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SÉRIE RELACIONAMENTOS SAUDÁVEIS
Estudo 4: Exortar e ser exortado
ESTUDO BÍBLICO
1 Introdução
Em nossa caminhada pelos relacionamentos saudáveis que devemos ter uns com os outros,
vimos como é importante aceitar o outro do jeito como ele é (Estudo 1), amá-lo como Deus o ama
(Estudo 2) e servi-lo como Jesus nos serviu (Estudo 3). Após termos fundamentado nosso relacionamento com o outro nestas diferentes facetas do amor, hoje investigaremos outro aspecto do amor
sacrificial (ágape) de Deus: a exortação.1
Talvez alguém ache estranho que exortar seja demonstrar amor, pois pensa que exortação é
um “sermão” para corrigir o que fizemos de errado. Nada mais longe da verdade. O dicionário define exortação como “palavras com que se procura reformar ou melhorar os atos, costumes ou opiniões de alguém; estímulo, incitação” (Michaelis) e exortar como “animar, incitar, encorajar, estimular; aconselhar, induzir, persuadir” (Aurélio). Exortação, portanto, é chamar a pessoa para o lado,
para uma conversa privada e íntima, para ajudá-la a voltar ao caminho correto.
É exatamente neste sentido que o autor de Hebreus nos encoraja à mútua exortação.
2 Análise do texto bíblico
“12Cuidado, irmãos, para que nenhum de vocês tenha coração perverso e incrédulo, que se afaste do Deus vivo. 13Ao contrário, encorajem-se uns aos outros todos
os dias, durante o tempo que se chama ‘hoje’, de modo que nenhum de vocês seja
endurecido pelo engano do pecado, 14pois passamos a ser participantes de Cristo,
desde que, de fato, nos apeguemos até o fim à confiança que tivemos no princípio.” (Hebreus 3:12-14, NVI).
2.1
Contexto histórico e literário
No contexto literário de Hebreus 3:7-4:13, o autor usa a experiência de Israel para fazer
uma exortação direta aos cristãos. Para isto, ele cita o Sl 95:7-11 que, por sua vez, se refere ao episódio dos espias enviados por Moisés à Canaã (Nm 13-14). Diante dos gigantes e dos muros altos,
os israelitas rejeitaram a entrada em Canaã por não crerem que Deus lhes daria vitória contra os
inimigos. Por sua incredulidade, eles não puderam entrar no descanso de Deus,2 a Terra Prometida,
e ficaram vagando pelo deserto por 40 anos (Hb 3:17). Para o autor de Hebreus, não há diferença
entre o povo de Deus no Antigo e no Novo Testamento; a distinção é meramente temporal. Deus
ainda quer levar seu povo ao descanso, à sua presença. Por isso, o autor enfatiza que devemos aprender com os israelitas para que entremos no descanso preparado por Deus para nós (4:11).3
Assim, o propósito claro da epístola aos Hebreus é o de confirmar a fé dos leitores e evitar
o perigo do desvio. Com a pressão das outras religiões da época, os cristãos estavam se questionan1
Observe que ninguém se permitirá ser exortado se você não demonstra primeiro a esta pessoa que você a ama, e está
disposto a servi-la conforme Deus o orientar.
2
A referência de Canaã como “descanso” se deve à promessa de ter descanso de todos os inimigos para viver em paz e
prosperidade (shalom) na presença de Deus.
3
Começamos a ter vislumbres deste descanso em nossa caminhada com Jesus nesta vida, mas só entraremos no completo descanso de todos os nossos inimigos (sendo os principais o pecado e a morte) quando Jesus voltar.
2
do sobre sua própria fé, especialmente em relação à ausência de sacerdotes no meio cristão.4
Pelas várias advertências contidas na carta, presume-se que havia para estes cristãos um
perigo de abandono da fé devido à falta de perseverança, rebeldia contra Deus, e pressão e tentação
externas. Mas, como em toda advertência de Deus, há sempre uma promessa implícita de restauração5 aos que se arrependerem e perseverarem no caminho correto. Por isso o autor apela para cuidarmos do nosso coração (v.12) e para nos guardarmos por meio da exortação mútua (v.13).
REFLEXÃO: Quais são os perigos e pressões atuais que levam alguém a abandonar sua fé?
2.2
Puxando o coração para perto de Deus
“Cuidado, irmãos, para que nenhum de vocês tenha coração perverso e incrédulo,
que se afaste do Deus vivo.” (v.12)
Examinando o que ocorreu com Israel, a advertência do autor é que não haja no meio da
congregação quem tenha “coração perverso e incrédulo”. A preocupação é dupla.
Por um lado, o autor sabe que basta uma pequena célula infectada para contaminar todo o
povo de Deus (Gl 5:9), como se viu no episódio dos espias no AT. Por isso é necessário identificar
na igreja quem já está muito doente espiritualmente (ao ponto de estar afastado de Deus) para tratar
desta pessoa com carinho e num ambiente separado dos demais.6
Por outro lado, precisamos verificar o nosso próprio coração, para que não cause nosso afastamento de Deus. Se você busca a Deus todos os dias, você não vai acordar certo dia e decidir se
afastar de Deus. É um processo gradual; é uma escada rolante para baixo que vai corroendo nossa
fé. O coração vai se cauterizando, vai se tornando insensível à voz do Espírito Santo até chegar a
um extremo. Por isso, ter “um coração perverso e incrédulo” supõe mais do que pecados superficiais ou ocasionais. Já é uma rebelião consciente e declarada, que leva a nos desviarmos do caminho
correto.7 Mesmo assim, afastar-se de Deus (neste contexto) não significa voltar ao paganismo, mas
deixar de confiar e depender de Deus, como os israelitas o fizeram em Nm 14:9-10.8 Não é algo
abstrato! Na Bíblia, afastar-se de Deus é associado com não ouvir a voz de Deus (no sentido de não
obedecê-la; Jr 3:13-14; Dn 9:9-11), com o confiar mais em homens do que em Deus (Jr 17:5), e
com seguir ensinos errados que não vem da parte de Deus (1Tm 4:1).
Além disso, afastar-se do “Deus vivo” implica sempre em morte. Pois é este Deus vivo
quem concede vida continuamente a todas as suas criaturas. Ao repudiarmos a vida que ele oferece,
escolhemos nossa própria morte, pois não existe verdadeira vida longe de Deus. Afastados de Deus,
podemos até parecer vivos fisicamente (e isto também pela providência misericordiosa de Deus),
mas não teremos a vida abundante que Jesus veio trazer para nós (Jo 10:10).
REFLEXÃO: Se o principal inimigo é o nosso próprio coração, como podemos perseverar na fé?
4
Todas as demais religiões da época apresentavam sacerdotes e/ou sacerdotisas que faziam a mediação entre o povo e
os deuses. Por não terem sacerdotes deste tipo, os cristãos questionavam a validade de sua religião. Daí as longas explicações do autor em outros capítulos sobre o papel de Jesus como nosso Sumo Sacerdote.
5
Este é um fato desconhecido para muitos. Mesmo no AT, quando os profetas anunciavam grande destruição, ainda
havia lugar para o arrependimento. A exortação sempre busca reconduzir o exortado à presença de Deus, ainda que às
vezes use palavras fortes e ameaçadoras. Veja o exemplo de Nínive, que foi poupada devido ao seu arrependimento
diante da palavra profética de destruição anunciada por Jonas.
6
Este, na verdade, é o real propósito da disciplina na igreja: levar a pessoa que errou ao arrependimento e a ser restaurada à plena comunhão com todos e com Deus (2Co 2:5-11).
7
Jeremias identifica este coração perverso no povo de Deus de seu tempo (Jer 16:12; 18:12).
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O verbo “afastar” no original também gerou nossas palavras “apostasia” e “apóstata”. A ideia é de desertar, de abandonar. Pode ser traduzida hoje pelo termo “desviado”, que alguns grupos evangélicos usam para o cristão afastado.
3
2.3
Exortando continuamente enquanto há tempo
“Ao contrário, encorajem-se uns aos outros todos os dias, durante o tempo que
se chama ‘hoje’, de modo que nenhum de vocês seja endurecido pelo engano do
pecado, pois passamos a ser participantes de Cristo, desde que, de fato, nos apeguemos até o fim à confiança que tivemos no princípio.” (vv.13-14)
Para evitar chegarmos a este extremo do afastamento de Deus, precisamos nos exortar mutuamente “todos os dias”. A ênfase está na continuidade do processo. Usando a metáfora da escada
rolante para baixo, temos que estar sempre subindo os degraus no sentido inverso. Além disso, precisamos encorajar os outros para que não fiquem parados, ou irão ser levados para baixo. Nossa
natureza pecaminosa nos puxa para baixo continuamente. O texto explica que o pecado nos engana
(2Co 11:3) e nos deixa endurecidos.9 Por isso precisamos dos outros para não cairmos (Ec 4:9-12).
O que os outros podem fazer por nós? Podem nos exortar, “chamar para o lado”.10 Exortar
significa consolar (2Co 13:11; 1Ts 4:18; 5:11), admoestar (Hb 12:5), suplicar e dar direção espiritual. Todas estas abordagens são válidas quando alguém nos “chama para o lado” para conversar (veja
1Ts 5:14). A exortação bíblica tem o propósito de ajudar o outro para que volte ao rumo certo (veja
alguns critérios em Mt 18:15-17), evitando que ele sofra ao permanecer em seu pecado, e se afaste
da graça de Deus (Hb 12:15). Por isso, exortar biblicamente é sempre um serviço ao outro.
Contudo, não podemos nos aproximar dos outros com julgamento ou com soberba, como
se não fôssemos também pecadores aceitos pela graça de Deus. A abordagem do dedo-duro nunca
ajuda, apenas machuca. É preciso, em primeiro lugar, criar vínculos de amor que nos permitam tocar em assuntos delicados e privados.11 Em seguida, humilhar-se reconhecendo que também somos
falhos e necessitados da graça divina. Daí então podemos chamar ao lado e expor o que a Bíblia
ensina a respeito da situação. Afinal, o objetivo não é o de conformar os outros ao nosso padrão de
espiritualidade, mas sim o de conformá-los ao padrão de Deus.
É interessante notar que o autor de Hebreus dá um prazo para a nossa mútua exortação. É
“durante o tempo que se chama ‘hoje’”. “Hoje” se refere ao tempo presente em que Deus continua a
oferecer a oportunidade de entrar na terra do descanso.12 Mas há um prazo final para exortação e
arrependimento, seja pela nossa morte ou pela volta de Jesus. Por isso precisamos servir aos outros,
estimulando-os e encorajando-os a perseverarem na vida cristã (Hb 10:24-25), “como se Deus exortasse por nosso intermédio” (2Co 5:20).13
REFLEXÃO: Descreva como e quando você gostaria que outros exortassem você.
2.4
Perseverando por meio da prestação de contas a outros
Vimos, no estudo anterior em 1Pe 4:8, que “o amor perdoa muitíssimos pecados”. Mas o
amor que perdoa e “cobre” (não divulga) o pecado alheio não implica em deixar de tratar a situação
problemática, como vimos neste estudo. Embora a repreensão deva sempre vir acompanhada de
amor e ser feita no tempo e no espaço apropriados, não podemos omitir a verdade às pessoas que
amamos (Pv 17:9-10; 10:17). Até a criança espera por isto! 14
9
O apóstolo Paulo trabalha o mesmo conceito ao buscar manter uma boa consciência (2Co 1:12; 1Tm 1:5,19).
Relembre a definição do dicionário na introdução deste estudo.
11
Na maioria das vezes, este tipo de conversa se desenvolve melhor num ambiente de privacidade e intimidade, sem
muitas pessoas. Isto quer dizer que devemos tomar cuidado para não exortar as pessoas abertamente nos encontros do
grupo (no sentido de expor seus erros), a menos que haja um ambiente muito propício e direção do Senhor para isto.
12
Este “Hoje” se iniciou com a inauguração do Reino de Deus por Jesus em sua vida e obra (Hb 5:5).
13
Alguns autores já descreveram a igreja como “o único exército que deixa para trás seus feridos”. Precisamos mudar
esta triste figura. Isto se fará pela solidariedade demonstrada aos que estão caindo pelo caminho, indo atrás deles para
encorajamento, consolo e admoestação. Não é uma corrida; vamos chegar todos juntos no descanso de Deus.
14
Assim como “quem ama, educa” (Içami Tiba), podemos dizer que no grupo pequeno e na igreja, “quem ama, exorta”.
10
4
Os relacionamentos saudáveis se aprofundam no confronto autêntico (Pv 27:17). Precisamos criar no grupo pequeno amizades sinceras que sobrevivam a discordâncias e crises. São estes
amigos que irão nos levantar na hora em que estivermos desanimados ou caídos. Precisamos nos
submeter uns aos outros para crescimento e mútua exortação. Ao abrirmos nossas vidas e revelarmos nossas fraquezas pouco a pouco, encontraremos no grupo pequeno um ambiente de encorajamento à fidelidade. Ao prestar contas aos outros a cada encontro, seremos estimulados a sermos
responsáveis em nossa caminhada cristã e a perseverarmos na fé. Afinal, é difícil manter a brasa
acesa por longo tempo depois que sai do meio da fogueira. Do mesmo modo, é no meio da comunhão dos irmãos que conseguiremos perseverar na fé até o fim.
REFLEXÃO: Como podemos cobrir em amor o erro do outro? Quando e como devemos intervir?
3 Exemplos práticos
3.1
Paulo e Pedro (Gl 2:11-21)
Paulo repreende Pedro (e foi até na frente de outras pessoas!), pois Pedro estava fazendo
diferenciação entre cristãos judeus e cristãos não-judeus no momento das refeições. Pedro já havia
aprendido a não fazer tal diferença, pois Deus não faz acepção de pessoas (At 10). Mas titubeou e
voltou ao seu antigo costume de se afastar dos não-judeus.
3.2
Jetro e Moisés (Ex 18:13-27)
Ao ver Moisés sobrecarregado com seu trabalho, seu sogro Jetro o “chama para o lado” e o
aconselha a subdividir o trabalho e delegar tarefas a auxiliares.
3.3
Joabe e Davi (2Sm 19:1-10)
Quando Davi estava desolado com a morte de seu filho Absalão, seu general Joabe chama
a atenção de Davi para o exemplo que estava dando ao seu exército. Afinal, Absalão morreu porque
estava em guerra contra seu pai. Davi tornou a vitória de seus seguidores em aparente derrota pelo
seu desespero pela morte do filho. Daí a necessidade de Joabe lhe dar uma palavrinha.
REFLEXÃO: Sem mencionar nomes, exemplifique momentos em que você já exortou a alguém.
4 Pesquisa adicional
Se desejar estender o estudo, investigue os seguintes assuntos:

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A formação de raízes de amargura e de ressentimento (Hb 12:15)
Como disciplinar uma pessoa na igreja de modo a restaurar sua comunhão com Deus
Formas de estimular os irmãos a perseverarem em sua caminhada na fé
Vida cristã individual comparada com vida cristã em comunidade
Como perseverar na fé quando você está só e não pode estar junto de outros cristãos?
5 Bibliografia
ELLINGWORTH, Paul. The epistle to the Hebrews: a commentary on the greek text.
The New International Greek Testament Commentary. Grand Rapids: Carlisle, 1993.
SCHMITZ, Otto. “Parakaleō”. In: KITTEL, Gerhard et alii (eds.). Theological Dictionary
of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1964-. v.5, pp.788-799.
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Exortar e ser exortado