A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO DIREITO SOCIAL: o ponto de vista dos educadores Ana Paula Tatagiba 1 Resumo: Neste artigo aborda-se as modificações ocorridas no campo Educação Infantil - segmento educacional criado pela LDB, envolvendo o atendimento às crianças de 0 a 3 anos nas creches e as de 4 a 6 anos nas pré-escolas -, apresentando-se resultados de pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro. Questões como a identidade do educador, a função social da creche e o acesso desses trabalhadores aos direitos sociais ganham centralidade na análise desenvolvida. Palavras-chave: Infância, educação, direitos sociais. Abstract: This paper addresses the changes occurred in Preschool Education – an educational segment created by the Law of Directives and Bases for Education (LDB), which comprehends children aged 0 to 3 years attending day care centers and children aged 4 to 6 attending preschools -, presenting the results of a study undertaken in the city of Rio de Janeiro, RJ, Brazil. Questions such as educator’s identity, social role of day care centers and access of of these professionals to social rights were the focus of the analysis performed in this investigation. Key words: Infancy, education, social rights. 1 Mestre. Pontifícia Universidade Católica-RJ. E-mail: [email protected] 1. INTRODUÇÃO Reza a sabedoria popular que “Cavalo dado não se olha os dentes” fazendo-se referência à ausência de avaliação daquilo que é gratuitamente ofertado. No campo das ações governamentais, por vezes, assume-se a mesma postura, havendo uma mistificação das responsabilidades do Estado. Tal fato ficou evidenciado no transcorrer da pesquisa que redundou na elaboração da dissertação “O que os olhos não vêem: prática e políticas em Educação Infantil na cidade do Rio de Janeiro”, apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense – RJ: em muitas ocasiões, ouviu-se dos gestores das creches públicas pesquisadas referências aos hábitos das famílias atendidas: “Se você chama os pais para reunião eles não vêm, mas se disser que vai distribuir alguma coisa de graça, todo mundo aparece”. Outro comentário recorrente aludia às políticas vinculadas à área da Assistência: “Aqui eles só querem receber. É cheque-cidadão, bolsa disso, bolsa daquilo. Tem até bolsa para colocar o filho na escola! Desse jeito quem vai querer trabalhar? Eu acho que não adianta dar o peixe, tem que ensinar a pescar!”. Negadas enquanto direito social, as políticas sociais são vistas como concessão do poder público, sendo pertinente a avaliação de Aldaíza Sposati et al: “ Perpassa a prestação dos serviços de assistência social pública uma certa noção de gratuidade, como se a riqueza do Estado viesse de outra fonte que não a própria riqueza produzida pelo trabalhador [grifado no original]” (1998, p. 61). No presente trabalho, apresenta-se questões analisadas ao longo da referida pesquisa, cujo objetivo foi acompanhar as modificações ocorridas no campo Educação Infantil - segmento educacional criado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional promulgada em 1996, envolvendo o atendimento às crianças de 0 a 3 anos nas creches e as de 4 a 6 anos nas pré-escolas. Buscou-se, a partir da escuta dos educadores de creche, conhecer como se concretizaram as políticas em Educação Infantil, que ganhou status de direito social a partir do texto constitucional vigente. Assim, temáticas como a identidade do educador, a função social da creche e o acesso desses trabalhadores aos direitos sociais ganham centralidade. A partir da apresentação da metodologia utilizada, compartilha-se com os leitores os relatos das educadoras que viveram a transição da vinculação das creches públicas do âmbito da Assistência Social para o setor educacional, no período de 2001 a 2005. 2. ASPECTOS METODOLÓGICOS Elegeu-se o estudo de caso para a estruturação do trabalho como um todo e a análise de conteúdo para se proceder à análise das entrevistas, conversas e observações realizadas. Robert Yin entende que [...] se você quisesse saber 'o que' o governo realmente fez após anunciar um novo programa, poderia responder a essa questão tão freqüente realizando um levantamento ou examinando dados econômicos, dependendo do tipo de programa envolvido. [...]Mas se você precisasse saber 'como' e 'por que' o programa funcionou (ou não), teria que dirigir-se ou para o estudo de caso ou para um experimento de campo (YIN, 2001, p. 26). Em relação à “unidade de análise”, pesquisou-se a área de abrangência da 1ª Coordenadoria Regional de Educação – CRE – onde estão localizadas 19 creches. Foram ouvidos 32 educadores, por meio de entrevistas semi-estruturadas Partindo da obra da psicóloga inglesa Laurence Bardin, realizou-se a análise de conteúdo das entrevistas, metodologia esta que pode ser definida como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens [grifado no original]. (BARDIN, 1994, p. 42) Considerando a estrutura básica do estudo de caso, Yin destaca que toda pesquisa deve conter "proposições". No estudo realizado pode-se elencar as seguintes idéias-chave: - Tendo em vista o ideário de zelar com cuidado, muito ligado ao ideário que o atendimento à criança de 0 a 6 está relacionado ao tratamento que a figura materna daria à crianças se esta estivesse em casa, as alterações vislumbradas pela legislação são de concretização lenta, necessitando de uma grande reviravolta em termos culturais, já que propõe-se um atendimento com base num trabalho educativo, desenvolvido por profissionais habilitados para o Magistério. Enquanto esta modificação não ocorre, persiste o trabalho das educadoras oriundas das comunidades locais que são submetidas a adversidades de toda ordem para manterem seu emprego. - Ainda que introduzidas na estrutura organizacional da área de educação, as instituições de educação infantil oriundas da área da assistência são inseridas de forma subalternizada, não recebendo, ainda, a necessária priorização por parte do poder público municipal. 3. O PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL Tendo como alicerce as idéias supracitadas, ressalta-se aspectos que, de forma mais contundente, evidenciaram-se ao longo das idas e vindas da pesquisadora às creches. Assim, identidade do educador é temática norteadora, constituindo-se na base para que outros aspectos sejam comentados, como a organização do trabalho pedagógico e o acesso aos direitos trabalhistas. Abaixo, as entrevistadas colocam-se criticamente em relação ao seu fazer profissional e da forma como o mesmo é percebido pela Direção da instituição e pela família. Relato 1 Entr.:E alguma vez você pensou em desistir desse emprego? Educ.: Bom, o único momento em que eu pensei em desistir foi quando eu vi que não tinha reconhecimento, mas não por parte dos pais. Que eu já tinha percebido que muitas vezes os pais não reconhecem sequer o trabalho dos professores nas escolas, que tão pouco iam levar à sério as recreadoras, ainda que elas sejam educadoras, formadas ou não. Mas quando eu percebi isso por parte da direção que, quando elas falavam de valorização profissional, que era só uma teoria, que na verdade não acontecia. Então, eu fiquei meio que chateada, porque depois eu vi que isso não acontecia de fato, entendeu? Falavam assim: Não deixem que te chamem de tia, porque você não é irmã do pai ou da mãe. Fale para chamar de professora, de educadora, mas não de tia. Mas na verdade nós não éramos tratadas como professoras ou educadoras. Muitas vezes, vinha uma postura da própria direção que nos tratava como se fôssemos babás ou só recreadoras. [...] No primeiro ano, um ano e meio, nos primeiros meses que eu comecei a trabalhar lá, eu fazia o planejamento da minha turma, eu fazia minhas atividades, eu pesquisava, eu ia em livros, eu ia em sites, eu fazia tudo do jeito que eu queria... Seguia os temas que ele determinava, no caso, o diretor determinava, mas eu fazia e eu colocava ali mil atividades. E eu achava isso ótimo porque eu não precisava ficar fazendo como a minha colega de turma vez. Eu até sugeria que ela fizesse também, se ela achasse que era bom pra turma, enfim... Mas eu fazia, eu tinha liberdade para isso e eu falava: Eu estou desenvolvendo o meu lado de educadora, de profissional, porque eu estou indo atrás. Agora ela chega com o planejamento pronto e diz: Olha, esse é o planejamento, vocês têm sugestão? Então, você fica meio que... Será que ela acha que nós somos incapazes de fazer? Ou será que ela acha que o quê a gente vai fazer não vai ficar bom? Aí eu fico pensando como é que fica a cabeça das recreadoras, das meninas que não são professoras, que não são pedagogas, que não têm uma formação nessa área...?" (Depoimento de D.) Relato 2 Entr.: Como é a relação de vocês com a família? Educ.: É complexa, porque não podemos agradar a todos. [...] A maioria deles nos vêem como recreadoras ou babás. Já ouvimos isso: Vocês são meras babás, uma vez o pai falou. [...] Eu acho que eles não nos vêem como pessoas que podemos educar os filhos deles para conduzi-los a uma escola, mas alguém que está lá só para cuidar, levar ao banheiro, ajudar na parte de higiene física... Essas coisas... Não na questão da educação, de conduzir à escola, de introduzir nesse mundo letrado... Acho que eles não vêem por esse lado." (Relato de E.) Inicialmente, o desprestígio da carreira do magistério é lembrado pela recreadora que afirma não ter criado a expectativa de ter seu trabalho reconhecido pelos pais. Os pais, nesse caso, reproduzem concepções que são construídas e legitimadas socialmente. O segundo relato articula-se nesse ponto com o primeiro, oportunizando a reflexão sobre a relação do educar e do cuidar com o próprio reconhecimento do educador de creche como profissional. No 2º depoimento, fica evidenciado que "ser colocado apenas como aquele que limpa, que dá o alimento", estritamente ligado às funções tão desvalorizadas socialmente e, geralmente atreladas ao trabalho feminino, são recebidas pela recreadora de forma que a inferioriza. Muitas vezes a subalternidade, sugerida pela família, acaba por reproduzir o lugar social definido para a educação da infância, tendo o fim de marcar que para realizar tais atividades não é necessário conhecimentos específicos. Logo, o trabalho em creche é identificado como uma atividade "que qualquer um" pode fazer. Outro aspecto fundamental nesse 2º relato é que aparece a noção que a educadora têm em relação à função social da creche. Quando menciona que "os pais não [as] vêem como pessoas que [podem] educar os filhos deles para conduzi-los a uma escola, [...] [capaz de] introduzir nesse mundo letrado", remete-se a uma visão de creche que ainda está incrustada no imaginário: a função preparatória para a escola, a possibilidade de compensar carências e garantir um futuro de sucesso na rede escolar. Apesar de no 1º relato a educadora informar que a direção da creche desaprova que os pais se dirijam à profissional de creche como "tia" – forma de tratamento que também é mencionada por Sonia Kramer (2001, p. 98) como uma espécie de "prêmio de consolação" recebido por essas profissionais pela desvalorização do seu trabalho - , a mesma avalia que a falta de credibilidade na sua atuação assenta-se em outras bases: na perda da autonomia para planejar o seu trabalho. Assim, expressões referenciadas ao passado, tais como "eu fazia e eu colocava ali [no planejamento] mil atividades", "eu tinha liberdade", "estou desenvolvendo o meu lado de educadora, de profissional", "estou indo atrás", contrapõem-se ao presente que parece ser resumido numa indagação: "Será que ela acha que nós somos incapazes de fazer?" A presunção da incapacidade da educadora é percebida por ela, principalmente, pelo fato do planejamento lhe ser entregue já elaborado pela professora articuladora. Desta forma, até a sondagem feita pela professora articuladora – PA - com o grupo de recreadoras (educadoras que trabalham diretamente com as crianças) sobre possíveis sugestões, acaba soando como uma ação feita como o cumprimento de um ritual de boa educação. O relato abaixo traz uma contribuição importante para que se apreenda o “clima institucional” quando da transferência das creches para a Secretaria Municipal de Educação - SME: Relato 4 Entr.: E como você viveu esse processo de sair da SMDS [Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social]? Educ.: Ah, foi muito estressante... Primeiro a coordenadora disse que a creche ia acabar, porque o prefeito que tinha estruturado a creche era outro e o prefeito de agora não ia deixar continuar... Quando houve a troca de diretora, já veio uma pessoa ligada à educação. Ela foi logo avisando que ia ter um monte de mudança e que não sabia como ia ficar a situação da gente. Ninguém sabia se ia ter concurso ou se a gente ia direto para a Educação... Ela até que era uma pessoa que dava pra levar, mas, às vezes, humilhava a gente... Ela falava: Vocês estão pensando o quê? Que vão ser professoras de creche? Estão muito enganadas... Vão botar professora aqui e vocês vão dar é banho nas crianças... Aí, a gente ficou esperando ser mandada embora, pensando que iam chegar as professoras. Ih, foi o maior tumulto na creche! Entr.: E as professoras não chegaram até hoje... Educ.: É... Depois veio outra história que quem não tinha feito o normal no 2º grau ia ser mandado embora. Aí, cada um que não tinha foi procurar um lugar para fazer... Um foi para o Julinha [referência ao Colégio Estadual Júlia Kubitschek, localizado no centro do Rio de Janeiro, e que oferece o Curso de Formação de Professores], outra pagou num colégio particular. Depois de um tempo, falaram também que tinha que fazer Pedagogia porque só o Normal não ia adiantar... E ficou assim esse fantasma: faz isso, faz aquilo porque se não você vai ser mandada embora, e até hoje a gente está pensando isso, que a qualquer hora vai ser mandada embora... Entr.: Mas agora vai abrir um concurso... Educ.: Vai, mas para mim não adianta nada porque até pelo que você mostrou, só vão pedir de 5ª a 8ª... Esse concurso vai ser para gente que vai só auxiliar a professora, depois é que deve ter outro para professor mesmo. (Relato de T.) Neste cenário, no qual a entrevistada resume o clima vivido durante o processo de vinculação das creches à SME, um comentário ganha relevância: "[a diretora] humilhava a gente... Ela falava: Vocês estão pensando o quê? Que vão ser professoras de creche? Estão muito enganadas... Vão botar professora aqui e vocês vão dar é banho nas crianças...". "Humilhar" surge como a melhor forma de definição do sentimento de algumas recreadoras, num contexto em que se faz uma separação dos objetivos e das práticas em educação infantil: o educar é colocado como a parte nobre do trabalho, logo, será realizado pelo docente; e o cuidar de forma desprestigiosa, podendo ser feito por qualquer um ou, em outras palavras, por elas mesmas que estão ali, que não estudaram, que ganham pouco, que moram na favela, etc, etc... (onde cada "etc” expressa um preconceito). Indagados sobre os direitos trabalhistas advindos de sua inserção profissional, os relatos são unânimes: "Nós não temos muita coisa. A verdade é essa. Temos só o salário mínimo, a gente não tem vale-transporte. O sindicato até pouco tempo a gente não tinha consciência dos benefícios que eles ofereciam, porque eles também não entram muito em contato com a gente. Não tem... Refeição... A refeição a gente mesmo, mas... no local, no lugar... a gente faz mesmo na creche." (Depoimento de D.) "Quando eu saí da creche o aspecto negativo era o salário. Mas logo quando eu entrei, na época que eu entrei era mais ou menos um salário e meio. Aí foi cada vez mais diminuindo era uma coisa assim... Acho que o pior dia para mim na creche era o dia do pagamento. Eu ficava muito revoltada, eu não aceitava..." (Depoimento de M.) "Quando eu cheguei na creche, logo no começo em que estava sendo organizada [em 1999], trabalhamos 3 anos sem carteira assinada, embora tivesse todos os direitos, como a licença-maternidade. Mas o salário, no início, era maior, chegando acho que a um salário mínimo e meio..." (Depoimento de S.) "Devia valorizar a gente em termos de renda mensal e ter mais reconhecimento. A Associação, que cuidava antes, dava cesta básica... Esse aumento é questão da OSC, porque tem umas que pagam mais, acho que R$ 400,00 e pouco. Não é só coisa da Prefeitura... (Depoimento de A.) [Se tivesse plano de saúde e cesta básica já ajudava - completa outra educadora]. Aliado às condições insatisfatórias de trabalho (motivadas pela falta de material pedagógico, gêneros alimentícios muito limitados e, por vezes, insuficientes, espaço físico inadequado, entre outros relatos), o baixo nível salarial é o fator que mais exemplifica a desvalorização das políticas dirigidas à primeira infância. Baixos salários que são ainda mais aviltados, considerando-se que os educadores deixam de ter acesso a rendimentos indiretos que poderiam amenizar tal injustiça. Uma das imposições feitas por uma organização da sociedade civil (responsável pela contratação desses profissionais) citada pelos educadores, por exemplo, era o fato de que, para garantirem a sua vaga na creche, assinavam um documento informando que não necessitavam receber o vale-transporte, apesar de, muitas vezes, não morarem na comunidade onde a creche estava situada. Decerto, uma das dificuldades para que a educação infantil como direito das crianças se efetive deve-se ao fato de que ela ganhou corpo num contraditório contexto em que o Estado brasileiro passou a optar pelo ordenamento neoliberal. E como Ricardo Antunes bem resume, Desde que o capitalismo ingressou na sua mais recente fase de mundialização – o que se deu a partir do monumental processo de reestruturação e financeirização dos capitais dos anos 1970 – estamos constatando que os capitais transnacionais exigem dos governos nacionais a flexibilização da legislação do trabalho, eufemismo para efetivar a desconstrução dos direitos sociais, resultado de longas lutas e embates do trabalho contra o capital, desde o advento da Revolução Industrial (2005, p. 161). Por fim, ao abordarem os aspectos negativos de sua prática, muitos educadores transmitem um grande desânimo e baixo nível de comprometimento com a luta pelas melhorias que se acham merecedoras, numa postura, por vezes, conformada, como o relato abaixo evidencia: "Realmente o salário é muito baixo pelas responsabilidades que a gente tem. Mas não é aqui na creche que eu tenho que reclamar. Eu tenho que reclamar é com o dono da ONG, mas nunca tive oportunidade." (Relato de J.) 5. CONCLUSÃO Revendo a inserção das políticas para as crianças de 0 a 6 - filhas da população reconhecidamente pobre - na agenda governamental, é possível observar que a relação estabelecida com as políticas assistenciais (num período em que a própria assistência social não tinha o status atual de política pública, regulamentada por lei específica, como se tem a partir de 1993 com a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS ) forjou uma forma de atendimento multifacetado entre inúmeras instituições privadas organizadas por filantropos (religiosos ou não) e pelo empresariado e pouquíssimas instituições oferecidas, integralmente, pelo Estado. A parcimônia na utilização de recursos financeiros, a cooperação entre as partes, a precariedade, o voluntariado e a não obrigatoriedade de profissionais habilitados foram características que definiram bem o atendimento então existente para a criança pequena. Tal atendimento era encarado, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, como benemerência e não como direito social. Com as mudanças ocorridas a partir de então, corrobodas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional promulgada em 1996, Moysés Kuhlmann propõe a seguinte questão: "Para as instituições de educação infantil, notadamente a creche, o que significa estar no sistema educacional?". Em sua visão, há mais do que uma esperança, um investimento, nesse encaminhamento: Se a creche passa a fazer parte do sistema educacional do país, ela deixa de ser apresentada como alternativa para pobres incapazes, para ser posta como complementar à ação da família, tornando-se uma instituição legítima e não um simples paliativo. Mas não é por isso que as instituições se tornam educativas, elas sempre o foram e continuarão sendo, aonde quer que estejam. A passagem para o sistema educacional não representa de modo algum a superação dos preconceitos sociais envolvidos na educação da criança pequena (2001, p. 204). Campos (1999, p. 113), com muita propriedade, também enfatiza que a inclusão das creches no sistema educacional não garante por si só a superação de uma tradição que sempre considerou esse atendimento como "mal necessário", destinado às famílias pobres; sinalizando que um grande revelador dessa forma de pensar é o currículo adotado nas escolas de formação de professores, que tem ignorado o cuidado como uma nova perspectiva de atuação, reduzindo-o e estigmatizando "qualquer tipo de atendimento que escape do modelo estritamente escolar" que passa a ser considerado como "assistencialista". Em meio a debates de ordem diversa, não se pode perder de vista, ao estudar a realidade carioca, que é a partir de instituições construídas pela população pobre da cidade que o sistema municipal de ensino público atualmente cresce, incorporando o atendimento a crianças de 0 a 6 anos (em especial as creches, já que a pré-escola vinha, desde os anos 80, recebendo especial atenção do poder público municipal). Atendimento que se concretiza no importante trabalho de instituições que os olhos desinteressados daqueles que residem e transitam apenas pelo asfalto não conseguem avistar... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Ricardo. O estancieiro, o príncipe e o artífice: construção e desconstrução da legislação social no Brasil. Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, São Paulo: Boitempo Editorial, n. 5, p. 161-175, maio - 2005. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1994. 226 p. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988 BRASIL. Lei nº 9394, 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. CAMPOS, Maria Malta. A mulher, a criança e seus direitos. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 106, p. 117-128, mar. 1999. KRAMER, Sonia. Formação de Profissionais de Educação Infantil: questões e tensões. In: KRAMER, Sonia. (Coord.). Relatório de Pesquisa Formação de Profissionais da Educação Infantil no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ravil, 2001, 160 p. (Relatório de Pesquisa CNPq/FAPERJ). p. 89-104. KUHLMANN JR., Moysés. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. 2. ed. Porto Alegre: Editora Mediação, 2001. YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Trad. Daniel Krassi. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2001, 205 p. SPOSATI, Aldaíza de O. et al. A assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras: uma questão em análise. São Paulo, Cortez, 7. ed., 1998.