Junho | 2012 O que está acontecendo com a indústria brasileira? A evolução do setor industrial tem sido um dos temas centrais do debate macroeconômico brasileiro nos últimos anos. Os dados do IBGE mostram que a produção do setor manufatureiro no 1º trimestre de 2012 estava 1,1% abaixo do patamar registrado no mesmo período de 2010. Essa queda é notável porque contrasta com o crescimento de 5% do PIB na mesma comparação, e também com a pujança do mercado de trabalho, onde se vê um recuo da taxa de desemprego dessazonalizada de 7,2% para 5,6% no mesmo período, levando-a para os menores níveis da série histórica. Deve ficar claro, portanto, que o mau desempenho na indústria nos últimos dois anos deve ser explicado por fatores específicos que afetaram o setor e fizeram com que ele entrasse em dissonância com o resto da economia. Nosso objetivo neste comentário é mapear algumas das forças que podem estar por trás deste fenômeno. A primeira coisa a se observar é que a debilidade do setor industrial não parece refletir predominantemente uma mudança na composição doméstica em favor de serviços ou de bens primários. De fato, a absorção doméstica de bens manufaturados tem crescido de forma saudável. Observe-se, por exemplo, que nos 5 anos terminados em 2011 o PIB cresceu em média a uma taxa anual de 4,2%, e nesse período a absorção de bens manufaturados como proporção do PIB elevou-se de 15% para 16,7% do PIB. Ou seja, a mudança na composição da demanda doméstica nesse período foi a favor, e não contra, os produtos manufaturados. Ocorre, porém, que parte expressiva da expansão da demanda por esses bens foi atendida através do aumento das importações líquidas. De acordo com nossas próprias estimativas, a partir dos dados brutos da Funcex, o déficit do setor manufatureiro saltou de negligíveis US$ 723 milhões em 2006 para nada menos que US$ 106 bilhões em 2011. Esse déficit equivale a expressivos 25,6% da absorção de bens manufaturados no ano passado, ante apenas 0,4% em 2006. Parece claro, portanto, que o setor industrial brasileiro perdeu competitividade nos últimos anos. Isto se refletiu em um crescimento modesto, de 23%, das exportações do setor entre 2006 e 2011, mas, sobretudo, em uma explosão das importações, que cresceram 162% no mesmo período. Sob um regime de câmbio flutuante, seria de se esperar que um problema tão sério de competitividade, traduzido em déficits crescentes, levasse a uma depreciação da moeda. Ocorre, porém, que essa deterioração acentuada restringiu-se ao setor manufatureiro. De fato, se considerarmos os demais itens da balança comercial, ou seja, os produtos primários, o superávit saltou de US$ 47,2 bilhões em 2006 para US$ 135,8 bilhões no ano passado. Somando-se tudo, o saldo comercial agregado reduziu-se apenas moderadamente de US$ 46,5 bilhões em 2006 para US$ 29,8 bilhões no ano passado. A razão para as trajetórias opostas dos saldos de manufaturados e de produtos primários é clara: os preços internacionais de matérias primas elevaram-se fortemente nos últimos anos. Considerando-se o índice de preços calculado pela Funcex para as exportações brasileiras de produtos básicos, tem-se uma alta de 128% na média de 2011 ante a média de 2006. A elevação dos preços de commodities deveria fazer com que, para um dado nível de câmbio, houvesse uma elevação expressiva do superávit comercial brasileiro. Contudo, essa elevação do superávit tenderia a levar a um desequilíbrio no balanço de pagamentos e, então, as forças de mercado conduzem a uma valorização da moeda. Mesmo com esta valorização, a elevação de preço assegura que o Brasil siga sendo muito competitivo na produção desses produtos, e por isto o superávit na conta de produtos primários se ampliou expressivamente nos últimos anos. O setor manufatureiro, contudo, não se beneficiou de elevação semelhante. Observemos, por exemplo, que o componente de bens acabados (excetuando-se energia e alimentos) do índice de preços ao produtor (PPI) nos Estados Unidos acumulou alta de apenas 12,1% entre 2006 e 2011. Do ponto de vista dos produtores brasileiros de bens industriais, portanto, a valorização da taxa de câmbio representou uma forte redução de rentabilidade. Isto fica claro quando consideramos que os salários médios pagos no Brasil, quando convertidos em dólares, acumulam alta de 99% quando se comparam os níveis médios de 2011 e de 2006. Considerando a modesta elevação do PPI de bens acabados que mencionamos antes, é evidente que o setor industrial brasileiro tornou-se muito menos competitivo. Note-se, portanto, que a dinâmica da economia mundial nos últimos anos produziu uma forte mudança nos preços relativos a favor de bens primários e contra os produtos industrializados. Em uma economia de mercado, mudanças de preços conduzem à realocação dos fatores produtivos. Não é de se surpreender, portanto, que a participação do setor manufatureiro no PIB tenha se reduzido nos últimos anos, ao mesmo tempo em que se expandia a parcela dos setores agropecuário e extrativo mineral. Em adição a esse choque exógeno, porém, acreditamos que as dificuldades crescentes do setor manufatureiro nos últimos anos tenham sido magnificadas por escolhas internas de política econômica. O Brasil historicamente tem sido uma economia com baixos níveis de poupança doméstica, e essa tendência se acentuou nos últimos anos: em 2011, a poupança chegou a 17,2% do PIB, ante 18,8% em 2008. A redução da poupança doméstica faz com que mesmo a sustentação de níveis modestos de investimento requeira a absorção de poupança externa. Ou seja, o Brasil tende a absorver mais bens e serviços do que produz, o que equivale à geração de déficits em sua conta corrente. A questão é que, como o Brasil é muito competitivo na produção de bens primários, a absorção de poupança externa tende a se dar pela importação de bens manufaturados. Junho | 2012 Diante da percepção de que o setor industrial brasileiro tem sofrido com o crescimento das importações, tem crescido as pressões para conter a valorização do real. Nesse sentido, o governo brasileiro implementou nos últimos anos diversas medidas que buscavam conter os fluxos de capitais. Afora o fato de a evidência empírica mostrar que tais medidas tendem a ter eficácia limitada e temporária, notamos que, caso elas tivessem êxito em conter os fluxos de capital, as consequências para o Brasil seriam indesejáveis. Como dissemos antes, mesmo a sustentação de níveis modestos de investimento requer a absorção de volumes consideráveis de poupança externa. Nesse sentido, o eventual êxito em reduzir os fluxos de capital para o Brasil implicaria uma redução das nossas já baixas taxas de investimento, o que nos condenaria a um crescimento econômico ainda menor. Seria mais promissor que o Brasil perseguisse políticas que pudessem estimular a ampliação da poupança doméstica. Isto poderia conduzir o país a um déficit menor na conta corrente e a um câmbio real de equilíbrio menos valorizado. Ao mesmo tempo, a elevação da poupança poderia abrir espaço para a ampliação do investimento, o que também poderia gerar um aumento da demanda por bens manufaturados. Observe-se, adicionalmente, que a competitividade da economia brasileira não depende apenas da taxa de câmbio. O setor industrial sofre não apenas com a elevada carga de impostos, mas com a complexidade incomparável do nosso sistema tributário. Essa questão se insere no contexto mais amplo das dificuldades de se empreender e desenvolver negócios no Brasil. O Banco Mundial produz anualmente um estudo sobre esse tema intitulado Doing Business. A edição 2012 desse estudo, conduzido em 183 países, não apenas coloca o Brasil na inglória 126ª posição do ranking, como nos mostra caindo seis posições em relação ao ano anterior. Por último, mas não menos importante, a competitividade no mundo contemporâneo depende crucialmente do avanço na qualidade da educação. À medida que, especialmente no setor industrial, se disseminaram novas tecnologias que substituem o trabalho pouco qualificado, a importância relativa da acumulação de capital humano cresceu muito nas últimas décadas. A despeito da universalização do ensino básico nos anos 90, o Brasil ainda está dramaticamente atrasado em relação a países com nível de renda similar no que tange à qualidade da educação. Em suma, os dados mostram de forma clara que uma parcela crescente da demanda doméstica por bens manufaturados foi atendida nos últimos anos por importações. Essa tendência reflete, em parte, uma expressiva mudança nos preços relativos no mundo nos últimos anos em favor de bens primários. Adicionalmente, porém, o setor industrial sofre com as políticas domésticas que estimulam o consumo e acentuam a tendência de absorção de poupança externa, sob a forma de importação de bens manufaturados. Os esforços de contenção de fluxos de capitais, caso tivessem eficácia, tenderiam a piorar as perspectivas de crescimento no médio e longo prazos. O foco das discussões sobre crescimento econômico no Brasil, seja no setor industrial ou fora dele, precisa deslocar-se para questões relacionadas à expansão da oferta agregada: ampliação da poupança e do investimento e melhoria da educação e do ambiente de negócios. Alexandre Bassoli Economista-chefe do Opportunity e Mestre em Economia pela USP.