EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ... VARA CÍVEL DO FORO DA COMARCA DE ... - RS. Reintegração de Posse nº XXX, por seu procurador firmatário, “ ut “ instrumento procuratório em apenso, nos autos da ação sobredita que perante esse DD. Juízo lhes move a PREFEITURA MUNICIPAL DE ..... vêm, respeitosamente à presença de V. EXA. apresentar CONTESTAÇÃO nos termos que abaixo segue: DOS FATOS DA REALIDADE SOCIAL 1. Os Demandados residem com as suas famílias no local objeto da reintegração de posse a mais de 10 ( dez ) anos consoante farta documentação anexa e ainda consoante reconhecido pela própria Demandante. Na área objeto de reintegração de posse, residem mais de 150 famílias e não residem a título precário conforme narrado pela Autora e sim, de maneira mansa e pacífica e ainda com o beneplácito da municipalidade. 2. Portanto, falta com a verdade a Autora quando refere que os Demandados são “ invasores e se instalaram com precárias construções “. Como se vê, pela documentação acostada a estes autos, concernente a notas fiscais de energia elétrica, notas fiscais de compra e venda e ainda inúmeros outros documentos datados em média de 1990, o local em que residem os Demandados com a sua família já se encontra edificado há muito tempo e não como falseia com a verdade a Autora, tendo adquirido a posse mansa e pacífica da área em questão. 3. De outra parte, é preciso que fique claro nesta peça de defesa que a comunidade que reside no local o faz com o consentimento da própria Prefeitura Autora, tendo em vista a documentação em anexo, no que concerne a aos recibos de pagamento acostados aos autos e que dão conta do pagamento, pela comunidade, das instalações de obra de eletrificação da vila. E mais, pela fotos a serem anexadas aos autos, restará fácil verificar que não se trata no presente caso de uma área que teve ocupação recente, haja vista que as construções são antigas, muitas de alvenaria e ainda nota-se o avantajado crescimento da vegetação do entorno. 4. Ademais, segue anexado ainda cópia da Relação da Diretoria e Ata de Fundação da Associação dos Moradores da Vila......., a qual fora registrada no Cartório de Títulos e Documentos na data de 03.11.1995. E ainda ofício recebido pela entidade oriundo do agente do Ministério Público Estadual na data de 26.11.1995. Com efeito, não resta a menor dúvida do caráter manso e pacífico da posse exercida pelos Autores e ainda da sua justeza, em nenhum momento sendo possível confundir-lhes com invasores. 5. Por conseguinte, resta claro e transparente neste feito o estado pretérito de completo ABANDONO da área que ocupada por mais de 10 anos pelos Autores. Tal VAZIO URBANO está por contaminar de precariedade a propriedade da Requerente, nos termos do Estatuto da Cidade. 6. O imóvel urbano deve CUMPRIR A SUA FUNÇÃO SOCIAL, qual seja a de conferir local para moradia das pessoas. Não pode a Autora deixar ao relento imóvel de sua propriedade por tão longo tempo, em detrimento de milhares de pessoas que não possuem onde morar com dignidade e vir agora em juízo postular que a comunidade simplesmente se retire em nome do “ interesse público “. Ora, que interesse público é esse que trabalha contra a regularização fundiária ?? Que interesse público é esse que quer deixar ao relento mais de uma centena de pessoas, sem poder morar ?? Será esta mesmo a função de um município ? 7. A resposta é simples, é evidente que não. Ademais, em nenhum momento fora realizado qualquer tipo de reunião, gestão ou tratativa para o reassentamento das pessoas que ora residente na Vila .......... O único contato com a Prefeitura Municipal está sendo realizado nestes autos, no qual estão sofrendo despejo os ora Autores. 8. Ademais, a presente demanda tem um caráter social pungente, que trata de uma das questões mais cruciais da sociedade brasileira, que é o acesso à moradia digna. Em assim sendo, o olhar que o direito deve direcionar ao tema deve ser feito no conjunto do seu ordenamento jurídico, não se prendendo a terminologismo ( invasão ), nem tampouco a uma visão legalista do direito. Inclusive é assim que tem entendido o Superior Tribunal de Justiça – STJ em arestos cuja ementa segue abaixo: “ A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças. “ ( RSTJ 4/1554 e STJ-RT 656/188 ) Assim também tem entendido o Min. Sálvio de Figueiredo em RSTJ 26/378: a citação é da pg. 384: “ A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. (...) Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando “ contra legem “, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que melhor atenda às aspirações da Justiça e do bem comum “. FALTA DOS PRESSUPOSTOS PARA CONCESSÃO DO PEDIDO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE 10. NÃO COMPROVAÇÃO DA POSSE PELA PREFEITURA. Consoante se verifica dos autos, a Demandada em nenhum momento comprova a posse exercida sobre a área. O que faz tão somente é valer-se da matrícula de propriedade da mesma e ainda alegar o interesse público, conceitos estes abstratos e que refogem totalmente ao fato posse exigido por lei, para que se venha garantido o seu direito a reintegração, que não o tem, já que a posse fora exercida pelos Autores a mais de 10 anos. Nos termos do art. 927 e seus incisos do CPC, existe a necessidade de comprovação de inúmeros requisitos pela Demandada para ver concedido o seu pleito de reintegração de posse, o que não se verifica nestes autos, uma vez que não se comprova a posse exercida por esta sobre a área, requisito para a concessão da medida. POSSE VELHA E CONTINUADA 11. De acordo com o que se vislumbra dos autos, seguem anexadas documentações comprovadoras da posse pelos Requeridos com mais de ano e dia, ou seja, a devida comprovação de posse velha a qual não comportaria a concessão de medida liminar no feito, nem tampouco ares de clandestinidade à presente posse detida pela Autora. 12. Há ainda que se ponderar que a ocupação pacífica e ordenada realizada no local, nos termos do levantamento fotográfico em anexo, fora efetuada com a total conivência da Prefeitura Municipal, já que nos termos da documentação anexa, a Demandada colaborou coma permanência dos Autores sobre a área. DIREITO À CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA 13. estabelecido que: Nos termos da medida provisória nº 2.220/2001, no seu art. 1º fica “ Aquele que, até 30 de junho de 2001, possui como seu, por cinco anos, ininterruptamente, e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. “ Como se vê, da referida Medida Provisória, estes Autores tem como passível de ser convertida a sua posse em concessão de uso especial para fins de moradia, já que preenchem os requisitos para tanto. Mais ainda, torna-se totalmente inviável a propositura da presente ação de reintegração de posse a se considerar a linha de argumentação ora estendida. É que a posse exercida pelos Demandados e suas famílias na área não autoriza a Demandada a expulsá-los e nem tampouco a destruir os seus lares, como postula Prefeitura. A documentação anexa dá conta do tempo de posse dos Autores, o que supera em muito o limite fixado em lei, bem como a área indiviudalizada por lote em nenhum momento supera os 250m², consoante perícia a ser requerida no local e ainda os Autores nunca sofreram qualquer tipo de oposição contra a sua posse. Aliás, os próprios Autores efetuaram o pagamento da instalação da rede elétrica da comunidade em conjunto com a Prefeitura Municipal, além de outras ações da mesma que repercutiram na consolidação da ocupação. Em nenhum momento pode-se confundir o presente pleito de concessão de uso especial para a moradia com o instituto do usucapião. É que as figuras jurídicas são totalmente incompatíveis e guardam entre si diferença de aplicabilidade. Enquanto o usucapião é um instituto que se verifica aplicável o seu reconhecimento em áreas particulares, a concessão de uso especial para a habitação é um instituto vinculado exclusivamente as áreas públicas. Muito embora isso, é de se frisar que ambos os institutos jurídicos estão por contemplas os Princípios da Função Social da Propriedade, preconizado pelo Estatuto da Cidade e pela Constituição Federal. Direito à Moradia Estatuto da Cidade 14. Veja-se que a própria legislação procedeu num franco avanço na matéria relacionada ao direito a moradia quando consagra garantia individual a função social da propriedade na Carta Magna, como direito social no seu art. 6º e posteriormente ainda, regulamenta os arts. 182 e 183 também da Constituição Federal, quando da promulgação da Lei 10257/2001 – Estatuto da Cidade. Tal legislação irá prever como diretriz, dentre várias, no art. 2º, inc. XIV: “ - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socio-econômica da população e as normas ambientais; “ Mais adiante ainda estabelece no seu art. 39 que: “ A propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. “ Mister destacar a necessidade da hermenêutica constitucional, ou seja, de interpretação da presente demanda conforme a constituição, o que se encontra assentado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, com fundamento nas lições, dentre outros, de José Joaquim Gomes Canotilho, motivo pelo qual as saídas processuais devem ser sopesadas frente a direitos fundamentais garantidos e intrinsecamente ligados a Magna Carta, tais como dignidade, vida e moradia, conforme recente publicação do Senado Federal (Estatuto da Cidade – Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos, p. 163): “O direito à moradia é reconhecido como um direito humano em diversas declarações e tratados internacionais de direitos humanos, nos quais o Estado Brasileiro participa. Entre tantos, destaca-se os seguintes: a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (artigo XXV, item 1), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigo 11), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 (artigo V), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Dicriminação Contra a Mulher de 1979 (artigo 14.2., item h), a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (artigo 21, item 1), a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, de 1976 (Seção III (8) e Capítulo II (ª3), a Agenda 21 sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Capítulo 7, item 6).” Tal como afirmou o EXMO. MIN. MARCO AURÉLIO, deve ser "retirada a maior eficácia possível dos preceitos constitucionais contidos na carta de 1988, principalmente quando estão colocados no campo da garantias constitucionais". E ainda como ensina o PROF. DR. WALTER CLAUDIUS TOHENBURG: “(...) extrair dos direitos fundamentais o máximo de conteúdo e realização que possam oferecer, de onde uma maximização ou otimização, não apenas em termos teóricos – que devem ultrapassar a linguagem genérica e adota disposições específicas –, mas igualmente de repercussão prática, assim que busque uma real implementação dos direitos fundamentais (efetividade dos direitos fundamentais), a despeito das vicissitudes – como a ausência de regulamentações suficientes ou a nãoinclusão entre prioridades políticas de governo. Há de se ter em vista que a elaboração teórica dos direitos fundamentais encontra-se bastante apurada, mas, infelizmente, não se faz acompanhar e uma prática efetiva.” Nessa linha, merecem ser recordadas as valorosas lições, expostas há quase 20 (vinte) anos, pelo DES. JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER, no julgamento dos Embargos Infringentes n. 100287119, do 1º Grupo Cível do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, em 18.11.1983: “Esta não é uma possessória, igual a tantas outras, em que são indivíduos os que contendem. Aqui, uma coletividade se apresenta como ré. Busca-se reintegrar na posse uns poucos e demitir da posse uma comunidade... Essa é a peculiaridade a destacar desde logo, porque não se encontra na lei solução expressa para a hipótese como a presente.” Conforme afirmado anteriormente, idêntica é a posição de Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira, que como reforço a sua sólida argumentação menciona a posição de Luiz Edson Fachin: "Conforme já observamos, a Carta Magna atual garante o direito de propriedade, mas ao mesmo tempo, em seu artigo, apenas em alínea seguinte, impõe a propriedade o atendimento da sua função social, o que significa dizer que a propriedade constitucionalmente assegurada deve atender a sua função social (art. 5º, XXIII). Assim, disse o legislador constituinte o que não se pode desconhecer, principalmente por tratar da propriedade imobiliária rural: que essa deva atender os requisitos da função social da propriedade, quais sejam: o aproveitamento adequado e racional, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente, as disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos trabalhadores e dos proprietários. O capítulo destinado à Ordem Econômica e Financeira se refere à penalidade mais relevante decorrente do não cumprimento da função social: a desapropriação. Se o não cumprimento da função social se liga à perda indenizada da propriedade (art. 184 da CF), conclui-se que não há proteção constitucional a propriedade que não cumpre referida função social, logo é defensável concluir que é incongruente com a norma constitucional conferir proteção possessória ao titular de domínio que não cumpre a função social da propriedade. É o que diz Edson Fachin: "O descumprimento da função social da propriedade não permite dar-lhe garantias outras que a Constituição não lhe defere. Logo, o modelo adotado pelo legislador constitucional de propriedade imobiliária rural protegida contra a perda indenizada, na modalidade do art. 184, é aquela que atende a todos os requisitos da função social, ficando de fora dessa moldura a propriedade que desatende um ,alguns ou todos aqueles pressupostos. Isso posto, é defensável concluir que é incongruente com a norma constitucional e a men legis deferir proteção possessória ao titular de domínio cuja propriedade não cumpre integralmente sua função social, inclusive (e especialmente) no tocante ao requisito da exploração racional" Bernardo Mançano Fernandes et alli. A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, página 123. Conclui-se do até aqui exposto que o direito à moradia está por demais cristalizado no direito brasileiro, sendo uma garantia inclusive constitucional. Assim acontece no caso específico em que existe posse velha, mansa e pacífica exercida pelos Demandados consoante prova documental anexada o que impede a reintegração de posse sobre a área. ANTE TODO O EXPOSTO, requerem estes Demandados seja julgado totalmente improcedente a presente ação, para fins de determinar a manutenção de posse da área objeto de reintegração de posse com os ora Requeridos, nos termos do art. 922 do CPC e ainda, nos termos da Medida Provisória nº 2220/2001, conceder judicialmente a Demandada a concessão de uso especial para fins de moradia, uma vez estando presentes os requisitos para tanto e condena a Demandada no pagamento dos consectários sucumbenciais de praxe. Requer a produção de todos os meios de prova em direito admitidos, em especial o depoimento pessoal do representante legal da Demandante, notadamente o documental, pericial e testemunhal. Por fim requer que lhes seja conferido o benefício da gratuidade da justiça, haja vista que são pessoas de condição financeira pobre e que não têm condições de arcar com as custas processuais deste feito sem que isso inviabilize o seu sustento e o de sua família. Pedem Deferimento.