Veículo: O Estado de S.Paulo – coluna Espaço Aberto
Data: Setembro/2007.
Culpa e responsabilidade
Fernando Henrique Cardoso
O editorial de O Estado de S. Paulo, na quinta-feira última, Nunca antes neste país,
ressalta, com razão, que a decisão do STF mostrou caberem nos bancos dos réus um
governo, um partido e um sistema político-eleitoral. A cortina de fumaça publicitárioeleitoral do disciplinado PT faz seus dirigentes dizerem em uníssono: não temos nada
com isso, o julgamento não respinga em nós, nem no governo, o mau comportamento é
caso isolado, talvez de um só “companheiro”, o auto imolado Delúbio etc. São
justificativas típicas de partidos autoritários: “o Partido”, em sua essência é perfeito; os
homens que o compõem são entidades à parte – podem ser pecadores, mas o partido
não erra nunca.
Por extensão, o governo desse partido, que se imaginava de pureza platônica, nada teria
a ver com os erros de seus filiados, menos ainda a figura simbólica que o expressa, Lula.
Este olha os companheiros e subordinados com a benevolência distante do “paisão”
condescendente, sem qualquer responsabilidade por suas diabruras. Se erraram, pagarão
o preço. A tarefa de julgar pertence aos tribunais, não aos membros do agrupamento.
Enquanto o Tribunal não dá seu veredicto, lavam-se as mãos e se tem por bons os que
estão “supostamente” envolvidos em tramas. Pouco importa os veementes indícios que
levaram os juízes do STF a receber as denúncias, tão pormenorizadamente descritas pela
acusação e pela relatoria. Até o julgamento, “quadrilha”, peculato, corrupção ativa ou
passiva, são invencionices da mídia e da oposição. Se vierem a ser condenados, dirão:
“que outra coisa esperar de um tribunal, senão acomodar-se com a mídia e com a elite?”
O truque ideológico é simples como o sofisma no qual se baseia, o da separação entre
um partido ideal, inatacável, e uma prática pervertida. É certo que a “culpa” será decidida
pelo Tribunal, bem como as penalidades. É até provável que alguns dos acusados sejam
1/3
inocentados, em parte ou totalmente. Mas a responsabilidade pelo que ocorreu (cujo juízo
é político, não penal) recairá sobre o governo, sobre seu chefe e, sobre todos os que ao
não reprovarem com energia os deslizes assumem uma atitude leniente que convida à
repetição das malfeitorias.
Jamais avancei juízos sobre a culpabilidade de cada acusado, à espera das provas (já
evidentes em alguns casos) e da decisão da Justiça. Faço a devida distinção entre culpa
penal e responsabilidade política. Mas não poupei a responsabilidade do Presidente que
nunca repudiou os fatos ocorridos, negando evidências, nem a dos dirigentes partidários
que dizem: “não é conosco”. Com quem é então? Com o Delúbio e com o Valério agindo
sozinhos? A quem beneficiaram os apoios e os votos? Obviamente, ao Presidente, a seus
aliados e à sustentação das políticas do governo.
Por conseqüência, Presidente e governo, indiretamente, e as pessoas diretamente
implicadas na trama respondem pelo que ocorreu, embora em instâncias diversas e com
graus de culpabilidade e de responsabilização também diversos. Todos estão sim no
banco dos réus. Alguns são réus da Justiça, outros perante a opinião pública e a História.
E de nada vale o outro sofisma, malufiano: “fomos absolvidos pelo voto popular”. Terão
muitos políticos de má catadura nesta companhia. O voto dá poder, mas não absolve nem
perante a Justiça nem perante a opinião pública; se o processo de responsabilização
tivesse sustentação política, nem sequer poder daria. Mesmo dando-o, fica o estigma de
um poder manchado por práticas corruptas.
A hipótese de que os maiores responsáveis políticos nada sabiam é de difícil sustentação.
Houve reiteração no STF da presença do candidato à Presidência e de seu vice na sala
contígua ao lugar em que era feita a compra do apoio do PL aos candidatos do PT. O
então governador de Goiás reafirmou que dissera ao Presidente saber de subornos.
Ainda que os dirigentes nada soubessem na ocasião, depois do que hoje se sabe caberia
a repulsa dessas práticas malsãs. O PT até hoje calou. E o Presidente Lula outra coisa
não faz do que confundir a opinião pública, sem nunca dizer quem o traiu, e sem
condenar moralmente seus aloprados companheiros. O Presidente deve à Nação (mesmo
à parte dela que o “absolveu” pelo voto) um repúdio claro às transgressões.
Por fim, o sistema político eleitoral. A verdade é que o sistema de voto, proporcional e uni-
2/3
nominal, fragmenta os partidos, quase os dissolve, obrigando o Executivo a uma série de
acordos, popularmente chamados de barganhas. Esses acordos, não implicam
necessariamente em suborno, em compra, em mensalões ou coisa que o valha. Mas
implicam na cessão do controle de partes da máquina pública a interesses partidários, o
que em si pode não ser um erro, se for para a implementação de políticas com as quais o
governo ou os partidos aliados estejam de fato comprometidos.
Quando, como no caso atual, não se sabe qual é o programa do governo e os aliados
nunca estiveram próximos das idéias dos governantes e, ainda por cima, se introduz a
prática –essa sim inédita e criada pelos operadores do PT – de oferecer vantagens
pecuniárias para obter apoios no Congresso, configura-se a tal “quadrilha” ou “bando”.
Não há, pois, como negar a relação entre o sistema político-eleitoral e os desatinos
praticados.
Mudemos, pois o sistema. É por isso que, embora consciente dos problemas que o voto
distrital acarreta (mas há formas para solucioná-los) venho me batendo por sua adoção.
Ele quebra o atual sistema, que precisa ser quebrado, porque está desmoralizado. Se é
certo que há algum tempo era perceptível o embaraço que nosso sistema político-eleitoral
causa ao bom êxito da administração e às práticas políticas do país, isso se tornou
patente no relacionamento entre o governo atual e o Congresso. O Presidente Lula se
declara favorável ao voto distrital misto. Por que então não assume sua responsabilidade
política de o defender em vez de deixar o PT propugnar por “listas fechadas”?
Presidente, fale com franqueza, assuma posições claras em favor de uma vida política
mais decente. Não serão sofismas nem milhões de votos que o absolverão perante a
opinião pública se permanecer num silêncio conivente.
3/3
Download

Culpa e responsabilidade - Instituto Fernando Henrique Cardoso