A REMOÇÃO DA DENTINA CARIADA NA PRÁTICA RESTAURADORA – REVISÃO DA LITERATURA CARIES REMOVAL IN OPERATIVE DENTISTRY – A LITERATURE REVIEW Michele Weiss Kleinaa Fábio Herrmann Coelho-de-Souzab Celso Afonso Klein-Júniorc Fabiane Pivad Resumo A abordagem à doença cárie tem sido discutida na literatura. A preocupação quanto à manutenção da vitalidade pulpar e à preservação da estrutura dental desencadearam questionamentos sobre a quantidade e necessidade de remoção do tecido cariado. Assim, o presente trabalho traz uma revisão discutida da literatura, abordando as reais aplicações da remoção incompleta da dentina cariada. A paralisação do processo carioso parece ser uma evidência conseqüente da remoção parcial de cárie seguido do selamento da cavidade. Assim sendo, a remoção incompleta do tecido cariado poderia ter aplicabilidade quando a exposição pulpar estivesse eminente, evitando uma infecção imediata da polpa, caso contrário, em situações ideais, não há benefícios sobre o preparo convencional (remoção completa). Todavia, um maior número de estudos é necessário para comprovar a eficiência desse método em longo prazo. Unitermos: cárie dental, restauração dentária, remoção de dentina cariada Abstract Caries removal approach has been controverted. A conservative view of operative dentistry carried out some questions and discussion about carious dentin removal, specially to know how much carious dentin is really necessary to remove. This study means a literature review about the real carious dentin incomplete removal application and consequences. Carious process stopping looks like a scientific evidence, when associate with incomplete carious dentin removal and cavity preparation filling. The main applicability of the incomplete carious dentin removal could be in cases with high pulpal exposure risk, avoiding bigger pulp infection; in other situations, conventional cavity preparation must be preferred. Another studies are necessary to evaluate long term consequences of the incomplete carious dentin removal. Uniterms: dental caries, dental restoration, carious dentin removal Introdução A cárie dental apresenta um caráter invasivo e destrutivo que pode levar à perda irreparável dos tecidos dentais, e ainda, pelas suas implicações na saúde bucal e geral dos pacientes, fazem dela um problema de saúde pública e um tema de fundamental importância. Na Odontologia, a Dentística é a área do conhecimento que trata da recuperação dos dentes que apresentam a Cirurgiã-dentista – ULBRA Cachoeira do Sul Especialista e Mestre em Dentística - ULBRA Doutor em Dentística – UFPel – e-mail: [email protected] Professor do Departamento de Odontologia Restauradora – UFPel c Especialista e Mestre em Dentística - ULBRA Doutor em Ciências dos Materiais - UFRGS Professor de Dentística – ULBRA Cachoeira do Sul d Especialista em Odontopediatria - PUCRS Mestre em Odontopediatria - ULBRA Professora de Clínica Infantil - ULBRA Cachoeira do Sul b alterações do tipo morfológica, estética ou funcional, incluindo as seqüelas da doença cárie. Todavia, a Odontologia contemporânea prima por uma prática em que se criam condições favoráveis para deter o processo de atividade dessa doença, trabalhando com o mínimo possível de intervenção restauradora (BUSATO et al, 2004). A indicação de intervir não recai sobre todas as lesões de cárie, pois em algumas, o Revista Dentística on line – ano 8, número 18, janeiro / março, 2009. ISSN 1518-4889 - http://www.ufsm.br/dentisticaonline biofilme pode ser controlado através da higiene oral, juntamente com alterações na dieta e uso de flúor, sendo o suficiente para inativar a lesão. Determinada a necessidade restauradora, todo o tecido amolecido e comprometido pela cárie deve ser removido, de acordo com a forma clássica de preparos cavitários (BLACK, 1908; MONDELLI et al, 1985). Porém, a remoção parcial da dentina cariada, seguida do selamento hermético da cavidade, parece ser uma possibilidade para algumas circunstâncias, podendo-se observar uma redução bacteriana importante e alterações qualitativas da dentina remanescente (OLIVEIRA, 1999; MALTZ et al, 2007; THOMPSON et al, 2008). Desta forma, o objetivo do presente trabalho é fazer uma revisão discutida da literatura, que aborde cientificamente as reais aplicações e conseqüências da remoção incompleta da dentina cariada; assim como, trazer algumas definições clínicas sobre o que é realmente necessário fazer com o tecido cariado. Revisão de literatura A Odontologia tem como um dos principais desafios o controle da doença cárie que, ainda hoje, continua sendo um problema de saúde pública (NEVES & SOUZA, 1999). A lesão de cárie é constituída por uma massa amolecida e contaminada que não trás mais sustentação à estrutura dentária e que deve ser removida para, posteriormente, o espaço ser preenchido por um material restaurador. A remoção do tecido cariado é realizada com o uso de brocas de baixa rotação e também com instrumentos manuais. Cuidados especiais devem ser adotados durante a execução de tais métodos para que reações adversas à polpa sejam evitadas (ELIAS et al, 2002; LOSSIO, 1972). Assim sendo, a busca por melhores estratégias para o controle da cárie que leva em consideração a preservação da vitalidade pulpar tem sido constante. A remoção parcial do tecido cariado, seguida do selamento da cavidade, tem surgido como uma alternativa de tratamento, tendo esta, a capacidade de paralisar o processo carioso e, ainda, possibilitar uma possível remineralização do tecido cariado remanescente (OLIVEIRA, 1999; MALTZ et al, 2007). Segundo THYLSTRUP & FEJERSKOV (1995) e THOMPSON et al (2008), a simples remoção da biomassa microbiana cariogênica, a partir da curetagem superficial das lesões e posterior selamento da cavidade tornaria dificultada a obtenção de substratos e por seguinte a sobrevivência dos microorganismos presentes no tecido cariado. E, sobre a remineralização, OLIVEIRA (1999) observou, através do método de subtração de imagens radiográficas, a formação de uma zona radiopaca após o selamento das lesões cariosas com a remoção parcial da dentina amolecida, assim como também pode observar a dureza e o escurecimento da dentina remanescente após um período de 6-7meses, características que, supostamente, indicam uma nova mineralização daquele tecido que havia sido desmineralizado. Lesões restritas ao esmalte ou até à dentina que não impossibilite ao paciente remover ou desorganizar o biofilme podem ser controladas por meio do controle da placa bacteriana, pela regularização da dieta e uso do flúor, não necessitando da restauração como tratamento (OSTROM, 1984). Em contrapartida, se o paciente não conseguir remover ou desorganizar o biofilme e se o processo carioso se estender à dentina e resultar numa cavitação retentiva, houver comprometimento à saúde pulpar pela profundidade da cavidade, a estrutura dentária remanescente estiver comprometida, prejudicando a função ou apresentando riscos de fratura do elemento dental ou havendo prejuízo ao periodonto e afetando a estética, a indicação do tratamento restaurador é imprescindível (ANUSAVICE, 1989; BUSATO et al, 2004). As lesões de cárie em dentina apresentam duas camadas de tecido cariado: uma mais externa, chamada de “lesão dentinária externa”, que se encontra completamente destruída, infectada por bactérias, sem sensibilidade e capacidade de remineralização (FRENCKEN & A remoção da dentina cariada na prática restauradora – Revisão da literatura 16 Revista Dentística on line – ano 8, número 18, janeiro / março, 2009. ISSN 1518-4889 - http://www.ufsm.br/dentisticaonline HOLMAGREN, 2001) e outra mais internamente, chamada de “lesão dentinária interna”, que apresenta menor contaminação, tendo capacidade de captar minerais e sendo considerada como tecido vital, com conteúdo mineral maior e conseqüentemente mais endurecido (FRENCKEN & HOLMAGREN, 2001). A zona infectada, a superficial, apresenta-se clinicamente como uma massa amarelada e amolecida. Já a zona afetada, a profunda, é vista de coloração castanha e menos amolecida (OSTROM, 1984). Morfologicamente a lesão de cárie em dentina pode ser dividida em: Zona de destruição; Zona de desmineralização superficial ou avançada; Zona de invasão bacteriana; Zona de desmineralização profunda, que é provocada por ácidos e enzimas, e precede a invasão bacteriana; e Zona de esclerose dentinária, mais próxima da polpa, zona de reação, que tenta paralisar a lesão, obliterando os túbulos. Durante a intervenção clínica, essas áreas servem de guia, já que a zona mais profunda pode ser remineralizada por ainda não ter sido infectada e o colágeno não ter sido quebrado de forma irreversível (GUEDES-PINTO, 2003). Quanto à microbiologia, sabe-se que a cárie dentária é uma doença decorrente da atividade bacteriana localizada e que as bactérias causadoras não são estranhas à cavidade bucal, sendo uma das espécies mais influentes os Streptococos do grupo mutans que podem estar na placa bacteriana, na saliva e na língua, em aproximadamente 90% dos indivíduos. A cariogenicidade provida dessas bactérias ocorre pela sua capacidade de produzir ácido (acidogenicidade) e de sobreviver em meio ácido (aciduricidade). O pH final do meio de cultura contendo este microorganismo pode variar de 4,36 a 3,89, sendo os mesmos capazes de sobreviver nesse pH. Há também os Streptococos sobrinus que apresentam-se em uma menor prevalência da população, em torno de 20%. Estas são as duas espécies que das sete do grupo Streptococos apresentam associação com a cárie dentária em humanos (GUEDESPINTO, 2003). Alguns estudos mostram, como o de THEILADE et al (1977), que após o selamento de cáries o número de microorganismos diminui bastante. Foram eliminados os Haemophilus e reduzidos os S.sanguis e S.salivarius, porém o número de mutans e Lactobacilos não foi alterado com o selamento. Entretanto, o processo carioso não progride, pois diminui o número de bactérias viáveis e carboidratos insuficientes para que elas acumulem ácido em concentração cariogênica. Também foi observado por GOING et al (1978), a permanência de S.mutans e Lactobacilos após o selamento de cavidades de cárie. E, segundo os autores, ambos os microorganismos, aparentemente, possuem grande capacidade de sobrevivência em locais onde o acesso aos nutrientes é limitado. No entanto, WAMBIER (1998) encontrou redução no número de bactérias, até mesmo dos S.mutans e Lactobacillus presentes na dentina cariada após selamento com ionômero de vidro das cavidades de cárie. Assim, o autor explica que o isolamento do meio bucal, o baixo pH e a ação do flúor liberado pelo material selador foram os motivos pelos quais os S.mutans foi o grupo de bactérias mais afetado. As bactérias remanescentes não trariam o insucesso do tratamento restaurador quando o selamento da cavidade fosse adequado, ou seja, promovesse o total isolamento dos microorganismos para com o meio que lhes proporcionasse nutrientes, provocando a diminuição do seu número, como também impossibilitando o progresso da lesão cariosa, como mostra OLIVEIRA (1999) através do escurecimento da dentina cariada remanescente como também da consistência mais endurecida, mudanças semelhantes às ocorridas em um processo de paralisação da lesão de cárie. BJØRNDAL et al, (1997) e BESIC (1943), também não observaram nenhum caso com progresso da lesão de cárie em seus estudos. Além do mais, com a remoção parcial a permanência seria da camada afetada, a qual é de menor contaminação. Portanto, há hipóteses de que o processo de cárie não progride ou é muito lento quando as bactérias são isoladas no A remoção da dentina cariada na prática restauradora – Revisão da literatura 17 Revista Dentística on line – ano 8, número 18, janeiro / março, 2009. ISSN 1518-4889 - http://www.ufsm.br/dentisticaonline interior da cavidade (FISHER, 1969) e não significa necessariamente prejuízo à integridade da polpa (CRONE, 1968). A esclerose, que é um fator importante na resistência da dentina à progressão da lesão de cárie, ocorre onde o grau do estímulo provocado é menor, permitindo a resposta do complexo dentino-pulpar (MILLER & MASSLER, 1962; KUWARA & MASSLER, 1966). Situação mostrada por WAMBIER (1998), quando visualizou, através do microscópio eletrônico de varredura, um estreitamento dos túbulos dentinários numa tentativa de impedir a invasão bacteriana, e ainda, através da análise microbiológica, OLIVEIRA (1999) percebeu o estímulo provocado pelo crescimento e produtos do metabolismo bacteriano reduzido, o que permitiu a defesa no sentido de cicatrização do complexo dentino-pulpar. Tendo-se em vista que, em caso de lesão cariosa, a polpa consegue defesa com a esclerose tubular e ainda, por apresentar apenas inflamação devido às toxinas liberadas das bactérias, a exposição pulpar poderia condená-la pelo seu contato direto com as bactérias. Como solução, a remoção parcial da dentina cariada e o selamento da cavidade patológica com um material restaurador em perfeita adaptação marginal, impedindo a passagem de nutrientes para os microorganismos residuais, poderia impedir o progresso da cárie. Então, MERTZFAIRHURST et al (1998) pesquisaram em lesões de cárie, as quais foram seladas tanto com resina quimicamente ativada quanto com amálgama e, após aplicado selante resinoso quimicamente ativado sem nenhuma dentina cariada removida, e após 10 anos o exame radiográfico mostrou que as lesões foram paralisadas e a dureza da dentina sob as restaurações aumentaram. Com o mesmo intuito, NAKAJIMA et al (2000) e YOSHIYAMA et al (2002) avaliaram a adesividade de restauração com resina composta em dentina livre de cárie, dentina infectada como também, dentina afetada e puderam observar que a força de união foi maior em dentina normal. Porém, quando usado condicionadores de alta concentração a desmineralização da dentina afetada foi superior, melhorando a força de união na mesma, já que com o desenvolvimento da cárie, ciclos de desmineralização e remineralização pode promover a produção de grandes cristais de fosfato de cálcio, que são menos solúveis no condicionamento do que a hidroxiapatita da dentina normal. Contudo, os autores sugerem que a lesão seja circunscrita por dentina normal ou esmalte. WEERHEIJM & GROEN (1999) também acreditam na paralisação da cárie quando a mesma é isolada do meio bucal por meio do selamento da cavidade. Dado o diagnóstico da lesão de cárie, seja qual for o método usado, se inspeção visual ou tátil, detecção radiográfica, transiluminação, ou através do laser, o aspecto a ser considerado é: quais são os sinais clínicos fundamentais para caracterizar um tecido como dito cariado? Então, têm-se na literatura os seguintes indicativos: amolecimento e alteração de cor. Entretanto, a obtenção de um assoalho cavitário considerado clinicamente duro, não assegura a ausência de microorganismos na dentina remanescente, conforme SHOVELTON (1968), que através da análise histobacteriológica verificou a presença de bactérias no interior dos túbulos dentinários em 36% nos casos em que a dentina remanescente foi considerada dura e 72% nos casos de remoção parcial da dentina amolecida. Igualmente, IOST et al (1995) observaram resistência ao corte e, em 79% dos casos os microorganismos apareciam em quantidade e profundidade variáveis. Isso indica que a resistência ao corte da dentina remanescente não assegura esterilidade dos tecidos dentinários. Porém, a remoção completa da dentina cariada tem sido enfatizada como o objetivo de eliminação total de bactérias, requisito considerado indispensável para assegurar a longevidade da restauração. A utilização dos sinais clínicos, amolecimento e alteração de cor, implicam na padronização de remoção do tecido cariado, devido ao fato de que esses fatores são individuais e variáveis. Por assim ser, o uso A remoção da dentina cariada na prática restauradora – Revisão da literatura 18 Revista Dentística on line – ano 8, número 18, janeiro / março, 2009. ISSN 1518-4889 - http://www.ufsm.br/dentisticaonline de corantes, como a solução de fucsina, auxiliaria na remoção clínica da cárie (LOPES et al, 1987) e LIST et al (1987). Os autores não asseguram a ausência de microorganismos na dentina remanescente, e mostraram contaminação em preparos com escavação e uso de corante como também sem o uso da solução. Nesse caso, o uso do corante não foi eficaz na identificação da dentina infectada, podendo levar a um desgaste excessivo da estrutura dental e aumentando o risco de exposição pulpar em cáries profundas, por apresentar alta afinidade pela dentina circumpulpar (HENZ et al, 1997; HENZ & MALTZ, 1998). Ainda, a coloração não é um parâmetro confiável, pois a dentina pode apresentar-se descorada, e isto ser uma situação de cárie paralisada ou dentina reacional, as quais devem ser preservadas. Buscando orientar a quantidade de cárie a ser eliminada, sem retirar de forma excessiva o tecido dentário saudável, novos métodos surgem na Odontologia. São eles: o laser, técnicas de abrasão a ar e sistema químico-mecânico (Carisolv®). Este último é o mais recente método desenvolvido, que surgiu na Suécia em 1998. Ele é apresentado na forma de dois géis, que é o produto propriamente dito, dispensando o uso de qualquer equipamento, apenas um instrumento não cortante que pode ser preferencialmente, a cureta do kit Carisolv® (PORTO et al, 2001). Segundo o fabricante, o uso do material está indicado para crianças e adolescentes, pacientes idosos com raízes expostas, pacientes com medo de tratamento dentário, paciente com limiar alto de dor, pacientes em que, por razões médicas, a anestesia seja contra-indicada, entre outros. E como desvantagens, traz relativa demora para remoção do tecido cariado quando comparado ao método convencional (KAVVADIA et al, 1999 e ZIMMERMAN et al 1999). Outra desvantagem é o custo elevado do material. Por meio desse método, houve comparação com o sistema convencional (NARESSI & ARAÚJO, 2001) quanto à infiltração marginal de restaurações adesivas e os resultados não mostraram diferença significativa. Seguindo o raciocínio da possibilidade de remoção incompleta da dentina cariada, um método, chamado de tratamento restaurador atraumático (TRA), foi desenvolvido para possibilitar o tratamento dentário em locais de baixo nível sócioeconômico e sem acesso a consultório odontológico. Essa técnica é de simples execução, apresenta baixo custo, dispensa energia elétrica e equipamentos odontológicos sofisticados e a anestesia é desnecessária. Basicamente, a técnica consiste na escavação da cavidade usando colheres de dentina e a restauração é realizada com cimento de ionômero de vidro (TOURINO et al, 2002). A escolha do cimento ionomérico deve-se às propriedades mecânicas melhoradas, pela sua capacidade adesiva e poder de liberação de fluoretos. Uma das limitações da técnica do TRA seria a possível permanência de dentina cariada durante o preparo cavitário, devido ao uso apenas de instrumentos manuais para sua remoção. No entanto, FRENCKEN et al (1994), avaliaram, após um ano, restaurações de TRA, constatando um índice de sucesso de 79% e 55% para a dentição decídua, e de 93% e 67% para a permanente, em uma ou mais superfícies, respectivamente. Ainda a inibição do crescimento bacteriano seria possível, devido à liberação de fluoretos e de íons de alumínio conforme mostra SOUZA et al (1999), observando redução significativa dos níveis de Streptococos do grupo mutans em crianças que nunca haviam recebido tratamento odontológico. Também o baixo pH gerado pela reação química de presa do material (AMERONGEN, 1996) poderia trazer efeito inibitório da proliferação dos microorganismos. MALTZ et al (2007) avaliaram radiograficamente por 40 meses casos de lesões cariosas profundas seguidas de remoção parcial de tecido cariado e selamento, e mostraram que estas, em sua maioria paralisaram as lesões. Discusão A remoção parcial da dentina cariada e o posterior selamento da cavidade é um fato A remoção da dentina cariada na prática restauradora – Revisão da literatura 19 Revista Dentística on line – ano 8, número 18, janeiro / março, 2009. ISSN 1518-4889 - http://www.ufsm.br/dentisticaonline ainda discutido entre autores, assim como as pesquisas mostram que mesmo com os critérios clínicos normalmente utilizados para concretizar a completa remoção do tecido cariado, coloração da dentina e grau de dureza, não são capazes de assegurar a esterilidade da dentina (IOST et al, 1995 e SHOVELTON, 1968), como também não podem ser confiáveis, pois são empíricos e sujeitos a variações individuais (HENZ & MALTZ, 1998). Nesse caso, ainda hoje não se sabe o que acontece com as bactérias deixadas na dentina após o preparo cavitário, qual a quantidade de tecido infectado deve ser removida e qual o nível de infecção residual é aceitável. A dentina cariada por ser composta de uma zona infectada e uma afetada, essa última localizada mais profundamente e caracterizada por uma microbiota menor e viável em comparação com a camada infectada (OSTROM, 1984), tenta justificar o não progresso do processo da doença cárie, desde que haja o selamento adequado da cavidade, impossibilitando o desenvolvimento das bactérias residuais pela incapacidade de captarem nutrientes do meio oral (THEILADE et al, 1977; WAMBIER, 1998; OLIVEIRA, 1999; THOMPSON et al, 2008). O uso de um material selador cariostático, como o cimento de ionômero de vidro, também auxiliaria na paralisação da lesão de cárie (AMERONGEN, 1996; SOUZA et al, 1999 e TOURINO et al, 2002) pela liberação de flúor, de íons de alumínio e pelo pH baixo que é gerado durante a reação de presa do material. Mas, estudos também mostram que os microrganismos no interior de preparos cavitários poderiam ser isolados do meio oral, através do selamento da cavidade com resina composta, obtendo um adequado selamento se as margens da cavidade estiverem com dentina livre de contaminação (NAKAJIMA et al, 2000; YOSHIYAMA et al, 2002). Embora a presença de bactérias e as toxinas liberadas por elas provoquem uma inflamação à polpa, o tecido não está infectado. Como também estudos mostram uma diminuição do número de bactérias e posterior paralisação da cárie após o selamento das lesões, seja com remoção parcial (THEILADE et al, 1977; WAMBIER, 1998; OLIVEIRA, 1999) ou até mesmo com nenhuma remoção de tecido dentinário cariado (MERTZ-FAIRHURST et al, 1991), pode ser observado que a dentina remanescente depois da remoção parcial do tecido amolecido ficou mais escurecida como, sua consistência mais endurecida (OLIVEIRA, 1999; BJØRNDAL et al, 1997). Pode-se perceber que as modificações acima são as mesmas ocorridas quando uma lesão de cárie é inativada, a qual não exige remoção. Ainda, acredita-se numa remineralização da camada afetada quando mantida sob restauração, através da troca de minerais com o uso de substâncias remineralizantes (OLIVEIRA, 1999). Há também, a capacidade de defesa do complexo dentinopulpar, de acordo com WAMBIER (1998), frente a uma agressão, através da esclerose tubular. Tendo todas essas evidências, o tratamento de uma lesão profunda de cárie, não desconsiderando a manutenção da vitalidade pulpar, levaria a pensar na permanência de uma camada de dentina afetada sobre a polpa, evitando a exposição pulpar prosseguida pela infecção imediata do tecido. Porém, os pesquisadores ainda acreditam que a remoção completa do tecido cariado traria maior tranqüilidade aos profissionais quanto à paralisação do processo da lesão de cárie. Por outro lado, essas evidências dão maior credibilidade para com o uso de técnicas atraumáticas, como o tratamento restaurador atraumático (TRA), que não exige maiores recursos do que um escavador de dentina e um material provisório de fácil manipulação. Assim, o tratamento odontológico é levado para as populações carentes, sem acesso ao cirurgião-dentista, evitando que elementos com destruição causada pela cárie sejam perdidos pela evolução natural da lesão ou por extração dentária. A técnica está demonstrando sucesso, tanto em consideração com o tratamento da lesão de cárie, propriamente dita (FRENCKEN et al, 1994; SOUZA et al, A remoção da dentina cariada na prática restauradora – Revisão da literatura 20 Revista Dentística on line – ano 8, número 18, janeiro / março, 2009. ISSN 1518-4889 - http://www.ufsm.br/dentisticaonline 1999 e AMEROGEN, 1996) como quando introduzida a programas de prevenção e educação (BAÍA, 2000; CHEVITARESE et al, 2002). As evidências demonstram que as lesões ativas de cárie dentinária podem ser estacionadas se isoladas do meio bucal; as bactérias remanescentes não causam a progressão da lesão; os critérios de remoção de dentina cariada, seja a dureza ou uso de corante, não asseguram a esterilidade da dentina; a polpa apresenta grande potencial de reparo e a dentina é um tecido vital e apresenta possibilidades reais de defesa frente às lesões de cárie. Apesar de a maioria dos estudos concordarem com esses registros, ainda é questionada a permanência de dentina amolecida sob restaurações. Entretanto, a remoção incompleta de dentina cariada não é uma conduta clínica nova, pois é indicada desde o início dos anos 90 com a técnica atraumática (TRA). RICKETTS et al (2006) realizaram uma revisão sistemática da literatura sobre os danos pulpares, progressão de lesão e longevidade das restaurações em relação à remoção total ou parcial do tecido cariado, e mostraram não haver diferenças nesses parâmetros clínicos. Contudo, o número de estudos incluídos foi muito pequeno e não há evidências suficientes para assegurar a remoção parcial como procedimento definitivo. Outro fator importante a ser considerado é a resposta do hospedeiro frente às agressões que são impostas (SOUZA COSTA, 2008). Os pacientes submetidos a essas condições experimentais podem ter capacidades reacionais sistêmicas e pulpares favorecidas, usualmente por serem jovens. A resposta pulpar será mais exigida nessas situações de remoção parcial de tecido cariado. O trabalho de MALTZ et al (2007), apesar de sugerir paralisação das lesões após a remoção incompleta e selamento, relatam que apenas 12 dos 32 casos mostraram redução radiográfica da área radiolúcida sob as restaurações, e apenas 4 desses 32 mostraram formação de dentina terciária, além de 1 necrose. Enfim, para que a remoção parcial de tecido cariado seja uma realidade clínica segura, necessita-se de um maior tempo de acompanhamento clínico desses casos. Temse, ainda hoje, poucos anos de avaliação desse método de tratamento do processo carioso, sendo necessário maior número de estudos e comprovações de que isso realmente traria sucesso para a Odontologia Restauradora. Além disso, exceto em situações de risco eminente de exposição pulpar, não parece haver outros benefícios para que se remova parcialmente a dentina cariada, além de dificultar a adesividade (YOSHIYAMA et al, 2002) e o tecido cariado não contribuir para a resistência à fratura da estrutura dental (NAVARRO et al, 1983). Considerações Finais Através dessa revisão sobre a remoção parcial da dentina cariada, no que implicaria e nas conseqüências que traria para o sucesso restaurador, pode ser observado que os estudos mostram a incapacidade de tornar estéril a dentina com o preparo cavitário, até mesmo com a completa remoção de tecido dentinário cariado; que o selamento da cavidade, seja com material provisório ou definitivo, garante a inibição do crescimento bacteriano e, conseqüentemente, a paralisação da cárie sob restaurações; uma provável remineralização do tecido desmineralizado remanescente e a defesa do complexo dentino-pulpar, através da esclerose tubular quando sofre uma agressão. Porém, autores ainda recomendam que a remoção total do tecido cariado seria a melhor opção para garantir o sucesso da restauração. Essas evidências a respeito da permanência de dentina cariada sob uma restauração seriam aplicáveis nos casos onde houvesse risco eminente de uma exposição pulpar, o que levaria ao comprometimento desse tecido pelo contato direto com bactérias; ou em situações de condições técnicas adversas, como os casos de TRA, por exemplo. Entretanto, nas demais situações restauradoras, não há benefício adicional ao realizar a remoção incompleta da dentina cariada, além do que, esta não se caracteriza A remoção da dentina cariada na prática restauradora – Revisão da literatura 21 Revista Dentística on line – ano 8, número 18, janeiro / março, 2009. ISSN 1518-4889 - http://www.ufsm.br/dentisticaonline como um substrato ideal para a união aos materiais restauradores. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. AMERONGEN, W.E.V. Dental caries under glass ionomer restorations. J Public Health Dent, v.56, n.3, p.150-154, 1996. ANUSAVICE, K. J. 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