Repare nas pessoas que estão ao seu redor. Perceba as que estão passando ao largo, distraídas. Lembre-se daquelas que cruzaram seu caminho pouco antes de você começar esta leitura. Pense nas pessoas lá fora, circulando pela cidade. Preste atenção aos detalhes. Observe as diferenças. São altos, baixos, gordos, magros, morenos, louros, carecas. São jovens, muito jovens, adultos, velhos, bem velhinhos. São alegres e comunicativos, ou contemplativos, silenciosos. Conversam entre si usando o som da voz, ou lendo os lábios em silêncio e fazendo sinais com as mãos. Movimentam-se pelos espaços usando as próprias pernas ou manejando sua cadeira de rodas, se apoiando em uma bengala, ou no braço de alguém. Passam de longe os olhos sobre os textos, ou passam os dedos diretamente sobre as superfícies, para ler o que está escrito. Muitos usam próteses que ajudam olhos, dentes, ossos, coração, pernas, artérias e ouvidos a funcionarem bem. Alguns têm órgãos que vieram de outros corpos, outros têm pequenas máquinas funcionando como órgãos. Boa parte usa substâncias químicas para regular o funcionamento do corpo. Cada indivíduo é uma expressão singular da riqueza que compõe a experiência humana. A consciência dessa riqueza, porém, às vezes é obscurecida pela força de uma ilusão, a da normalidade – que separa e tende a segregar aqueles que, por uma ou outra razão, são diferentes da maioria. Mas, o que é ser normal? O mundo vivido, aquele em que nossa experiência acontece e adquire sentido, é resultado de um complexo e maravilhoso processo de criação que acontece na interação contínua entre as potencialidades do nosso corpo, as características do ambiente em que vivemos, e o universo de significações da cultura a que pertencemos. Esses três vetores nos aproximam e nos diferenciam. Cada um de nós tem um corpo, mas ele não é igual para todos. Estamos sempre agindo em algum ambiente, mas ele pode ser pode facilitador para uns e inóspito para outros. As normas e valores criados pela sociedade estabelecem hierarquias e podem promover a tolerância e a solidariedade para uns e o preconceito ou a indiferença em relação a outros. Os espaços em que nossa vida social acontece são construídos com base nas expectativas e projeções supostas para o corpo humano. Escadas, placas de sinalização visual, avisos sonoros, maçanetas de girar, por exemplo, correspondem às possibilidades de corpos que têm pernas que se movimentam, olhos que veem, ouvidos que escutam e mãos que agarram. No entanto, para aqueles dentre nós que têm características físicas diferentes, que não contemplam essas possibilidades, ambientes assim são desfavoráveis, hostis. A interação com o meio torna-se uma fonte constante de limites, frustração e sofrimento. Quando reconhecemos a diversidade de formas e funcionamentos que compõem a experiência humana, muda drasticamente o modo como imaginamos e construímos os espaços em que vivemos. Passamos a imaginar e criar ambientes capazes de acolher nossas diferenças, ampliando imensamente o horizonte de possibilidades de vidas que consideramos normais. Não há um modo único de ser normal: não existe um tipo único de corpo, não há apenas um tipo de ambiente e os valores e sentidos que regem nossa existência se transformam junto com nosso conhecimento das coisas e nosso desejo de inventar mundos mais interessantes. A capacidade de projetar-se imaginativamente no campo de experiência do outro abre um modo novo de conhecer o mundo e a nós mesmos. Aventurar-se por universos subjetivos diferentes daqueles que conhecemos é uma maneira de enriquecer nossas percepções. É tornar mais complexa e interessante a apreensão que temos do que é ser um humano. Um desses universos é aquele habitado pelos que não dispõem da percepção visual. Para os videntes, projetar-se imaginativamente na experiência desses sujeitos é difícil, não só porque sua própria construção perceptiva do mundo é eminentemente visual, mas porque as metáforas com que se costuma descrever a cegueira são marcadas pelo sentido de fatalidade e perda. A cegueira é associada a isolamento, dor, desconhecimento, ignorância, fechamento, clausura, incapacidade. Mas os que não veem com olhos não têm apenas uma limitação. A ausência da visão ocular reorganiza e recria as demais funções do organismo, fazendo surgir um modo diferente de perceber o mundo e explorá-lo – um modo em que sons, cheiros, temperaturas, vibrações e percepções táteis ganham uma riqueza e acuidade que os videntes jamais alcançam. Viver sem dispor da percepção visual significa criar um modo de perceber e explorar o ambiente, em que as relações do corpo com o que o cerca se transformam. O uso da bengala, por exemplo, amplia os limites do corpo, que não termina na ponta dos dedos, e sim na ponta do bastão. A bengala não é o objeto que a mão reconhece, é o instrumento com o qual o sujeito reconhece os objetos do mundo. Projetar-se imaginativamente na experiência de alguém que não vê com os olhos amplia nossa percepção das muitas formas de ser no mundo, e nos ajuda a conceber e construir um mundo mais acolhedor a todas as formas de existência humana. Benilton Bezerra Junior é psicanalista, psiquiatra e professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.