ABSTRACT: The aim of this study is to draw a course of the female thematic within
Joiio Cabral de Melo Neto 's poetic work, culminating in the books "Sevilha Andando"
e "Andando Sevilha", in which the poetic matter is insistently connected to thejemale
entity.
A obra poetiea de Joao Cabral de Melo Neto e geralmente considerada pela
critiea como exemplo maximo de objetividade, concisao e contensao. Em tennos
gerais, trata-se de uma poetiea que presa pelo "engenho", pela aplicac§o intelectua1,
pelo "trabalho de arte"; 0 processo ou procedimento criativo revelaria 0 verdadeiro
valor da obra, cujo objetivo final, guiado por uma intencionalidade, deveria ser a
desautomatizac§o ou singularizac§o perceptiva, com 0 conseqiiente desligamento de
sua entidade produtora.
Essa concePcao de arte poetiea, declaradamente assumida pelo poeta, op5e-se
a concePcao tradicional de criac§o liteniria, cujas fontes remontam especialmente ao
romantismo. Tal concePcao tradicional de liriea reduz 0 poetico ao resultado de
atmosferas Unicas e avassaladoras que, ao atingir 0 poeta, faz com que, devido a
inspirac§o, brotem palavras cuja harmonia redunde em beleza e prazer. A emocao
criadora, inexplicivel e intangivel, constituiria a motivac§o basiea a partir da qual a
linguagem traba1hada passaria a exprimir estados intimos e reveladores de urn "eu"
profundo.
Essa forma dual de conceber a Liriea pode ser enquadrada nos paradigmas de
"inspirac§o e trabalho de arte", subtitulo dado por Joao Cabral ao seu ensaio Poesia e
Composicao (1982). Essa dualidade faz ressaltar os extremos de uma tensao, da qual
uma vertente assinala 0 primado da consciencia, rigor e metodo, em detrimento do
poeta inspirado em outra vertente, para 0 qual 0 inconsciente e origem da poesia. Outra
denominac§o da polarizac§o ja estabelecida, segundo Aguiar e Silva (1976), acerea do
poeta e sua criac§o, seria a do autor inspirado ou possesso em relac§o ao autor artifice,
cuja correspondencia lanc;adapor Nietzche seria a do espirito apolineo em relac§o ao
espirito dionisiaco.
A conce~ao de arte assumida por Joao Cabral estaria primeiramente
fundamentada na Filosofia da Composicao, de Edgar Allan Poe. Este seria 0 precursor
da liriea moderna que defende 0 primado do intelecto e a qual fora mais intensamente
disseminada por seu herdeiro Baudelaire. A conce~ao de que qualquer aparente
inspira~o e resultado do intense labor, ftliam-se talvez os maiores representantes da
chamada corrente intelectualista, Mallarme e Valery. Os poemas de Joao Cabral, assim
como seu posicionarnento critico revelado especialmente pela sua prosa, demonstrarn
uma conce~o poetica que se insere nessa corrente intelectualista.
Nesse contexto, e compreensivel que, para urn autor que sempre negou 0
lirismo subjetivista, a inspira~o e a intui~o rornanticamente fundamentadas, a dic~o
amorosa fosse algo tarnbem contido. Aqui insere-se a problematica da veicula~o
tematica lirico-amorosa nos poema cabralinos, quando 0 poeta ja teria sedimentado as
bases de uma poetica na qual MO caberia qualquer contempl~o ou lirismo. A
"mulher", que aos poucos toma espa~ enquanto "objeto possivel de poema", surge
como tema central, juntarnente corn a ferninina cidade de Sevilha e suas peculiares
manifesta~
culturais, nas mais recentes colemneas do autor, Sevi1ha Andando
(1994c) e Andando Sevilha (l994a).
Corn rela~o as colemneas acima referidas, tambem pode-se perceber urn
esfor90 continuo de abstra~o por parte do eu poetico; a mulher, mais do que objeto
dado a contempla~o sensual, e expressao de uma essencialidade que percorre todo 0
e~
sevilhano. 0 sirnbolismo emerge do concreto de forma a universalizar uma
suposta perce~o subjetiva; as irnpressOes do eu poetico seriam como que resquicios
da "li~o" sevilhana de conten~o, densidade e expressao intensa. 19ualmente, a
paisagem e a mulher absorveriam os tra90s "femininos" de Sevilha que as
singularizam.
Mas 0 engendramento do feminino MO seria urn acontecimento inaugural;
este principio come~
a ser atualizado ern rela~o dialetica corn 0 masculino, cujas
caracteristicas 0 proprio poeta havia eleito como principios de urn ideal poetico no
desenrolar de sua obra. Paisagem corn Figuras (l994b) e a prirneira colemnea que
veicula tais principios de forma declarada. A paisagem nordestina e relacionada corn
a paisagem andaluza, fazendo emergir uma reflexao e perce~o aguda de constru~o
poetica. Essa obra e realizada nurn momento ern que, cada vez mais, a consciencia da
linguagem perrnite a intensa absor~o e transforma~o de elementos da memoria ern
materia poetica, sem prejuizo da expressividade lingiiistica.
o poema "Duas Paisagens", de Paisagem corn Figuras (l994b: 166-167)
constitui urn antecipador da rncixima cabralina de composi~o de dois paradigmas
tensivos aos quais serao veiculados expressOes simbOlicas contrastantes e, por vezes,
carregadas de signi:fica~o antitetica:
D'Ors ern terrnos de mulher
(Teresa, La Ben Plantada)
descreveu da Catalunha
a lucidez sabia e classica
e aquela sobria harmonia,
aquela facH medida
que, sem regua e sem compasso,
leva ern si, funda e instintiva,
aprendida certamente
no ritmo feminino
de colinas e montanhas
que hi tem seios medidos.
Em termos de uma mulher
nao se conta e Pernambuco:
e urn estado masculino,
e de ossos a mostra, duro,
de tooos, 0 mais distinto
de mulher ou prostituto
mesmo de mulher virago
(como a Castilla de Burgos).
Lucido nao por cultura,
medido, mas nao por ciencia:
sua lucidez vem da fome
e a medida, da carencia,
e se for preciso urn mito
para hem representi-Io
em vez de uma Ben Plantada
use-se mal adubado.
Neste poema, 0 "ritmo feminino" apreendido pela paisagem da Catalunha
determina, como resultado perceptivel. urn todo harmonico e preciso. 0 "ritmo
masculino" de Pernambuco. contudo, implica na apreensao de algo incisivo,
penetrante, violento. Esse poema marcaria. portanto. 0 limiar de uma poetica que,
conciliando a critica metalingiiistica ao referente de natureza sociaL pauta-se pelo
discurso cada vez mais simb6lico e universal.
A paisagem de Sevilha, da Catalunha, da regiao espanhola da Andaluzia, hem
como a sevilhana. passam a ser simbolos da impulsividad.e, do instinto. da sedu9fu>.do
acolhedor, expres580 nao menos medida e concisa do feminino; as paisagens de
Pernambuco, Recife, do sermo nordestino, com sua secura e carencia. 580 expressOes
da 16gica construtiva, da dificuldade, da racionalidade, da mentalidade analitica, da
brutalidade rUstica. elementos do paradigma masculino. Dessa forma, as concep¢es do
feminino e masculino 580relacionadas de forma a sugerir uma tensao que se insere na
discussao da propria natureza do poetico, enquanto e~
truiximo de concisao e
tensao, resultado de urn processo 16gicoe rigoroso.
A tensao tomaria novas modu1a~Oescom essa nova forma de contraposi~o a
principios universais em Quadema (1960), obra em que surgem os primeiros poemas
focalizando diretamente a figura feminina. Assim. Joao Cabral ja vinha trilhando 0
caminho da aprendizagem pela poesia por meio do constante risco e desafio da
veicula~o da tematica "lirico-amorosa". Nesta obra 0 poeta foge definitivamente do
tom confessional, explorando 0 poder do concretismo da imagem. A presenca de cenas
espanholas e nordestinas marcam a continuidade de Paisagem com Figuras (l994b) e,
junto com 0 simbolo da quaternidade, faz emergir nela urn alto grau de contrutividade.
o que marca Quaderna (1960) e justamente a atualiza~o do "lirismo-amoroso" de
uma forma concreta, sob a perspectiva de uma lucidez cabralina que ate entao rejeitava
a figura feminina, devido talvez ao receio de fazer irromper 0 sentimentalismo.
Nas duas Ultimas coletaneas do autor, Sevilha Andando (1994c) e Andando
Sevilha (l994a), 0 tema feminino e enfocado de forma coerente com rela~o ao trajeto
da obra cabralina, do qual retomamos apenas pontos fundamentais. Descrita em termos
de espa~o, a sevilhana e a cidade de Sevilha sao simbolos da extrema concisao
expressiva e tensao, qualidades definidas como ideais de uma poetica que deveria
pautar-se pela objetividade.
A essencia da cidade de Sevilha expressa pela figura feminina e objeto de
reflexao por parte do eu poetico no poema "A Sevilhana que Nao se Sabia", da
coletanea Sevilha Andando (1994c: 629-632). Especialmente na segunda parte, dentro
de urn conjunto de quatro partes, 0 poema desvela a rela~o entre 0 "ser feminino" e a
geografia e arquitetura da cidade de Sevilha:
De uma Sevilha tern pudor:
de onde os balcOestanta flor,
de onde as casas de cor, caiadas
cada ano em cores papagaias,
que fazem cada rua uma festa·
que a sevilhana sem modestia
passeia como em sala sua,
multivestida porem nua,
dessa nudez sob mil refolhos
que sOse expressa pelos olhos.
Por ela anda a sevilhana
como andaria qualquer chama,
a chama que reencontro negra
e eletrica, da cabeleira,
chama morena e petulante
dela e da sevilhana andante,
ambas em espiga a cabeca,
num desafio a quem quer que seja,
e pisando esbeltas no chao,
ambas, num olhar de afirma930.
A performance temporal da mulher no espa~ sevilhano e caracterizada por
diversas imagens que apontam para uma substancia. Em outras palavras, a forma fisica
da sevilhana, sobrepOe-sea revela~o de sua personalidade; extremamente sensual, a
figura feminina e expressao de uma feminilidade, revelando-se misteriosa, convidativa,
arrebatadora, dada a contempla~o, extremamente ambigua, porem intensa e
provocante. Portanto, esta Sevilha, concreta e intima, que carrega a forca prinuiria e
universal, parece "dar li93es as sevilhanas", objeto vivo no qual flui a energia
inebriante de Sevilha. De um perceP930 e apreensao externas, as sevi1hanas passariam
a manifestar-se a partir de sua interioridade.
Percebe-se, dessa forma, que a veicula930 do tema lirico-amoroso na obra de
Joao Cabral de Melo Neto nao implica nos sentimentalismos que a tradi~o romantica
legitimou, ligando-se a passividade do autor inspirado que transporta suas experiencias
pessoais em objeto poetico sem a devida lapida~o e redu930 ao substancial. A mulher
e a cidade de Sevilha sao objetos (re)investidos de paixao; todavia, e uma paixao
contida que se concretiza, na poesia, pelos e~
percorridos, pelos gestos, pelas
manifesta~6es culturais andaluzas, como as touradas e 0 cante, sempre expressao de
uma tensao. 0 feminino de Sevilha e confrontado muitas vezes como 0 masculino do
eu poetico, cujo "despertar" e exemplo truiximo da manif~o
de uma consciencia
hiper-Iucida.
Assim, apesar de a "forca feminina" simbolicamente ser ligada a gera~ao
flicil, a inspira930, nos poemas cabralinos da iJltima fase ela e enfocada enquanto
produto acabado, encarna930 viva de uma tensao que percorre todos os niveis da
constitui930da figura. Pode-se dizer que Joao Cabral aproveita 0 carater paradoxa! das
manifesta~6es simb6licas femininas para emprega-Ias enquanto sugestao da natureza
do poetico; qualquer tentativa de apreensao de sua essencialidade corre 0 risco de
incorrer num falseamento devido a unidirecionalidade da propria "defini93o".
o poema cabralino, dessa forma, pode ser interpretado como a constru~o de
linguagem em que os "contnirios" se interagem de forma tensiva, enquanto expressao
da ambigiiidade e intensidade, aIta densidade expressiva que emerge da interioridade
do espa~ e suas manifesta~6es. A intencionalidade da entidade produtora dinamizaria
a "composi93o" de um produto estetico que articule todas essas impress6es subjetivas,
de forma a transfonrui-Io em materia de poema.
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo tra9ar um percurso da tematica jeminina
dentro da obra poetica de Joiio Cabral de A1elo Neto, culminando com as coletiineas
"Sevilha Andando" e ''Andando Sevilha", nas quais a materia poetica e
insistentemente ligada a entidade jeminina.
PALA VRAS
CHA YEs:
Joiio Cabral de Melo Neto, cria9iio poetica, lirismo,
jeminino.
AGUIAR E SIT...
VA., V. M. (1976) Teoria da Literatura. sao Paulo: Martins.
MELO NETO, 1. C. (1994a) Andando Sevilha. In: Obra Completa: volume unico. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar.
__
(1960) Quadema. Lisboa: Guirnariies Editores.
__
(1982) Poesia e Composi9iio. Coimbra: Fendas EdicOes.
__
(1994b) Paisagem com Figuras. In: Obra completa: volume unico. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar.
__
(1994c) Sevilha Andando. In: Obra Completa: volume unico. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar.
Download

ABSTRACT: The aim of this study is to draw a course of the