À
Soraya Romina
Coordenadora do Comitê de Monitoramento e Acompanhamento da Política Municipal para
a População em Situação de Rua de Belo Horizonte
Prezada Soraya
Sobre a última versão da Instrução Normativa, apresentada em 29/10/2013, vimos ratificar
nosso posicionamento, pelo que apresentamos as seguintes ponderações:
No contexto da Instrução Normativa, compreendemos a necessidade de orientação,
formação e principalmente sensibilização de agentes públicos para atuarem com a população em
situação de rua, a fim de minimizar a violência institucional, garantir o respeito à cidadania de
todos e o reconhecimento da dignidade das pessoas que se encontram em situação de rua.
Porém, é preciso ressaltar que a edição do referido documento, conquanto atenda a
determinados objetivos de ordem administrativa, com possíveis repercussões no tratamento
dispensado às pessoas em situação de rua, não atende às expectativas dos integrantes da sociedade
civil no Comitê (que assinam o presente documento), uma vez que, apesar de muitas sugestões
terem sido acolhidas, a redação final do documento ainda apresenta pontos de incongruência que
desfavorecem os direitos e a política para a população em situação de rua em Belo Horizonte.
Entendemos que a matéria deveria, ainda, ser amplamente discutida com a sociedade civil,
com tempo hábil para promover o diálogo com o grupo populacional a quem se dirige essa
instrução, com outros grupos da sociedade civil envolvidos na temática e mesmo no âmbito do
Comitê . O não esgotamento do diálogo constitui um retrocesso na política em Belo Horizonte,
uma vez que se propunha a construção de uma política conjunta com a sociedade.
Ressaltamos que todas as discussões dentro e fora do Comitê deixaram clara a
complexidade de se prever, determinar, ou exemplificar o que é essencial para a sobrevivência das
pessoas que se encontram em situação de rua. Entendemos, contudo, que não cabe ao Poder
Público, sob a justificativa das normas de posturas e de seu poder de polícia, estabelecer o que é
essencial para a sobrevivência das pessoas que se encontram em situação de rua.
Lembramos que o Parecer Jurídico produzido pelos Imos. Professores José Luiz Quadros
Magalhães e Tatiana Ribeiro de Souza, sobre o referido documento, em suma, reafirma o direito à
dignidade da população em situação de rua, com a inviolabilidade do direito fundamental à
propriedade privada e à igualdade, nos termos da Constituição Federal de 1988, podendo constituir
crime de furto ou roubo a apreensão de objetos das pessoas que se encontram em situação de rua,
com o risco de recair aos agentes públicos a responsabilidade pela violação de direitos
fundamentais.
Destacamos, mais uma vez, que uma instrução normativa deve servir apenas como um
documento orientador e que está abaixo hierarquicamente das normas constitucionais e das leis
federais, e que o conteúdo dessa Instrução Normativa apresenta contradições e ainda a
possibilidade de perpetuação do contexto de violações sofridas pela população em situação de rua
por parte de agentes públicos. Entendemos que ações junto a população em situação de rua
pressupõe, necessariamente, a implementação de políticas públicas de natureza estruturante no
Município, que inclua, inclusive, a garantia de proteção e cuidado para todas as pessoas em
situação de rua.
Desde o ano de 2010, ano da criação do Comitê de Monitoramento e Acompanhamento da
Política Municipal para a População em Situação de Rua, importante passo dado pela Prefeitura de
Belo Horizonte no sentido de tratar as políticas públicas para esse grupo populacional, várias
propostas foram discutidas especialmente as políticas setoriais de moradia, saúde, educação,
segurança, trabalho e renda, cultura e lazer, apresentadas no Comitê em reuniões específicas para
este fim.
Reconhecemos o avanço em poder estabelecer esse diálogo, apesar dos desafios que se
apresentam. Entretanto, das propostas apresentadas e das discussões e iniciativas poucas foram as
de natureza estruturante, ou seja, aquelas que têm como objetivo a saída definitiva de pessoas das
ruas por meio da garantia de direitos sociais básicos, como a moradia e a preparação para a
inserção social pela via de uma atividade produtiva.
Diante disso, ressaltamos a importância da efetivação das propostas já apresentadas ao
Comitê, de políticas intersetoriais para consolidação da saída das pessoas das ruas com a garantia
de direitos fundamentais como moradia, saúde, educação trabalho e renda, alimentação e
segurança, por entender que tais políticas precedem a qualquer ação de desobstrução da via pública
e cuidados com os bens públicos.
Entendemos que, diante do especial e complexo contexto em que vive a população em
situação de rua, bem como dos direitos fundamentais assegurados em nossa Constituição, a não
ocupação dos espaços públicos para fins de moradia deve ser buscada por meio da implementação
de políticas públicas que, de fato, possibilitem a saída das ruas e a garantia de uma vida digna, e
não pelos tradicionais instrumentos ligados ao exercício do poder de polícia da Administração
Pública, que têm no recolhimento de pertences seu principal exemplo. Faz-se imprescindível que o
poder de polícia seja repensado e reconstruído a partir de novas bases e de outros instrumentos e
estratégias.
Reafirmamos que a defesa da vida, e vida digna, é anterior a qualquer norma. Desta feita, a
sociedade civil solicita a reabertura do debate, pensando em outras possibilidades mais dignas.
Sempre defendemos que antes de qualquer intervenção junto à população em situação de rua o
diálogo com a sociedade civil, com a comunidade, com a representação da população de rua,
mídias, entre outros é o melhor caminho. Além disso, propomos ao Comitê outras possibilidades
de ação, como pensar as políticas de moradia, de geração de trabalho e renda, como também o
caráter indenizatório que essa população deveria receber, as quais poderão trazer efeitos positivos e
duradouros, antes de qualquer intervenção de retirada ou apreensão de pertences.
O contexto do desenvolvimento urbano e da população em situação de rua a que as cidades
estão submetidas demanda um novo debate sobre como agir. Não se pode tratar questões atuais
com velhos, ortodoxos, rígidos e intransigentes conceitos, paradigmas e ações. Antes, acreditamos
que é necessário investir em novas formas de aceitar e enfrentar os desafios que o desenvolvimento
impõe, sendo inovador equânime e justo para assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana.
Por fim, reafirmamos que a sociedade civil participante do Comitê continua empenhada em
contribuir, na medida do possível, para o avanço da construção de uma Política Municipal para a
população em situação de rua em Belo Horizonte e que continuará o acompanhamento de todas as
ações do poder público, apontando falhas, solicitando soluções e se colocando à disposição para o
debate.
Belo Horizonte, 31 de outubro de 2013.
Atenciosamente,
Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e
Catadores de Materiais Recicláveis
Fórum da População de Rua de Belo Horizonte
Movimento Nacional da População em Situação de Rua em Belo Horizonte
Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte
Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG
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