1 Evolução Histórica Predimensional dos Direitos Humanos Thais Fernandes 1 Tatiane Munhoz 2 Daisy Rafaela da Silva 3 Resumo O presente artigo visa discorrer sobre a temática dos direitos humanos, destituindo-a de aspectos que a tornem mero ramo do Direito. Pretendeu-se alocá-la em patamar mais próximo à filosofia sobretudo por seu conteúdo e função. A pesquisa visa ainda abordar a trajetória dos direitos humanos em momentos anteriores ao Iluminismo do século XVIII. Notadamente, as gerações/dimensões dos direitos fundamentais, emolduradas com maior precisão a partir da Independência Americana e da Revolução Francesa, são temas bastante difundidos no meio acadêmico. No entanto, a presente pesquisa se propõe a abordar justamente os aspectos históricos anteriores a esses períodos. Teve-se o intuito de demonstrar como as nuances do pensamento humano, ao longo da história desde a era Axial até o Iluminismo, foram capazes de preparar e impulsionar a deflagração das Revoluções Liberais. Palavras-Chave: Direitos Humanos – Filosofia – Revoluções Liberais – Dimensão. Abstract 1 Advogada. Graduada em direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo U.E Lorena. Pós-Graduanda em Direito e Processo Civil pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo U.E Lorena. <[email protected]> 2 Graduanda em direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo U.E Lorena. <[email protected]> 3 Doutora em Direito. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Professora e Pesquisadora do Programa de Mestrado em Direito do Centro UNISAL-Lorena.SP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Direitos Humanos" cadastrado junto ao CNPq. Integra o Observatório de Violências nas Escolas em parceria UNISAL-UNESCO. Coordena o Núcleo de Direitos Humanos na Unidade de Lorena do Centro UNISAL. Graduanda em Filosofia pelo UNISAL.. <[email protected]> 2 This article aims to discuss the issue of human rights, depriving it of aspects that make it a mere part of the science of law. It was intended to allocate human rights in closer to the philosophy level, especially for its content and function. The research aims to address the trajectory of human rights prior to the eighteenth century – Enlightenment. Notably, generations/dimensions of fundamental rights, analyzed from the American Independence and the French Revolution, are issues fairly widespread in academia. However, this research aims to address precisely these aspects to the previous periods, in order to demonstrate how the nuances of human thought in the history, from the Axial era to the Enlightenment, were able to prepare and boost the outbreak those that still influence the conduct of our history: the Liberal Revolutions. KEYWORDS: Human rights – Philosophy – Liberal Revolution – Dimension 1 Considerações Iniciais A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos. Hannah Arendt O estudo dos direitos humanos requer de início entendimento de conceitos e reflexões, sem os quais a compreensão do tema estaria prejudicada. Os desafios do tema, as principais correntes teóricas e os conflitos terminológicos serão expostos a seguir de modo a contribuir para a completa fruição do assunto. Superadas tais preliminares, iniciar-se-á o estudo dos marcos histórico-sociais que contribuíram para a cumulação dos direitos fundamentais, almejando com isso proporcionar ao leitor uma leitura leve e bem pontuada sobre direitos humanos. Passa-se à exposição. 2 Dos Desafios de Compreender Direitos Humanos “Tudo é água”. 4 Foi com essa proposição que Tales de Mileto (sec. VII a.C) inaugurou o pensamento filosófico. Embora se trate de uma frase simplória e sabidamente incorreta, dela se pode extrair importante reflexão. A filosofia nasce da 4 SOUZA, José de Cavalcante. Os Pré-Socráticos - Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 3 unidade de conhecimento, resistindo a fragmentações do saber. Para Tales – matemático, astrônomo e comerciante –, por de trás da aparente diversificidade das coisas, repousa uma unidade elementar essencial de tudo. Tudo é uma coisa só. Para ele, a água. Na Idade Moderna com o advento da Revolução Científica no século XVI, a tendência do saber universal dividiu espaço com uma proeminente Ciência Natural. 5 O Movimento Renascentista relegou os dogmas religiosos e filosóficos até então existentes à sabatina dos testes e da experimentação. 6 Nascia a Ciência Moderna, 7 adepta dos fenômenos ponderáveis. Como consequência, os ensinamentos não comprovados de modo científico não mais deveriam ser as únicas e incontestáveis bases do conhecimento humano, 8 independente de qual autoridade os havia proclamado. Se por um lado a filosofia nasce da unidade – “tudo é uma coisa só” –, a ciência nasce da diversidade, da fragmentação e da complexidade do saber. A partir dela tornou-se impossível refrear a cultura do conhecimento compartimentado. E qual é a pertinência disso com Direitos Humanos? É o que se passa a expor. Direitos Humanos. Binômio simples e de fácil leitura. Discorrer sobre ele, no entanto, é um desafio tanto para quem o escreve como para quem o lê. Ensiná-lo significa adentrar em campos que ultrapassam as leis positivas dentro de um sistema jurídico. 9 Entendê-lo e aplicá-lo satisfatoriamente sugere habilidade individual diversa da simples capacidade cognitiva. Sob essa perspectiva, a depuração moral do pesquisador é requerida de modo a levá-lo a um entendimento mais humanístico e menos científico/compartimentado. Direitos Humanos não é só mais um ramo da ciência do direito. Antes disso, sua interdisciplinaridade o faz mais intimo da unidade do saber sem divisões como a filosofia, em que o sujeito a refletir busca tanto a universalidade do conhecimento como o refinamento individual e social. 10 Entender como se encaixou cada tijolo dessa construção inacabada advinda da positivação dos Direitos Humanos implica conhecer matérias desconhecidas do mundo 5 KOIRÉ, Alexandre. Galileu e Platão. Lisboa: Gradiva, [1943 e 1948], p. 11. 6 KOIRÉ, Op cit, p.14. 7 VAN DOREN, Charles. Uma Breve História do Conhecimento. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p.222. 8 KOIRÉ, Op cit, p.15. 9 TAVAREZ, Celma. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos Teórico – Metodológicos – O Desafio da Formação dos Educadores numa Perspectiva Interdisciplinar. [2010], p. 487. 10 PIAGET, Jean. Os Pensadores - Burrhus Frederic Skinner/Jean Piaget. São Paulo: Abril, 1975, p. 197. 4 jurídico tão imerso ao tecnicismo da subsunção da norma ao fato. “São várias as perspectivas que se podem assumir para tratar do tema dos direitos do homem. Indico algumas delas: filosófica, histórica, ética, jurídica, política. Cada uma dessas perspectivas liga-se a todas as outras [...]”. 11 O conhecimento pleno apenas da técnica ou de parte desses temas resultaria um saber caduco, impreciso e improdutivo. Portanto, caro leitor, para o amplo entendimento sobre direitos humanos, é sugerido um leve desapego das técnicas jurídicas e a adesão ao modo filosófico de ensino, em que o todo é uno. Único caminho capaz de levá-lo à sabedoria reflexiva e altruísta. 3 Direitos Humanos E Direitos Fundamentais: Teoria Jusnaturalista E Positivista Inicialmente, faz-se necessário a superação do conflito das diversas nomenclaturas usadas para versar sobre direitos inerentes ao homem. Direitos dos homens, direitos naturais, direitos humanos, direitos fundamentais, entre outras expressões são frequentemente usadas sem nenhum rigor aparente. Lembra o professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo, André de Carvalho Ramos, 12 que a Constituição Federal de 1988 contribui para a falta de padronização, já que usa indiscriminadamente os termos: direitos humanos, direitos e garantias fundamentais, direitos e liberdades fundamentais, direitos e liberdades constitucionais, direitos e garantias fundamentais, direitos fundamentais da pessoa humana, direitos da pessoa humana, direitos e garantias individuais e direitos humanos. Apesar disso, vê-se crescente a tendência de solidificar as duas principais nomenclaturas para que se chegue ao consenso de que Direitos Humanos – ou direitos do homem – são direitos de todas as pessoas, tendo abrangência universal e atemporal, sem vínculo territorial. Sua proteção possui carácter supranacional, devendo ser, portanto, tutelados por normas de direito internacional público. Já Direitos Fundamentais têm abrangência reduzida, porquanto se traduzem na positivação dos Direitos Humanos em determinados ordenamentos jurídicos. Sua proteção se dá pela Constituição de cada estado, possuindo características de normas internas a um determinado sistema jurídico. 11 12 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: ELSEVIER, 1992, p.47. RAMOS, André de C. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. São Paulo: Saraiva, 2012 p. 25. 5 José Joaquim Gomes Canotilho 13 elucida tal ensinamento, dizendo que “direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos [...] arrancariam da própria natureza humana e daí o seu carácter inviolável, intemporal e universal”. Já Direitos Fundamentais, ainda segundo o autor, seriam “os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente [...] seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”. 14 Sendo universal, atemporal e não territorial, segundo a doutrina jusnaturalista, os Direitos Humanos existem no mundo ser, pois se consubstanciam em direitos naturais inerentes à condição humana. O aspecto jusnatural dos Direitos Humanos não é pacífico entre os doutrinadores. Por ele, os direitos humanos são anteriores e superiores ao direito positivo. “São Tomás de Aquino pode ser considerado um dos próceres da chamada corrente de Direito natural de inspiração divina. Para o teólogo, a lex humana deve obedecer a lex naturalis, que era fruto da razão divina, mas perceptível aos homens”. 15 Já para os positivistas, foram as revoluções sociais que concretizaram e positivaram os Direitos Humanos, que se traduziram nos direitos fundamentais de cada Estado. Segundo eles, tais direitos expressam conquistas populares ocorridas em face da imperatividade dos Estados, cujo amadurecimento moral e institucional se deu – e ainda se dá – ao longo da história. Para Bobbio, 16 os direitos humanos são históricos e adstritos à determinada época. Segundo ele, “por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos [...] caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Independente da prevalência da teoria naturalista ou positivista, ainda há um longo caminho para se atingir a plenitude moral das sociedades principalmente quando se pensa na efetivação de tais direitos. Contudo, considerando a inquietação que a falta deles já faz, tal fenômeno pode ser considerado um indicador positivo comparado à complacência demonstrada nas mesmas condições em tempos atrás. Analogicamente, é como se a sociedade mundial fosse uma pedra bruta a ser lapidada, vindo a se tornar a cada revolução mais polida e civilizada. Tal lapidação é 13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p.469. 14 CANOTILHO, Op cit, 1993, p.469. 15 RAMOS, Op cit, 2012, p. 31. 16 BOBBIO, Op cit, 1992, p.5. 6 melhor percebida e didaticamente ensinada com base nas chamadas Dimensões de Direitos, expressão dotada de progressividade e expansividade. 4 Da Terminologia: Dimensão e Geração de Direitos A teoria das gerações de direitos, bastante utilizada por Bobbio e Bonavides, “foi lançada pelo jurista francês de origem checa, Karel Vasak, que, em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos no ano de 1979, classificou os direitos humanos em três gerações, cada uma com características próprias”. 17 Para Bobbio, [...] os direitos humanos se afirmaram historicamente em quatro gerações: 1ª Geração: Direitos Individuais – pressupõem a igualdade formal perante a lei e consideram o sujeito abstratamente; 2ª Geração: Direitos Coletivos – os direitos sociais, nos quais o sujeito de direito é visto no contexto social [...] 3ª Geração: Direitos dos Povos ou os Direitos de Solidariedade: os direitos transindividuais, também chamados direitos coletivos e difusos [...] 4ª Geração: Direitos de Manipulação Genética, relacionados à biotecnologia e bioengenharia, tratam de questões sobre a vida e a morte e requerem uma discussão ética prévia. 18 Sobre o termo, há de se destacar mais um embate terminológico. A palavra dimensão tem obtido a preferência dos pesquisadores na concorrência com o termo geração. Isso porque, segundo a doutrina, o termo geração abarca a ideia de substituição de uma pela outra, o que induz a inverdades, haja vista a expansão dos direitos fundamentais e não mera substituição. Para o jurista Cançado Trindade, 19 “O fenômeno que hoje testemunhamos não é o de sucessão, mas antes, de uma expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados”. Superado o conflito terminológico, inicia-se o estudo das dimensões de direitos fundamentais. 5 Do Estudo Histórico-Cronológico dos Direitos Fundamentais 17 RAMOS, Op cit, 2012, p. 48. 18 OLIVEIRA, Samuel Antonio Merbach de. ROBERTO BOBBIO: teoria política e direitos humanos. Rev. Filos., v. 19, n. 25, p. 361-372, jul./dez. 2007, p. 364. 19 TRINDADE, Cançado in: DIÓGENES JÚNIOR, José Eliaci Nogueira. Gerações ou dimensões dos direitos fundamentais? [2014]. 7 Adentrando ao estudo das dimensões de direitos propriamente ditas, estudar-se-á inicialmente os precedentes históricos da Idade Antiga e Idade Média antes da análise das revoluções liberais, que desencadearam o surgimento da Primeira Dimensão de Direitos Fundamentais 6 Evolução Histórica Predimensional dos Direitos Humanos Segundo Alexandre de Moraes, “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens [...] prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”. 20 Fábio Konder Comparato, citando o filósofo Karl Jaspers, explica que a história da humanidade ocorrida entre os séculos VIII a II a.C – Período Axial – serviu como uma espécie de eixo histórico da humanidade. É nesse período que “as explicações mitológicas anteriores são abandonadas” 21 e o homem passa a dar atenção a si mesmo, ousando testar sua racionalidade. Segundo ele, “no século V a. C., tanto na Ásia quanto na Grécia (o "Século de Péricles"), nasce a filosofia, com a substituição, [...] do saber mitológico [...] pelo saber lógico da razão. O indivíduo ousa exercer a sua faculdade de crítica racional da realidade”. 22 A colocação do homem no centro de todos os problemas e soluções fora fundamental para o pensamento filosófico acerca da existência e/ou precedência humana em sociedade. Tal indagação foi a semente do ideal de igualdade, desenvolvida há quase 25 séculos mais tarde. 23 [...] é a partir do período axial que, pela primeira vez [...] o ser humano passa a ser considerado, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais. Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para a afirmação da existência de direitos universais [...] Mas foram necessários vinte e cinco séculos para que a primeira organização internacional a englobar a quase totalidade dos povos da Terra proclamasse, na abertura de uma Declaração Universal de 20 21 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 13. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, passim. 22 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 23 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 8 Direitos Humanos, em que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos". (grifo nosso) O surgimento das leis escritas e não escritas nas antigas civilizações contribuiu positiva e negativamente para o desenvolvimento dos Direitos Humanos. Se por um lado a lei escrita suscitava a ideia de regras e consequentemente de limitação de poder. Por outro, a lei não escrita funcionava como uma espécie de vala residual, a ser ali dispensada toda teoria mitológica, religiosa e discriminatória que justificasse o tratamento diferenciado dos povos. Para os atenienses, a lei escrita é o grande antídoto contra o arbítrio governamental, pois, como escreveu Eurípides na peça ‘As Suplicantes’ (versos 434-437), "uma vez escritas as leis, o fraco e o rico gozam de um direito igual; o fraco pode responder ao insulto do forte, e o pequeno, caso esteja com a razão, vencer o grande". [...] Mas, ao lado da lei escrita [...] havia também [...] a lei não escrita [...] de noção ambígua, podendo ora designar o costume juridicamente relevante, ora as leis universais, originalmente de cunho religioso, [...] É neste último sentido que na expressão "leis não escritas" é usada [...] o acréscimo do adjetivo "divinas". 24 (grifo nosso) Sobre tratamento diferenciado, outro marco da antiguidade relevante para os direitos humanos, precisamente o de igualdade, fora a suplantação do judaísmo pelo cristianismo. A ideia de um povo privilegiado fora questionada pelo valor de igualdade proclamado por Cristo. “A partir da pregação de Paulo de Tarso, [...] passou a ser superada a ideia de que o Deus único e transcendente havia privilegiado um povo entre todos, escolhendo-o como seu único e definitivo herdeiro”. 25 Mas essa igualdade universal dos filhos de Deus só valia, efetivamente, no plano sobrenatural, pois o cristianismo continuou admitindo, durante muitos séculos, a legitimidade da escravidão, a inferioridade natural da mulher em relação ao homem, bem como a dos povos americanos, africanos e asiáticos colonizados, em relação aos colonizadores europeus. A idade Média foi paradoxal para os direitos humanos. Se por um lado, a filosofia de Santo Agostinho e São Thomás de Aquino lançaram as bases da limitação do poder pelo crivo de um direito natural supremo, portanto contrário a um poder 24 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 25 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 9 absoluto. Por outro, “delineia-se uma clara tendência, em toda a Europa Ocidental, no sentido da centralização do poder, tanto na sociedade civil quanto na eclesiástica.” 26 Ao longo desse período, a Carta Magna de 1215 é considerada um marco na evolução dos Direitos Humanos. Em meio a conflitos com a Igreja e falta de prestígio com seus governados, o rei João Sem-Terra, ao consagrar direitos subjetivos, declara implicitamente uma autolimitação de poder. O sentido inovador do documento consistiu, justamente, no fato de a declaração régia reconhecer que os direitos [...] existiam independentemente do consentimento do monarca, e não podiam [...] ser modificados por ele. Aí está a pedra angular para a construção da democracia moderna: o poder dos governantes passa a ser limitado, não apenas por normas superiores, fundadas no costume ou na religião, mas também por direitos subjetivos dos governados. Se no início do século XIII os governados ainda não constituíam [...] o povo [...] eles tendiam a sê-lo [...]. Aliás, a declaração [...] segundo a qual o rei e seus descendentes garantiriam para sempre [...] as liberdades, [...] representou o primeiro passo para [...] o status libertatis, independentemente de qualquer outra condição pessoal. 27 O declínio do feudalismo abriu espaço para a ascensão do absolutismo, que se caracterizava pela “a predominância de um dos suseranos sobre os outros, ou seja, teve início o movimento gerador de um primus inter pares, que vinha a ser o rei. [...]”. 28 O novo modelo de estado significou uma barreira para os direitos humanos, que seria superada por novas leis e declarações de direitos. A Lei do Habeas Corpus de 1679, proferida pelos ingleses, auxiliou na construção dos direitos do homem. Além da garantia contra prisões estatais arbitrárias, passavam a ser protegida a lesão ou a simples ameaça do direito de ir e vir, uma novidade para a época. Segundo Comparato, a Inglaterra, adepta das garantias processuais, nesse ponto divergia da França, afeta a declarações de direitos. “O direito inglês [...] foi criado [...] pelas práticas do foro: advogados [...] e juízes. Na Europa Continental, diversamente, os sistemas jurídicos [...] foram criações intelectuais de jurisconsultos e professores”. 29 26 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 27 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 28 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 29 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 10 Dez anos mais tarde, após a acusação dos ingleses de traição por manter relações com os franceses, o rei inglês Jaime II foge para França, deixando sua filha, Maria de Stuart – futura Maria II –, com a incumbência de ocupar o trono com o Príncipe Guilherme Orange. O parlamento, porém, em meio ao caos na sucessão monárquica, ao casal impõe uma condição: declarar o Bill Of Rights (carta de direitos). A imposição parlamentar aos futuros reis representou um assaz exemplo de separação de poderes. 30 O Bill Of Rights de 1689 trouxe avanços e retrocessos para a humanidade. Ao mesmo tempo em que ela reforçava o princípio da legalidade e a vedação de penas cruéis, também negava a liberdade religiosa e instituía uma religião oficial na Inglaterra, sob o argumento de que: [...] é incompatível com a segurança e bem-estar deste reino protestante ser governado por um príncipe papista ou por um rei ou rainha casada com um papista [...] que fique estabelecido que quaisquer pessoas que participem ou comunguem da Sé e Igreja de Roma ou professem a religião papista [...] sejam excluídos e se tornem para sempre incapazes de herdar, possuir ou ocupar o trono deste reino. 31 (grifo nosso) Na França, os textos de Voltaire clamavam justamente por tolerância e liberdade religiosa. Argumentava que inúmeros dissidentes franceses, dispostos a retornar ao país, assim não o faziam ante a falta de “proteção da lei natural, a validade de seus casamentos, a certidão reconhecida de seus filhos, o direito de herdar [...]”. Para Voltaire, “não se trata de reconhecer privilégios imensos, [...] mas de deixar viver um povo pacífico”. 32 Por essa razão, no século XVIII, tentando se desvencilhar das amarras do poder absoluto, a Europa assistiu à eclosão de pensamentos inovadores. Rousseau, Montesquieu, Voltaire incendiaram o movimento literário, implantando esperanças de liberdade para uma população bastante desgostosa com os rumos do estado. 30 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 31 MORAES, Op cit, 2008, p. 13. 32 VOLTAIRE. Tratado Sobre Tolerância – A propósito da morte de Jean Calas, publicado em 1763. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 30. 11 Para os direitos humanos, considerando a Carta Magna de 1215, a Lei de Habeas Corpus de 1679, o Bill of Rights de 1689, nada tinha sido tão marcante e revolucionário como mais tarde viriam a ser as Revoluções Liberais. 7 Primeira Dimensão De Direitos A crescente racionalidade humana do período axial, a filosofia de amor e igualdade de Cristo, o direito natural de Santo Agostinho e Thomas de Aquino, tudo isso serviu de fundação para a grande renovação da consciência humana ocorrida com a Revolução Francesa e a Independência dos EUA. Naquele momento, o absolutismo e o colonialismo vigoravam no mundo. Os territórios existentes ou faziam parte da metrópole de uma monarquia absolutista ou desta eram colônias. Destacavam-se a ausência de liberdades públicas subjetivas e a manifesta desigualdade social, referente aos privilégios das classes favorecidas em contraste com as desfavorecidas. Na França: Em 1789, 28 milhões de franceses [...] vivem sob a monarquia. [...]. A França é uma nação “organizada”: a sociedade está dividida em classes – clero, nobreza e Terceiro Estado –, sendo as duas primeiras privilegiadas [...]. A necessidade de reformas [...] é percebida por todos, de diferentes formas e em graus variáveis. As ideias fervilham, embora o verdadeiro pensamento do Iluminismo esteja difundido somente em um círculo estreito de leitores. [...] qualquer veleidade reformista se choca contra graves oposições, sobretudo dos privilegiados; porém, paradoxalmente, é a contestação lançada por estes que vai servir de estopim à Revolução. 33 Na América do Norte, as treze colônias inglesas apresentavam profundo desgaste em suas relações com a Inglaterra. A ausência de liberdade também incomodava. A 16 de dezembro de 1773, no porto de Boston, um grupo de cinquenta cidadãos disfarçados de índios subiu durante a noite a bordo dos navios da Companhia das índias e lançou à água toda a carga. [...] O governo inglês decidiu responder a esse desafio com firmeza exemplar: cinco decretos arruinaram o comércio de Boston e reduziram a zero as liberdades em Massachusetts. Londres queria que isso servisse de exemplo, mas tudo o que conseguiu foi precipitar o nascimento de solidariedade 33 BLUCHE, Frédéric; RIALS, Stéphane; TULARD, Jean. Revolução Francesa. São Paulo: L&PM Pocket, 2009, p.3 12 continental. As outras colônias colocaram-se ao lado de Massachusetts. 34 (grifo nosso) A Independência Americana e a Revolução Francesa destacaram-se na luta contra o absolutismo. Guardada as particularidades de cada momento, tanto o terceiro estado francês – burgueses e camponeses –, quanto os colonos ingleses na América nutriam em comum a vontade de diminuir a intervenção do estado nas relações particulares. A Declaração de Independência dos EUA 35 de 1776, a Constituição Americana 36 de 1787 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 37 de 1789 trazem em seus textos o retrato do desejo de liberdade. 34 RÉMOND, René. História dos Estados Unidos. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 18. 35 Declaração da Independência dos Estados Unidos da América – 1776: Consideramos estas verdades [...] que todos os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo seu Criador certos Direitos inalienáveis, entre os quais se contam a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Que para garantir estes Direitos, são instituídos Governos entre os Homens [...] Que sempre que qualquer Forma de Governo se torne destruidora de tais propósitos, o Povo tem Direito [...] a instituir um novo Governo, [...]. É verdade que a sensatez aconselha que não se substituam Governos [...] Mas quando um extenso rol de abusos e usurpações, invariavelmente com um mesmo objetivo, evidencia a intenção de o enfraquecer, sob um Despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, destituir tal Governo [...] Tal tem sido o paciente sofrimento destas Colónias [...] que as obriga a alterar os seus anteriores Sistemas de Governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha é uma história de sucessivas injúrias e usurpações, todas com o objetivo último de estabelecer um regime absoluto de Tirania sobre estes Estados. [...] Assim sendo, nós, Representantes dos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, [...] declaramos solenemente que estas Colónias Unidas são e devem ser por direito ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES [...]. 36 Constituição Americana – 1787: Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de [...] garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos [...] esta Constituição [...] Bill Of Rights: I - O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa [...] II – [...] o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido. III - Nenhum soldado poderá, em tempo de paz, instalar-se em um imóvel sem autorização do proprietário [...] IV - O direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres contra busca e apreensão arbitrárias não poderá ser infringido; [...] V - Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri [...] ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização. VI - Em todos os processos criminais, o acusado terá direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial [...] de ser informado sobre a natureza e a causa da acusação; de ser acareado com as testemunhas de acusação; de fazer comparecer por meios legais testemunhas da defesa, e de ser defendido por um advogado. [...] VIII - Não poderão ser exigidas fianças exageradas, nem impostas multas excessivas ou penas cruéis ou incomuns. [...] 37 Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão – França – 1789: Os representantes do povo francês, [...] tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem [...] resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem [...] Em razão disto, a Assembleia Nacional reconhece e declara [...] os seguintes direitos do homem e do cidadão: Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão. [...] Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. [...] Art. 5º. [...] Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene. Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. [...] Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos [...]. Art. 7º. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. [...] Art. 8º. [...] ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada. Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado [...] Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, [...]. Art. 11º. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, 13 A primeira dimensão de direitos surgiu justamente da cisão do homem com o absolutismo. Com as teorias constitucionalistas, o poder pela autoridade dava lugar a um conjunto de direitos e deveres pré-definidos que serviriam de base tanto para orientar como para limitar o poder governamental. A essas regras deu-se o nome de Constituição; fator determinante na transformação do Estado Absoluto para o Estado de Direito. A Constituição Americana, segundo o professor americano Akhil Reed Amar, 38 é um marco histórico para a humanidade, pois é a partir do direito discutido e promulgado na América que os outros estados passaram a implementar, com mais clareza, as ideias de limitação do poder, tripartição de poder e garantia de direitos, sendo estes, portanto, os três maiores fenômenos do constitucionalismo. Adentrando na discussão sobre qual das revoluções fora mais impactante para a história, Norberto Bobbio lembra que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão editada na França foi posterior à declaração de independência norte-americana. “Uma indiscutível verdade. Mas foram os princípios de 1789 que constituíram, durante um século ou mais, a fonte ininterrupta de inspiração ideal para os povos que lutavam por sua liberdade”. 39 Para Comparato “[...] enquanto os norte-americanos mostraram-se mais interessados em firmar sua independência [...] do que em estimular igual movimento em outras colônias [...], os franceses consideraram-se investidos de uma missão universal de libertação dos povos.” 40 Por todo o descontentamento popular em relação ao poder absoluto, as conquistas da primeira dimensão dos direitos fundamentais visavam garantir as liberdades individuais e a abstenção estatal na relação privada. Bonavides explica que “os direitos da primeira geração são os direitos de liberdade [...] os direitos civis e políticos [...] têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado [...]; enfim são direitos de resistência e oposição perante o Estado”. 41 Segundo a doutrina Tratado de Direito Constitucional, coordenada conjuntamente por Gilmar Mendes, Ives Gandra Martins e Carlos Valder do portanto, falar, escrever, imprimir livremente [...]. Art. 15º. A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração. Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, [...]. 38 COURSERA. MOOC Constitutional Law by Akhil Reed Amar, Professor da YALE University, 2014. 39 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 118. 40 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 41 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 564. 14 Nascimento, os direitos da primeira dimensão foram “declarados a partir da Revolução Francesa, como ínsitos ao cidadão, supondo o respeito e a abstenção do Estado (direitos negativos ou de defesa): vida, liberdade, igualdade e propriedade (maior essencialidade)”. 42 Fica claro, portanto, que da opressão estatal nasce o desejo de liberdade e resistência das garras do Estado que até aquele momento era interventor e dominante das relações. Após a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o grito de alforria foi exteriorizado a plenos pulmões e o Estado relegado a condição de gestor mínimo das funções públicas. O liberalismo extremo como requerido foi enfim implementado, dando forma ao chamado Estado Liberal positivado por Constituições Liberais. Entretanto, tudo o que é demais extrapola, e o excesso de liberdade, tido como solução, tornou-se um problema a ser corrigido por uma nova dimensão de direitos. 8 Segunda Dimensão De Direitos O liberalismo exacerbado – fruto das revoluções liberais – deu às sociedades modernas uma nova acepção de Estado: menos interventor e menos participativo nas relações pessoais. Diante dessa abstenção, as relações privadas eram reguladas pelas próprias pessoas, que eram vistas e tratadas de modo igual pela lei. No entanto, [...] essa isonomia cedo revelou-se uma pomposa inutilidade para a legião crescente de trabalhadores, compelidos a se empregarem nas empresas capitalistas. Patrões e operários eram considerados, pela majestade da lei, como contratantes perfeitamente iguais em direitos, com inteira liberdade para estipular o salário e as demais condições de trabalho. [...] a lei assegurava imparcialmente a todos ricos e pobres, jovens e anciãos, homens e mulheres, a possibilidade jurídica de prover livremente à sua subsistência e enfrentar as adversidades da vida [...]. 43 (grifo nosso) A Revolução Industrial iniciada ao final do século XVIII fomentou o crescimento das relações trabalhistas, originando desigualdade social e o crescente empobrecimento do proletariado. Logo a liberdade conquistada na primeira dimensão de direitos mostrou-se prejudicial, já que com ela a exploração de trabalho estava 42 MARTINS, Ives Gandra; MENDES, Gilmar; e NASCIMENTO, Carlos Valder. Tradado de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 444. 43 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 15 praticamente legalizada, haja vista o tratamento formalmente igual conferido tanto a empregados como empregadores. Descobriu-se que a liberdade individual no conduzir das relações interpessoais pressupunha outro direito fundamental, que até aquele momento não havia sido proclamado, a igualdade material, que teria o condão de remediar o tratamento tirânico das classes patronais manifestamente favorecidas nas contratações de trabalho com as classes de proletariado desfavorecidas economicamente. A célebre frase de Aristóteles já assim resumia: “tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual” 44 na busca de uma justiça social. Os direitos de segunda dimensão são denominados direitos sociais, pois visam a uma sociedade ao mesmo tempo plural e justa, tendo como titular o indivíduo ou grupos de indivíduos, analisados não mais em sua igualdade formal perante a lei, mas ao contrário em suas diferenças sociais, individuais e econômicas. Nas palavras de Comparato, “O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização.” 45 Segundo Bobbio, “através do reconhecimento dos direitos sociais, surgiram ao lado do homem abstrato ou genérico [...] novos personagens como sujeitos de direito, [...] a mulher e a criança, o velho e o muito velho, o doente e o demente, etc.” 46 Diante dessas diferenças, o Estado, antes relegado à abstenção, deveria agora intervir para equilibrar tais desigualdades, visando não mais à liberdade e à igualdade em seu aspecto formal, mas, sobretudo, à acepção material da expressão. Acrescenta Bobbio, que “o reconhecimento dos direitos sociais suscita [...] uma intervenção ativa do Estado, que não é requerida pela proteção dos direitos de liberdade [...].” 47 E daí nasce uma contradição: Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado. 48 44 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2004. 45 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 46 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 66. 47 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 66. 48 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 67. 16 Ao contrário da primeira dimensão de direitos, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, "não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado...”. 49 Do reconhecimento das mazelas do liberalismo desmedido, nasce então o Estado Social, com mais atribuições e mais participativo na busca da efetivação dos direitos do homem. O início do século XX trouxe diplomas constitucionais fortemente marcados pelas preocupações sociais, como se percebe por seus principais textos: Constituição mexicana de 31-1-1917, Constituição de Weimar de 11-8-1919, Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 17-1-1918, seguida pela primeira Constituição Soviética (Lei Fundamental) de 10-7-1918 e Carta do Trabalho, editada pelo Estado Fascista italiano em 21-4-1927. 50 (grifo nosso) Para Comparato, “O reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade reconheceu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX.” 51 [...] Os direitos humanos de proteção do trabalhador são, portanto, fundamentalmente anticapitalistas, e, por isso mesmo, só puderam prosperar a partir do momento histórico em que os donos do capital foram obrigados a se compor com os trabalhadores. 52 Os direitos de segunda dimensão são o resultado do embate entre o capitalismo– fruto da revolução industrial – versus o socialismo – produto do pensamento marxista. Apesar do hegemonia capitalista após a guerra fria, com o fim da segunda guerra mundial, a sociedade global enfim percebeu os prejuízos do liberalismo extremo. Além desse relevante fator social, também havia um especialíssimo fator econômico que afiançava a tese de urgentes 49 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007, p. 57. 50 MORAES, Op cit, 2008, p. 18. 51 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 52 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 17 mudanças estruturais no perfil do Estado: a ampla liberdade do mercado havia produzido imbatíveis monopólios e fortes oligopólios, ambos extremamente nocivos à livre concorrência – o coração do capitalismo. Sob essa lente, a intervenção estatal, quanto aos que detinham o poder (e o dinheiro!), era muito mais que uma opção estratégica; era uma questão de vida ou morte. 53 Os direitos sociais da segunda dimensão ainda hoje padecem de plena efetivação. A maior participação estatal, ao mesmo tempo que implica poder, implica responsabilidade. E é sobre essa efetividade que se tem buscado lançar fundamentos para a construção de um novo Estado Social do Bem-Estar, voltado à justiça social e distributiva. Apesar da distância que separam a teoria da prática dos direitos fundamentais, já lançados estão os pensamentos jurídicos e filosóficos da terceira dimensão de direitos, iniciando novos desafios. 9 O Início das Construções Teóricas da Terceira e da Quarta Dimensão de Direitos Sobre os direitos de terceira dimensão, Pedro Lenza explica que a partir da 2º guerra, “Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como [...] preservacionismo ambiental e as dificuldades para proteção dos consumidores, [...]. O ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade.” 54 Para Paulo Bonavides “A consciência de um mundo dividido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas [...] deu lugar [...] a uma outra noção de direitos fundamentais, [...]. Trata-se daquela que se assenta sobre a fraternidade.” 55 “Os direitos da 3a dimensão são direitos transindividuais que transcendem os interesses do indivíduo e passam a se preocupar com a proteção do gênero humano, com altíssimo teor de humanismo e universalidade.” 56 As atrocidades ao gênero humano, ocorridas após as duas guerras mundiais, colocaram as sociedades mundiais diante da necessidade de tutela, não de uma pessoa em seus anseios de liberdade e igualdade, mas sobretudo de preservação e proteção de toda espécie. 53 MARANHÃO, Ney. A afirmação histórica dos direitos fundamentais. A questão das dimensões ou gerações de direitos. Jus Navigandi. 54 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16º Ed. São Paulo: SARAIVA, 2012, p. 960. 55 BONAVIDES, Op cit, 2004, p. 569. 56 LENZA, Op cit, 2012, p. 960. 18 Calcula-se que 60 milhões de pessoas foram mortas durante a 2ª Guerra Mundial, a maior parte delas civis, ou seja, seis vezes mais do que no conflito do começo do século, em que as vítimas, em sua quase totalidade, eram militares. [...] a qualidade ou característica essencial das duas guerras mundiais foi bem distinta. A de 1914-1918 desenrolou-se [...] na linha clássica das conflagrações [...], pelas quais os Estados procuravam alcançar conquistas territoriais, sem escravizar ou aniquilar os povos inimigos. A 2ª Guerra Mundial, diferentemente, foi deflagrada com base em proclamados projetos de subjugação de povos considerados inferiores, [...] o ato final da tragédia - o lançamento da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, [...] soou como um prenúncio de apocalipse: o homem acabara de adquirir o poder de destruir toda a vida na face da Terra. As consciências se abriram, enfim, para o fato de que a sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de todos os povos, na reorganização das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade humana. 57 A título de exemplo, “o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente, direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, direito de comunicação” 58 , e direto do consumidor compõe o rol exemplificativo dos direitos de terceira dimensão. Para esses direitos, não há que se falar única e exclusivamente dos titulares como elementos de uma relação jurídica perfeita aos moldes clássicos. Para os direitos de terceira dimensão difundiu-se a ideia de universalidade de interesses, em que todos são ao mesmo tempo titulares e devedores de uma prestação. A fruição saudável do meio ambiente e da relação equitativa de consumo são exemplos dessa realidade, pois ao mesmo tempo em que a pessoa tem esses direitos, para isso também deve concorrer. Guardadas as distinções entre direitos difusos, coletivos e homogêneos individuais 59 , usadas majoritariamente nas relações de consumo, mas que também são exportados para todo o sistema jurídico, pode-se dizer que os direitos transindividuais a todos são dirigidos, sem distinção. 57 COMPARATO, Op cit, 2003, passim. 58 LENZA, Op cit, 2012, p. 960. 59 Código de Defesa do Consumidor, art. 81 “Parágrafo único - A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos [...], os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, [...], os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. 19 As construções teóricas, a positivação e a efetivação dos direitos fundamentais não são atividades que obedecem a uma sucessão perfeita. Há uma clara imbricação dessas fases que se amoldam às novas necessidades globais. A falta de efetividade de uma dimensão de direitos em nada impede o início da construção teórico-acadêmica de outros e novos direitos fundamentas. “Ao lado dos direitos sociais, [...] de direitos de 2º geração, emergiram hoje os chamados direitos de 3º geração e [...] já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de 4º geração...”. 60 Segundo Bobbio, os direitos de quarta dimensão surgem a partir de novas exigências, “referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.” 61 Diferentemente, para Paulo Bonavides os direitos dessa dimensão tem conotação politica, precisamente, refere-se àqueles advindos da globalização do neoliberalismo. A globalização política [...] introduz os direitos da quarta geração [...]. São Direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. [...] A democracia positivada enquanto direito de quarta geração há de ser [...] uma democracia direta. Materialmente possível graças aos avanços da tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta [...] há de ser também uma democracia isenta já das contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder. 62 Discorrer sobre os direitos de terceira e quarta geração não suscita facilidades haja vista o alto teor de idealização em contraste com a baixa realidade da efetividade desses direitos. “O que dizer dos direitos de terceira e de quarta geração? A única coisa que até agora se pode dizer é que são expressão de aspirações ideais, às quais o nome de "direitos" serve unicamente para atribuir um título de nobreza.” 63 Bobbio é bastante crítico ao falar da efetividade desses direitos, em suas palavras “uma coisa é proclamar esse direito, outra é desfrutá-lo efetivamente”. 60 LENZA, Op cit, 2012, p. 960. 61 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 5 – 6. 62 BONAVIDES, Op cit, 2004, p. 571. 63 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 9. 64 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 9. 64 20 [...] a linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas ela se toma enganadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido. Não se poderia explicar a contradição entre a literatura que faz a apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a massa dos "sem-direitos". Mas os direitos de que fala a primeira são somente os proclamados nas instituições internacionais e nos congressos, enquanto os direitos de que fala a segunda são aqueles que a esmagadora maioria da humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente proclamados). 65 Como se percebe, a plena efetivação de uma dimensão de direitos não é condição para o surgimento das novas, de modo que hoje não há definição pacífica acerca de quais seriam ao certo os direitos de terceira e quarta dimensões. Apesar disso, a história mundial dos povos e de suas lutas por direitos fundamentais continua em aberto. Aos operadores do direito, no que toca aos direitos humanos, não cabe somente análises acadêmicas, realizadas sob a ótica de meros expectadores passivos. Além dessa postura, a intervenção e principalmente atuação da comunidade jurídico-científica apresentam-se como verdadeiras ferramentas na busca de melhores comportamentos sociais, sempre tendo em vista a afirmação e efetivação dos direitos humanos. Considerações Finais A história da humanidade, em seus aspectos institucional, legislativo, social entre outros, é claramente uma construção ético-moral em andamento. A positivação dos direitos humanos – independente das teorias jusnaturalista ou positivista – está em constante aprimoramento. Não se nega os diferentes graus de civilidade entre as sociedades antigas em comparação com as atuais, por maior que seja ainda o caminho a se percorrer. A aceitação, a positivação e a gradual efetivação dos direitos humanos são provas de uma sociedade global em constante movimento. Dia a dia, vê-se a história contada em tempo real, onde os ideais que se quis misturam-se com novas metas. 65 BOBBIO, Op cit, 1992, p. 9. 21 Resta demonstrado neste artigo que o início da construção das bases dos direitos humanos se deu na era axial (séc. VIII a.C), período em que o homem, ao testar sua racionalidade frente aos problemas, se questiona acerca da igualdade dos seres. Além disso, com os primeiros códigos jurídicos, as leis escritas não só tiveram a função de prescrever regras de comportamento, como a de impor limites a todos, vistos sob um ideal proeminente de igualdade. Igualdade esta que, na Roma Antiga, é fortemente intensificada e difundida pelos ensinamentos e pregações de Cristo e seus seguidores, suplantando inclusive a ideia judaica de um povo escolhido e privilegiado. Na Idade Média, Santo Agostinho e São Thomas de Aquino, ao fundamentarem as teorias do direito natural, impõem limites divinos aos poderes estatais, concorrendo para a positivação dos direitos humanos na futuridade. Todas essas passagens prepararam as hastes para o surgimento das declarações e cartas de direitos, como a Carta Magna de 1215; a Lei de Habeas Corpus de 1679; o Bill of Rights de 1689. A Independência Norte-Americana e, principalmente, a Revolução Francesa – bem como as declarações decorrentes desses marcos – tiveram o condão de “furar” o dique da ignorância e do tratamento desigual conferido à pessoa humana ao longo dos séculos. Não obstante tal barreira mostrar bases ainda firmes, é a partir desses eventos que se pôde perceber um fluxo gradativo na afirmação, na positivação e na efetivação de novos direitos e garantias do homem. A história mundial dos povos e de suas lutas por direitos fundamentais continua em aberto. Aos operadores do direito, no que toca aos direitos humanos, não cabem somente análises acadêmicas, realizadas sob a ótica de meros expectadores passivos. Além dessa postura, a intervenção e principalmente a atuação da comunidade jurídico-científica apresentam-se como verdadeiras ferramentas na busca de comportamentos sociais adequados, tendo em vista sempre a plena efetivação dos direitos humanos. 22 Referências AMAR, Akhil Reed. Constitutional Law Course On Line, by YALE University. Disponível em <www.coursera.org> Acesso 1º maio 2014. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2004. BLUCHE, Frédéric; RIALS, Stéphane; e TULARD, Jean. Revolução Francesa. São Paulo: L&PM Pocket, 2009. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: ELSEVIER, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. COMPARATO, Fábio Konder. 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