A CONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO: CATEGORIAS FREIREANAS Coodenadora: Ana Maria Saul83 Expositores: Antônio Goveia, Mere Abramowicz e Mendel Abramowicz CONSTRUINDO UMA PRÁTICA CURRICULAR EMANCIPATÓRIA: UM FASCINANTE DESAFIO Mere Abramowicz 84 A diminuição de minha estranheza ou de minha distância da realidade hostil em que vivem meus alunos não é uma questão de pura geografia. Minha abertura `a realidade negadora de seu projeto de gente é uma questão de real adesão de minha parte a eles e a elas, a seu direito de ser. Freire,1998,p.155 À frente da disciplina Estudos Avançados em Currículo do curso de pós graduação em Educação: Currículo da PUCSP, destinada aos doutorandos do programa, tivemos uma singular oportunidade de, no segundo semestre de 2000, vivenciar uma inédita experiência didática de inspiração freiriana. Há mais de 10 anos atuando neste espaço pudemos usufruir da proximidade física até 1997, do convívio impar com o Professor Paulo Freire que marcou o nosso fazer pedagógico. A proposta da disciplina Estudos Avançados em Currículo, sob nossa coordenação, demonstrou que é possível a articulação entre a Universidade e a Escola Pública através da construção coletiva de um currículo que faz da relação dialógica um compromisso ético político em um horizonte emancipador. Neste trabalho, buscaremos resgatar essa trajetória procurando relatar, criticamente o que ocorreu durante um semestre de atividade intensa, rigorosa, atenta e apaixonada. Éramos um grupo de nove pessoas, 8 doutorandos e eu, professora, que estaríamos envolvidos em uma proposta que, pela primeira vez, seria ofertada aos doutorandos. A concepção do curso baseava-se em uma ênfase na reflexão sobre a prática dos alunos, no desvelamento das teorias que fundamentam estas práticas e uma volta a elas no sentido de transforma-las. O que realmente ocorreu? 83 84 Coordenadora da Cátedra Paulo Freire PUC/SP Professora Titular do Programa de Pós Graduação-Educação PUCSP 169 Por ocasião da apresentação das práticas curriculares de cada um dos doutorandos, atividade que se constituía em um importante momento do curso , um dos trabalhos tocou , especialmente, a todos . Era a prática curricular de um doutorando, diretor de um CEFAM , destinado a formação de professores com, aproximadamente, 400 alunos situado na periferia urbana de São Paulo, em uma das zonas mais carentes e violentas. A proposta que o diretor explicitava , seu envolvimento, seu entusiasmo a todos contaminou. Ao terminar o seu relato ele desafiava e convidava os demais colegas a, efetivamente, “colocarem a mão na massa” e conhecer a sua escola atuando nela. Após um acalorado debate surge a sugestão de se organizar um projeto com um conjunto de oficinas pedagógicas em um período inteiro de atividades em que cada doutorando trabalharia com a sua especialidade. A agitação era enorme: cada aluno buscava pensar o tema de oficina e a expunha a seus colegas que a analisavam buscando contribuir para o seu aperfeiçoamento. Ao final foram definidos os temas das oficinas: Avaliação, Didática, Sexualidade, Interdisciplinaridade , Multiculturalismo: Cultura e Identidade, Metodologia do Ensino da Matemática e Jogos Pedagógicos. O Diretor da Escola coordenaria todas as oficinas, prepararia as condições para que elas pudessem ocorrer e junto comigo, professora responsável pelo curso, estaria acompanhando a efetiva realização do projeto Nos encontros subsequentes cada doutorando foi finalizando seu planejamento e o discutindo com os demais. Por seu turno, o Diretor do CEFAM propôs o projeto em sua Escola a professores e alunos , explicando seus objetivos e convidando cada estudante a escolher a oficina que queria vivenciar, fazendo sua inscrição. Chamo a atenção aqui para uma efetiva experiência de articulação academia-escola pública, atuando em sintonia na perseguição de objetivos comuns. Destaco, também o movimento flagrado durante a experiência do curso que impeliu toda turma em direção a escola pública para nela atuar com uma ênfase em relevância social, comprometimento e aguçada percepção da realidade. É isso que tentarei agora analisar, assinalando , já de ante mão a dificuldade que é detectar este movimento , em um trabalho escrito. Buscaremos garantir apresentar toda a dinamicidade , vibração e originalidade do trabalho e o empenho do grupo-classe na direção de uma perspectiva emancipadora. O ineditismo da proposta se deve, em grande parte ao fato de existirem poucas oportunidades de se viver experiências didáticas emancipatórias em cursos de pós graduação na Universidade. O trabalho desenvolvido na disciplina Estudos Avançados em Currículo convergiu para a reflexão e ação em uma escola pública periférica, carente e violenta de São Paulo. Um vídeo feito na ocasião documenta aspectos de toda a atividade desde o encontro do grupo na estação ferroviária até sua atuação na Escola . Aproveitamos a riqueza da experiência para fazer algumas reflexões pela ótica curricular e destacar alguns aspectos importantes. Assinalamos, inicialmente, nossa concepção de educação em sintonia com a visão freiriana de educação como forma de intervenção no mundo. É porisso que se descortinou, para nós, o inadiável apelo de atuar em uma realidade concreta, enquanto coletivo de educadores comprometidos. Ao se colocar no horizonte deste trabalho o currículo emancipatório, busca-se transcender uma visão fragmentada de currículo, prescritiva, estática, cristalizada, definida apriorísticamente, pressupondo uma determinada concepção de homem, mundo, sociedade e educação. 170 “Não reduzimos a compreensão de currículo explicito a uma pura relação de conteúdos programáticos. Na verdade, a compreensão do currículo abarca a vida mesma da Escola, o que nela se faz ou que não se faz, as relações entre todos e todas as que fazem a Escola. Abarca a força da ideologia e sua representação não só enquanto idéias mas como prática concreta”(Freire, 1999 p. 123). É exatamente essa concepção de currículo que procuramos viver na experiência aqui relatada; pleno, em sua mais autêntica totalidade superando a noção de rol de conteúdos acumulados e transmitidos mecanicamente. Foi essa idéia de currículo que nos permitiu vislumbrar um caminho, uma trilha com idas e vindas, contradições, conflitos, anseios, desejos que foram tomando forma na possibilidade de atuar em uma escola pública que se abriu para nós. Foi nesta dimensão que os alunos se construíram e construíram o currículo no curso enquanto sujeitos críticos e criativos que elaboram seu conhecimento. A concepção de homem aqui explicitada tem uma vertente freiriana, na sua concretude individual e na sua dimensão coletiva democraticamente proposta. “Foi reinventando-se a si mesmo , experimentando ou sofrendo a tensa relação entre o que herda e o que recebe ou adquire do contexto social que cria e que recria, que o ser humano vem se tornando este ser que, para ser, tem que estar sendo. Este ser histórico e cultural que não pode ser explicado somente pela biologia ou pela genética nem tampouco apenas pela cultura......................Este ser que vive, em si mesmo, a dialética entre o social , sem o que não poderia ser e o individual, sem o que se desenvolveria no puro social, sem marca e sem perfil” ( Freire, 1993, p.67 ) Nas memórias das aulas colhidas e registradas, durante todo curso, há ressonâncias desse ser humano. “Há coisas que não há como viver sem descobrir no eu” (Odila,Memórias de Aula, 15/8/2000 ). “Há no grupo-classe um entusiasmo , uma espontaneidade, criatividade e vibração. Somos professores em contínuo exercício do coletivo” ( Joyce, Memórias de aula, 22/8/2000 ). No contexto do currículo emancipatório o papel do professor é marcante “Ë assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas convicções, disponível ao saber, sensível a boniteza da prática educativa, instigado por seus desafios que não lhe permitem burocratizar-se, assumindo minhas limitações acompanhada sempre do esforço por superálas, limitações que não procuro esconder em nome mesmo do respeito que me tenho e aos educandos” ( Freire, 1998, p.79-80 ). Professora e alunos vivenciaram na disciplina Estudos Avançados em Currículo, aulas que foram verdadeiros “encontros participativos, dialógicos, humanos..........Cada encontro é sempre um novo encontro, cheio de surpresas, recheado de conteúdo humano e acadêmico e , certamente, a cada encontro cada um de nós se transforma” (Joyce, Memórias de Aula, 5/12/2000). Foi nesse clima de aulas e nessa perspectiva emancipatória que algumas dimensões, essencialmente freirianas, se destacaram. A primeira delas é a dialogicidade sem a qual o trabalho não fluiria e não permitiria que fizéssemos a trajetória que percorremos da sala da academia para a escola pública da periferia. O diálogo permeou todos os nossos momentos e níveis de reflexão. “O dialogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. 171 O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e refazem..............Através do diálogo, refletindo junto sobre o que sabemos e o que não sabemos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade..........O diálogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos, podemos a seguir atuar criticamente para transformar a realidade”. ( Freire , 1987, p.123 ). O que ocorreu na nossa realidade nos remete ao que Freire propõe acima: encontramo-nos nas aulas, dialogamos, nos comunicamos intensamente durante todo semestre, criticamente, pensamos nossa realidade e a ressignificamos. Através do diálogo refletimos junto e fomos impulsionados a atuar , intervindo na realidade pensando em transformá-la. A participação de todos foi grande caracterizando outra interessante faceta de um currículo emancipatório. Destaca-se o comprometimento com o seu lugar, a pertinência a comunidade, a possibilidade de agir sobre uma realidade concreta que deu vida ao projeto político-pedagógico do curso. No seu bojo esse projeto traz a dimensão de criticidade que possibilita a inserção crítica na realidade e a apreensão de suas contradições. O conhecimento assim construído é criativo, crítico e emancipador. A essas dimensões de criticidade e participação acrescenta-se a politicidade. No nosso trabalho, na disciplina Estudos Avançados em Currículo, a vertente da politicidade se fez presente o tempo todo na medida em que tivemos uma direção em nossa ação educativa , enfatizando a sua não neutralidade, o que nos encaminhou à escola pública. “É na diretividade da educação , esta vocação que ela tem, como ação especificamente humana, de endereçar-se até sonhos, ideais, utopias e objetivos, que se acha o que venho chamando politicidade da educação. A qualidade de ser política, inerente a sua natureza. É impossível , na verdade, a neutralidade da educação” (Freire, 1998,p.124). Ao optarmos por ter em nossos horizontes a condição emancipatória e a politicidade da educação, vislumbramos a dimensão ética que pensa o homem como ser de opção, de decisão e destaca o respeito aos educadores e educandos como imperativo do fazer pedagógico. A presença do professor, sua coerência, também é contemplada por uma marca ética. “Minha presença de professor que não pode passar desapercebida pelos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. Enquanto presença não posso ser uma omissão mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justica, de não falhar à verdade. Ético , por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho” (Freire, 1998, p.110). Nesse fazer pedagógico , uma tônica que pudemos assinalar e que tem uma inspiração freiriana, foi a alegria presente a todo instante. “Como foi bom nossa alegria de vivenciar a sala de aula, a nossa prática e nossa alegria de compartilhar os mesmos ideais” ( Joyce, Memórias de aula, 21/11/2000 ). A alegria tinge as diferentes instâncias do processo ensino – aprendizagem fluindo na atividade docente que tivemos marcando-a. “A atividade docente de que a discente não se separa, é uma experiência alegre por natureza. É falso também tomar como inconciliáveis seriedade docente e alegria, como se alegria fosse inimiga da rigorosidade. Pelo contrário, 172 quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha docência tanto mais alegre me sinto e esperançoso também. A alegria não chega apenas no encontro do achado mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.” ( Freire, 1998 p. 160 ). Quando levantamos a dimensão da alegria no nosso trabalho ela traz a reboque um importante e fundamental aspecto do currículo emancipatório que é a esperança e sentimos que ela esteve presente na totalidade de nosso projeto já que no horizonte do humano a esperança e o sonho são essenciais. “Há uma relação entre uma alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria. Na verdade do ponto de vista da natureza humana a esperança não é algo que a ela se justaponha. A esperança faz parte da natureza humana..........a esperança é um condimento indispensável à experiência histórica” (Freire, 1998 p. 80-81). Durante todo curso jamais deixamos de ser criticamente esperançosos. Tivemos esperança quando refletimos sobre nossa prática, quando juntos desvelamos a teoria que a ela subjaz e quando voltamos a prática na escola pública pensando em uma transformação que constitui o nosso sonho ético. Impregnando todo percurso da disciplina Estudos Avançados em Currículo e se destacando a meu ver, como o mais marcante aspecto do nosso trabalho temos o fator afetivo, a amorosidade. Isso novamente nos aproxima e estreita nossa relação com o pensamento de Paulo Freire de modo indelével. Nas memórias de aula esse fato se evidencia: “O que mais marcou foi o vínculo, a afetividade” (Joyce, Memórias de aula 21/11/2000). “Houve ênfase na afetividade com a mediação tecnológica, pedagógica. A turma se caracteriza fundamentalmente pela afetividade; há um acolhimento no grupo” (Adriana, citada por Joyce, Memórias de aula , 21/11/2000) Durante toda trajetória do curso o afeto mesclou as relações entre a turma e o docente responsável criando um clima caloroso que se estendeu às oficinas pedagógicas na escola pública. Enquanto professora responsável vivi um processo amoroso de vínculo afetivo com todo o grupo, criando-se uma rede cognitivo – afetiva. Senti-me aberta ao gosto de querer bem os educandos não deixando de lado a seriedade, e a rigorosidade. Num currículo emancipador a paixão, o amor, a afetividade a tudo envolvem e não podem ser dissociados do processo cognitivo. “Acho um absurdo afastar o ato rigoroso de saber o mundo da capacidade apaixonada de saber. Eu me apaixono não só pelo mundo mas pelo próprio processo curioso de conhecer o mundo” ( Freire, 1999, p.92 ). A construção deste curso com esta perspectiva de emancipação culminando com uma atividade integrada à escola pública deixa clara uma experiência freiriana de abertura e disponibilidade para o diálogo. “Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários a prática educativa” ( Freire, 1998, p.153 ). Tivemos a singular oportunidade de viver a abertura ao outro, à realidade em uma escola pública dedicada a formação de professores. Essa prática rica e estimulante foi objeto de reflexão crítica e teve como fundamento um referencial ético emancipador. A abertura vivenciada permitiu a viabilidade dialógica entre a Universidade e a Escola. Constitui-se 173 assim, um valioso exercício de respeito as diferenças, de escuta sensível ao entorno social dos educandos, de decisão ético política de intervir no mundo. Nesta postura curricular acreditamos estar encurtando a distância entre a academia e a escola pública respeitando os saberes de “experiência” dos alunos, mobilizando-os, instigando-os a mudar, a superar as estruturas desiguais e injustas. Termino este relato com um depoimento colhido nas memórias de aula que acredito expressar o movimento deste currículo em construção “Todos participam da aula e esta que aparentemente tem seu tempo físico encerrado continua por inteira na vida de cada um. Não houve despedida pedagógica pois a vontade do reencontro, do aprofundamento teórico, da consolidação da relação dialógica, expressa nas trocas das experiências vividas, refletidas e reaprendidas, com certeza garantirão a continuidade da construção de um currículo ao vivo na próxima aula , na próxima terça feira...................É muito bom a gente compartilhar com cada colega da sala a nossa caminhada, ou melhor é fundamental para a nossa formação como educadores aprender a caminhar juntos, refletindo teoricamente os nossos caminhos e avaliando as nossas pegadas e as daqueles que convivem conosco..............Com certeza este relato será sempre menor do que o vivido e aprendido no dia 5/9/2000, pois a verdadeira memória de nossas aulas está sendo escrita pela coerência e consistência de nossas práticas educacionais” ( Targelia, Memórias de aula, 5/9/2000 ) Referências Bibliográficas: Freire, P.& Shor I. Medo e Ousadia – O cotidiano do professor. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1987 Freire, P. Política e Educação: ensaios. Cortez Ed. São Paulo, 1993 Freire, P. Pedagogia da Autonomia. 9ª ed. Paz e Terra, São Paulo , 1998 Freire, P. A educação na cidade 3ª ed. Cortez Ed. São Paulo, 1999 Memórias de Aulas – Curso de Estudos Avançados em Currículo -Vários autores, PUCSP, 2000 174