II Congresso Internacional TIC e Educação O TRABALHO DO PROFESSOR, AS TECNOLOGIAS E OS GÉNEROS MULTISSEMIÓTICOS: DA CONSTRUÇÃO DE MODELOS DIDÁTICOS A SEQUÊNCIAS DE ENSINO Márcia Andréa Almeida de Oliveira Universidade Estadual de Campinas [email protected] Resumo Neste trabalho, com vistas à discussão a respeito do ensino de géneros discursivos e dos desafios que isso impõe à formação e à prática docente, recorremos aos estudos sobre as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), sobre os géneros discursivos a partir da visão bakhtiniana e da perspectiva da didática de línguas e sobre os multiletramentos. Ressaltamos a necessidade de sairmos do plano das afirmações referentes à importância do uso de tecnologias para o ensino e passarmos a pensar, a partir da relação trabalho docente e os saberes, como cada disciplina pode se apropriar das TICs na sala de aula de acordo com os objetos de ensino. Além disso, destacamos a relevância de se construir modelos didáticos de diferentes géneros multissemióticos para dar condições aos professores de elaborarem sequências de ensino. Palavras-chave: géneros multissemióticos, TICs, trabalho docente, modelo didático. Abstract In this work, with a view to the discussion about the teaching of genres and the challenges that this poses for teacher training and practice, we turn ourselves to studies on the new information and communication technologies (NICT), about the genres according to Bakhtin and according to language teaching and about multiliteracies. We emphasize the need to get out of the plane of the statements concerning the importance of using technology for teaching and come to think, from the relationship between teaching and knowledge, how each subject can take ownership of NICT in the classroom according to the teaching objects. Furthermore, this study also highlights the importance of building didactic models of different genres to the empowerment of teachers to develop teaching sequences. Keywords: multisemiotic genres, NICT, teaching work, didactic model. INTRODUÇÃO O presente estudo insere-se na área de Linguística Aplicada (doravante LA), uma vez que considera a pluralidade do objeto de estudo, a multiplicidade de significados, a valorização dos contextos e a construção do conhecimento como resultado de uma prática transdiciplinar. 790 II Congresso Internacional TIC e Educação A LA caracteriza-se pela pluralidade e pela parcialidade do saber e se preocupa com o social, com o humano, o que acarreta estudar a linguagem não como um objeto autônomo, mas histórico e ideológico, conectado a um conjunto de relações com permanente flutuação. Em sua concepção, a linguagem é inseparável das práticas sociais e discursivas; práticas essas que envolvem escolhas que têm impactos diferenciados no mundo social. Para essa área, ao estudarmos a linguagem, estamos estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte constituinte e constitutiva. Neste artigo, tomando esse campo de pesquisa como referência, refletimos sobre a importância de se compreender o funcionamento das novas mídias para o ensino/aprendizagem de línguas a partir de uma visão didática a respeito dos novos objetos de ensino que surgem mediante transformações permanentes no ambiente digital, bem como postulamos a necessidade de se fornecer condições de trabalho para o professor: não apenas com suportes (computadores e acesso à internet), mas também com conhecimentos sobre a organização/estruturação dos géneros multissemióticos, circulantes na internet, de modo a torná-los efetivamente objetos de ensino, seguindo, assim, as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa. Tal reflexão faz-se relevante, pois, após vários estudos apontarem a importância das tecnologias no ensino/aprendizagem de línguas (Ponte, 2000; Coscarelli, 1999; Buzato, 2007), é necessário haver uma conscientização sobre a sua relação com os objetos de ensino com base na perspectiva transdisciplinar. 1. AS NOVAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E OS GÉNEROS MULTISSEMIÓTICOS Nos últimos anos, a sociedade tem passado por constantes mudanças sociais, culturais, económicas e históricas decorrentes do surgimento das TICs, entre outros fatores, impactando a convivência social, alterando a organização de trabalho e influenciando o sistema educacional. Tal é a influência das TICs na sociedade contemporânea que, no tocante à Internet, Silva (1999) ressalta que o facto de [...] se poder aceder aos mais variados tipos de informação sediada em computadores em qualquer parte do mundo, se poder conversar (em tempo real) e 791 II Congresso Internacional TIC e Educação corresponder com pessoas espalhadas pelo mundo, se poder ter o seu espaço próprio de publicação, faz com que se aprenda a ver e a sentir o mundo de modo diferente porque se gera uma nova forma de conceber o espaço, o tempo, as relações, a representação das identidades, os conhecimentos, o poder, as fronteiras, a legitimidade, a cidadania, a pesquisa, enfim, a realidade social, política, económica e cultural. (p. 55) No que diz respeito à escola, a cada dia, torna-se mais frequente o uso do computador e da Internet, com vistas a atender a demanda de um aluno que vive em uma sociedade midiatizada e informatizada. As TICs tornam-se assim uma alternativa para o encontro com novos conhecimentos e uma maneira, talvez, para haver o aprimoramento do ensino/aprendizagem. Todavia, isso exige que se repense o paradigma que norteia a prática docente, porquanto as novas tecnologias trazem novos desafios à escola e requerem reflexão quanto à utilidade de sua introdução nas práticas de ensino e nos currículos escolares. Cabe destacar, contudo, que a tecnologia informática não é o motor da transformação educacional, mas poderá ser impulsionadora de mudanças, a partir das reflexões que possa provocar. O aprendizado de um novo referencial exige mudanças de valores, concepções, ideias e atitudes. As mudanças que se fazem necessárias não dizem respeito apenas a metodologias diversificadas, ou ao uso de novos equipamentos, mas, especialmente, a novas atitudes diante do conhecimento e da aprendizagem, num permanente devir, capaz de orientar a prática e estabelecer novos valores de acordo com as exigências de uma época universalizada e sujeita a alterações. (Santos, 2002, p. 49) A par disso e se considerando o contínuo desenvolvimento das TICs, a Internet pode favorecer o acesso a uma série de sites e blogs que veiculam várias práticas de linguagem, materializadas por meio dos géneros discursivos; sendo assim, é necessário que haja uma investigação sobre a organização e a constituição desses instrumentos semióticos, já que não é suficiente levar o aluno a utilizar com eficiência os motores de busca (Yahoo, Google), as redes sociais (Facebook, MySpace) etc. Além da introdução das TICs ser associada com o desenvolvimento do olhar crítico dos alunos sobre a qualidade de conteúdos veiculados na rede, faz-se necessário que eles operem com as diferentes semioses, observando sua função na construção do sentido do texto. Com isso, surgem novos desafios à Didática de Línguas. 792 II Congresso Internacional TIC e Educação Sabe-se que as TICs provocam o surgimento de novos letramentos ou, como diz Rojo (2012), multiletramentos, os quais englobam “a multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na criação de significação para os textos multimodais contemporâneos e [...] a pluralidade e diversidade cultural trazida pelos autores/leitores contemporâneos a essa criação de significação” (Rojo, 2012, s/p, ênfase da autora). As TICs implicam, portanto, novas formas de produção e circulação de textos e novas formas de ler, como bem ressaltado por Chartier (1998): “o novo suporte do texto [o ambiente digital] permite usos, manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma das formas antigas do livro” (p. 88). Esse ambiente, segundo Lévi (1999), não só modifica as funções cognitivas humanas, como também implica “mutação da relação com o saber” sobre a leitura e a escrita. Esses avanços tecnológicos possibilitam também a (re)combinação de outras mídias e outras semioses, facilitando a criatividade e a divulgação de diferentes conteúdos. Diante disso, surgem dificuldades para o professor trabalhar os diferentes géneros multissemióticos que circulam no ambiente digital, uma vez que demandam muitos saberes que vão além daqueles disciplinares. Nessa nova forma de se produzir e compreender textos, apenas o conhecimento da língua não se mostra suficiente, por isso é importante entender que o texto [verbal] pode ou não formar a espinha organizadora de um trabalho multimidiático. O que realmente precisamos ensinar, e compreender antes que possamos ensinar, é como vários letramentos e tradições culturais combinam estas modalidades semióticas diferentes para construir significados que são mais do que a soma do que cada parte poderia significar separadamente. (Lemke, 2010, pp. 461-462) A necessária articulação entre as diferentes semioses e mídias dá-se em função dos significados múltiplos e não fixos que os géneros afloram; significados esses que são influenciados pelos contextos imagético, musical e textual, o que implica compreensão de que não se trata da mera soma de partes (texto, imagem, música), mas de um conjunto interligado, construído com uma intenção comunicativa. Os diferentes sentidos que deles podem ser depreendidos advêm não só de sua materialidade, mas, 793 II Congresso Internacional TIC e Educação especialmente, das interações entre diferentes sujeitos. Esse processo de significação de um texto “não se limita àquelas entre o autor ou usuário e o objeto, mas deve também incluir aquelas com professores, colegas e comunidades de pessoas que assumem práticas que tornam uma combinação sígnica significativa (Lemke, 2010, p. 457). As interações entre os usuários e entre as diferentes semioses e mídias atuam na reformulação dos géneros, organizando-os e reconfigurando-os em razão do suporte (do papel, do digital), embora esses conservem algumas características, demandando múltiplas habilidades para que seu uso seja bem-sucedido. Essas transformações pelas quais os géneros passam definem, de certa forma, o tipo de letramento: tradicional ou digital. Mesmo diferentes, em função de envolverem recursos tecnológicos específicos, eles conservam traços comuns, visto que se inserem no mesmo contexto social amplo e fazem uso, às vezes, dos mesmos sistemas semióticos, que funcionam de forma semelhante ou não em diferentes géneros. Quanto ainda à relação entre TICs, multiletramentos e géneros discursivos, Buzato (2007) argumenta a favor da não dicotomização entre letramentos digitais e tradicionais na formação de professores, já que o hibridismo é característico das práticas de linguagem. Com isso, privilegiam-se a dimensão sociocultural e a conscientização crítica tanto dos professores quanto dos alunos a respeito da língua/linguagem. Quando se pensa em géneros multissemióticos, uma questão é levantada: o que se compreende por texto? Baseando-se numa visão bakhtiniana, concebemos o texto, da mesma forma que Rojo (2012) e Buzato (2007), como um conjunto de elementos linguísticos ou não, dotado de um sentido completo, possibilitando, portanto, que se compreenda um videoclipe, uma pintura como textos. Cabe mencionar aqui que, embora as reflexões bakhtinianas digam respeito à linguagem verbal, Bakhtin (1997) não anula a possibilidade de ampliarmos/ressignificarmos suas ideias, porque ele mesmo, ao se referir à noção de texto, permite que o pensemos não apenas como um conjunto de signos verbais, mas também constituído de outras semioses: “Se tomarmos o texto no sentido amplo de conjunto coerente de signos, então também as 794 II Congresso Internacional TIC e Educação ciências da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se relacionam com textos (produtos da arte)” (p. 329). Rojo (2012), por exemplo, problematiza essa questão, articulando as ideias bakhtinianas e o conceito de multiletramentos do grupo New London. A partir disso, considera o texto como “multissemiótico ou multimodal”, o qual envolve “diversas linguagens, mídias e tecnologias”, bem como amplia a noção de géneros e textos àqueles objetos constituídos por outras semioses que não a verbal, articuladas concomitantemente ou não. Destarte, pode-se dizer que “todo texto é multimodal e, portanto, todo letramento é um letramento multimídia [porque inclui o uso de textos, gráficos, sons, imagens, animações etc., produzindo um efeito discursivo]. Por outro lado, como qualquer letramento, os letramentos digitais são socialmente construídos e, portanto, são plurilíngues, dialógicos e híbridos” (Buzato, 2007, p. 124). Considerando essas questões, não é suficiente que o aluno use o computador em sala de aula para ficar “navegando” sem propósito ou apenas jogando, porque não é isso que contribuirá para o desenvolvimento das habilidades linguístico-linguageiras. Ademais, não basta o professor usar uma lousa digital para realizar a mesma coisa que faz com o quadro negro (reprodução do conteúdo e dos exercícios); não adianta ainda o professor usar o blog, por exemplo, como depositário de textos, isto é, o aluno produz um texto no caderno e repassa para o Blogger ou o WordPress. Nessa direção, Grégoire et al. (1996 apud Coscarelli, 1999) afirma que não basta usar a tecnologia de qualquer modo ou informatizar o ensino tradicional, isso não vai melhorar o ensino. É preciso mudar a concepção de ensino-aprendizagem e usar a informática para auxiliar essa mudança, tornando possível fazer da sala de aula um lugar onde se aprende a aprender, com prazer. (p. 90) Isso deixa evidente que o recurso tecnológico não determina o sucesso ou o fracasso escolar; mas o uso que dele se faz pode ou não melhorar o ensino/aprendizagem. Como destaca Ponte (2000), “o uso fluente de uma técnica envolve muito mais do que o seu conhecimento instrumental, envolve uma interiorização das suas possibilidades e uma identificação entre as intenções e desejos dessa pessoa e as potencialidades ao seu dispor” (p. 74). 795 II Congresso Internacional TIC e Educação Fundamentados nessas discussões, pensamos que a preocupação dos cursos de formação inicial e continuada dos professores de Língua Portuguesa pode ser sobre: i) as informações técnicas a respeito do funcionamento das TICs e ii) o conhecimento sobre como os géneros multissemióticos são produzidos, utilizados e adaptados a cada situação de comunicação. 2. O TRABALHO DOCENTE E OS OBJETOS DE ENSINO: MODELOS E SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS A partir do lugar em que nossa pesquisa situa-se (isto é, a LA), buscamos relacionar o trabalho do professor aos objetos de ensino, destacando os géneros multissemióticos. Para tanto, partimos do pressuposto de que a prática docente é constituída de dimensões coletiva, histórica e dialógica. Considerando o professor como participante importante da reflexão aqui apresentada, vale dizer que ele não é desprovido de saberes e que o seu saber, manifestado nas relações complexas com os alunos, depende também do que ele não sabe. Reconhecemos assim que os professores utilizam diferentes saberes em função do trabalho docente e de suas condições, de sua formação, de suas experiências de vida etc. Como destaca Tardif (2002), o saber dos professores é temporal, “[...] plural, compósito, heterogêneo, porque envolve, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e um saber-fazer bastante diversos, provenientes de fontes variadas e, provavelmente, de natureza diferente” (p. 18). Tal saber provém da formação iniciada e continuada, dos programas e dos livros didáticos adotados, das disciplinas escolares, das experiências pessoal e profissional, entre outros. Com base nas reflexões de Tardif (2002), concebemos o saber-ensinar como algo construído por meio das múltiplas relações mantidas com os diferentes agentes sociais e as diversas organizações. É fundamental, pois, que se considere a maneira de constituição dos saberes docentes para que se reflita sobre os novos objetos de ensino (os géneros multissemióticos) e, por conseguinte, se elabore modelos e sequências didáticos. De acordo com os diferentes estudos aqui mencionados, percebemos que pouco se tem avançado quanto ao ensino de géneros, principalmente, no que diz respeito à 796 II Congresso Internacional TIC e Educação prática efetiva. Esses estudos mostram que a reflexão sobre a formação de professores em face às TICs tem se restringido, com frequência, aos benefícios e aos malefícios das tecnologias. Quase nada se diz sobre os desafios que os géneros multissemióticos impõem à prática docente, do ponto de vista do saber-fazer, e, praticamente, não há descrição do género com vistas a elencar os seus componentes. Quanto à formação de professores, “nota-se a focalização, ao mesmo tempo simplificadora e excessiva, na sua capacitação técnica para navegação ou manipulação acrítica, reprodutora, de dispositivos e interfaces computacionais” (Buzato, 2007, p. 111). Verificamos também que os trabalhos que focalizam o género descrevem uma sequência de ensino que tem como objetivo discutir questões, quase sempre, relativas a temas diversos e, às vezes, à situação de comunicação. Parece óbvio, mas, para se ensinar algo, é necessário que se domine uma gama de conhecimentos científicos, especializados, procedimentais etc. As focalizações sobre esse instrumento multissemiótico precisam aproveitar o potencial latente das transformações sociais e culturais que as tecnologias podem proporcionar, contemplando as diferentes semioses, pois, para se formar leitores-cidadãos (ideia essa defendida pelos documentos educacionais oficiais no âmbito brasileiro), é preciso haver um trabalho que explore os aspectos verbais, visuais, entre outros e que não se limite às temáticas dos textos. Não se pensar o ensino de género do ponto de vista efetivamente didático é simplificar o uso das tecnologias no ensino e desvirtuar a formação de professores: não basta saber que a tecnologia possibilita acesso a informações e que ela pode melhorar o ensino/aprendizagem, ou que os governantes precisam equipar as escolas com computadores com acesso à rede. É essencial que se reflita com o professor sobre quais saberes e suas dimensões podem ser ensinados, porque é só dessa forma que pode haver a aproximação do discurso e da prática docente. Antes de tecer considerações de caráter mais prático, importa frisar que os géneros discursivos são práticas de linguagem, historicamente construídas, que, por sua vez, são “aquisições acumuladas pelos grupos sociais no curso da história” (Schneuwly & Dolz, 2004, p. 5 1). 797 II Congresso Internacional TIC e Educação Os géneros constituem-se, portanto, em instrumentos decisivos no ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa enquanto objetos de ensino, pela orientação dos PCN e, principalmente, por seu papel nas diferentes situações comunicativas e por se caracterizarem, na acepção bakhtiniana, como formas de discurso. Quanto à relação do género na escola com a situação comunicativa, os autores afirmam que “o género não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem” (Schneuwly & Dolz, 2004, p. 76). Com sua introdução na escola, ele sofre transformações, porque ocupa um novo lugar social, diferente daquele onde foi criado. Como destacam os autores, toda introdução de um género na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos precisos de aprendizagem, que são sempre de dois tipos: trata-se de aprender a dominar o género, primeiramente, para melhor conhecê-lo ou apreciá-lo, para melhor saber compreendê-lo, para melhor produzi-lo na escola ou fora dela; e, em segundo lugar, de desenvolver capacidades que ultrapassam o género e que são transferíveis para outros géneros próximos ou distantes. Isso implica uma transformação, pelo menos parcial, do género para que esses objetivos sejam atingidos e atingíveis com o máximo de eficácia (Schneuwly & Dolz, 2004, pp. 80-81). Diante disso, como dar conta desses objetos de ensino? Uma sugestão que nos apresenta agora é a construção de modelos e sequências didáticos. Por que argumentamos a favor desses dispositivos didáticos? Em razão da importância de existir o processo de transposição didática (Chevallard, 1991): a transformação dos saberes a ensinar (científicos, especializados, práticos) a saberes ensinados. Segundo Schneuwly (1995), “a essência mesma do conceito de transposição [...] é que estes saberes-fazer, ou antes, estas maneiras de ser, de pensar e de fazer, para se tornarem objeto de ensino, passam necessariamente por uma etapa que a gente poderia chamar de modelização” (p. 52). O modelo didático, produto desse processo, é uma ferramenta que possibilita a definição do objeto a ser ensinado e de suas dimensões, como apresentam De Pietro & Schneuwly (2006). Os autores definem modelização didática como resultado da confluência de quatro fontes de dados: as práticas sociais 798 II Congresso Internacional TIC e Educação de referência, a literatura sobre o género, as práticas linguageiras dos alunos e as práticas escolares. É na interseção dessas quatro fontes que a modelização [...] pode garantir, ao mesmo tempo, sua legitimidade – já que ela se apoia sobre as práticas sociais de referência e a literatura existente – e sua pertinência – já que ela leva igualmente em consideração as práticas, em desenvolvimento, dos alunos, na medida em que elas tornam visíveis os obstáculos, as resistências, e as práticas escolares, na medida em que elas definem as determinações situacionais, e mesmo éticas, que incidem sobre o género a ensinar (De Pietro & Schneuwly, 2006, p. 33, ênfase do autor). De acordo com os autores, o modelo didático fornece objetos potenciais para o ensino e possibilitam a elaboração de sequências didáticas: caracterizadas como um conjunto de atividades escolares organizadas sistematicamente em torno de um objeto de ensino. Esse modelo resulta de uma investigação a respeito de um género com propósitos de ensino e é responsável pela seleção de características do objeto a serem ensinadas. Considerando tais reflexões, os modelos didáticos podem ser uma via de articulação entre os conhecimentos tecnológicos e especializados. Com relação aos conhecimentos tecnológicos, alguns dos saberes necessários são: conhecer a plataforma virtual, as ferramentas, como se anexa um arquivo, como se muda o código fonte, entre outros. Sobre esse saber, é importante se refletir, com os professores, como a tecnologia é incorporada ao ensino, promover uma discussão a respeito dos saberes e das possibilidades de uso dos recursos tecnológicos, e sobre como esses podem ajudá-los a planejar e a usar as TICs em sala de aula. No que concerne aos conhecimentos especializados, defendemos um currículo de Língua Portuguesa baseado na perspectiva do multiletramento, em que se contemplem diferentes géneros multissemióticos. Para tanto, todavia, é necessário que se considere o objeto língua/linguagem e não apenas questões relacionadas ao uso da técnica ou de cunho moralizante. O trabalho com esses instrumentos semióticos exige também que se adote um pensamento complexo, uma visão transdisciplinar, ou seja, é preciso que a escola elabore projetos a partir dos quais os objetos de saber sejam trabalhados por meio da articulação entre diferentes áreas do 799 II Congresso Internacional TIC e Educação conhecimento, tendo como objetivo abordar-se os diversos saberes envolvidos em sua constituição. Em prol desse posicionamento, Morin (2011) afirma que [...] as mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos). (p. 38) Com base nisso, o professor precisa ter uma visão de conjunto, embora o domínio de todos os saberes requeridos para se trabalhar o videoclipe, por exemplo, seja quase impossível. Por isso, o trabalho com tais géneros exige o envolvimento das diferentes áreas a fim de se construir um amplo conhecimento sobre o objeto. Se considerada toda essa complexidade, o professor precisa desconstruí-lo e (re)construí-lo com o aluno, de modo a levá-lo a perceber as diferentes partes que o constituem, tendo em vista a análise do todo, e a analisar criticamente o conteúdo nele veiculado. Nesse caso, o texto verbal é apenas um dos conhecimentos necessários, uma vez que tal género engloba conhecimentos sobre posição de câmeras, escolha de cenário, programas para editar vídeos, softwares livres, plataformas on-line etc. Dessa forma, com base nos estudos sobre modelo didático, propomos alguns passos a serem considerados no momento da introdução de um género multissemiótico na escola, a saber: 1. Pressuposto: o trabalho com géneros multissemióticos só é possível mediante visão transdisciplinar; 2. Descrição do género: criação de um modelo didático; 3. Elaboração de sequências didáticas pelos autores de materiais didáticos (cadernos, apostilado, livro didático) e/ou pelos professores. No que diz respeito à criação do modelo didático, é necessário que nele constem os seguintes aspectos: x Definição das características gerais do género: corresponde a dizer o que é, qual seu formato (impresso, analógico, digital), qual a sequência discursiva predominante, qual a sua constituição semiótica (verbal, visual) etc. 800 II Congresso Internacional TIC e Educação x Dimensões ensináveis do género a) A situação de comunicação: busca-se responder às seguintes perguntas: Quem são os possíveis interlocutores? Qual é finalidade do género? Quais são os possíveis objetivos do locutor? Quais os veículos em que circula? b) A organização interna: apresentam-se as etapas de produção do gênero e a sequência discursiva predominante. c) As características semióticas: apontam-se quais linguagens constituem o gênero e as marcas linguísticas que são geralmente encontradas no gênero descrito. d) As características técnicas: incluem os saberes técnicos necessários para se chegar a um produto que corresponda à intenção de comunicação do locutor/produtor. Para melhor compreensão dos aspectos descritos, apresentamos abaixo, como exemplo, a síntese do modelo didático do gênero videoclipe: Género Videoclipe Definição das características gerais do O videoclipe é um género que circula em género diferentes esferas, como: a artística, a religiosa, a científica, a educacional etc. e em diversas sociedades. A sua produção envolve conhecimento em montagem, iconografia, grafismos, movimentos de câmera etc. Dimensões A situação de comunicação O videoclipe é dirigido a um público ensináveis diverso: criança, adolescente, jovem etc. do género É um filme curto, veiculado através de mídias analógicas e/ou digitais, que tem por finalidade divulgar uma música, uma ideia e divertir. A organização interna Sua produção envolve várias etapas, por exemplo: definir a música; traçar o perfil do artista; interpretar a canção; criar um roteiro literário (as personagens, as cenas, a descrição do local e das condições de locação etc.); elaborar o roteiro técnico (plano de produção, posição de tomada de câmera, análise de luz etc.); visitar as locações (ruas, casas); decupar da arte (identificar locações, o período em que se passam as ações – dia ou noite, os objetos de cena, os efeitos 801 II Congresso Internacional TIC e Educação As características semióticas As características técnicas especiais etc.); projetar da arte (ligar personagens ao cenário e ao figurino); montar as cenas, entre outras. A produção de um videoclipe envolve diferentes semioses: visual (cores, estilos), escrita e sonora. Engloba conhecimento em fotografia, iluminação, som, edição, movimento de câmeras, animação, programas, softwares, plataformas online etc. Verificamos, diante dessa breve descrição, que, embora sejam muitos os aspectos pontuados, todos precisam ser esmiuçados e exemplificados no interior do modelo didático, pois, só assim, o professor ou o autor de material didático será instrumentalizado de modo a ter condições de elaborar as sequências didáticas, isto é, organizar uma sequência de ensino em que cada parte do género seja destacada; sequência essa constituída de textos-modelo, de propostas de exercícios de compreensão dos aspectos linguísticos, cinematográficos, musicais etc. e de produção de textos do género-alvo. Evidenciar os elementos envolvidos na construção do videoclipe confirma a necessidade de que se pense a organização do todo, porque o parcelamento e a compartimentação dos saberes impedem apreender o que foi produzido junto. “Tratase de entender o pensamento que separa e que reduz, no lugar do pensamento que distingue e une. Não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da análise pela síntese; é preciso conjugá-las” (Morin, 2011, p. 42). CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, pretendemos fazer uma reflexão sobre a necessidade de se instrumentalizar o professor para o trabalho com géneros. Destacou-se, assim, a importância da criação de modelos didáticos para a elaboração de sequências de ensino. Tal estratégia didática serve para que o docente se sinta mais seguro ao ter que trabalhar não só com os géneros multissemióticos como também com os demais. 802 II Congresso Internacional TIC e Educação Como percebemos, por meio da breve descrição apresentada sobre o videoclipe, são muitos os saberes envolvidos. Por não ser possível fornecer tantos saberes ao mesmo tempo ao professor, defendemos que, para se aproveitar o potencial dos géneros multissemióticos, a escola precisa investir no diálogo entre as diferentes áreas de conhecimento, uma vez que isso pode favorecer a reestruturação do ensino, tornandoo mais interessante e dando mais condições aos professores de trabalharem em conjunto. Por exemplo, no caso do videoclipe, o professor de português pode ficar encarregado de analisar a letra da música e construir um roteiro com os alunos; o de artes pode trabalhar conhecimentos sobre o cinema (posição de câmera, cenário etc.); o de informática pode auxiliar os alunos com o uso de editor de vídeos, com a utilização das plataformas disponíveis na Web. Dessa forma, é possível ressignificar as TICs no espaço de sala de aula e permitir que os objetos de ensino não sejam perdidos ou diluídos e que os géneros não sejam apenas um dispositivo para se discutir questões ideológicas. Apontamos também a necessidade de se ir além da enumeração das vantagens no uso das tecnologias no ensino, por meio do trabalho sobre objetos de saberes a partir de uma perspectiva transdisciplinar, o que pode favorecer a implementação de novos modos de saber-fazer na escola e dar ao uso das tecnologias outro papel que não o de “verniz de modernidade”. REFERÊNCIAS Bakhtin, M. M. 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