PONTO DE VISTA, MESCLAGEM E CONTRAFACTUALIDADE: da narrativa cotidiana a um poema de Drummond Lilian FERRARI 1 Diogo PINHEIRO 2 RESUMO Alinhando-se ao referencial teórico da Linguística Cognitiva, este artigo busca demonstrar que fenômenos linguísticos podem ser explicados a partir de processos cognitivos gerais, e não apenas especificamente linguísticos. Neste sentido, focalizamos processos cognitivos de perspectivação associados ao estabelecimento de ponto de vista, evidenciando suas articulações com estruturas linguísticas específicas. Em especial, enfocamos estruturas relacionadas à contrafactualidade e à inversão de ordem vocabular que ativam processos subjacentes de sinalização e projeção de ponto de vista, bem como mecanismos de mesclagem conceptual. Para destacar o papel inerente de tais processos na construção cognitiva do significado, selecionamos dados de gêneros textuais distintos, analisando tanto um excerto de fala espontânea (uma narrativa oral) quanto um poema de Carlos Drummond de Andrade ( Um boi vê os homens). Em ambos os casos, evidenciou-se o caráter estruturante da noção de ponto de vista, incluindo-se a capacidade do falante/poeta de acessar pontos de vista múltiplos em relação à mesma cena. PALAVRAS-CHAVE: Ponto de vista. Mesclagem conceptual. Contrafactualidade. Fala espontânea. Poesia. ABSTRACT This paper seeks to investigate the interaction between language and general cognition from the perspective of Cognitive Linguistics. In this vein, we focus on perspectivization and construal operations such as viewpoint, which have been claimed to involve the ways speakers structure their experience through language. More specifically, counterfactual and subject-verb inversion structures are analyzed with an eye to identifying the linguistic cues that prompt underlying cognitive processes of viewpoint projection and conceptual blending. In order to highlight the fact that viewpoint phenomena are pervasive in different data genres, we analyze both a spontaneous oral narrative produced by a native speaker of Brazilian Portuguese in interview situation and a poem written by the Brazilian modernist writer Carlos Drummond de Andrade. In both cases, we show the existence of more general strategies of viewpoint allocation, including the speaker’s (and the poet’s) ability of accessing multiple different viewpoint affordances on the same scene. KEYWORDS: Viewpoint. Conceptual blending. Counterfactuality. Spontaneous speech. Poetry. 1 Doutora em Linguística (UFRJ), professora nível Associado IV do Departamento de Linguística e do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Pesquisas em Linguística Cognitiva (LINC). 2 Doutor em Linguística (UFRJ), professor Adjunto I do Departamento de Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 27 Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade 1 INTRODUÇÃO As relações entre língua e real inspiraram uma vasta tradição de reflexões filosóficas e linguísticas. Se, por um lado, as línguas garantem um mínimo de estabilidade intersubjetiva, funcionando como uma espécie de acordo coletivo para que possamos nos referir à nossa experiência com alguma chance de sermos compreendidos por nossos interlocutores, a ideia de que as estruturas linguísticas estabelecem referência direta a entidades e fenômenos do mundo (ou de mundos possíveis) tem sido cada vez mais questionada e redimensionada. Propostas recentes em linguística destacam que escolhas relativas aos níveis mais básicos da estrutura linguística afetam, de modo crucial, os processos cognitivos de emergência, construção e negociação do significado, entre os quais se destaca a sinalização de ponto de vista (LANGACKER, 1987; 1991; LAKOFF, 1987; DANCYGIER, 2012). Dentro dessa perspectiva, o presente artigo pretende argumentar que o caráter inerentemente perspectivado (viewpointed) da linguagem pode ser observado em diferentes gêneros textuais, incluindo desde usos linguísticos espontâneos na modalidade falada até usos mais elaborados, no âmbito da literatura. Para ilustrar o fenômeno, propomos um breve exercício de análise, envolvendo uma narrativa espontânea e um poema. O artigo está organizado em quatro seções principais. As duas primeiras seções abordam fenômenos linguísticos que serão retomados na análise. Na seção 2, as estratégias linguísticas normalmente associadas à sinalização, projeção e flexibilização de ponto de vista são apresentadas. A seção 3 detalha aspectos relacionados à codificação linguística da contrafactualidade, em que se verifica o estabelecimento de uma perspectiva contrária aos “fatos”. Nas duas seções seguintes, desenvolvem-se as análises propriamente ditas. A seção 4 enfoca a alocação de ponto de vista em uma narrativa cotidiana oral, descrevendo os recursos linguísticos que permitem o estabelecimento de pontos de vista alternativos. Por fim, a seção 5 discute a articulação entre contrafactualidade e ponto de vista no poema Um boi vê os homens, de Carlos Drummond de Andrade, destacando os modos pelos quais as estruturas linguísticas operam essa articulação. 2 COGNIÇÃO CORPORIFICADA E FLEXIBILIDADE DE PONTO DE VISTA Um dos pressupostos básicos da Linguística Cognitiva (LC) é a noção de que a linguagem reflete a cognição corporificada (LAKOFF e JOHNSON, 1999). Isso significa que os conceitos criados pelos seres IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 28 Lilian Ferrari & Diogo Pinheiro humanos não são apenas produções de uma mente desconectada do corpo, mas são necessariamente moldados pelas experiências corporais e cerebrais e, em especial, pelos sistemas perceptual e sensório-motor. Sendo assim, um dos aspectos cruciais da cognição corporificada é seu caráter necessariamente perspectivado, já que nossa experiência em relação ao mundo é inevitavelmente estruturada a partir de um ponto de vista corporal no ambiente físico real. Como esse ponto de vista pode se alterar, também somos capazes de apresentar flexibilidade cognitiva, ou seja, acessar múltiplos pontos de vista sobre a mesma cena. Além disso, de forma bastante característica da espécie, a flexibilidade cognitiva não consiste apenas na habilidade de adotar pontos de vista diferentes em momentos distintos. Como bem destacou Sweetser (2012), há uma impossibilidade de fixarmos um único ponto de vista quando outros seres humanos estão presentes. Nesse caso, é inevitável estarmos conscientes não apenas daquilo que nosso corpo pode fazer, como também daquilo que o outro pode alcançar, ver, e assim por diante. Esse fato, por sua vez, pode ter reflexos na linguagem. Estudos recentes têm demonstrado que a estrutura linguística não só reflete implícita ou explicitamente o ponto de vista do falante, como também é capaz de indicar, de forma interessante e complexa, a capacidade do falante de acessar múltiplos pontos de vista com relação à mesma cena. Essa flexibilidade tem sido apontada como especificamente humana e característica dos integrantes típicos da espécie (TOMASELLO, 1999; 2008). Exemplos cotidianos da flexibilidade de ponto de vista podem ser encontrados no uso de dêiticos, em que se leva em conta a perspectiva do ouvinte. Por exemplo, em inglês, a expressão I´m coming (lit., Estou vindo) pode ser usada por alguém que pretende se deslocar de sua casa para visitar um amigo. No caso, ao invés de adotar seu próprio ponto de vista, dizendo I´m going (lit., Estou indo), o falante opta por adotar o ponto de vista do interlocutor. No português brasileiro, embora não se verifique esse tipo de flexibilização no mesmo contexto, é comum o uso da expressão “Chega aí” (ao invés de “chega aqui”) como um convite para que o interlocutor se aproxime. O advérbio locativo “aí”, nesse caso, adota o ponto de vista do ouvinte para indicar o lugar em que o falante se encontra. 3 SEMÂNTICA COGNITIVA E CONTRAFACTUALIDADE Embora a visão linguística tradicional tenha tratado o significado em termos de condições de verdade, enfocando a adequação ou não das sentenças ao mundo descrito, propostas mais recentes ressaltam o caráter essencialmente criativo da construção do sentido. Com base na semântica cognitiva 3, esse novo 3 Ver Fillmore (1975, 1977, 1982), Lakoff (1987), Langaker (1987, 1991, 2008), Talmy (2000). IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 29 Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade olhar prenuncia que os seres humanos só têm acesso à realidade a partir de sua própria experiência, ancorada em esquemas corporais, perceptuais e sensório-motores (ainda que a existência da realidade enquanto tal não seja necessariamente negada). Do ponto de vista linguístico, a semântica cognitiva tem pleiteado que a linguagem “(re)constrói” o mundo, ao invés de simplesmente refleti-lo. Para ilustrar esse ponto, basta pensarmos na nomeação de objetos e eventos. Não apenas há diferentes modos de categorização, como evidenciam as diferenças morfológicas, sintáticas e semânticas entre línguas, como há também infinitas maneiras de se criarem mundos imaginários e, em termos de compartilhamento intersubjetivo, inexistentes. Essa última possibilidade está diretamente associada a estruturas linguísticas denominadas contrafactuais que, grosso modo, descrevem situações contrárias aos “fatos”, permitindo o estabelecimento de raciocínios válidos a partir de premissas consideradas falsas. Nos termos do modelo dos espaços mentais, Fauconnier (1994) propõe que a contrafactualidade sinaliza uma incompatibilidade forçada entre espaços mentais, em que aquilo que se estabelece no espaço contrafactual é incompatível com o que se manifesta na base4. Para ilustrar essas noções, relembremos o início da canção “Lígia”, de Tom Jobim: (1) Eu nunca sonhei com você Nunca fui ao cinema Não gosto de samba Não vou a Ipanema Não gosto de chuva nem gosto de sol E quando eu lhe telefonei, desliguei foi engano O seu nome não sei Esqueci no piano as bobagens de amor Que eu iria dizer, não... Lígia Lígia Como os termos em negrito destacam, a contrafactualidade pode ser imposta por diferentes estruturas linguísticas. Vejamos alguns dos recursos: (1) estratégias fortes de negação estabelecidas por advérbios e verbos, tais como não, nem, nunca, não passou de. (2) usos de tempos verbais impõem contrafactualidade em construções gramaticais que autorizam essa interpretação, como o futuro do pretérito em “ as bobagens de amor que eu iria dizer”. 4 O espaço Base inclui os parâmetros da situação comunicativa em curso: falante, ouvinte(s), local e momento do evento de fala. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 30 Lilian Ferrari & Diogo Pinheiro A contrafactualidade também pode ser apontada por orações condicionais, em que o introdutor de espaço se ocorre associado a combinações modo-temporais específicas nas orações antecedente e consequente. Para continuarmos com Jobim, basta nos lembrarmos do clássico Se todos fossem iguais a você, que cria um cenário contrafactual: (2) Existiria a verdade Verdade que ninguém vê Se todos fossem no mundo iguais a você Nos termos de Akatsuka e Strauss (2000), a inferência sugerida nas leituras contrafactuais pode ser tanto a de desejabilidade quanto a de indesejabilidade do evento imaginado. Em (2), a condicional cria uma situação que é desejável do ponto de vista do poeta (“todos serem iguais a você”), cujas consequências são também desejáveis (“existir a verdade que ninguém vê”). Pela incompatibilidade do cenário criado com a situação real, o poeta exalta, de modo indireto, o seu amor. As estruturas contrafactuais, portanto, servem muito mais para avaliar uma situação que o falante concebe como real, em contraste com outra situação possível, do que como mero exercício de imaginação em que o falante examinaria em detalhes uma situação imaginária e diferente daquela que conhece. Como sugerem canções como (1) e (2), as estruturas contrafactuais são recorrentes na linguagem cotidiana, e costumam partir do ponto de vista do falante, na Base (o “aqui-e-agora” do evento de fala). Entretanto, nada impede que espaços mentais sejam criados a partir de outros pontos de vista, que não o do falante. Nesse caso, ocorre o que se convencionou chamar de projeção de ponto de vista, e o que as estruturas linguísticas sinalizam é uma projeção mental do falante para um ponto de vista diferente do seu. Essa possibilidade pode ser percebida em atividades simples do nosso dia a dia, como gravar um recado na secretária eletrônica. Quando se grava uma mensagem do tipo “No momento, não posso atender”, a expressão “no momento” sinaliza uma projeção de ponto de vista: ao invés de se referir ao momento em que o falante produz a expressão, indica o momento em que a pessoa que faz a ligação ouvirá a mensagem. A contrafactualidade (“não posso atender”) é estabelecida a partir desse ponto de vista projetado no futuro. Em suma, pode-se concluir que as línguas não só disponibilizam recursos para que se estabeleçam espaços contrafactuais, como também para que se criem espaços a partir de pontos de vista projetados. Essas IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 31 Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade possibilidades serão discutidas a seguir, com base na análise de uma narrativa espontânea e de um poema de Carlos Drummond de Andrade. 4 UMA NARRATIVA COTIDIANA: FLEXIBILIDADE DE PONTO DE VISTA O exemplo a seguir é o relato de uma experiência pessoal em que o falante narra o episódio de um acidente de carro em que se envolveu, estando alcoolizado: (3) (i) aí bati num Voyage (ii) perdi a direção do carro e fui raspando o carro pelo paredão do túnel assim... uns cem metros (iii) aí eu parei o carro e pô (iv) a garota que tava comigo (v) desesperada (vi) aí eu tentei sair com o carro não tinha jeito (vii) o carro quebrou tudo (viii) aí... pô... saltei do carro pra... pedir ajuda... né? (ix) aí eu comecei a andar... (x) aí na minha frente ((riso)) tinha um Voyage parado... (xi) batido também... (xii) aí eu fui conversar com os caras do carro... né? (xiii) pô... vem ((riso)) eu doidão... (xiv) não me lembrava de nada da batida mais... (xv) aí eu cheguei pros caras e perguntei “pô... cara... tu bateu com o carro aqui também? que coincidência...” (xvi) aí o cara veio pra cima de mim... (xvii) querer me bater... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1) A narrativa, embora aparentemente corriqueira5, apresenta uma dimensão nem sempre apontada nas análises da fala espontânea: a existência de processos complexos de mudança de ponto de vista, indicados por estruturas sintáticas específicas. Assim, nas sequências (i) a (xii) o falante/narrador utiliza o pronome de 1ª pessoa (“eu”) para referência a si próprio, sinalizando que é o protagonista da narrativa6. No final desse trecho, em (xii), ao 5 A narrativa é parte do Corpus Discurso & Gramática, e foi coletada na década de 80. 6 Há algumas digressões no trecho, que se referem à garota que acompanhava o falante (iv-v) e ao carro (vii). Entretanto, tais digressões caracterizam o background narrativo (fundo), e estão subfocalizados em relação à sequência de eventos narrados em 1ª pessoa como figura (“bati”, “perdi”, “parei”, etc.). IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 32 Lilian Ferrari & Diogo Pinheiro relatar que saiu do seu carro em direção ao outro carro no qual bateu, o falante produz “pô...eu fui conversar com os caras do carro”. Interessantemente, nesse momento, o falante usa uma construção de inversão de sujeito (vem eu doidão), bastante peculiar. Vejamos: (a) O sujeito (eu) é posposto ao verbo, contrariando os achados relevantes na literatura sobre inversão de sujeito, de que há uma preferência por posposição de sujeitos quando o referente é novo e não mencionado anteriormente no discurso como, por exemplo, em “chegou uma carta” (FERRARI, 1990). No caso do sujeito “eu”, não há novidade, já que o falante é sempre pressuposto no discurso. Esse exemplo contraria ainda a hipótese de que sujeitos pospostos teriam necessariamente baixa topicalidade (NARO e VOTRE, 1999). Este não é o caso aqui, uma vez que o referente de “eu” já estava estabelecido como tópico da sequência imediatamente anterior. (b) O verbo de movimento é “vir”, e não “ir”, como seria de se esperar pela sequência anterior em que o falante relata o afastamento de um local e o deslocamento em direção a outro. (c) O verbo “vir” aparece conjugado na 3ª pessoa do singular, e não na 1ª pessoa, como seria de se esperar se concordasse com o sujeito “eu” (ex. vim eu doidão). (d) O verbo “vir” ocorre no presente do indicativo, e não no pretérito perfeito, que manteria a estrutura temporal da sequência narrativa anterior. Todos esses fatores indicam que a cláusula “vem eu doidão” marca uma espécie de ruptura da sequência narrativa. Entretanto, não se trata de uma ruptura em relação à sequência temporal dos eventos narrados ou em relação à cadeia referencial no fluxo de informações. Na verdade, trata-se de uma mudança de ponto de vista, em que o falante decide se projetar para o ponto de vista do seu interlocutor. Assim, a sentença é construída a partir da mesclagem de dois pontos de vista: o do “cara do outro carro”, em direção ao qual o falante “vem doidão”, e o seu próprio, através da referência a si próprio como “eu” 7. Tendo em vista que a ordem VS é um importante mecanismo de sinalização de mudança de ponto de vista em português, como já foi demonstrado por Pinheiro (2013), a posposição do sujeito pronominal “eu” 7 A Teoria dos Espaços Mentais prevê que elementos nos espaços podem estabelecer contrapartes em outros espaços. Assim, o pronome “eu”, nesse caso, é uma projeção do falante na Base para o espaço passado da narrativa. O que, de fato, é interessante é que se o ponto de vista do “cara do outro carro” tivesse sido integralmente adotado, o pronome “eu” teria que ter sido substituído por uma expressão que pudesse codificar o falante sob o ponto de vista do outro (ex.: o cara que provocou a batida). Essa estratégia, entretanto, impediria que o ouvinte acompanhasse a mudança de ponto de vista. Se a sentença fosse “vem o cara que provocou a batida doidão”, buscaríamos outro referente, que não o falante, para associar ao “cara que provocou a batida”. Sendo assim, a mesclagem de pontos de vista acaba sendo o recurso adequado para garantir a integração do ponto de vista de um outro participante ao discurso. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 33 Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade na cláusula (xiii) não deve causar estranheza. Da mesma forma, o verbo “vir” se mostra mais adequado para refletir a mudança de ponto de vista, ou seja, a percepção do outro participante da cena em relação à aproximação do falante. Por fim, o uso de presente simula a cena de percepção no momento de sua ocorrência, em que o falante é o “outro” em relação ao interlocutor (portanto, o verbo é conjugado na 3ª pessoa). Como demonstra o caráter familiar do exemplo discutido nesta seção, a projeção de ponto de vista não só é fenômeno frequente nas narrativas cotidianas, como é sinalizada pela conjugação de diferentes recursos linguísticos, como ordem vocabular, morfologia verbal e recursos lexicais. Na seção a seguir, o fenômeno de projeção de ponto de vista será ilustrado com base em um poema. O objetivo é demonstrar que a noção de ponto de vista, inerente ao modo como pensamos, é responsável pela enorme complexidade de nossas produções linguísticas, desde as mais básicas e não planejadas até aquelas de elaboração mais refinada, como os textos literários. No caso do poema a ser analisado, esse refinamento pode ser observado na articulação entre ponto de vista e contrafactualidade. 5 UM POEMA DE DRUMMOND O poema Um boi vê os homens, de Carlos Drummond de Andrade, constrói, a partir de sua tessitura linguística, espaços contrafactuais. Vejamos: Um boi vê os homens Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente, falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno, como também parecem não enxergar o que é visível e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade. Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra. Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias. Têm, talvez, IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 34 Lilian Ferrari & Diogo Pinheiro certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme (que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo como pedras aflitas e queimam a erva e a água, e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade Como se pode perceber, o poema apresenta elementos que indicam contrafactualidade, nos moldes descritos na seção 3. Em primeiro lugar, há uma série de marcas linguísticas associadas à negação, como as destacadas a seguir: (i) Falta-lhes não sei que atributo essencial (ii) dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno (iii) como também não parecem enxergar o que é visível e comum no espaço (iv) Nada nos pelos (v) Impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias. Se os espaços contrafactuais introduzidos pela negação marcam a inexistência de determinadas características na entidade observada, isso sugere que aquele que observa apresenta essas características. É possível inferir, portanto, que há um ponto de vista implícito, a partir do qual é natural escutar o canto do ar e os segredos do feno, enxergar o que é visível, ter muitos pelos e se organizar em formas calmas, permanentes e necessárias. De forma análoga ao que ocorre com as estratégias de negação, as estratégias de intensificação e comparação também contribuem para a sinalização de um ponto de vista implícito. Vejamos: (vi) Tão delicados (mais que um arbusto) (vii) E correm e correm (viii) Toda a expressão deles mora nos olhos (ix) Espantosamente graves, até sinistros (x) Extremos de inconcebível fragilidade (xi) Que secura (xii) Que reentrâncias (xiii) Tão pobres e carecidos de emitir sons agudos e agônicos IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 35 Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade Os recursos linguísticos destacados acima sugerem que, a partir do ponto de vista da Base, aquele que estabelece os julgamentos comparativos é forte (vi), calmo e lento (vii), expressivo em várias partes do corpo (viii), alegre e despreocupado (ix), com extremidades resistentes (x), úmido (xi), retilíneo (xii), rico e sem carências (xiii). Considerando-se as características (i) a (xiii), a questão que se coloca é: de que Base se trata? Como estabelecido pela Teoria dos Espaços Mentais, a Base default no uso linguístico é o evento de fala, que envolve falante, ouvinte(s) e parâmetros espaço-temporais, a partir da qual se estabelece normalmente o Ponto de Vista. O poema, entretanto, abre dupla possibilidade de ponto de vista. Por um lado, o título – “um boi vê os homens” – sugere que se trata do ponto de vista de um boi; por outro lado, quem de fato escreve é o poeta. Trata-se, portanto, de um caso de mesclagem de pontos de vista em que o poeta vê os homens pelos “olhos” do boi. Ou melhor, o poeta vê os homens pelos “olhos” do boi-poeta. É a partir daí que se constituem os espaços contrafactuais, em que a humanidade se apresenta como inapelavelmente carente de “atributos essenciais”. Em termos linguísticos, é interessante notar que, no título, o boi é codificado como uma entidade indefinida genérica (“um boi”). O artigo indefinido aqui não remete a um único boi, mas na verdade a um boi qualquer. Esse recurso, inclusive, garante a imprecisão necessária para que a compressão de ponto de vista boi/poeta se sustente. Por outro lado, o objeto da percepção é codificado como definido ( os homens), mas também genérico. Não se trata aqui de enfocar homens individuais e específicos, mas de flagrar a inexorável semelhança que resiste à nossa pluralidade. Ao promover a mesclagem de pontos de vista, o poema nos convida a experienciar uma espécie de des-centramento, uma reconstrução do mundo, a partir de uma alteridade não humana. Não se trata de tentar reproduzir, de fato, o ponto de vista de um boi (obviamente, inacessível aos humanos). Mas, ao exercitar outra possibilidade de percepção da realidade humana, o poema expõe o caráter perspectivado e, ao mesmo tempo, intersubjetivo daquilo que se convencionou estabelecer como realidade. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Há pelo menos 35 anos, um dos principais objetivos associados à Linguística Cognitiva tem sido o de demonstrar que fenômenos linguísticos podem ser explicados a partir de processos cognitivos gerais, ou seja, não especificamente linguísticos. Sob essa ótica, a estrutura gramatical – que inclui, por exemplo, ordem IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 27-38, 2º. Sem. 2014 | 36 Lilian Ferrari & Diogo Pinheiro vocabular, recursos lexicais e elementos morfológicos – é vista como a materialização superficial de mecanismos conceptuais subjacentes (e em larga medida inconscientes). Neste artigo, procuramos flagrar e descrever a operação desses mecanismos inconscientes tanto na fala espontânea quanto em um texto poético. Para isso, focalizamos estratégias linguísticas associadas à sinalização, projeção e mesclagem de ponto de vista, evidenciando ainda a capacidade do falante/redator de acessar pontos de vista múltiplos em relação à mesma cena. Ao analisarmos produções linguísticas representativas de diferentes gêneros textuais, esperamos ter oferecido uma demonstração convincente de que as relações entre processos cognitivos e fenômenos linguísticos são inerentemente estruturantes do intrincado processo de construção online – e intersubjetiva – do significado. REFERÊNCIAS AKATSUKA, N.; STRAUSS, S. Counterfactual reasoning and desirability. 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