Nulidade de TAC - Trabalho do adolescente Raul Moreira Pinto Juiz aposentado Entidade de assistência ao menor de Passos firmou um termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público do Trabalho, onde se instituíram a obrigatoriedade de a entidade demitir todos os adolescentes maiores de 16 anos que trabalham em estacionamentos rotativos nas ruas da cidade, bem como a suspensão de contratações de outros, nas mesmas condições. A entidade assistencial, pressionada pela sociedade local, que anteviu sérios problemas com a demissão de dezenas de adolescentes, sem perspectiva de nova ocupação para eles, aviou ação de nulidade do TAC. De primeiro, na inicial, sustentou a legitimidade do MPF para estar em juízo, considerando-se que, embora não possua personalidade jurídica, tem personalidade judiciária. Invocou-se um precedente da 7ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte (autos de número 00312-2010-007-03, sentença prolatada em 18.06.10, de lavra da MM Juíza Maria Cristina Diniz Caixeta). Depois, argumentou com a possibilidade de decreto de nulidade, apoiando-se em doutrina majoritária que entende tenha o TAC a natureza jurídica de contrato, do gênero negócio jurídico. Mas a grande discussão girará em torno do da possibilidade do adolescente, entre os dezesseis e os dezoito anos de idade, de trabalhar nos chamados estacionamentos rotativos. Não obstante se reconheça os bons propósitos que informaram o MPT, parece que comportamentos extremistas sempre acabam por trazer resultados negativos, criando situações mais contundentes do que aquelas que, com as medidas, se buscaram evitar. A primeira questão vem do evidente divórcio entre uma legislação avançada e a realidade brasileira. Ives Gandra Martins enfaticamente apontou essa diferença: “O artigo 227 (da C.F.), se aplicado, tornaria o País uma pátria de homens santos e generosos, superior à ilha da Utopia, idealizada por Thomas More, no relato de Rafael.”...“Evidentemente, entre o Texto Constitucional de 05.10.1988 e a realidade brasileira, há uma distância maior do que aquela que separa a Via Láctea dos limites do Universo.” (Constituição Federal, obra conjunta, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p. 772/773) A aplicação cega da lei relembra velharias, do tipo fiat iustitia, pereat mundus; revela um total alheamento às consequências da aplicação literal da lei, em descompasso com o ambiente em que deve ter incidência, mas não sintonizada com o mundo real, também mostrando insensibilidade à outra advertência dos antigos: summum ius, summa iniuria. O risco de os adolescentes retornarem às ruas em outra situação, a de ociosidade ou na condição de subempregado, sem qualquer proteção trabalhista é real, concreta. Acabariam, por engrossar o número de jovens da geração “ni-ni” – ni estudian ni trabajan, que, segundo dados do PNDA, aumentou significativamente de 2001 a 2009 no Brasil. Paulo Lúcio Nogueira, no seu “Estatuto da criança e do adolescente comentado”, traça um quadro dramático: “a verdade é que o menor na faixa etária dos doze aos dezoito anos, apesar das leis existentes, encontra sérias dificuldades para conseguir trabalho, sendo levado a perambular pelas ruas, onde adquire toda sorte de vícios, tornando-se um menor abandonado, já próximo da delinquência, a que sempre acontece com os chamados “meninos de rua”. No que interessa ao cerne destes escritos, sustentou-se na ação que o “termo” é passível de ser declarado nulo, por falta de capacidade do agente, o MPT, relativamente à fiscalização e autorização de trabalho do menor. Marcos Bernardes de Mello, no seu clássico “Teoria do fato jurídico – Plano de validade”, ao tratar da capacidade no âmbito do direito público, leciona que esse requisito (capacidade) se denomina competência e se caracteriza pela atribuição de poder ao agente público para praticar o ato respectivo. O mesmo ocorre relativamente às pessoas jurídicas em geral...” (Editora Saraiva, São Paulo, 1995, p. 19) Outro grande jurista, Vicente Ráo, relatando doutrina de Carnelutti, aduz que “a capacidade jurídica de agir (que nós denominamos capacidade simplesmente) vem a ser a idoneidade natural (específica) da pessoa, para ser titular da relação (de certa relação) que no ato se desenvolve.” (O direito e a vida dos direitos, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 3ª. edição, sem data, vol. 2, p. 618) O mesmo autor, numa outra obra não menos conhecida, cuidando do Direito administrativo, registra que “A competência de cada órgão só do direito objetivo pode resultar, de sorte que a nenhum órgão se permite estabelecer sua própria competência, nem alterar, para mais ou para menos, a competência que as normas orgânicas lhe houverem conferido. A inobservância desta regra produz a ilegitimidade do ato, por incompetência absoluta”, esta quando “invade uma ordem inteiramente diversa de poderes ou atribuições”. (Ato jurídico, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997, 4ª. edição, p. 110/111). Assim, é fora de dúvida que o vício de incapacidade, com força de tornar nulo o ato originado de órgão público, é identificado como falta de competência para a sua prática. No caso ora enfocado, o termo de ajuste de conduta parece padecer de vício insanável, pois falta ao MPT capacidade para ajustar negócio jurídico que envolva interesses coletivos de menores. O Estatuto da criança e do adolescente dispõe, pelo seu artigo 148, que compete à Justiça Comum, especificamente à “Justiça da infância e da juventude”, “conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente” (inciso IV), observando-se o disposto no artigo 209, do mesmo diploma. O citado artigo 209, do ECA, regra que as ações previstas no capítulo em que se insere serão propostas no foro do local onde ocorreu a ação ou omissão, “cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvada a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores” (destaques da Autora). Ora, se a proteção ao menor está adstrita à Justiça Comum, com única ressalva à Justiça Federal, autoriza-se a concluir que o MPT não poderia estabelecer compromissos cujos termos e condições estão fora do raio de sua atuação. Na verdade, a gama variada de competências (atribuições) da Justiça da infância e da juventude simplesmente dá funcionalidade ao princípio da proteção integral do menor, proteção que eventual fragmentação, originada mesmo da própria especialização de “Justiças”, pode esvaziá-lo. A visão há de ser ampla, do todo, porque não existem, em compartimentos estanques, menor infrator, menor trabalhador, menor deficiente, menor abandonado. O menor é um só e a proteção há de ser ampla, sem possibilidade de ser fragmentada. Um cuidar por partes da vida do menor e por entidades distintas, acabará, como é do feitio humano, por trazer disputas de poder, de força, de influência e até de vaidades, o que somente o prejudicará, sem qualquer ganho ou proteção relevante. Não é porque a Justiça do Trabalho seja competente para dirimir um litígio decorrente de relação de trabalho envolvendo menor, deva esta competência ser estendida a questões estranhas à prestação remunerada de serviços, ainda que participe cuidem de pressupostos para a atividade laboral do menor, como o é a autorização judicial para o trabalho. Não há dúvida que somente a Justiça da infância e da juventude tem competência para autorizar ou não o trabalho dos menores, observando as condições em que ele é prestado; somente a Promotoria da vara da infância e da juventude poderia firmar termos de ajustamento de conduta estabelecendo condições gerais de trabalho para menores, ainda que eventualmente orientado pela ordenamento trabalhista, seja de nível constitucional, seja de nível ordinário, mas mesmo assim condicionado à existência de autorização para o trabalho por aquela especial Justiça. Parece evidente que nem o Ministério Público Estadual pode ajustar com quem quer que seja condições de trabalho do menor, sem que a possibilidade mesma de ele trabalhar tenha passado, antes obviamente, pelo crivo do juízo da infância e da juventude. Se direitos dos menores não estão sendo observados pelos empregadores, cabe ao Ministério do Trabalho aplicar as severas sanções previstas em lei; se recalcitram aqueles, cabe ao Ministério Público do Trabalho deduzir pretensões no sentido de obter, junto ao Judiciário, o cumprimento das obrigações de fazer, essas evidentemente, previstas em lei e originadas de sanções administrativas aplicadas pela autoridade competente. Se entende o MPT que a fiscalização do Ministério do Trabalho é pífia, é seu dever acionar a Justiça para que o órgão de fiscalização cumpra corretamente o que lhe atribuiu a lei. O Ministério Público não pode criar obrigações unilateralmente e muito menos aplicar sanções administrativas. No âmbito da ação civil pública se situam a execução de obrigação de indenizar (dare), de fazer (facere) de não fazer (non facere) e de sofrer (pati); as eventualmente criadas via de TAC têm natureza contratual. Apenas a primeira – dar – e as últimas – de natureza contratual, via TAC – se enquadram na competência do Judiciário, estando o MP legitimado a postular a sua solução. Nas demais, o MP tem legitimidade apenas para postular o cumprimento de sanções já aplicadas pela Administração, pois, repita-se, não detém aquele e nem o Judiciário poder de polícia para tal. As sanções administrativas são de exclusiva competência da Administração Pública (leia-se Ministério do Trabalho), não podendo, repita-se, o MPT e nem o Judiciário estabelece-las; o MPT apenas se legitima para executar as sanções (eventualmente, obrigação de fazer, de não fazer e de sofrer) anteriormente aplicadas pela Administração, se recalcitra o administrado. É conhecida a orientação do C. T.S.T., no sentido de que não cabe à Justiça do Trabalho aplicar multas administrativas previstas na C.L.T., contrariando uma já antiga corrente do E. T.R.T./3ª., capitaneada pelo desembargador e professor Antonio Álvares da Silva. No caso enfocado, torna-se evidente que não cabe na competência do MPT fiscalizar o trabalho do menor e, em consequência, aplicar e estabelecer sanções por ilícitos administrativos. O MPT não tem, reafirma-se, poder de polícia para exercer essa atividade e sua ingerência nessa área implica no que chama a doutrina administrativista de détour de pouvoir, que vai de encontro ao princípio da divisão os Poderes e, via de consequência, atenta contra o Estado Democrático de Direito. Disso se conclui que não tem mesmo competência para firmar TAC, partindo do princípio de que houve ou haveria descumprimento de regras de natureza administrativa (ausência de autorização para o trabalho), cuja exata observação é dever de outra autoridade estatal. A incapacidade do MPT para firmar TAC sobre trabalho de menores nas ruas, praças e outros logradouros resta, por outro enfoque legal, mais do que evidente, ante os termos claros do parágrafo 2º, do artigo 405, da C.L.T.. Ali se dispõe que a autorização para o trabalho do menor nas referidas condições dependerá de prévia autorização do Juiz da infância e da juventude. Não é sustentável a tese de que a Emenda Constitucional 45/2004 teria alterado a competência da Justiça Comum, estendendo-a à Justiça do Trabalho. Não se trata de questão envolvendo relação de trabalho; cuida-se de interesses coletivos de menores, relacionados à possibilidade exercer o trabalho remunerado; tanto assim que, no caso do TAC celebrado, há proibição de contratá-los, em razão da própria condição de menores. Não há como falar-se em relação de trabalho pela singela razão de que nem mesmo prestação de serviços existe nessa situação. Na verdade, a competência da Justiça do Trabalho é ratione materiae e da Justiça da infância e da juventude é ratione personae e, se conflito houvesse, preponderaria sobre aquela, como na exceção aberta no artigo 209, do ECA, em favor da Justiça Federal. Obviamente, apenas o juiz da vara da infância e da juventude pode autorizar ou não o trabalho do menor; não se cuida de questão trabalhista; envolve, como afirmado, inúmeras situações fáticas que extrapolam do reduzido campo de uma mera relação trabalhista, como se pode ver do teor do artigo 405, da C.L.T.. Outros valores tão importantes quanto os argumentados pelo MPT para a obtenção do TAC são levados em linha de conta na autorização para o trabalho de menores. Na realidade, existe a Justiça da criança e do adolescente; todas as questões que envolvam interesse desse segmento são solvidas por aquela Justiça especializada; à guisa de exemplo, observe-se que infrações penais cometidas por menores não são levadas ao Juízo criminal. No caso, justificaria a intervenção do Ministério Público Estadual o fato de estarem em discussão direitos coletivos dos menores, conforme a previsão do inciso IV, do artigo 148, do ECA, já citado. Comentando esse dispositivo, José de Faria Tavares leciona: “Assim, a ação civil pública, instituída pela Lei 7.347, de 14.07.1985 (recepcionada e ampliada na Constituição de 1988, artigo 129, inciso III), e que visa a defender bens como o meio ambiente, o patrimônio cultural, a proteção do consumidor. Quando afetar interesses das crianças e adolescentes indiscriminadamente será proposta no juizado da Infância e da Juventude. Competência extravagante e legitimidade extravagante de parte processual, evidentemente” (Comentários ao Estatuto da criança e do adolescente, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2005, pag. 127/158, destaques da Autora) De registrar-se que esse entendimento é esposado pelo Colendo S.T.J.. Tanto a jurisprudência daquela Corte anteriormente à EC 45/2004 quanto a que lhe sucedeu são no sentido de que cabe à Justiça Estadual a autorização para o trabalho de menores. No CC 98.033-MG, aquele Tribunal decidiu que a autorização de trabalho a menor de idade é de conteúdo nitidamente civil e se enquadra no procedimento de jurisdição voluntária, “inexistindo debate sobre qualquer controvérsia decorrente da relação de trabalho, até porque a relação de trabalho somente será instaurada após a autorização judicial pretendida” (Rel. Min. Castro Meira, capturado do sítio do S.T.J. em 31.10.10, destaques do articulista) No voto condutor do acórdão, afirma-se enfaticamente que não há no rol das competências da Justiça do Trabalho, estabelecidas constitucionalmente, previsão para que a autorização seja dada por essa Justiça. Fundamentam ainda o referido acórdão um precedente, o CC 53.279-MG, e parecer ministerial, de onde se extrai o seguinte trecho: “...II - Questão (autorização para o trabalho do menor) de jurisdição voluntária eminentemente civil, não oriunda de relação de trabalho. III – Parecer pela competência da Justiça Comum Estadual.” No precedente citado (CC 53.279-MG) resta claro que a redação do artigo 114, da Constituição Federal, dada pela Emenda Constitucional 45/2004, em nada alterou a situação anterior. Destaca-se da sua ementa que se trata de jurisdição voluntária, registrando a “Ausência de qualquer das hipóteses previstas nos incisos do art. 114 da CF, com a nova redação que lhe deu a EC 45/2004. Competência do juízo de direito, ora suscitado.” (Rel. Min. César Asfor Rocha, capturado no sítio do STJ em 31.10.10) Não custa lembrar que o Colendo S.T.J. tem a competência constitucional, portanto única e exclusiva, para julgar conflitos de competência entre Tribunais (artigo 104, inciso I, letra d), da Carta Magna) Basta uma ligeira pesquisa junto aos Tribunais Estaduais e mesmo Federais que se encontrará um sem número de acórdãos dando pela competência da Justiça Estadual, em casos de autorização do trabalho do menor. De primeira instância tem-se paradigmática decisão do MM Juiz da Comarca de Pedro Leopoldo, Minas Gerais. Lá, como cá, cuidou-se de trabalho de menores nos chamados “estacionamentos rotativos”, tendo enfrentado o julgado o tema da competência e concluído pela da Justiça Comum. Meritoriamente, entendeu que “O trabalho em passeios públicos (calçadas, neste sentido) não é nem penoso nem insalubre sequer perigoso além do que é para todas pessoas de todas as idades que transitam por eles, não consistindo obstáculo para o trabalho juvenil na forma autorizada pela lei.” Na parte dispositiva, concluiu o decisum: “julgo procedente o pedido para deferir o trabalho de adolescentes maiores de dezesseis anos de idade, no programa de habilitação e inserção social denominado ‘rotativo social do Município de Pedro Leopoldo’, desde que garantidos todos os direitos trabalhistas e previdenciários aos jovens trabalhadores, vetado o trabalho noturno.” (in www. Ejef.tjmg.jus.br/home/infex.php?, capturado em 20.10.10) Na verdade, tem-se observado uma constante intenção de aumentar a competência da Justiça do Trabalho até pelos próprios Tribunais, numa – parece - inconveniente hipertrofia dessa especial jurisdição, o que poderá até descaracterizá-la, deixando de ser uma Justiça especial, tanto as matérias que se incluiriam na sua competência particular, causa única de sua existência como tal. É óbvio que o juízo da criança e da juventude é o mais apto para decidir sobre a possibilidade de o menor trabalhar e em que condições, que não são somente as ligadas à pura prestação de trabalho. Examina aspectos sociais, psicológicos, conveniências familiares, situações de envolvimentos sociais, entre outras coisas totalmente estranhas ao Direito do trabalho. Por outro lado, o direito ao trabalho e à profissionalização é somente um aspecto da proteção aos menores, nada justificando que somente as questões que envolvam aspectos trabalhistas sejam remetidas à Justiça do Trabalho. Também parece certo que o juiz trabalhista, de regra, não está preparado para decidir sobre tais temas. Repetindo: os interesses coletivos ou individuais dos menores da entidade assistencial, concernentes à possibilidade de laborarem, estão rigorosamente atrelados à permissão de trabalho nas ruas, praças e logradouros, e não se enquadram no conceito de dissídios originados da relação de trabalho que, como afirmado, pode nem mesmo existir; direitos ao trabalho e à profissionalização são preexistentes aos direitos trabalhistas e condicionantes desses. Concluindo, termo de ajustamento que envolva o direito de trabalhar do menor é nulo, pois carrega vício insanável, qual seja, o da incapacidade do agente, por absoluta falta de competência funcional para a firmatura do ajuste. Finalizando estes escritos, embora não se enquadre no tema deles, registra-se que, na regra da eventualidade, invocou-se o princípio da proporcionalidade, pelo qual, na hipótese, deve preponderar a garantia ao trabalho sobre a proteção do menor à eventual exposição inconveniente com o público da rua. Ainda no mérito, pediu-se a aplicação do princípio de Direito constitucional denominado “reserva do possível”, argumentando que a entidade assistencial funciona como um amicus imperii, auxiliando o Estado no cumprimento de suas obrigações e, nessa condição, deve ser tratada como ente estatal. No mais, aguarda-se a decisão da Justiça do Trabalho.