base em diversos contratos de empreitada, cada um relativo a uma fase da construção da obra. 74 Conforme essa teoria, o objetivo das empresas está calcado no constante aperfeiçoamento da organização. CALIXTO SALOMÃO (2002, p. 44-45) sugere o seu aprimoramento pela cooperação, segundo a teoria dos jogos53. Sobre a utilização da cooperação como forma de aprimoramento e manutenção da organização, é interessante exemplificar por meio da gestão administrativa de supermercados. A administração organiza os contratos com seus fornecedores, que, por sua vez, tem a obrigação de dispor de seus produtos da melhor forma possível na prateleira. Basicamente, cada prateleira de produtos representa uma ou várias empresas que dispõem e organizam seus produtos de acordo com as determinações da administração do supermercado. A submissão desses fornecedores decorre do interesse pela manutenção do próprio modelo de organização, pois este agente econômico da atividade referida possui o conhecimento de que os demais agentes também submeter-se-ão às regras estabelecidas, garantindo qualidade compatível ao seu produto. A empresa analisada sob a perspectiva de “firma contratual” organizadora de um feixe de contratos, ajudou a fundamentar o “Teorema de Coase”, famoso por internalizar as externalidades no processo produtivo (SZTAJN, 2002, p. 106). Conforme será visto adiante, a teoria do contrato organização também torna possível a promoção da internalização das externalidades decorrentes da atividade do serviço público. 4.2 O contrato de concessão sob a perspectiva da teoria do contrato organização A característica plurilateral de natureza organizacional e associativa dos contratos de concessão, bem como a possibilidade de inferência da Administração Pública no exercício da atividade, possibilita o estudo do Instituto sob o enfoque de uma teoria de Direito empresarial. Observe-se, todavia, que o caráter plurilateral do contrato de concessão não se confunde com o caráter de mesmo nome que se verifica na hipótese das pessoas jurídicas do tipo res 53 Conforme visto no item 2.1.5, devem estar presente três requisitos: poucos participantes, informação ampla e recíproca e relação continuada. 75 personnarum, onde a pluralidade de pessoas que as integram têm identidade de Direitos e deveres. As semelhanças das relações existentes na concessão com a teoria do contrato organização são inúmeras. Em linhas gerais é possível destacar ao menos três ordens de interesses básicos relacionados nas concessões, quais sejam: os do particular outorgado, do Poder Público e do usuário54. É claro que o usuário não é parte no contrato, sequer o assina, mas seus Direitos são assegurados genericamente pela norma jurídica e especificamente pelas normas do serviço, ou regulamentares, inseridas pelo Poder Concedente no instrumento do contrato de concessão. Cada agente possui interesse na existência da organização, pois o nexo de contratos existente da atividade concedida em tese satisfaz as necessidades de todos, formando um vínculo de interdependência entre os atores da relação. O papel do particular, titular da outorga, é de organizar esse feixe de contratos e gerir conflitos de interesses. Ao contrário da entidade empresarial, que estabelece a organização institucional de acordo com sua livre vontade, a concessão de serviço público possui diversos dispositivos normativos que determinam a participação ativa dos agentes envolvidos na prestação do serviço público. A Lei de Concessões determina que tanto o Poder Concedente quanto o Concessionário prestem informações sobre a qualidade do serviço aos usuários, para defenderem seus Direitos, bem como estimulem a formação de associações para a defesa de interesses relativos ao serviço. Também determina que os fornecedores do outorgado submetam-se, na execução das atividades contratadas, às normas regulamentares do serviço público. A interferência estatal ainda pode manifestarse por meio de normas infraconstitucionais, agências reguladoras e do poder de modificação unilateral das cláusulas exorbitantes do Poder Concedente. Com base nessa interferência da Administração Pública na gestão da empresa outorgada, é possível afirmar que existe bastante estímulo para que o particular organize sua atividade sob a perspectiva da teoria do feixe de contratos. 54 Não estão sendo considerados concessionárias, fornecedores e prestadores de serviço que podem compor os interesses do particular Concedido. 76 O fato de a concessão de serviço público tratar de uma relação continuada, visto que os contratos de concessão, em regra, possuem prazo de vigência relativamente longos, tornam ainda maiores os motivos para o desenvolvimento de técnicas organizacionais. A otimização da estrutura organizacional do concedido visa atingir o melhor custo benefício da atividade, pela otimização do lucro do particular conjugado à melhor qualidade no serviço prestado. É evidente que o outorgado não possui a mesma flexibilidade que o particular em gerir sua estrutura organizacional, face às amarras legislativas de subconcessão e outros instrumentos, mas ainda existem diversas ferramentas disponíveis para se atingir a adequação necessária do serviço público. 4.3 A função social da empresa O Autor do presente trabalho se propõe a analisar a existência ou não de função social das empresas prestadoras de serviço público, com base na apropriação de normas e princípios decorrentes do regime jurídico relativo ao Instituto. Embora exista relação do tema com o assunto no âmbito do Direito Civil, não serão analisadas as particularidades de natureza contratual ou extracontratual relativamente às empresas prestadoras de serviço público. O trabalho centrar-se-á na análise do regime jurídico das concessões. No entanto, antes da análise da função social da concessão de serviço público, é necessário verificar o seu conteúdo jurídico perante particulares que não possuem vinculação direta com a Administração Pública. Para Miguel REALE (2003, p. A2), um dos pontos altos do Código Civil de 2002, é o artigo 421, por que: na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916; ou dá preferência aos valores coletivos, promovendo a ‘socialização dos contratos’; ou, então, assume uma posição intermediária, combinando o 77 individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas concretas. O Jurista informa que a opção adotada é última, devendo portanto o dispositivo mencionado ser interpretado de acordo com o caso concreto. Fundamenta seu posicionamento através da função social da propriedade, estendendo sua aplicação aos contratos. Afirma que os contratos interessam a toda a coletividade, devendo sempre prevalecer o interesse coletivo sobre o individual. Amplamente questionável, sem dúvida, pois inúmeros contratos o interesse privado deve prevalecer, simplesmente pelo fato de envolver determinado Direito fundamental da parte, por exemplo. O próprio Autor, porém nos fornece elementos para um entendimento mais coerente, como se verá linhas abaixo, onde a função social encontra sua razão de ser na dignidade da pessoa humana e, conseqüentemente, não pode a ela sobrepor-se. Segundo Ricardo FIUZA (2004, p. 374), a função social do contrato possui origem na valoração da dignidade da pessoa humana, preceito fundamental, que deve permear a ordem econômica e jurídica. Ao submeter os contratos sob a regência de sua função social, instrumento para a realização da dignidade humana, não se trata de indistintamente realizar “filantropia” aos menos afortunados por meio das relações contratuais. BESSA (2006, p. 141) vai além da função social da empresa, afirma que existe uma responsabilidade social, distinguindo muito claramente a diferença entre responsabilidade social e filantropia: A responsabilidade social diz respeito ao agir em conformidade com o Direito, com a função social da empresa e com princípios de Direito privado, sempre orientados pelo princípio da boa-fé. E isso em toda e qualquer etapa do negócio. As balizas da livre-iniciativa – e, portanto, da responsabilidade social (lembrando que liberdade e responsabilidade são duas faces da mesma moeda) - , encontram-se no ordenamento jurídico e variam conforme a extensão do interesse público envolvido. Mas, quando se diz que a responsabilidade social implica atuar conforme os valores e balizas do ordenamento jurídico, não se pretende uma conotação de que, quando a empresa vai além das exigências legais, trata-se de filantropia e não de responsabilidade social. A diferença está em que, no caso da filantropia, este “ir além da lei” foge à atividade empresarial. Uma fundação cultural não se enquadra no objeto social descrito no contrato de uma indústria de calçados. 78 A responsabilidade social, conforme a Autora, não se refere à filantropia das empresas, mas sim da obediência dos valores constitucionalmente consagrados e das normas infraconstitucionais que os manifestam. Oportuno observar que o termo responsabilidade não é empregado no sentido de responsabilidade jurídica (patrimonial ou pessoal), mas em sentido peculiar, o que, afinal, não configura qualquer impropriedade, pois o mesmo ocorre com a utilização do mesmo termo reponsabilidade pela Lei de Responsabilidade Fiscal, onde responsabilidade absolutamente nada tem a ver com aquela capacidade e dever de alguém sempre que uma situação, a ela atribuída juridicamente, invada o âmbito dos interesses alheios protegidos por norma jurídica. A análise possibilita, além de desmistificar o termo “responsabilidade social”, atribuir limites à sua aplicação. Assim, é possível objetivamente delimitar o âmbito de análise da responsabilidade social da empresa. Os “limites” da responsabilidade social da empresa possuem relação direta com os agentes envolvidos no processo produtivo da atividade. Consoante a teoria do contrato organização estudada no item 4.1.6, é possível verificar a relação entre os agentes envolvidos na atividade por meio do feixe de contratos dela decorrente. Em relação à cadeia produtiva é possível identificar os agentes envolvidos na atividade empresarial: a empresa, os fornecedores, os trabalhadores, o Governo, a população local e o consumidor. O número de agentes participantes pode variar de acordo com a atividade desenvolvida, bem como dos impactos social e ambiental decorrentes dessa atividade. A responsabilidade social das empresas pode ser um valioso instrumento para o desenvolvimento nacional. Contudo, sua análise na seara jurídica ainda precisa avançar muito. De todo modo, noção de responsabilidade social não possui origem no Direito e sim no mercado. Segundo o BNDES, o conceito de responsabilidade social é: O conceito de responsabilidade social corporativa (RSC) está associado ao reconhecimento de que as decisões e os resultados das atividades das companhias alcançam um universo de agentes sociais muito mais amplo 79 do que o composto por seus sócios e acionistas (shareholders). Desta forma, a responsabilidade social corporativa, ou cidadania empresarial, como também é chamada, enfatiza o impacto das atividades das empresas para os agentes com os quais interagem (stakeholders): empregados, fornecedores, clientes, consumidores, colaboradores, investidores, competidores, governos e comunidades. Este conceito expressa compromissos que vão além daqueles já compulsórios para as empresas, tais como o cumprimento das obrigações trabalhistas, tributárias e sociais, da legislação ambiental, de usos do solo e outros. Expressa, assim, a adoção e a difusão de valores, condutas e procedimentos que induzam e estimulem o contínuo aperfeiçoamento dos processos empresariais, para que também resultem em preservação e melhoria da qualidade de vida das sociedades, do ponto de vista ético, social e ambiental (BNDES – Relato Setorial nº1, 2000, p. 3) A responsabilidade social não reflete apenas o interesse dos sócios da empresa, mas se estende a todos os indivíduos, e bens jurídicos, envolvidos na atividade. Impende ressalvar que a noção até pode ter origem no mercado, mas será jurídica somente a partir do momento em que uma norma jurídica dela se ocupe; caso contrário, não terá relevância para o Direito. Clara, afinal, e inequivocamente, a Constituição da República libera qualquer um do dever de fazer ou não fazer algo senão em virtude de lei (e na noção juridicamente aceitável desse “algo” sem dúvida se inclui toda situação considerada pelo mercado como de, mas de uma função social a cuja observância norma nenhuma ainda tenha especificamente obrigado). Em que pese, na prática, haver certa identidade das repercussões jurídicas entre os termos “função social” e “responsabilidade social”, adotar-se-á aquele, porque, além da inadequação a que já se fez breve referência, a noção de responsabilidade social traz a idéia de uma atividade externa à empresa, ao contrário da função social que traz consigo a idéia de atividade inerente à empresa. Consoante já se antecipou no presente trabalho, é evidente que a função social da empresa deve possuir como ponto de partida a regulamentação por parte do Poder Público, uma vez que trata da sujeição do particular a certas obrigações decorrentes do ordenamento jurídico. Há quem diga que a intervenção do Estado nas relações comerciais entre particulares pode gerar efeitos negativos indesejados, inclusive o desestímulo à atividade empresarial. Não obstante a presença de um certo radicalismo na afirmação, há de reconhecer sua pertinência. 80 Segundo SZTAJN (2005, p. 40-41), a intervenção de uma terceira pessoa externa à relação contratual pode interferir na confiança existente entre as partes, gerando repercussões que ultrapassam a esfera contratual. Baseia sua crítica na função social do contrato do artigo 421, do Código Civil, dispositivo legal que permite a submissão dos contratos à revisão judicial. A assimetria de informações das relações contratuais pode gerar decisões muitas vezes desastrosas sob a perspectiva econômica. De acordo com a Autora, essa interferência do Poder Público pode comprometer determinadas condutas dos agentes econômicos, causando externalidades negativas perante todos os agentes envolvidos na atividade. Cita como exemplo as decisões judiciais proferidas em ações revisionais cujo objeto versou sobre os contratos de venda futura de soja por agricultores à indústria. A relação comercial entre as partes, agricultores e industriais, tratava da compra futura de soja, que seria adquirida pelo valor à época da sua assinatura com pagamento adiantado. A supervalorização do preço da soja e derivados levou os agricultores a buscar tutela jurisdicional com o intuito de trazer “equilíbrio” na relação contratual relativa à divisão dos lucros, com base na função social do contrato. A decisão favorável aos agricultores gerou uma quebra de confiança perante a indústria que ultrapassou a esfera pessoal do contrato. Os industriais passaram então a adquirir os insumos pelo preço de mercado vigente ao final da safra. Essa mudança de comportamento perante o mercado gerou uma série de efeitos negativos que prejudicaram principalmente os agricultores, pois a antecipação da compra futura permitia aos agricultores a aquisição de sementes, adubos, defensivos e outros insumos. O resultado foi o endividamento com instituições financeiras, cujo risco anteriormente dividido com a indústria, passou a recair exclusivamente sobre os agricultores. No caso citado por SZTAJN, é possível constatar que a interferência do Poder Judiciário e a assimetria de informações geraram um resultado comercial desastroso. Porém o fato de existirem externalidades negativas decorrentes da intervenção do Poder Público cujo objetivo é a realização da função social, não significa que não deva ser utilizada. Apesar do caso específico, e peculiar, acima referido, são do conhecimento de todos inúmeras outras situações, não raro 81 muito semelhantes à descrita, nas quais a atuação estatal não produziu externalidades negativas, ou até resultou em externalidades positivas, e muitas vezes se fez necessária. É claro que o Estado ao intervir em relações comerciais de particulares, pode adotar medidas que desagradem ou inviabilizem a atividade mercantil. Todavia, não significa que não deva atuar de forma técnica e pontual em determinados segmentos do mercado a fim de manter o equilíbrio nas relações comerciais. 82 5 A FUNÇÃO SOCIAL DAS PRESTADORAS DE SERVIÇO NA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO Conforme visto nos itens 2.2.1 e 2.2.2, a natureza jurídica do serviço público submete-se tanto ao regime jurídico administrativo quanto ao regime privado administrativo. Essa característica permite que os princípios e regras presentes nos dois regimes possam ser aplicados de forma conjunta. Os particulares prestadores de serviço público devem desenvolver programas para a promoção do desenvolvimento de todos os agentes envolvidos na atividade com base no preceito constitucional de desenvolvimento nacional; subordinam-se também a algumas regras de Direito privado, cujo conteúdo orienta a utilização de princípios como a boa-fé e a função social do contrato. A grande questão da promoção do desenvolvimento dos agentes econômicos partícipes da atividade pelo particular titular da outorga do serviço público é: o particular poderia ser obrigado a promover o desenvolvimento? De que forma ele pode ser obrigado? Quais os limites para a promoção do desenvolvimento? A identificação dos agentes econômicos envolvidos no processo produtivo da atividade é um aspecto fundamental para responder a estas questões. Essa análise será realizada segundo a teoria do contrato organização, apresentada no item 4.1.6. Consoante visto no item 3.2, a concessão do serviço público pode ser analisada sob a perspectiva da organização de um feixe de contratos, por meio de um agente econômico, inter-relacionados a uma atividade produtiva. De acordo com os dispositivos legais relativos à espécie basicamente os sujeitos envolvidos no contrato de concessão são: o Poder Público, o particular titular da outorga e o usuário. No entanto, para a análise da função social do Instituto, devem ser incluídos nesse feixe de contratos os fornecedores, terceiros envolvidos, bens sociais, econômicos e ambientais. 83 Sobre o regime jurídico aplicável a essa espécie de relação contratual devem ser analisados os preceitos fundamentais contidos na Constituição da República, as regras e princípios informativos das normas infraconstitucionais que garantem a realização concreta daqueles, tais como: Código Civil, Lei de Concessão de Serviço Público, Código de Defesa do Consumidor, Consolidação das Leis Trabalhistas, agências reguladoras, etc. Não obstante a adoção da teoria da aplicação de regime jurídico específico de acordo com cada espécie de contrato de concessão (JUSTEN FILHO, 2003, p. 290), entende-se que as normas de Direito privado são aplicáveis apenas de forma subsidiária em relação ao Poder Público, como bem demonstrado por BACELLAR (2007, p. 176). Esse capítulo trata da convergência dos estudos anteriormente apontados, realizando uma construção teórica entre os vários Institutos apresentados, utilizando algumas espécies de concessão de serviço público a fim de demonstrar a factibilidade da internalização das externalidades presentes na atividade; ao final apresenta alternativas para a aplicação concreta da função social da concessão do serviço público. 5.1 A função social55 da concessão de serviço público A Constituição da República representa a institucionalização de diversos valores morais no ordenamento jurídico, o fato de esses valores terem sido positivados pela Constituição a eles é atribuído valor político e status jurídico diferenciados, seja pela vinculação da produção legislativa na promoção de sua realização, seja pelas políticas públicas apresentadas pelos governos das diversas esferas da Administração. Um dos princípios fundamentais da Constituição da República é a promoção do desenvolvimento nacional, cuja persecução repercute também na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na erradicação da pobreza e da marginalização, na redução das desigualdades sociais e regionais, na 55 função social como instrumento de desenvolvimento nacional. 84 realização da dignidade da pessoa humana institucionalizados na Constituição e fora dela. entre outros valores A preocupação pela busca do bem-estar da população brasileira pelo legislador constituinte é aparente, como não poderia deixar de ser. A busca pela dignidade da pessoa humana, por meio do desenvolvimento nacional também é um dos objetivos fundamentais da República vinculando todas as esferas do Estado na concretização desses objetivos. É importante destacar que todos - os brasileiros - estão vinculados à Constituição e não apenas o Estado e suas diversas Instituições. A diferença que se apresenta entre os particulares56 e os órgãos públicos na consecução do desenvolvimento nacional parece estar vinculada à obrigatoriedade de sua promoção. Ao contrário do Estado, o cidadão não pode ser constrangido a promover o desenvolvimento nacional, ou qualquer outro dos objetivos fundamentais da República. O que aparentemente parece razoável, pois não se imagina, por exemplo, o Ministério Público propondo ação para que determinado empresário “abra” um comércio em determinada cidade, com o intuito de promover o desenvolvimento da região, ou então promovendo ação pelo fato desse empresário estar se omitindo na promoção de medidas para a erradicação da pobreza. Evidente que o particular não pode ser constrangido da mesma forma que o Estado na promoção desses objetivos presentes na Constituição, o que não exclui outras formas de exigi-lo. A questão que se coloca é se os particulares, titulares da outorga do serviço público, podem ou não ser constrangidos a promover os objetivos da Constituição, ou desempenhar sua função social, da mesma forma que o Poder Público o é. Para se responder a esta pergunta, recorrer-se-á à análise dos regimes jurídicos aplicáveis à espécie. Conforme visto nos itens 2.2.1 e 2.2.2, o serviço público pode se submeter aos regimes jurídico-administrativo e privado administrativo. O contrário não 56 O termo “particular” refere-se às demais “pessoas” que não possuam natureza de Direito Público. 85 poderia ocorrer na outorga, pois, independente da sua execução por particular, a atividade continua sendo serviço público. O que de fato deve-se abstrair da aplicação dos dois regimes “ao mesmo tempo”, é que, bem da verdade, não se trata da aplicação de dois regimes jurídicos sobre um mesmo objeto, mas sim de uma terceira espécie de regime jurídico. Consoante as observações de JUSTEN FILHO (2003, p. 159), os contratos administrativos não representam uma categoria homogênea, principalmente nos contratos de concessão de serviço público, visto que as peculiaridades da grande variedade de espécies de concessão tornam impraticável a utilização de um regime jurídico geral para todas as espécies. O assunto exige muita reflexão sobre a aplicação dos princípios e regras em cada caso. Já estabelecidas as ressalvas sobre a complexidade do regime jurídico aplicável, com o estudo apresentado, é possível identificar linhas gerais sobre os regimes jurídicos utilizáveis nos casos de concessão de serviço público. Indiscutível é a aplicação do regime jurídico administrativo, já que independentemente da sua execução por uma entidade privada, a atividade continua sendo de titularidade do Estado, submetendo-se aos princípios existentes na Constituição, na legislação infraconstitucional, e também no contrato de concessão. O estudo apontado no item 2.2.1 demonstra que o particular está vinculado a esse regime por meio dos princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade dos bens públicos pela Administração e dos princípios correspondentes. A aplicação do regime jurídico administrativo vincula os atos administrativos do outorgado aos objetivos da Constituição da República. Assim, inexoravelmente o particular deve cumprir os preceitos constitucionais enquanto investido na execução do serviço público. Contudo, a complexidade da matéria exige análise mais profunda. De acordo com BACELLAR FILHO (2007, p.97-109), a função administrativa do Estado admite a aplicação de forma subsidiária de princípios e regras de Direito Privado. É importante ressalvar que a aplicação desse regime não ocorre de forma “pura”. Do mesmo modo que os regimes jurídicos público e privado regem 86 as relações administrativas de forma específica, podendo até se falar em regime privado administrativo. Há um enorme universo de princípios e normas de regime jurídico privado aplicáveis no exercício da outorga do serviço público. Dentre eles, destacam-se vários dispositivos, tais como: limitação da liberdade de contratar em razão da função social do contrato; a presença de probidade e boa-fé na celebração dos contratos; Direito dos consumidores; e outros. Esses dispositivos podem ser considerados como instrumentos de regulamentação das relações sociais entre os particulares. Ora, a conduta de lealdade na celebração de contratos nada mais é do que a manifestação de uma relação social, o que indica a manifestação do ordenamento jurídico nas relações interpessoais. O particular titular da outorga possui diferenças fundamentais em relação ao servidor público na prestação direta do serviço público, pois aquele deve submeter-se às normas e princípios de ordem privada que regulamentam suas relações sociais, as quais, em princípio, não vinculam o servidor público57. Desse modo, o concessionário além de submeter-se às normas e aos princípios de regime jurídico administrativo, deve também submeter-se às regras de comportamento existentes no regime jurídico privado58. Apesar de uma aparente contradição, não se trata da aplicação de dois regimes jurídicos distintos, mas sim de uma espécie de regime jurídico que absorve a aplicação de normas e princípios de dois sistemas diferentes. De acordo com o regime jurídico específico é inegável a presença de função social na concessão de serviço público, seja pela própria essência do Instituto, seja pelo regime dela decorrente. Função social a qual, aprioristicamente, possibilita a conclusão de que o objeto da concessão não versa exclusivamente sobre a prestação adequada do serviço público, mas também de promoção do desenvolvimento nacional. 57 Por óbvio, o servidor público deve agir com boa-fé, mas o instrumento normativo é o da moralidade administrativa e outras normas e princípios aplicáveis à espécie, mas não as de Direito privado. 58 Tome-se por exemplo as relações contratuais com fornecedores, que de acordo com o artigo 25, da Lei 8.987/95, submeter-se-ão ao regime de Direito privado. 87 5.1.1 A análise da função social da concessão do serviço público na promoção do desenvolvimento. Superada a questão da existência de função social na concessão, é necessário definir o significado da sua expressão. Alguns Autores como SZTAJN (2005, p. 29-49) entendem que a empresa já cumpre sua função social no exercício regular de sua atividade ao promover a contratação de funcionários, pagar em dia suas obrigações tributárias, honrar seus compromissos, etc. Segundo a Autora, a interferência do Estado na área privada pode trazer consigo repercussões indesejáveis, como respaldar a pretensão de oportunistas e desestimular a iniciativa privada. É indiscutível que a atividade de prestação de serviço público possui função social, o que é inerente à sua natureza, porque o objetivo principal da atividade não é o lucro pela exploração da atividade, mas a satisfação do interesse público. Por óbvio, o interesse primário do particular na outorga não é a promoção da função social da atividade, e sim a justa remuneração pela prestação do serviço. Wilges BRUSCATO (2005, p. 66) afirma que não se deve transferir ao empresário a tarefa de promover a justiça social por meio da responsabilidade social; a realização de justiça social é a tarefa do Estado com a colaboração de todos. Por outro lado, alguns Autores como BESSA (2006, p. 141) entendem que a função social da empresa atinge todos os agentes econômicos envolvidos na atividade produtiva; considera ainda que a atividade produtiva gera externalidades negativas que devem ser internalizadas no processo produtivo. A Autora ainda defende a tese da existência de responsabilidade civil da empresa baseada na interpretação sistêmica do ordenamento jurídico. Ao desempenhar sua atividade a empresa pode gerar externalidades, sejam positivas ou negativas. As externalidades podem ser definidas como os efeitos causados a terceiros estranhos à relação contratual, que podem corresponder a algum dano ou benefício. 88 Analisando as duas perspectivas sobre função social é possível constatar a existência de uma aparente divergência entre as linhas teóricas apresentadas, o que na prática não ocorre. Ambas as teorias possuem como fonte comum as noções introduzidas pelo diagrama de COASE, o qual aprimora a teoria do contrato organização internalizando as externalidades negativas do feixe de contratos sem repassar os custos da produção (alocação de recursos), Os Autores59 concordam que o ordenamento jurídico brasileiro possui instrumentos suficientes para promover a reparação de danos sofridos, ou estabelecer obrigações de fazer e não fazer. De fato, a empresa deve ser responsabilizada pelos danos causados a terceiros pela sua atividade. Nesse caso, não há uma responsabilidade exclusiva do empresariado em realizar o papel do Estado, mas apenas o de cumprir as determinações do ordenamento jurídico. Assim, a empresa ao internalizar uma externalidade negativa relacionada à sua cadeia produtiva nada mais faz do que responsabilizar-se pelos riscos de sua atividade. Ocorre que esta “não-responsabilidade” das empresas particulares em promover diretamente a justiça social decorre de seu regime jurídico, ao contrário da concessão de serviço público, que se submete ao regime jurídico administrativo estando vinculado diretamente com os objetivos da Constituição da República. Diante da vinculação direta das prestadoras de serviço público à promoção de função social60 relativa aos preceitos fundamentais, deve o outorgado por obrigação legal promover o desenvolvimento. Conforme a construção realizada no capítulo 2, o desenvolvimento é um instrumento de concretização da dignidade da pessoa humana; não trata de uma finalidade em si mesma pois está em constante evolução. O que se tem discutido sobre desenvolvimento é sua superação em relação ao crescimento econômico, cuja interpretação deve ser promovida como um processo econômico, social, ambiente, cultural e político com o objetivo de 59 60 Rachel Sztajn, Wilges Bruscato, Fabiane Lopes Bueno Bessa, e outros. Como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional. 89 promover o bem-estar de toda a população e da distribuição justa de seu resultado (SILVA, 2006, p. 47). O desenvolvimento deve ser realizado de forma sustentável, a fim de traduzir eficiência econômica, justiça social e harmonia ambiental, deve representar não somente um crescimento quantitativo, mas também qualitativo. Nesse sentido, a concessão de serviço público deve ser um instrumento para a promoção de todos esses elementos. Conforme o item 3.2, a concessão de serviço público pode ser analisada sob a perspectiva da teoria do contrato organização, uma vez que o particular titular da outorga organiza contratos de várias espécies a fim de desempenhar a atividade de acordo com os princípios a ele vinculados. Ao desempenhar seu papel é possível afirmar que já estaria cumprindo sua função social, visto que como um agente fundamental na cadeia produtiva estaria gerando emprego, realizando a concretização de valores como a dignidade da pessoa humana por meio da universalização do serviço público, gerando renda aos fornecedores de produtos e serviços, etc. Contudo, é necessário apurar a existência de externalidades a serem internalizadas no processo produtivo, que podem variar em cada caso. É importante destacar que a função social da concessão de serviço público não se refere à filantropia, como a distribuição de cestas básicas ou doações de qualquer espécie, mas sim da relação contratual e extracontratual do particular titular da outorga com os demais agentes envolvidos na atividade. Veja-se, por exemplo, a outorga do serviço de energia elétrica. São inúmeras as externalidades inerentes à atividade, haja vista que durante todo o processo de geração, transmissão e distribuição energética existem vários impactos ambientais e sociais e um sem número de fornecedores vinculados à atividade. O serviço de energia elétrica, regulamentado pela Lei 9.074/95, dispõe que toda a licitação de aproveitamento ou implantação de usinas hidrelétricas não poderá ser realizado sem a definição de aproveitamento ótimo do potencial hidrográfico61. 61 Art. 5º São objeto de concessão, mediante licitação: § 1o Nas licitações previstas neste e no artigo seguinte, o poder concedente deverá especificar as finalidades do aproveitamento ou da implantação das usinas. 90 O parágrafo 2º, do artigo 5º, da referida Lei, é um instrumento que vincula o Poder Concedente a determinar no edital de licitação qual seria o aproveitamento ótimo da geração de energia proveniente de usinas hidrelétricas. Tal medida utiliza uma técnica geralmente adotada em contratos administrativos determinando uma qualidade mínima do serviço ou produto. Instrumentos importantes, pois o edital de licitação deve ser suficientemente claro nas especificações de seu objeto para que, com base no princípio da vinculação, os interessados ofereçam propostas de acordo com as expectativas do objeto a ser licitado. Uma eventual mudança nos dispositivos previstos no edital pode ensejar um pedido de restauração do equilíbrio financeiro, desde que haja depreciação patrimonial do outorgado. Nesse aproveitamento ótimo deve ser considerada a melhor utilização do potencial hidrelétrico, aspectos ambientais e sociais decorrentes da geração de energia, ou seja, o Poder Concedente deve apresentar no edital o melhor aproveitamento sustentável da geração de energia, o que demonstra a internalização das externalidades negativas no processo energético por meio das normas de Direito. 5.2 Instrumentos jurídicos aptos a exigir a realização da função social da concessão do serviço público O particular titular da outorga do serviço público submete-se a algumas formas de controle na execução do serviço público, as quais se corporificam, por exemplo, por meio de alterações unilaterais das cláusulas regulamentares, pelos demais atos das agências reguladoras e pelo controle do Judiciário e de entidades civis. § 2o Nenhum aproveitamento hidrelétrico poderá ser licitado sem a definição do "aproveitamento ótimo" pelo poder concedente, podendo ser atribuída ao licitante vencedor a responsabilidade pelo desenvolvimento dos projetos básico e executivo. § 3o Considera-se "aproveitamento ótimo", todo potencial definido em sua concepção global pelo melhor eixo do barramento, arranjo físico geral, níveis d’água operativos, reservatório e potência, integrante da alternativa escolhida para divisão de quedas de uma bacia hidrográfica. 91 Com a permanente busca pela adequação do serviço público, entende-se que a internalização das externalidades negativas inerentes à atividade possam ser incorporadas a esses critérios de qualidade. A seguir, serão apresentados alguns instrumentos jurídicos, utilizados como forma de aprimoramento do serviço público concedido, que podem realizar profícuas contribuições na identificação e internalização dessas externalidades negativas. 5.2.1 A alteração desenvolvimento das cláusulas regulamentares e a promoção do A alteração unilateral das cláusulas regulamentares é um instrumento fundamental para a efetivação dos princípios da atualidade e adequação do serviço público, porque permite ao Poder Público exigir do delegatário as adaptações necessárias para a melhor execução do serviço. A inclusão de externalidades negativas decorrentes do exercício da atividade pode ser também objeto do poder regulamentar da concessão. O serviço público deve submeter-se ao princípio adequação. Não seria possível admitir a adequação de um serviço público se na execução dessa atividade são produzidos danos ambientais e/ou alguma espécie de degradação social. Do mesmo modo, além de internalizar as externalidades negativas decorrentes da atividade, a concessão de serviço público pode ser utilizada como instrumento para implementação de políticas públicas na promoção do desenvolvimento. Por meio do poder regulamentar da Administração Pública, o outorgado pode, por exemplo, ser compelido a promover o desenvolvimento62 de todos os fornecedores contratados para a realização das atividades. Conforme o parágrafo 3º, do artigo 25, da Lei 8.987/95, os terceiros contratados para o desenvolvimento de atividades inerentes devem fazê-lo de acordo com as normas regulamentares da modalidade do serviço concedido. Em 62 o significado do termo “desenvolvimento” está disposto no capítulo 2 do presente trabalho. 92 outras palavras, com base no dispositivo indicado o Poder Concedente pode determinar que o outorgado promova, ou exija, o treinamento dos particulares para que o serviço prestado seja mais eficiente, consoante as exigências da Administração Publica. Treinamentos atendimento ao que podem consumidor, estar meio relacionados ambiente, com gestão melhorias da no informação, aprimoramento tecnológico do serviço prestado, além de certificados de qualidade como o ISO 9002, etc. O outorgado poderá promover o desenvolvimento de parte considerável dos agentes envolvidos no processo produtivo, pelo feixe de contratos da empresa, contribuindo para o aprimoramento dos fornecedores da concessionária. Essas medidas podem promover um crescimento qualitativo considerável, principalmente em relação aos usuários na prestação de um serviço adequado. 5.2.2 Regulação e desenvolvimento Além do poder de alteração unilateral das cláusulas regulamentares da Administração Pública como instrumento jurídico de realização da função social da concessão do serviço público, as agências reguladoras também desempenham um papel fundamental para a sua promoção. O tema “agências reguladoras” é de profunda complexidade, a modalidade de agência reguladora a que se refere o presente trabalho, segundo a classificação de BANDEIRA DE MELLO (2004, p. 157), é a relativa à disciplina e controle dos serviços públicos propriamente ditos. A definição de agência reguladora a ser utilizada no presente trabalho é a proposta por JUSTEN FILHO (2006, p. 475): Agência reguladora independente é uma autarquia especial, sujeita a regime jurídico que assegure sua autonomia em face da Administração direta e investida de competência para a regulação setorial. 93 O enfoque sobre o objeto das agências reguladoras será o da promoção do desenvolvimento, pela distribuição de renda, informação e estímulo à cooperação, conforme visto no item 3.1.5. A especialização setorial das agências na regulação e controle do serviço público permite que essas autarquias possuam qualificação técnica específica para aplicar políticas a fim de promover o desenvolvimento das camadas sociais e da elevação do nível cultural-econômico (GRAU, 1997, p. 238-239). Esse desenvolvimento, conforme SALOMÃO FILHO (2002, p. 41-56), pode ser alcançado pela descoberta de métodos para a eliminação de concentração absoluta de poderes estruturais, a difusão do conhecimento econômico e o estímulo da cooperação. O princípio de redistribuição de riqueza trata da realização de uma função que o mercado expontaneamente não assumiria, é uma forma de gestão cujos fundamentos estão calcados em valores e não em resultados econômicos. O Estado possui outros elementos de redistribuição de renda além da regulação, tais como a tributação, mas que aplicados de forma singular e macroscópica não têm apresentado muitos resultados positivos. A aplicação conjunta de medidas regulatórias, conjugada com instrumentos tributários setoriais, pode ser uma ferramenta eficaz para combater a concentração de renda. A regulação como instrumento normativo e sancionatório especializados de acordo com as particularidades de cada mercado, ou no caso do serviço público, e a utilização de instrumentos tributários como a contribuição de intervenção no domínio econômico para a criação de fundos vinculados à intervenção compensatória do Estado em determinada atividade ou setor particularmente atingido (SALOMÃO FILHO, 2002, p. 42-43). Esses instrumentos são geralmente utilizados para diminuir a concentração de renda decorrente dos monopólios que surgem em determinados setores da Economia, bem como para regular os impactos dela decorrentes, tais como: danos ambientais e ao consumidor, assegurar a livre concorrência, etc., mas podem ser apropriados na realização da função social da concessão de serviço público. Outro instrumento de redistribuição de renda é a universalização do serviço público, que necessariamente não importa em resultados lucrativos ao outorgado, pois geralmente se trata da extensão da atividade até usuários que se encontram 94 em regiões longínquas ou de difícil acesso, que muitas vezes não possuem condições financeiras para custear a correspondente tarifa. O fundo gerado com a contribuição poderia ser utilizado para subsidiar a tarifa correspondente ao serviço público a famílias de baixa renda por exemplo. Segundo Diogo Rosenthal COUTINHO (2002, p. 82), a universalização do serviço público gera externalidades sociais positivas que podem ser definidas da seguinte forma: Externalidades sociais podem ser definidas como todas as formas de interdependência direta entre membros de um sistema econômico que não ocorrem por meios de mecanismos de mercado ou que não são medidas por critério de preço. Como exemplos de externalidades sociais positivas podem ser citados benefícios sócio-econômicos gerados por novos investimentos atraídos pela maior oferta dos serviços de energia elétrica, telecomunicações e transportes em uma determinada região e a melhoria da saúde da população com investimentos em saneamento básico. É senso comum que a infra-estrutura de uma região desperta o interesse de investidores. A universalização do serviço público, ao se estender a regiões distantes, em um primeiro momento pode não corresponder a um imediato retorno econômico do investimento realizado, mas pode fomentar nessas regiões o respectivo desenvolvimento. Os benefícios da universalização do serviço público não são apenas quantificáveis pelo retorno financeiro, podem ser aferidos pela melhoria da qualidade de vida da população por meio de índices de desenvolvimento humano. Para o Autor a melhoria da qualidade de vida dos usuários é difícil de ser quantificada, porque devem ser considerados elementos subjetivos: É muito difícil aferir e quantificar as externalidades sociais positivas decorrentes da universalização. Se fosse possível, contudo, contabilizar os ganhos de bem-estar manifestados sob essa forma, ver-se-ia que a melhoria efetiva de condições de acesso a serviços públicos traz efeitos positivos exponenciais. Para usar um exemplo da área de saneamento básico, basta tentar imaginar o efeito concreto de se expandir uma rede de esgoto a um bairro desassistido. A potencialidade de ganhos de bem-estar é infinita e se projeta no tempo por diversas gerações de pessoas que não mais, por exemplo, contrairão doenças em razão da utilização de água não tratada. Da mesma forma, são inesgotáveis as possibilidades, sob a forma de externalidades positivas, que passa a ter, por exemplo, uma família a quem se oferece o consumo de energia elétrica. Guardadas as diferenças, pode-se dizer o mesmo para os demais serviços públicos prestados em redes e infra-estrutura. 95 A regulação é um instrumento importante na busca da universalização do serviço público, que por sua vez possui relação direta com a promoção do bemestar social da população. A utilização da regulação como instrumento de redistribuição de renda, que não necessariamente deve corresponder à efetiva distribuição de dinheiro, conjugada a instrumentos parafiscais, tais como a CIDE, podem se tornar ferramentas efetivas para a promoção do desenvolvimento social. A criação de um “fundo” desvinculado ao Poder Público gerido pela agência reguladora, detentora do conhecimento técnico setorial, pode promover a inclusão social garantindo o acesso gratuito ao serviço público das camadas mais pobres da sociedade. Evidente que a formação de um fundo possui caráter financeiro. A solução para a instituição de contribuições fiscais deve necessariamente considerar quem será responsabilizado pelo recolhimento do referido tributo. Sobre esse assunto a capacidade técnica dos agentes reguladores é fundamental, pois deve considerar as particularidades da atividade desenvolvida a fim de que haja equilíbrio na distribuição dos encargos, que ao final não recaia exclusivamente sobre o usuário do serviço nem somente ao outorgado. Outro instrumento necessário para a promoção do desenvolvimento é a difusão do conhecimento econômico. A informação é um instrumento fundamental para que o usuário tenha maior discernimento no processo de escolha do produto garantindo a liberdade de escolha. Tal situação pode ser melhor identificada em regimes de concorrência (SALOMÃO FILHO, p. 49). No caso do serviço público, que invariavelmente é organizado no regime de monopólio, a difusão da informação cumpre outro papel, na construção da participação democrática dos envolvidos na atividade. A participação de todos os envolvidos na concessão de serviço público na elaboração de regulação, além de desempenhar um papel democrático fundamental às Instituições do Estado Democrático de Direito, aproxima os agentes reguladores da realidade econômica e social do setor econômico correspondente. Ao mesmo tempo em que a promoção da difusão do conhecimento econômico à sociedade pode ser realizada pela regulação, as vivências e 96 informações das camadas sociais e agentes econômicos63 envolvidos servem para aprimorar os instrumentos regulatórios das agências, criando desse modo um constante aperfeiçoamento dos instrumentos de informação e regulatórios. A participação do usuário do serviço público possui relevância por se tratar do destinatário final da atividade. A difusão da informação aliada à respectiva participação democrática do usuário no cumprimento dos princípios relativos à adequação do serviço podem ser instrumentos de melhoria na qualidade dos serviços e aumento do bem-estar social. Instrumentos de informação já são utilizados para propiciar inclusive maior integração da comunidade no melhor resultado do serviço público, por exemplo: campanhas de racionamento de água e energia, separação de lixo reciclável, etc. A difusão da informação e a distribuição de renda podem produzir a construção de um desenvolvimento permanente se conjugados ao princípio do estímulo à cooperação. Conforme visto no item 3.1.5, esses dois princípios garantem apenas a possibilidade de que os participantes, no processo econômico, sejam capazes de escolher livremente, no caso de concorrência. Todavia, é necessário que o Poder Público crie mecanismo para que esses participantes possam comparar escolhas individuais com escolhas sociais ou cooperadas, optando pela última. Segundo a teoria dos jogos, para os agentes optarem pela cooperação são necessárias três condições mínimas: pequeno número de participantes, existência de informação sobre os demais e a relação de existência de relação continuada entre os agentes. É claro que as situações analisadas no item 3.1.5 consideraram o mercado econômico, e não a concessão de serviço público que possui características muito diferentes. Não obstante a existência dessas diferenças, é possível apropriar-se da teoria dos jogos como forma de estimular a cooperação entre os agentes envolvidos realizando as seguintes ponderações: a concessão de serviço público trata de uma relação continuada, haja vista que o prazo médio de vigência dos contratos é de 30 anos; a questão do número de participantes deve ser 63 Nesse caso, considerados foram considerados o concessionário, os fornecedores, o Poder Concedente, a sociedade civil e os usuários. 97 considerada de acordo suas categorias64 e não em grandeza numérica, pois inviabilizariam a aplicação da teoria; a questão da informação pode ser resolvida pela regulabção do setor e de políticas públicas. Uma das formas de colaboração entre os agentes envolvidos na concessão do serviço público se manifesta através do constante aprimoramento do serviço público, que pode ser realizado mediante instrumentos de informação, participação da Sociedade Civil ou de participação diretamente pelo próprio usuário. Para isso, o outorgado em conjunto com a agência reguladora deve disponibilizar os instrumentos necessários para a instrumentalização da participação do usuário e da Sociedade Civil, bem como a criação de mecanismos aptos a propiciar a transparência dos resultados dessa cooperação. O estímulo da cooperação, por meio da regulação, possibilita desenvolver instrumentos para realizar a identificação de externalidades negativas, que via de regra, não são percebidos no processo produtivo da atividade, haja vista que os índices econômicos65 normalmente utilizados não são ferramentas aptas para verificar as repercussões sociais e ambientais. A partir da internalização dessas externalidades identificadas com a cooperação, a concessão do serviço público pode desempenhar sua função social de forma eficaz sem depender da contratação de caras empresas de consultoria. 5.2.3 O controle pelas entidades civis e Ministério Público Outro instrumento existente para exigir a realização da função social da concessão do serviço público são as entidades civis e o Ministério Público, que podem “controlar” judicialmente algumas externalidades provocadas pela realização do serviço. 64 No caso de considerar o Poder Público, o particular titular da outorga e o usuário como categorias distintas. Normalmente os índices econômicos utilizados para aferir os custos da produção possuem como base dados contábeis que não são aptos para aferir externalidades negativas sociais e ambientais. 65 98 Vale lembrar que a Lei 8.997/95 determinou o estímulo de formação de associações de usuários pelo Poder Concedente, a fim de promover melhorias na prestação do serviço público e na defesa dos Direitos dos usuários. A defesa dos interesses dos usuários pode ser promovida com a tutela jurisdicional que pelo Poder Judiciário podem compelir os outorgados a fazer ou deixar de fazer determinada atividade que cause algum tipo de externalidade. São diversos os instrumentos processuais aptos a atingir os fins pretendidos, tais como: mandado de segurança, ação popular, ação coletiva, tutela inibitória, etc. O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de vasta produção normativa, jurisprudencial e doutrinária tutelando interesses coletivos e difusos. A Sociedade Civil e o Ministério Público possuem legitimidade ativa para representar os usuários de serviço público bem como qualquer pessoa ou comunidade perante o outorgado ou Poder Concedente. Contudo, a participação da Sociedade Civil e do Ministério Público necessariamente não precisam ser litigiosas. JUSTEN FILHO (2003, p. 295-298) acredita que a Sociedade é parte integrante da concessão do serviço público. A Sociedade Civil possui papel fundamental na integração dos interesses da Sociedade à prestação do serviço público. Conforme visto no tópico anterior, a Sociedade Civil pode ser um agente cooperativo no aprimoramento da adequação do serviço público, bem como da internalização das externalidades da atividade. A existência de grupos de pressão sobre efeitos indesejáveis na execução do serviço viabiliza a participação democrática nas relações da concessão, contribuindo para a identificação de pontos negativos e proporcionando a melhor organização da gestão dos agentes envolvidos. 99 5.3 Alguns aspectos limitadores da abrangência da função social da concessão de serviço público Tarefa tão importante quanto comprovar a existência da função social da concessão de serviço público é a demonstração de seus limites. Por meio da construção teórica do presente trabalho, busca-se comprovar a existência de função social da concessão de serviço público apropriando-se dos diversos ramos do Direito, inclusive tomando emprestados alguns conceitos de Economia. Analisando o regime jurídico do Instituto, chega-se à conclusão de que possui maior função social em relação ao particular, e de certa forma menor do que a Administração Pública. Uma possível limitação da função social da concessão basicamente pode ser definido pelas formas quantitativa e qualitativa. Quantitativa em relação ao universo de sujeitos e bens jurídicos a serem considerados, por exemplo: usuários, fornecedores, meio ambiente, comunidade, funcionários, etc. A questão qualitativa representa a “quantidade de investimento” a ser despendida pelo outogado. 5.3.1 Limites quantitativos da função social da concessão de serviço público As possíveis limitações quantitativas podem ser demonstradas pela noção de empresas propostas por COASE, cujo conceito pode ser sintetizado pela expressão “organização de feixe de contratos”, promovendo a restrição do número de agentes envolvidos no processo produtivo. Nesse sentido, é necessário que através da existência de cooperação entre o Poder Concedente, os usuários, a concessionária, as entidades civis, fornecedores e empregados, contribuam para o constante aperfeiçoamento do serviço público, trocando informações e internalizando externalidades negativas para que sejam considerados todos os sujeitos e bens jurídicos nas tomadas de 100 decisão. Por meio da cooperação entre os envolvidos na realização da função social como instrumento de promoção do desenvolvimento de todos. Destaque-se que a identificação dos sujeitos, ou objetos66, envolvidos no feixe de contratos organizado pelo delegatário, serve como instrumento para restringir a abrangência de atuação da função social, e não de expandi-la. A utilização da concessão de serviço público para a exclusiva promoção de políticas públicas é uma conduta reprovável, uma vez que o objetivo primário da concessão é a realização do serviço público orientado pelos princípios da adequação. Desse modo, a função social da concessão não se presta a atribuir funções ao delegatário que não estejam descritas no edital nem ao contrato de concessão. Mas simplesmente de responsabilizá-los quanto a qualquer dano causado pelo exercício da atividade; nesse sentido, são necessários instrumentos para sua identificação. A Administração Pública não poderia, por exemplo, obrigar o concessionário de telefonia a subsidiar o transporte coletivo para idosos com idade superior a 60 anos, ou distribuir cestas básicas às comunidades carentes, ou perfurar poços artesianos na região árida do nordeste brasileiro; a princípio, essas atividades não possuem relação alguma com o serviço desempenhado pela empresa de telefonia, não podendo desse modo ser compelido pelo Poder Público sob o pretexto de tornar o serviço mais adequado. 5.3.2 Limites qualitativos da função social da concessão de serviço público As restrições qualitativas referem-se ao equilíbrio financeiro do contrato de concessão. Nada mais justo, e legal, do que a garantia do outorgado em manter a equação econômico-financeira estabelecida no contrato de concessão. Do mesmo modo que o objetivo do Poder Público Concedente é a prestação do serviço adequado, o lucro é o do particular titular da outorga. Nesse 66 O termo utilizado refere-se à hipótese de que as externalidades negativas repercutam sobre bens jurídicos, como o meio-ambiente. 101 sentido, não poderia a Administração Pública alterar as cláusulas regulamentares do contrato sem considerar a estimativa de lucratividade da empresa definida anteriormente. Caso contrário admitir-se-ia a total transferência da realização de justiça social ao particular, que no entender do Autor deste trabalho, é absolutamente arbitrário. Contudo, a construção teórica da função social da concessão do serviço público possui fundamentos jurídicos, erigidos por dispositivos constitucionais e infraconstitucionais expressos e de princípios abstraídos do regime jurídico correspondente67, que não podem ser ignorados pelo Direito ao lucro do particular. Dessa situação, é possível chegar à conclusão de que a função social representa a responsabilidade civil da concessão de serviço público, pois se o outorgado pode ser compelido pelo Poder Público, inclusive judicialmente, para fazer ou deixar de fazer atos que prejudiquem as partes do contrato ou terceiros prejudicados bem com de indenizá-los. Se essa “responsabilização” necessariamente decorre de lei, regulamentação ou regulação, é possível falar-se em responsabilidade civil68. Entretanto, nem todas as externalidades podem ser mensuráveis economicamente, pois o bem-estar decorrente da promoção do desenvolvimento por meio da função social possui considerável característica subjetiva, situação contrária à responsabilidade civil que corresponde a uma reparação pecuniária. Desse modo, é possível afirmar que a função social não representa tão só a responsabilidade civil do outorgado, mas também o bem-estar social das pessoas envolvidas na prestação do serviço. É possível subdividir a noção qualitativa da função social da concessão em relação àquelas situações, nas quais o outorgado deve responsabilizar-se civilmente pelos danos causados pela atividade, e naquelas situações em que os reflexos positivos da realização repercutem no bem-estar da população. Nessas hipóteses de responsabilidade civil, o delegatário não poderá requerer equilíbrio financeiro, pois estaria assumindo os riscos da atividade. Por 67 Utilizou-se o enunciado “regime jurídico correspondente” por se tratar de um regime jurídico por vezes submetido ao regime jurídico administrativo e outras ao regime privado administrativo, desse modo refere-se a um regime jurídico próprio. 68 O artigo 927, do Código Civil, determina que aqueles que causarem dano a outrem por ato ilícito ficam obrigados a repará-los. Por ato ilícito entende-se: culpa do agente na violação de Direito e na realização de um dano; abuso de Direito. 102 óbvio, o Poder Concedente quanto a agência reguladora podem atribuir valor à indenização causada perante terceiros, mas podem realizar a regulamentação específica para minimizar ou afastar os danos causados. No caso de promoção do desenvolvimento e bem-estar social, o outorgado faz jus ao Direito de pugnar pelo equilíbrio financeiro de eventuais desembolsos econômicos em relação às medidas adotadas. A questão dos limites qualitativos da função social da concessão não corresponde somente ao restabelecimento do equilíbrio econômico, pode ser realizado por meio de medidas subsidiadas pelo Poder Público. O fato é que a Administração Pública não pode utilizar instrumentos regulamentares para impor ao outorgado o ônus de suportar economicamente as atribuições do Estado sem a correspondente remuneração. 5.4 O Teorema de Pareto como uma proposta de equacionamento entre a qualidade do serviço público e o lucro do particular Os limites da função social da concessão, através da limitação do número de sujeitos ou situações abrangidas e da limitação financeiro do Poder Público em estabelecer regras ao outorgado, configuram dificuldades práticas para aplicação das normas objeto do presente estudo. É evidente que o particular titular do objeto da outorga não possui o papel intrínseco de promover justiça social ou o desenvolvimento nacional. Uma vez que o “estado” de delegatário do serviço público é temporário, e que o objetivo de lucro da empresa permanecerá enquanto a mesma existir. Por óbvio que a função social da concessão gira em torno do Instituto jurídico e não do sujeito que está executando o serviço. O Poder Concedente, na qualidade de fiscal da adequação do serviço público, deve utilizar de instrumentos que viabilizem o melhor resultado sem comprometer o justo Direito ao lucro do particular. Para se atingir o objetivo almejado, o Poder Concedente pode apropriar-se de conceitos disponibilizados pelos estudos desenvolvidos pela Economia e pela 103 Gestão de Empresas, a fim de assegurar maior objetividade e, conseqüentemente, diminuir custos e atingir o melhor grau de eficiência possível, conjugando os dois interesses necessária e fatalmente envolvidos na concessão do serviço público: a lucratividade da empresa e a adequação do serviço público. Claro é que o recurso a esses procedimentos de outras áreas do conhecimento humano devem ser utilizados supletivamente aos procedimentos impostos pelos comandos normativos. Dentre os recursos disponibilizados pelas demais Ciências, merecem referência a teoria do equilíbrio geral e o Teorema de Pareto. A teoria do equilíbrio geral é um instrumento muito utilizado na análise de mercados competitivos dos últimos 50 anos, foi desenvolvida a partir da Economia neoclássica de Walfras e Vilfredo Pareto (FUSFELD, 2003, p. 278). O Teorema de Pareto é um instrumento muito utilizado pelas empresas, inclusive pelo Poder Público, para atingir o melhor grau de eficiência na contenção de custos e na otimização dos lucros. Pode ser dividida em duas partes: maximização da utilidade pelo consumidor; maximização do lucro pela firma. O Teorema de Pareto usualmente é representada através de um gráfico da seguinte forma: Quantidade de capital (C) limite de orçamento e trabalho (L) 3 c J 2 1 t Quantidade de trabalho (T) Figura 1. Maximização do Lucro 104 Segundo E. K HUNT (1981, p. 404), o uso das curvas de indiferença permitem a análise da utilidade marginal da maximização do lucro pela firma. Basta que o administrador enumere, segundo um escalonamento de preferências, os diferentes custos da empresa. As curvas de indiferença permitem que o administrador ilustre graficamente o modo como a firma maximiza seus lucros. A ilustração limita-se à análise de dois itens diferentes. O que pode facilmente ser solucionado pela realização de várias combinações do diagrama. O diagrama pode ser melhor vislumbrado através da interpretação da figura 1. O eixo vertical da figura 1 representa a quantidade de capital (C), o eixo horizontal representa a quantidade de trabalho (T). As curvas de indiferença da figura 1, representam a quantidade de trabalho e capital necessários para a elaboração de cada produto. Supondo que existam os produtos de qualidade 1, 2 e 3, de acordo com a figura 1, o produto 1 é mais barato e menos dispendioso, o produto 2 um pouco mais caro e um pouco mais dispendioso, o produto 3 mais caro e mais dispendioso. O custo de produção de cada produto segue a seguinte proporção: 1 < 2 < 3. Quanto mais à direita o produto estiver maior qualidade, maior custo e maior desempenho de mão-de-obra. A linha diagonal representa o limite de orçamento e trabalho (L) que a empresa pode despender de acordo com suas possibilidades. O administrador deve optar por qual produto e quantidade deve maximizar seus lucros e economizar em mão-de-obra. O produto 1 poderia ser produzido mas é o produto de pior qualidade. O produto 3 seria descartado por ser incompatível com a possibilidade econômica e laboral da empresa. O produto 2 poderia ser escolhido pelo melhor aproveitamento de custo/benefício, pois o resultado da divisão c/t = J, maximizando os lucros e aproveitando toda mão-de-obra disponível , chega-se no melhor resultado (J). Utilizando o Teorema de Pareto é possível otimizar os resultados da equação função social e equilíbrio econômico-financeiro. Pois bem: 105 Uma hipotética concessionária de telefonia móvel possui Autorização para terceirizar o serviço de tele-atendimento, contudo, o Poder Concedente utilizou de seu poder de alterar as cláusulas regulamentares do contrato para aumentar a qualidade da prestação destes serviços, o que acarretará em um provável pedido de reequilíbrio financeiro. A Administração Pública pode exigir do concessionário do serviço de telefonia móvel, a melhoria na qualidade do serviço pode ser realizada através do treinamento dos funcionários da empresa terceirizada, sem necessariamente repassar o custo da atividade aos usuários de telefonia celular utilizando o Teorema de Pareto como um dos instrumentos disponíveis para a análise de custos corporativos. Sabe-se que a referida empresa de telefonia no ano de 2008 celebrou inúmeros acordos judiciais, oriundos de pedidos de indenização pela má qualidade no atendimento de telemarketing. O Poder Concedente poderia utilizar do Ótimo de Pareto, para determinar a concessionária a realização dos referidos treinamentos, sem repassar os custos aos usuários da seguinte forma: Treinamento de Terceirizados 2009 (T) a Limite orçamentário (L) O t’ b c i´ Custo total de Indenizações 2008 (I) Figura 2. melhoria na qualidade do serviço 106 A figura 2 representa o gráfico de orçamento da hipotética empresa de telefonia celular, a qual o eixo vertical representa os gastos que serão realizados com treinamentos de funcionários terceirizados de serviço de telemarketing, cujo valor máximo de orçamento previsto é (T). O eixo horizontal representa o valor total de acordos realizados em 2008, decorrentes de pedidos de indenização pela má qualidade no atendimento de telemarketing, cujo valor total pago foi (I) o mesmo valor será destinado para o ano de 2009. Desse modo, quanto maior for o valor representado por (T) maior a possibilidade do concessionário pugnar pelo restabelecimento do equilíbrio financeiro repassando as custas aos usuários. Por outro lado, quanto maior o valor do (I) mais despesas o concessionário deverá arcar por sua conta e risco. O gráfico da figura 2, apresenta uma linha diagonal denominada de limite orçamentário (L), que representa a relação entre o investimento em treinamento e o pagamento de indenizações, que pode ser representado pela seguinte equação: T + I = L. Desse modo, quanto mais à Direito do limite orçamentário as linhas de indiferença se encontrarem maior será o custo, quanto mais à esquerda menor será o custo. A curva “a” representa uma empresa de consultoria recursos humanos de excelente qualidade, porém de alto custo. A curva “b” representa uma empresa de consultoria recursos humanos de boa qualidade, acessível para ao orçamento destinado. A curva “c” representa a troca de prestador de serviço, a forma mais barata de solução. O custo das três alternativas pode ser representada da seguinte maneira : c < b < a. Aprioristicamente a empresa “b” seria a opção que contempla o melhor custo benefício. Pois a intersecção “O” representa a maximização da utilidade da linha de indiferença, demonstrando o melhor resultado. A maximização da utilidade pode ser verificada pela relação t’ com i’ constantes na figura 2, pode ser representada da seguinte forma: t’ + i’ = O. Ou seja, o investimento em treinamento t’, somado ao valor de indenização i’, resultam no ótimo (O). 107 O Teorema de Pareto pode ser um instrumento útil para a otimização da relação entre a adequação do serviço público e a manutenção do equilíbrio econômico a atividade. Imprescindível lembrar, finalmente, e insistir, que estes, como quaisquer outros meios de solução desenvolvidos pelos demais domínios do conhecimento humano, jamais terão efeito de obrigatoriedade jurídica senão quando e se forem um dia objeto de norma jurídica. Muitos dentre esses procedimentos, porém, embora jamais tenham sido objeto de disciplina por meio de norma específica, podem ser não apenas úteis, mas necessários quando inviável meio diverso de solução, por força do princípio constitucional da eficiência. Dependendo, enfim, das particularidades juridicamente relevantes de cada situação concretamente considerada, nada surpreendente será que meios de solução como estes a que ora se dedica este tópico possam ser de utilização obrigatória pelo administrador público. Essa prática já é, há décadas, comum na administração pública indireta, em especial por parte das sociedades de Economia mista mais prósperas, eis que, sociedades anônimas que são, detêm maior e mais aprofundado conhecimento de tais técnicas. 108 6 CONCLUSÃO A partir da análise do regime jurídico aplicável nas concessões de serviço público, foi possível constatar a existência de “regimes jurídicos específicos” (JUSTEN FILHO, 2003, p. 290), cuja definição jurídica é determinada de acordo com as particularidades concretas do serviço jurídico concedido. Tais regimes, conforme analisado, comportam, além do regime jurídico administrativo, regras e princípios de natureza civil denominados por BACELLAR FILHO (2007, p. 102) de regime administrativo privado. É possível afirmar que o particular titular da outorga do serviço público pode se submeter, de forma concomitante, a regimes de Direito privado e jurídico administrativo, tais como: a função social do contrato e o princípio da eficiência administrativa. Tal situação determina maior vinculação do concessionário, em relação ao particular, ao cumprimento dos objetivos fundamentais da República do Brasil enquanto titular da outorga. O Desenvolvimento Nacional, um dos preceitos fundamentais da Constituição, deve ser um dos objetivos perseguidos pelo Estado. Cuja promoção também reflete na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na erradicação da pobreza e da marginalização, na redução das desigualdades sociais e regionais, na realização da dignidade da pessoa humana entre outros valores institucionalizados na Constituição. Estes objetivos vinculam todas as esferas do Estado na concretização desses objetivos. O cumprimento da Constituição é um dever de todos. Contudo, a diferença que se apresenta entre o cidadão e os órgãos públicos na promoção do desenvolvimento parece estar relacionado à obrigatoriedade de sua promoção. O particular não pode ser constrangido do mesmo modo que o Poder Público na realização de justiça social. Uma das formas utilizadas pela Administração Pública para realização desses objetivos é através do serviço público. Desse modo, o outorgado deve também pautar por estes objetivos na persecussão da adequação da prestação do serviço, haja vista que, não obstante deter a titularidade de sua execução, o titular do serviço público é o Estado. 109 Contudo, não basta que haja comando expresso na Constituição é necessário definir o conteúdo jurídico de desenvolvimento. Existem três grandes correntes de interpretação para desenvolvimento: uma que defende desenvolvimento como crescimento econômico; outra que defende o mito do desenvolvimento, e uma terceira que inclui o aspecto social no conceito de desenvolvimento. Há quem diga que o desenvolvimento deve estar sustentado no tripé econômico, social e ambiental, e que este desenvolvimento deve ser promovido de forma sustentável. Uma das formas analisadas para a promoção do desenvolvimento é a função social da concessão do serviço público. O expressão função social, não foi utilizada no presente trabalho como sinônimo de filantropia. Mas sim de cumprimento da função social perante todos os agentes envolvidos do compromisso com seu desenvolvimento e na responsabilização pelos danos causados pela atividade. Nesse sentido, foi apresentada a teoria do contrato organização que pode ser utilizado pela concessionária quanto pelo Poder Público para melhorar a difusão da informação, aumentar a participação dos usuários no aperfeiçoamento da qualidade do serviço público, internalizar externalidades produzidas pelo exercício da atividade e trabalhar de forma cooperada com todos os agentes envolvidos na atividade. Este trabalho cooperado ocorreria de forma regulamentada pelo Poder Público, todavia, as alterações do modo de proceder do concessionário que repercutirem em ônus financeiro, Autorizam o outorgado a pleitear o justo restabelecimento do equilíbrio financeiro do contrato de concessão. Ao final do trabalho foram propostos limites quantitativos e qualitativos para aplicação da função social da concessão do serviço público. Ao definir os limites da promoção do desenvolvimento pela concessionária, foi apresentado o Teorema de Pareto, instrumento bastante utilizado por economistas e administradores para otimizar custos e tomadas de decisão. Ao final do trabalho, conclui-se que a função social da concessão de serviço público nada mais é do que o cumprimento de comandos normativos e princípios relativos ao regime jurídico específico, e que a aplicação desta 110 obrigatoriedade se restringe aos agentes econômicos e bens jurídicos envolvidos na atividade. De todo modo, a função social da concessão pode ser um valioso instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional, seja pela melhoria da qualidade a prestação do serviço público, seja pela sua universalização, ou até mesmo pela melhoria do bem-estar das pessoas envolvidas na atividade. 111 REFERÊNCIAS AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico : do Direito nacional ao Direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo e o novo código civil. Belo Horizonte : Fórum, 2007. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo : Malheiros, 2004. BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade social da empresas práticas sociais e regulação jurídica. Rio de Janeiro : Lúmen Júris, 2006. BLANCHET, Luiz Alberto. Curso de Direito administrativo. 3ª ed. Curitiba : Juruá, 2004. BLANCHET, Luiz Alberto. concessão. 3ª ed. Curitiba : Juruá, 2004. BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8ª Ed. 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