Introdução à história das idéias sobre o trabalho: um resumo Suzana Albornoz A experiência do esforço para prover à sobrevivência e enfrentar os desafios, cotidianos ou extraordinários, tem acompanhado a humanidade desde seu aparecimento, de modo que nas mais diversas culturas teceram-se modos de sentir e de pensar a respeito. Assim, também na história ocidental, na encruzilhada de culturas que conviveram em torno do Mediterrâneo e do Atlântico, do século de ouro da Grécia até o começo do nosso século XXI da chamada era cristã, o conceito de trabalho vem apresentando um movimento complexo que merece nossa atenção e meditação. Etimologia: tripalium A etimologia da palavra trabalho já nos faz meditar. A tese predominante é de que a palavra trabalho descende do latim tripalium, que indica um instrumento de ferro com três pontas, originariamente utilizado na lavoura para separar o cereal, que teve sua utilização decaída, sendo usado como instrumento de tortura. Ambos usos do tripalium parecem assombrar a palavra trabalho, enquanto lembra o instrumento da labuta, mas a ele agrega a conotação terrível do abuso e da violência. Em nossa língua portuguesa, notamos facilmente que a palavra trabalho carrega consigo mais de uma noção. A primeira conotação que lhe está ligada é a de esforço, causa de fadiga, talvez sofrimento. Mas logo adiante, percebe-se a significação de obra, produto do esforço, que expressa o sujeito que trabalha. Em alguns contextos históricos, foi acentuada a significação positiva, de obra. Mas em geral continua sendo a primeira acepção, negativa, que predomina. Em muitas línguas modernas - por ex. Arbeit e Werk, em alemão, e travail e oeuvre, em francês - nota-se facilmente a distinção entre estes dois conteúdos que em português convivem na mesma palavra. Ambas as conotações predominantes do trabalho - de sofrimento, pena e esforço, de um lado, e de conquista, realização e força, de outro - ficam bem claro em certas histórias clássicas que tentam explicar os fatos primordiais da humanidade. Mitologia: Prometeu Uma das histórias mais expressivas, no universo da mitologia grega, é o mito de Prometeu. O primeiro autor a narrar o mito de Prometeu foi Hesíodo. Segundo este autor clássico considerado o pai da arte da História, a Prometeu e Epimeteu, seu irmão, foi dada pelos deuses a tarefa de criar os homens e todos os animais. Epimeteu encarregou-se da realização da obra, enquanto Prometeu encarregou-se de supervisioná-la. Em seu trabalho de distribuição de características, Epimeteu atribuiu a cada animal os mais variados dons: a coragem, a força, rapidez, sagacidade. Deu asas a um, garras a outro, uma carapaça protetora para um terceiro, etc., e assim, quando chegou a vez do homem, que formou do barro, Epimeteu gastara todos os recursos nos outros animais e não soube que fazer, por isso recorreu a seu irmão Prometeu. Este, então, para resolver o impasse, roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens. Isto assegurou a superioridade dos homens sobre os outros animais. Todavia, o fogo até então era exclusivo dos deuses. Como castigo a Prometeu, Zeus ordenou que fosse acorrentado no cume do monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia dilacerava o seu fígado, que a cada vez se regenerava. Esse castigo deveria durar 30.000 anos. Finalmente, Prometeu seria libertado de seu suplício por Héracles (Hércules). A história de Prometeu e Epimeteu é significativa e traz-nos uma contribuição forte para tomarmos consciência da carga simbólica associada ao trabalho em nossa tradição e cultura. Através desse mito percebemos o trabalho visto como força criadora, como a força própria do homem, como a característica que o torna superior aos outros animais e o faz rivalizar com os deuses, que dele sentem ciúme e por isso o penalizam. Religião: o mito da queda Do lado da outra grande corrente que forma o que chamamos cultura ocidental, na tradição bíblica, já no relato da origem, da criação do mundo e do homem, encontra-se, no livro do Gênesis, uma explicação do trabalho como pena, como conseqüência do pecado original. Por haver desobedecido à ordem do Criador, de não provar dos frutos da “árvore do conhecimento” – metáfora bastante próxima da imagem do “fogo dos deuses” do mito grego -, no mito adâmico o homem é condenado a labutar com esforço e sofrimento, assim como a mulher recebe a punição de dar à luz com dor. Filosofia: Aristóteles Os preconceitos antigos encontraram expressão também na voz dos filósofos, por exemplo, na teoria geral da atividade criadora que aparece em Aristóteles, um dos maiores pensadores da Grécia, um dos “três grandes” da Escola de Atenas, que mantém sua influência até a atualidade. Segundo a visão aristotélica, em toda produção criadora, o artesão é a causa motriz. Opera sobre um objeto material – causa material – para lhe imprimir uma forma – causa formal -, que vai dar na obra acabada. Essa forma constitui ao mesmo tempo o fim de toda a operação criadora – logo, sua causa final. Para o pensamento antigo, a finalidade dá sentido e comanda o conjunto da atividade produtiva. A causa real da fabricação não está na vontade ou na força do artesão, mas fora dele, no produto feito, na finalidade a que se dirige a atividade. A essência de um objeto é a perfeita adaptação de todas as suas partes ao uso que se quer, à necessidade que se deseja atender com aquele objeto. Por exemplo, a essência de uma cadeira é a sua adaptação ao uso a ela determinado, ou seja, o de servir de assento, para o descanso de alguém. A essência do produto cadeira não depende do artesão nem do seu modo de trabalhar ou dos processos de fabricação, habilidades ou inovações técnicas. A finalidade de possibilitar assento e descanso é o essencial, e para isso, tanto o artesão quanto os utensílios são meios instrumentais. Para a maneira grega de ver, o trabalho artesanal, portanto, não é uma atividade livre, nem é livre o trabalhador; livre é apenas a ação que não gera nenhum produto e não está determinada pela finalidade de produzir algo específico. Durante a Idade Média, a visão filosófica com matriz aristotélica predominaria na compreensão intelectual do trabalho, correspondendo aos valores que o mantiveram menos honrado do que a contemplação, teórica ou mística. Nos tempos modernos, após a ampliação das fronteiras geográficas pelas navegações e, concomitantemente, a nova percepção do universo pelas descobertas científicas, no tempo do Renascimento, começaria a produzir-se uma inversão de valores sobre a vida contemplativa e a vida ativa. A inversão moderna, de um lado, isso integrado ao ressurgimento da cultura antiga, tomou um sentido humanista, em que o trabalho passou a ser visto como expressão da força do homem. De outro, tomou um significado religioso, situando-se no âmago da Reforma protestante, na qual a moral do trabalho se constrói sobre a convicção de que a dedicação profissional é mandamento divino e dignifica o homem, dando assim uma nova iluminação à moral cristã. As ciências sociais: as humanidades modernas Embora na antiguidade se encontrassem pensamentos sobre a atividade criadora, e o tema tenha começado a tomar importância na modernidade entre reformadores e humanistas, o trabalho só se afirmaria como objeto da filosofia na época industrial, quando novas situações políticas, econômicas e sociais mudam a relação com a tradição. No século XIX, o trabalho estava subentendido nas especulações de Hegel sobre a dialética do senhor e do servo, bem como foi muito presente e importante nas imaginações dos primeiros socialistas, tornando-se o centro das análises de Karl Marx, na crítica da alienação do trabalho industrial na economia capitalista. Marx não só fez a análise exaustiva das relações de trabalho na sociedade capitalista, com acréscimo de conceitos novos - como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo, mas em muitos textos deixa transparecer uma teoria antropológica do trabalho. Como para Hegel, em Marx o trabalho é o fator que faz a mediação entre o homem e a natureza. Os homens definem-se pelo que fazem, e a natureza dos indivíduos depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. No processo de trabalho participam o homem e a natureza; nele o homem inicia, controla e regula as relações materiais entre si e a natureza; e pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza. O trabalho é o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza e assim, através do trabalho, o homem se transforma a si mesmo. A análise crítica do trabalho no mundo industrial evoluiu, em sua relação com as mudanças havidas nas realidades do mundo que acompanham os progressos tecnológicos, no entanto, permanece válida e definitiva enquanto denúncia da exploração e da alienação do trabalho no capitalismo dos séculos do desenvolvimento industrial. Sobre a relação entre a ética protestante e a ideologia do trabalho no capitalismo é também muito relevante a interpretação de Max Weber, oposta à de Marx quanto à relação entre economia e religião. A reflexão crítica sobre as realidades do trabalho continuou a desenvolver-se no século XX entre discípulos e interlocutores do marxismo, como, por exemplo, Herbert Marcuse, que complementou a análise do trabalho alienado com a do caráter alienante da produção e do consumo no capitalismo tardio, e recebeu também contribuições que vão além do marxismo, como a de Hannah Arendt que, com suas reflexões sobre a vita activa face à vita contemplativa, remete o leitor à cultura clássica, para repensar a condição do homem moderno. I. As categorias do labor, do trabalho(poiesis) e da ação(práxis) segundo Hannah Arendt Em A condição humana(1958), Arendt1 repensa a distinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. A autora desenvolve uma reflexão muito particular e inspirada sobre as categorias da vita activa – labor, poiesis e práxis -, em sua relação com a vida do espírito e ante as novas realidades do mundo contemporâneo. Se a vida contemplativa parece, para a referida tradição grega, ocupar um lugar superior a qualquer plano da vida ativa, também esta apresenta vários níveis de liberdade e, portanto, de nobreza. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência, com fim de manutenção e reprodução da vida. O modelo é o do camponês sobre o arado, o trabalho na terra. É dado também o exemplo do “trabalho de parto” na mulher. Ressalta a passividade dessa forma de atividade humana submissa aos ritmos da natureza, às estações, à intempérie, às forças incontroláveis, dos hormônios, da musculatura autônoma. A condição humana do labor é a vida. O produto desse esforço é vida e, portanto, perecível, embora dele dependa a vida de quem trabalha, e por isso, não é um trabalho livre. Por outro lado, o trabalho propriamente dito que corresponde à palavra grega poiesis significa fazer, fabricação, criação de um produto por técnica ou arte, e corresponde ao artificialismo da existência humana. Poiesis é a obra da mão humana e dos instrumentos que a imitam. O exemplo é o do escultor; por seu resultado concreto, o fazer do artista adquire a qualidade da permanência e se torna presença no mundo, para além da vida do seu produtor. Quando muitos anos após a morte do escultor alguém encontrar no fundo de um esconderijo a estátua que ele fez, esse alguém saberá da existência de um homem naquele lugar e naquele 1 Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das mais destacadas cientistas políticas e filósofas do século XX. Tendo nascido na Alemanha em família de origem judia, durante o tempo do nazismo precisou exilar-se, e em 1951 assumiu a nacionalidade norte-americana. tempo. Os objetos fruto da fabricação ou poiesis criam o mundo humano. A mundanidade é a condição humana do trabalho. Por sua vez, a ação ou práxis se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas nem da matéria. Não apresenta um produto concreto, portanto, não possui a permanência da fabricação. É o domínio da vida ativa em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra do homem. É o âmbito da vida política, onde se discutem os interesses, as paixões, as questões muito concretas que se referem ao convívio entre concidadãos, à resolução dos conflitos e à conquista da harmonia. Corresponde à condição humana da pluralidade e realiza a liberdade. Arendt também analisa a marca da cultura judaica e cristã na concepção ocidental da condição humana, em cujos entrelaçamentos se manteve a primazia da teoria sobre a atividade e o menosprezo do trabalho manual. Na tradição judaica, o trabalho se apresentava como castigo, meio de expiação do pecado original, labuta penosa à qual o homem foi condenado. Nos primeiros tempos do cristianismo o trabalho continuou a ser visto como punição, embora servindo à saúde do corpo e da alma. Nos mosteiros medievais, devia ser alternado com a oração e limitar-se à satisfação das necessidades básicas da comunidade. Hannah Arendt criticou a forma de Marx encarar o trabalho, basicamente pelo fato de a análise marxista priorizar a produção em detrimento da ação, o econômico antes do político, o que reforçaria a tendência do mundo industrial à transformação de toda atividade em labor e à diluição do político no social. A tensão permanente em toda a reflexão sobre o trabalho, que ainda aparece na polarização entre as interpretações de Marx e Arendt, é a da valoração relativa do trabalho e do ócio como ocasião de realização do homem, criador e livre. II. Fenomenologia e ética do trabalho e do cuidado na reflexão de Buytendijk Em sua obra A Mulher – seus modos de ser, de parecer e de existir, F.J.J. Buytendijk2 defende a tese da existência de uma diferenciação básica encontrável na atividade humana, das dinâmicas de adaptação e de expansão, que estariam em relação com os gêneros humanos, ou seja, que em geral se acham distribuídas entre homem e mulher, masculino e feminino. Debitário da fenomenologia hermenêutica, sobretudo de certa conceituação desenvolvida na obra Ser e 2 Frederik Jacobus Johannes Buytendijk, autor holandês que viveu de 1887 a 1974, e é considerado um dos fundadores da antropologia psicológica, com influência da fenomenologia. tempo por Martin Heidegger, o livro A mulher3 nos convida para um caminho de reflexão sobre o fenômeno do trabalho, que o coloca diante do modo de ser que se apresenta como o do cuidado. Segundo o autor, a existência concreta mostra uma oposição fundamental da dinâmica dos gêneros humanos, diferença essa que se mostra desde a infância e aparece nos jogos das crianças, quando uma dinâmica de adaptação se expressa nos brinquedos mais comuns entre as meninas, e uma dinâmica de expansão agressiva se liga aos jogos de meninos. Nos adultos, a oposição dos sexos manifesta-se na diferença de dois atos que distinguimos provisoriamente como trabalho e cuidado. O trabalho supõe uma ação de forma intencional, em que a consciência se fixa sobre um objetivo, claramente representado e independente da ação. O mundo dado é compreendido como um sistema de meios em vista de um fim, e o trabalho é dirigido para um resultado final, fora de si. Os valores tornam-se relativos diante do que o trabalhador denomina utilidade: segundo o qual distingue o insignificante, o obstáculo, o material adequado, o instrumento, ou o meio desfavorável, mas inevitável, que seu trabalho impõe. O mundo do trabalho é um mundo de obstáculos. Forma uma existência em que se sucedem tensão e repouso, e em que esta mesma sucessão constitui uma existência sólida - de quereres, poderes e deveres, de coragem e de êxito. Uma lógica interna requer que o trabalho reduza a existência à objetividade, à positividade, ao conhecimento empírico-racional – mas também à solidão, pois destrói a relação intersubjetiva entendida como simpatia ou amor. E assim, o trabalho tende sempre a produzir uma transformação, a qual só obtém pela dominação. Em sentido literal, o trabalho é, pois, um fazer, mesmo se nada produz (se, por exemplo, se limita a quebrar). Por sua vez, a estrutura do cuidado opõe-se à do trabalho. No cuidado – que se liga à palavra latina cura -, exprime-se uma consciência penetrada da presença concreta dos valores: a existência sob o modo do nós e da coexistência com o outro, tende a descobrir esses valores - a conservá-los, suscitá-los, acrescentá-los. O cuidado como tal não está orientado para um fim; fixa-se sobre o objeto do cuidado. Este objeto está no coração das atividades do cuidado. O mundo do cuidado é o dos valores reais e possíveis, suscitado pelo engajamento da pessoa que tem preocupação e cuida. A existência se torna submissa, atenta, obediente, desinteressada. Não consiste no “poder”, no “dever”, no “querer”, mas na “coexistência” e no “respeito”: é submissa, obediente e doce. O cuidado é uma maneira de ficar perto das coisas, 3 Acaba de ser publicada uma tradução brasileira desta obra pela Coleção Fepraxis, coordenada por Avelino da Rosa Oliveira, na Universidade Federal de Pelotas – RS; tradução de Teófilo Galvão e revisão de Osmar Schaefer, com a qual tive ocasião de colaborar. adaptando-se a elas, inserindo-se nelas, submetendo-se a elas. Não existe somente permanência no interior das coisas, mas dinâmica de adaptação, que permite conhecer o valor real e possível dos objetos: o cuidado experimenta este conhecimento como participação, coexistência com o outro. Só pode efetivar-se no encontro, e é tanto mais autêntico quanto mais o encontro for ele mesmo. O cuidado autêntico coloca necessariamente em presença, sob o modo de nós, aquele que cuida e aquele que se cuida: apelo do coração ao coração, que nada tem a ver com sentimentalismo, recurso real à liberdade e, portanto, à realização do ser humano. O trabalho está na origem de certa ética e de certa sensibilidade. Trabalhar não é somente um modo particular de agir, é uma conduta normativa pela qual a existência se dá uma estrutura moral. É pela noção do dever que o mundo masculino se constitui em sua estrutura ética, em torno das noções de comando e obediência, de potência e impotência. As ações de comandar e obedecer são como que exemplares e marcam a história humana que, por isso, apresenta uma característica viril. De acordo com a dinâmica masculina, a sociedade se constitui segundo as normas éticas do comando e da obediência. Quando se encontra a virilidade expressa em uma existência humana (que pode ser igualmente a existência concreta de uma mulher), o viril aparece na ética associando o dever, a obediência, a coragem, o esforço, a vontade, encarnados na realização de um objetivo. De outro lado, a natureza do cuidado está na origem de um mundo e de uma ética muito diferente. Nascido da dinâmica da adaptação e alimentado por ela, o cuidado encontra o mundo como valor e fonte de valor e, portanto, como coisa incompleta em relação a suas próprias possibilidades. Debruça-se sobre as coisas que reclamam seus cuidados. O mundo do cuidado é o do valor. Seu ato está penetrado da ética e da sensibilidade em geral consideradas femininas. Seu objeto é, antes de tudo, o humano, o que se pensa como humano. Aquele que cuida não se limita a estar perto das coisas, esperando e prevendo: tem fé e confiança de que o cuidado e a coexistência farão surgir valores que, de outro modo, ficariam ocultos. A existência feminina, graças ao cuidado, dá testemunho de uma exigência moral feita de amor desinteressado, de sacrifício, de abandono. O ato feminino, mesmo se não permanece junto das coisas, visa sempre a um mundo de valor, cujo valor aumenta pelo cuidado. Na verdade, em última instância, o cuidado só é pleno se tomar o ser humano como objeto – em particular, a criança. Assim, em conclusão, conhecendo o laço que une o cuidado e o amor desinteressado, e conhecendo o objeto do cuidado, pode-se dizer que o trabalho se situa geralmente na ética do dever e da obediência, e o cuidado, na ética do amor e do sacrifício. É claro, Buytendijk reconhece que não há como negar que o próprio trabalho, a atividade dentro da dinâmica masculina da expansão agressiva, também traz consigo alguns elementos de cuidado. Por mais longe que o trabalho fixe seu objetivo, jamais pode atingi-lo sem estar atento ao dado imediato, nem que seja por um instante (ex.: o cuidado do trabalhador com os utensílios). E observando o outro lado da questão, outra nuance precisa ser destacada, pois se percebe também a existência de um pseudo-cuidado. Muitas vezes se impõe à mulher certa forma de trabalho que se enfeita com o nome de cuidado. Tal pode ser o destino da enfermeira, por exemplo, assim como o de outras atividades associadas ao cuidado, como o da educadora na escola maternal. É incontestável que o cuidado e a solicitude estão presentes nestas atividades, porém, muitas vezes a situação social se organiza de tal modo que aí se encontra apenas um trabalho fatigante e descontínuo, cujo sentido só com dificuldade é reconstruído. III. Novas possibilidades de tempo livre e lazer Não se obteria uma visão completa da problemática do trabalho nos nossos dias, se ele não fosse contextualizado numa sociedade “pós-industrial” – chame-se de “sociedade de conhecimento” ou de “sociedade de comunicação” ou de “sociedade de espetáculo” – com todas as características do nosso tempo, quando ao poder de automação da produção industrial se juntou o alto desenvolvimento tecnológico das comunicações. A “balança dos valores” do ócio e do trabalho que, tal como era na antiguidade, foi invertida entre os modernos, encontra um ponto de questionamento interessante no manifesto de Paul Lafargue _ O direito à preguiça, no qual, de acordo com as tradições da filosofia e do humanismo, o autor faz a crítica da ideologia do trabalho predominante na sociedade burguesa mesmo entre os trabalhadores, instigando à luta pela diminuição da jornada de trabalho. De modo muito próprio, Lafargue chamou a atenção para o fato de haver a ideologia do trabalho conquistado a classe operária, quando se impôs como ética geral predominante na sociedade moderna, segundo os interesses do sistema de produção. Quando a automação toma formas nunca antes imaginadas, com a revolução cibernética e as novas tecnologias de comunicação, impõem-se hoje perguntas que a história do conceito de trabalho não responde, e estão dadas como tarefas para o futuro, ante os desafios do mundo do trabalho pós-industrial: Será o trabalho o único modo justo e digno de prover à sobrevivência? Será o modo principal de dar sentido à vida? Será o único ou o melhor meio de alguém se fazer reconhecer como cidadão e como pessoa de bem? Ou poderia ser mais valorizada a dedicação à família e aos amigos, a criatividade no âmbito do convívio e do lazer, a arte pela arte, o esporte, a participação em atividades comunitárias, os serviços voluntários, a política, a vida do espírito? Por outro lado, também cabe indagar: A era do trabalho estará no fim? Assim se pode pensar ao ver crescer cada vez mais o “tempo livre”, entendido como tempo livre do trabalho, que pode ser utilizado para apenas repor as forças materiais para a volta ao trabalho, ou ser entregue ao dolce far niente, o que já é algo mais, mas que também, além disso, pode transformar-se em tempo de lazer, esportivo ou artístico e cultural, ou ser posto a serviço de atividades criativas, se não propriamente produtivas, isto é, dedicar-se ao pensamento, à arte, ao estudo, como indicado na expressão “ócio criativo”; finalmente, pode ser dado à ação comunitária ou política. A realidade, por outro lado, ainda parece negar esse anúncio do novo tempo livre, da libertação do excesso de esforço na produção, uma vez que se acumulam os ônus psicológicos e ainda se evidenciam novos tipos de sacrifícios físicos também ligados ao trabalho predominantemente intelectual ou imaterial. Por isso, algumas interpretações do momento repercutem como antecipações extemporâneas e parecem afins com as utopias, pois não parecem descrever a realidade efetiva e o que anunciam ainda não se tornou realidade em grande parte do mundo atual. A visão que pode parecer utópica, do ócio criativo ou do lazer cultural que trabalha no sentido do desenvolvimento humano, situa-se, todavia, confortavelmente no plano da possibilidade, naquela franja onde se elabora o real possível, onde urdem sua teia as utopias entendidas em seu sentido positivo, tal qual se pode encontrar na concepção de utopia concreta exposta na obra de Ernst Bloch. Esse sonho do mundo da liberdade, da superação da exploração do trabalho, onde o trabalho vivo se liberta e o trabalhador pode tornar-se ao mesmo tempo camponês, político e filósofo, se não é inteiramente realidade ou apresenta-se como possibilidade restrita apenas a uma parte privilegiada da humanidade, tem sido a inspiração básica da monumental construção crítica do capitalismo, de Marx e do marxismo até a chamada teoria crítica ligada à Escola de Frankfurt. Nestes tempos de mudança do capitalismo tardio, quando a alta automação provocada pelas sofisticadas tecnologias exige menos tempo e menos esforço físico para a produção necessária, é preciso revisar o que as reflexões críticas nos ensinam sobre esse outro lado da questão do valor do trabalho e da vita activa na modernidade, quando se inverteu a valoração tradicional antiga e medieval, na qual o ócio ocupava a melhor parte, como assinalava Arendt em seus estudos sobre a evolução da atividade produtiva na perspectiva da condição humana. A maioria dos homens e mulheres de hoje, no entanto, rejeitam e temem o horizonte de um mundo em que diminui a necessidade de trabalho, porque isso significa diminuição do emprego e, embora se vislumbre a possibilidade de superação do esforço na produção industrial, sente-se a ameaça do desemprego, conseqüentemente, a sombra da dependência e, ainda mais, da falta de recursos para a sobrevivência digna. Nesta situação complexa, os operários reclamam por trabalho, que hoje é visto, ainda pela maioria das pessoas, nas mais diversas situações sociais, como centro e razão do sentido da vida e da coesão social. Tal desencontro entre a condição objetiva e o sonho mais antigo apresenta-se como um desafio ao pensamento dos humanistas, tanto para a crítica da ideologia do trabalho como para a exploração imaginária das possibilidades abertas pelo novo tempo livre, facilitado pela invenção tecnológica. Ao mesmo tempo, percebe-se que o âmbito do lazer, na sociedade globalizada do capitalismo tardio, transformou-se em indústria, de um lado, fonte de trabalho, e de outro, de alienação ideológica e, assim, as respostas da moral e do humanismo precisam ser repensadas em relação com o lazer. Desse modo, os contraditórios problemas trazidos pelas novas situações provocam muito especialmente a filosofia prática e a reflexão sobre a educação, que talvez lhes possam oferecer respostas recebidas de sua tradição, mas deverão inventar novas respostas, com os recursos da criatividade própria da experiência da humanidade. Sem dúvida, em alguns setores especiais dos serviços o trabalho não diminui, como é o caso dos serviços ligados à educação e à saúde, quando se transforma a pirâmide etária, aumenta a expectativa de vida e amplia-se o acesso aos serviços de prevenção e de terapia, exigindo novas formas de cuidado, não só às crianças e aos enfermos, mas aos idosos em maior número, exigindo-se novas formas de preparação profissional. Nestas novas circunstâncias desafiadoras, entretanto, somente quando se reconhecer que o homem trabalhador é mais do que seu trabalho será possível construir um novo conceito de criatividade humana que habilite a dar respostas para as novas situações desse tempo em que o fantasma do desemprego assombra a juventude. Referências e indicações bibliográficas Albornoz, S. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense, 2008 (1986). Albornoz, S. “Tempo livre e humanização”. São Paulo, USP, Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2010, v.13, n.1, pp. 89-101. Arendt, H. A condição humana. São Paulo /Rio de Janeiro: Edusp /Forense, 1981. Bloch, E. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto/EdPUCRJ, 2005/2006. Boff, L. Saber cuidar. Petrópolis: Vozes, 2001. Buytendijk, F.J.J. A mulher - seus modos de ser, de aparecer, de existir. Pelotas: Col. FEPraxis /UFPel, 2010. De Masi, D. O ócio criativo. Sextante: Rio de Janeiro, 2000. Fromm, E. O conceito marxista do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Huizinga, J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 1999. Lafargue, P. O direito à preguiça. São Paulo: EdUnesp/Hucitec, 2000. Marcuse, H. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. Ritter, J. Historisches Wörterbuch der Philosophie. Darmstadt:WBG, 1971. Vernant, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. Weber, M. A ética protestante e o“espírito”do capitalismo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006.