A GLOBALIZAÇÃO DO PONTO DE VISTA DE PASCAL BONIFACE Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. [email protected] A grande questão contemporânea no terreno das relações internacionais é, sem dúvida, a concernente à globalização. Várias globalizações foram conhecidas pela humanidade ao longo da sua história. A primeira grande manifestação desse fenômeno, (chamado de “mundialização” pelos autores franceses) foi, na perspectiva do Ocidente, a ocorrida ao ensejo das conquistas de Alexandre da Macedônia, no século III a.C. O discípulo de Aristóteles, certamente, fundou um Império multicultural, que se estendia do Mediterrâneo até os confins da Ásia, no Paquistão e na Índia, passando pelo que hoje conhecemos como Iraque e Afeganistão, se alongando ao sul até os limites do Egito com o atual Sudão, e penetrando na Europa, da Grécia continental até a Sicília e a Itália. A essa primeira grande onda de globalização seguiram-se outras, certamente menores no que tange à extensão, mas igualmente fascinantes, como a ensejada pelas conquistas do Império Romano, entre os séculos I-V da era cristã. Outras globalizações seriam as ensejadas por Carlos Magno e Otto I, que se solidificaram ao redor do Sacro Império Romano-Germano, cujo florescimento ocorreu por volta do ano 1000. Mas a Humanidade e, particularmente, o Ocidente conheceram outras “mundializações”, como a dos Impérios Espanhol e Português, nos séculos XV e XVI, que abriram uma oikoumene que abarcou o novo Mundo, integrado às trocas comerciais após as grandes navegações. Novas globalizações ocorreram ao ensejo do surgimento e consolidação dos Impérios Inglês e Francês, ao longo dos séculos XVIII e XIX, chegando, no caso britânico, até meados do século XX (1945). Seguiu-se, na segunda parcela desse século, a globalização bipolar da Guerra Fria e, já no final da centúria passada, emergiu a nova globalização que acompanhou a derrubada do mundo comunista e a consolidação dos Estados Unidos como única superpotência militar do planeta que, no entanto, enfrenta com preocupação crescente a nova Guerra do Terrorismo, após os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. O cientista político Pascal Boniface, nascido em Paris em 1956. O livro de Pascal Boniface intitulado Le monde Contemporain – Grandes Lignes de Partage (Paris: Quadrige – Presses Universitaires de France, 2003, 256 pgs.) focaliza esta última globalização, analisando a realidade internacional de três pontos de vista, que constituem as partes essenciais da obra: a mudança da cena mundial, a aparição de novos desafios e a emergência de novos valores. O autor é um conhecido cientista político, nascido em Paris em 1956, e autor de numerosos clássicos do pensamento estratégico e das relações internacionais, sendo um dos mais importantes especialistas que, nesse terreno, transitaram pelo Partido Socialista. É doutor em Direito Internacional, diplomado pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, docente do Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Paris VIII, autor da importante publicação anual intitulada L’Année Stratégique (a partir de 1985), bem como diretor da Révue Internationale et Stratégique. No que tange à obra que ora comentamos, Le Monde Contemporain, a primeira parte versa sobre a mudança da cena mundial. O autor desenvolve, nela, os seguintes pontos: 1 - realidades e limites da globalização, 2 - a diversificação dos atores internacionais, 3 - os novos caminhos do poder (em que são contrapostos os critérios antigos aos novos), 4 - um mundo unipolar (a supremacia americana), 5 - um mundo multipolar (os pólos emergentes), 6 - a Europa, poder ou espaço? E, por último, 7 - os organismos internacionais de regulação. No relativo à segunda parte da obra, que versa sobre a aparição de novos desafios, eis os itens desenvolvidos por Pascal Boniface: 1 - a proliferação das armas nucleares, biológicas, químicas e balísticas, 2 - a proliferação do estatismo, 3 - o futuro da guerra e 4 os três grandes desafios planetários (desequilíbrios econômicos, problemas de meioambiente e questões de demografia). O Palácio do Eliseu, em Paris, sede da Presidência da República Francesa. No que tange à terceira parte, a emergência de novos valores, o autor desenvolve os seguintes pontos: 1 - soberania e ingerência (em que discute a questão do novo direito, bem como a problemática das ambigüidades presentes nos atuais estatutos legais), 2 - será possível o triunfo da democracia? Neste item, Boniface considera que a democracia é um fenômeno em expansão no início deste milênio, mas pondera, ao mesmo tempo, que se trata de uma realidade inacabada; 3 - esportes, competições internacionais e identidades nacionais (o autor abarca aqui a questão do futebol na globalização, identificando-o como espelho da Europa e definindo-o como “a continuação da política exterior por outros meios” - pg. 247). O autor conclui com uma pergunta: progressa realmente o mundo? A resposta não é simples. Se bem é certo que avançou sensivelmente a qualidade de vida (a média idade passou, na França, por exemplo, de 46 anos em 1900, para 79 nos dias atuais), não é seguro que as pessoas sejam igualmente felizes. “Calcula-se, frisa o autor, que o tempo que os humanos passavam rindo a cada dia tenha diminuído regularmente depois do início do século (XX)” (pg. 254). Esta conclusão, particularmente dramática num país como a França, talvez, - considero pessoalmente - fosse mitigada no Brasil dos nossos dias, onde ainda o povo ri, em que pese as agruras que lhe depara a gastança do Estado orçamentívoro. De outro lado, o volume de informação à disposição das pessoas certamente aumentou, de maneira fenomenal, ao longo do século passado, e acelerou-se no final do milênio com o advento da Internet. Mas persiste o risco, salienta Boniface, de uma progressiva perda da privacidade, quando as informações sobre a vida dos indivíduos passam a ser sistematicamente controladas pelos poderes públicos, tornando realidade o pesadelo orwelliano. Por outra parte, apesar dos formidáveis avanços da produção industrial e da agricultura, ainda é grande o vácuo que separa ricos e pobres. “A aceleração da história, frisa o autor, a rapidez da transformação do mundo deságuam igualmente num fosso crescente entre os que têm e os que não têm, tanto entre as diferentes sociedades quanto no interior das mesmas” (pg. 252). A globalização, longe de ter eliminado essa enorme distância, tem feito aumentar a separação entre ricos e pobres. A respeito, frisa o autor: “Enquanto que a elite mundial aproveita plenamente as vantagens da mundialização, a mão de obra não-qualificada (tanto a que vive no mundo desenvolvido quanto a que habita nos países pobres) vê o seu custo descer relativamente. No decorrer do século XX, a riqueza mundial foi multiplicada por 20. No entanto, ainda as sociedades mais opulentas têm os seus lotes de excluídos: 40 milhões nos Estados Unidos, 18 milhões na Europa Ocidental, etc., para não falar da miséria imperante nas favelas mexicanas, nos casebres africanos ou nos bairros pobres asiáticos. Certamente o tempo de trabalho tornou-se menos pesado e o lazer foi diversificado. Mas milhões de pessoas são excluídas da dignidade do trabalho e, paralelamente, a escravidão sobrevive, especialmente a das crianças” (pg. 253). A violência, de outro lado, não permanece ausente do mundo, em que pese a presença de organismos internacionais e de ONGS que zelam pela dignidade das pessoas e pela paz entre as nações. A respeito, escreve o autor: “O século XX terá sido o da guerra e dos genocídios, antes de ter sido o da mundialização. Os atentados de 11 de Setembro têm mostrado uma face particularmente trágica da globalização” (pg. 253). Capa da polêmica obra de Pascal Boniface, intitulada: É permitido criticar Israel? Tornou-se o mundo mais ético? - Pergunta Boniface, no final da sua obra. E responde: “A criação de tribunais internacionais, o enquadramento de ditadores (...) pela justiça, o fato de que uma guerra tenha sido desencadeada (Kosovo) em nome de princípios e não de interesses estratégicos maiores, são fatos que permitiriam fazer crer (numa moralização do mundo). Contudo, é necessário tomarmos consciência de que os princípios proclamados universais são aplicados de forma seletiva (certamente não são aplicados com o mesmo rigor na Chechênia, nem na África, nem no Oriente Médio), que a moral é invocada às vezes para melhor legitimar uma política de poder (como aconteceu no passado, desde a colonização até os enfrentamentos Leste-Oeste) e que conviria definir em comum as normas julgadas universais” (pg. 254). Capa da obra de Pascal Boniface, intitulada: Em direção à Quarta Guerra Mundial? A conclusão final que tira o autor é a seguinte: embora haja muitas áreas cinzas que ensejam a falta de esperança, no entanto uma coisa é verdadeira: se houver, no presente, vontade política dos homens e das nações, certamente melhorarão as condições de vida da humanidade. A respeito, frisa Boniface: “A lição principal que se pode tirar de tudo isso é que os progressos técnicos podem desaguar tanto em catástrofes quanto em fantásticos melhoramentos da condição humana. Que tudo será assunto de vontade política comum da humanidade que, de momento, parece avançar menos rapidamente que a tecnologia” (pg. 254).