Artigo de Revisão / Review Articie
Reação inflamatória periapical: repercussões sistêmicas?
Apical periodontitis: systemic repercussions ?
Francisco Wanderley Garcia de Paula e Silva1, Alexandra Mussolino de Queiroz2, Kranya Victória Díaz-Serrano2, Léa Assed Bezerra da Silva3
Izabel Yoko Ito 4
Cirurgião-dentista da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Professora Doutora da Disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3
Professora Titular da Disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
4
Professora Titular da Disciplina de Microbiologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
1
2
DESCRITORES
RESUMO
Lesão periapical; Alt erações sist êmicas;
Proteína C-reativa.
A correlação entre as reações inflamatórias periapicais e a saúde or gânica ainda é um assunt o polêmico no meio médico e odontológico. Diversos estudos têm aventado a possibilidade de as reações
inflamatórias na r egião periapical ocasionar em alt erações car diovasculares, doenças r espiratórias,
diabetes, osteoporose, uveíte, abscesso intracraniano, bacteriospermia e subf ertilidade, fascite ne crosante, mediastinite e endocardite bacteriana pela disseminação por difusão, planos anatômicos,
bactérias via corrente sanguínea, moléculas advindas de micr organismos e mediadores da resposta
imune ou inflamatória. Entretanto, uma vez que esses estudos se baseiam em r elatos de casos, pesquisas futuras se fazem necessárias para estabelecer os reais mecanismos de disseminação e em que
intensidade os microrganismos presentes no biofilme apical, a resposta imuno-inflamatória periapical e as interações antígeno anticorpo são capazes de levar a reações sistêmicas.
Keywords:
Abstract
apical periodontitis, systemic disturbances
The relationship between apical periodontitis and general health is a controversial subject in medical and
dental field. Several papers have suggested that chronic periapical inflammation may lead to cardiovascular events, respiratory diseases, diabetes, osteoporosis, uveitis, intracranial abscess, mediastinitis, and
bacterial endocarditis. These alter ations can occur due to dissemination thr oughout anatomic planes ,
blood stream bacterial spread, or due to host response against products and by-products from microorganisms. However these pieces of evidence are based on case reports and determination of the mechanisms
by which bacteria present in the apical biofilm can reach other parts of the body and elicit systemic disturbances should shed light on this theory.
Endereço para correspondência
Dr. Francisco Wanderley Garcia de Paula e Silva
Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
Avenida do Café, s/n - Monte Alegre
Ribeirão Preto - SP
CEP 14040-904
Telefone: (16) 3602-0278
e-mail: [email protected]
INTRODUÇÃO
A possibilidade de as doenças bucais int erferirem na
saúde geral não é um assunto recente, uma vez que esta relação foi inicialmente relatada pelos assírios, no século VII a.C.
Entretanto, pouc o se fala va sobr e esta c orrelação, at é que ,
no século X VIII, Benjamin Rush obser vou que pacient es com
artrite poderiam ser curados após a r emoção de seus dent es
“infectados”.1
Posteriormente, um pesquisador chamado M iller, em
1890, relacionou a presença de microrganismos às patologias
da polpa dental . A par tir daí, os pr ofissionais da ár ea médica
passaram a mostrar grande interesse sobre os efeitos das alterações pulpares na saúde geral e, em 1900, Willian Hunter pro-
pôs a teoria de que os microrganismos presentes na cavidade
bucal poderiam se disseminar por t odo organismo, levando a
alterações sistêmicas, como a ar trite e a úlc era gástrica. Esse
período, compreendido entre o final do século XIX e início do
século XX, foi denominado “Era da Infecção Focal”.2
Segundo Newman, 3 a inf ecção f ocal pode se disseminar a partir da cavidade bucal de focos abertos e fechados. Os
focos aber tos incluem lesões de cárie , bolsas periodontais e
alvéolos pós-extração. Os focos fechados compreendem as infecções pulpares e lesões periapicais.
Com r elação aos f ocos f echados, as lesões periapicais
resultam de uma r eação inflamatória de longa duração , em
resposta à irritação microbiana advinda do canal radicular em
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dentes portadores de necrose pulpar.4 Dependendo da intensidade e duração do evento iniciador, a lesão inflamatória pulpar e periapical podem se desen volver de maneira crônica ou
aguda.5 Embora a resposta imune local tenha como objetivo a
prevenção contra a invasão microbiana, por outro lado, resulta
em dano t ecidual.6 Div ersos fat ores t êm sido r elacionados à
inflamação periapical e estimulação da reabsorção óssea, dentre eles, destacam-se os c omponentes bacterianos, principalmente o LPS, os mediador es de def esa do hospedeir o, como
citocinas (IL -1, IL -1β, TNF-, TNF-β e IL -6), derivados do ácido
aracdônico (pr ostaglandinas e leuc otrienos) e os c omplexos
antígeno-anticorpo.5,7
Entretanto, essas reações inflamatórias não estão r estritas à região periapical, uma vez que os microrganismos e seus
subprodutos e os mediadores da inflamação produzidos localmente podem se disseminar via corrente sanguínea, atingindo
diversos t ecidos do or ganismo5. Algumas alt erações sist êmicas t êm sido r elacionadas à pr esença de lesões periapicais ,
como uv eíte, absc esso intracraniano , infar to c erebral, bac teriospermia e subfertilidade, fascite necrosante, mediastinite e
endocardite bacteriana2.
O objetivo deste trabalho é o de descrever alterações
sistêmicas que têm sido relacionadas à reação inflamatória periapical e seus prováveis mecanismos de disseminação.
REVISÃO DA LITERATURA
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A disseminação dos micr organismos e seus pr odutos
pode ocorrer pela penetração dir eta em tecidos mais profundos, através dos planos fasciais, ossos, vasos sanguíneos, linfáticos, ner vos ou pela super fície de glândulas salivar es. A disseminação das reações inflamatórias bucais pode se dar pela
difusão de microrganismos bucais ou a par tir da produção de
mediadores pelo hospedeir o que podem iniciar ou mant er
eventos inflamatórios em tecidos distantes.8
Rams e Slots9 propuseram quatro mecanismos de disseminação da inf ecção bucal: 1) a disseminação c omo resultado
de uma bac teriemia transit ória, c omo na Endocar dite I nfecciosa, quando as bactérias se disseminam por via sanguínea e
infectam o endocárdio; 2) a circulação de toxinas no sangue; 3)
circulação de c omplexos antígeno -anticorpos; (4) disseminação da infecção bucal através dos planos anatômicos.
Dessa forma, a infecção de origem bucal pode ating ir a
região da cabeça e pesc oço, sist ema car diovascular, sist ema
respiratório, sist ema gastr ointestinal e levar à oc orrência de
parto pr ematuro de bebês c om baix o peso . Alguns estudos
recentes têm indicado existir associação entre doenças bucais,
principalmente doenças periodontais e o aumento na incidência de div ersas alt erações sist êmicas, c omo a at erosclerose e
doenças car diovasculares, doenças r espiratórias, diabet es e
osteoporose10.
A lit eratura, c om r elação à pr esença de inf ecções pe riapicais e manif estações sist êmicas é ex tremamente escassa, existindo apenas r elatos de casos c om r elação à possív el
disseminação de infecções bucais. Alguns estudos têm sido
realizados com o objetivo de estabelecer uma relação entre a
presença de lesões periapicais e alt erações sistêmicas, porém
esta r elação ainda não está bem estabelecida, uma v ez que
outras variáveis da saúde bucal podem ex ercer influência na
saúde geral da população em estudo11.
Investigando uma associação entr e isquemia c erebral
aguda e cr ônica e inf ecções r ecorrentes em um estudo do
tipo caso -controle, um g rupo de pesquisador es da Univ ersidade de Heidelber g ( Alemanha) sugeriu que os indivíduos
do grupo caso apr esentavam lesões periapicais mais sev eras,
quando c omparados ao c ontrole12. S onoda et al .13 r elataram
um caso de uma mulher japonesa, de 45 anos de idade , que
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apresentava urticária crônica não respondendo à terapia anti-histamínica, mas que apresentou remissão dos sintomas após
o tratament o endod ôntico de dent es por tadores de lesões
periapicais.
Márton et al.14 avaliaram 36 pacientes adultos com lesões
periapicais visíveis radiograficamente, com aproximadamente
3mm de diâmetro com relação à concentração plasmática de
mediadores inflamatórios a ntes e a pós t ratamento d e c anal
radicular e apicectomia. Foram efetuadas dosagens da pr oteína C-reativa (CRP) e outras pr oteínas de fase aguda. Os aut ores observaram que a c oncentração plasmática de proteínas
de fase aguda diminuír am sig nificativamente 3 meses após
o tratament o. Os valor es de CRP antes do tratament o (6,6 ±
4,2 mg/L) foram semelhantes aos valores de CRP encontrados
em pacientes com doença periodontal e c onsiderados altos o
suficiente como um fat or de risc o para infar to do miocár dio,
conforme definido pela American Heart Association.15
Difusão das infecções bucais por planos anatômicos
As infecções bucais, incluindo lesões periapicais, podem
se disseminar por continuidade para tecidos e órgãos adjacentes16. O ex sudato purulent o pode penetrar na muc osa bucal
e pele , r esultando em f ormação de fístula. S e a dr enagem
ocorrer em direção aos seios maxilares, o paciente pode apresentar um quadro de sinusite. A progressão da infecção pode
se t ornar mais generalizada en volvendo os seios paranasais ,
ossos da cabeça, olhos , espaço faríngeo e mediastino . Dessa
maneira, podem se desen volver al terações sev eras, at é mesmo doenças que podem levar à mor te, como abscesso orofacial, celulite, angina de Ludwig, mediastinite, trombose do seio
cavernoso e osteomielite aguda. Essas alterações requerem intervenção cirúrgica imediata e antibioticoterapia.16,17
A alt eração mais c omum é a ang ina de L udwig, uma
celulite difusa grave, que afeta os espaços submandibular, sublingual e submentoniano, bilateralmente, produzindo tumefação17. Acontece em função de inf ecções periapicais, principalmente do segundo e terceiro molares inferiores (70-80%).18
Como agentes causadores, têm sido relatados microrganismos
anaeróbios semelhantes àqueles presentes nas lesões periapicais. É uma infecção potencialmente grave, uma vez que pode
conduzir a um estado de septic emia, ocasionar a obstrução
das vias aéreas superiores e edema de glote17.
Difusão de microrganismos bucais via corrente sanguínea
A bac teriemia é uma c onsequência bem c onhecida de
procedimentos dentais in vasivos, estando r elacionada à duração, extensão e agressividade da intervenção bem como ao
número de microrganismos presentes na região em que o procedimento é realizado19.
Bactérias isoladas do sangue de pacient es após tratamento endodôntico em dentes com lesão periapical têm sido
relacionadas como originárias do canal radicular20,21. Debelian
et al.20 observaram a presença de bacteriemia em 31 a 54% dos
pacientes submetidos a tratament o e ndodôntico. O s m icrorganismos isolados no sangue desses indivíduos apresentavam
características fenotípicas e genotípicas, idênticas aos micr organismos presentes no canal radicular . Savarrio et al.21 avaliaram a ocorrência de bacteriemia após tratamento de canais
radiculares em 30 pacientes. Foram coletadas amostras de microrganismos dos canais radiculares e amostras de sangue nos
períodos pré, trans e pós-instrumentação dos canais . Através
da t écnica de cultura micr obiana, f oi det ectada bac teriemia
em 30% dos pacientes que não apresentavam microrganismos
na corrente sanguínea no pré-operatório, e, em 23% dos casos,
as mesmas espécies de micr organismos foram detectadas no
canal radicular e na corrente sanguínea.
O exemplo clássico desse tipo de infecção focal é repre-
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sentado pela endocardite bacteriana, uma doença inf ecciosa,
provocada pela instalação de bactérias patogênicas no endocárdio, determinando lesões nas valvas cardíacas19.
Entretanto, é impor tante saber que a c olonização do
endocárdio e destruição t ecidual são complicações que ocorrem em um g rupo de pacient es de risc o. Para pacientes com
história prévia de endocardite, aqueles com válvulas cardíacas
protéticas e em c ertas malf ormações car díacas c ongênitas e
adquiridas, o tratament o c om antibioticoterapia pr eventiva
antes da intervenção é necessário22.
Espécies bac terianas Gram-negativas , incl uindo a P orphyromonas gingivalis, são enc ontradas no biofilme periapical, podem atingir a circulação e infectar os tecidos cardiovasculares. Essas bac térias possuem uma pr oteína de super fície
denominada PAAP (P roteína A ssociada à A gregação Plaque tária), que está en volvida na indução da ag regação plaque tária, levando à f ormação de trombos, aterosclerose, derrame
cerebral, isquemia e infarto do miocárdio1. Demonstrações recentes da habilidade de Porphyromonas gingivalis em invadir
células endoteliais levam a uma nova possível conexão entre a
formação de lesões ateroscleróticas e infecções bacterianas. O
DNA de bac térias envolvidas em alt erações endodônticas f oi
repetidamente encontrado em lesões ateroscleróticas23.
Difusão de moléculas advindas de microrganismos
Dentre estas moléculas, o LPS liberado da parede celular
de bactérias gram-negativas provavelmente é o mais pot ente
e mais estudado dos c omponentes e está en volvido em r eações inflamatórias sistêmicas. O LPS presente no biofilme-placa dentária e no canal radicular pode penetrar na gengiva e na
região periapical em alta c oncentração, sendo capaz de induzir à produção de citocinas, como interferon, IL-1β, IL-6, IL-8 e
TNF-.5,8 O LPS pode ativar neutr ófilos e monócit os/macrófagos, o sistema complemento por uma via alternativa, a cascata
quinase e o sistema hemostático. Os estados inflamatório e coagulante induzidos pelo LPS bem como a disfunção endotelial
podem contribuir para formação de placas ateroscleróticas24.
A disseminação de antígenos a par tir do canal radicular
e da região periapical é capaz de induzir reações imunes sistemicamente. A febre também pode ser elicitada pelo LPS da reação inflamatória crônica, que age como pirógeno, induzindo
à liberação de proteínas (pirógenos endógenos) de monócitos
e macrófagos. O LPS também estimula a liberação de lipídeos,
principalmente a PGE2, a tr omboxana A2 e o fat or de ativação plaquetária, que são mediador es que atuam no sist ema
nervoso c entral, pr omovendo uma elevação na t emperatura
corporal5.
Difusão de mediadores da resposta imune ou inflamatória
As lesões inflamatórias bucais ocasionadas por micr organismos estão r elacionadas à expr essão, produção e liberação de mediador es que amplificam as c onsequências das interações celulares, podendo levar a r eações inflamatórias em
tecidos distantes. A detecção bioquímica de marcadores de inflamação crônica de baixa intensidade tem sido repetidamente relacionada a pacientes com doenças cardiovasculares25,26.
As citocinas produzidas na região periapical em resposta
à presença de microrganismos levam ao recrutamento de neutrófilos, macrófagos e linfócitos T. O TNF-, IL-1 e IL-6 permitem
a maior ligação de lipopr oteínas de baixa densidade (LDL) ao
endotélio e aos músculos lisos, elevando a expressão de genes
para o receptor LDL, induzindo à disfunção endotelial8,27.
Ocorre ainda um aumento na taxa das proteínas de fase
aguda e em alguns fat ores de c oagulação, como o fibrinogênio, que favorece os eventos aterotrombóticos8. O aumento
da proteína C-reativa, como um marcador da inflamação, tem
sido usado para pr edizer o risc o de problemas cardiovascula-
res em indivíduos hipoteticamente saudáveis25,26. A CRP agregada pode participar da acumulação de placas de LDL. A CRP
complexada é capaz de ativar o caminho clássic o do sist ema
complemento e atuar como um pró-inflamatório, induzindo à
produção de mediadores que têm claramente sido relacionados a eventos trombóticos28.
Certas citocinas produzidas localmente como resposta
à ag ressão podem ser carr egadas para sítios mais distant es.
Essas pr oteínas induz em a uma r esposta de fase aguda que
consiste em f ebre, elevação da taxa de sedimentação de eritrócitos e aumento na quantidade de proteínas produzidas
pelos hepat ócitos5. A pr odução de IL -1 e IL -6, localment e,
como uma f onte de cit ocinas capaz de induzir à r esposta de
fase aguda e ativação sist êmica de g ranulócitos f oi r elatada
na polpa humana e em lesões periapicais 29. C oncentrações
plasmáticas aumentadas de pr oteínas de fase aguda f oram
observadas em pacient es com granuloma periapical, e est es
valores f oram s ignificativamente r eduzidos após a apic ectomia e curetagem da lesão5,14.
Entretanto, o c onhecimento s obre a p atofisiologia das
infecções focais é ainda limitado. Os resultados de poucos estudos disponíveis somente sugerem que os micr organismos
e as citocinas produzidas por componentes celulares da lesão
periapical podem estar en volvidos na pat ogenia de inflamações a distância, afetando, assim, a saúde geral do indivíduo.
CONCLUSÃO
Existem algumas evidências de que as reações
inflamatórias periapicais podem levar a alterações sistêmicas.
Porém ainda não é possível afirmar que a lesão periapical,
como fator isolado, seja capaz de ocasionar distúrbios em
outras regiões do organismo.
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Recebido para publicação: 26/01/10
Aceito para publicação: 13/04/10
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