RBTI / NEUROINTENSIVISMO - ARTIGO ORIGINAL
Estudo Epidemiológico do TCE em Unidade de
Terapia Intensiva Geral como Resultado da Adesão
ao Latin American Brain Injury Consortium*
Epidemiologic Survey of Traumatic Brain Injury in a General Intensive
Care Unit as a Result of Latin American Brain Injury Consortium Adherence
Cláudio Piras1, Luís Vicente Forte2, Cássio Morano Peluso2, Ed Moreira Lima1, Mirto Nelson Prandini3.
SUMMARY
BACKGROUND AND OBJECTIVES: The authors present the Latin American Brain Injury Consortium (LABIC) their objectives and impact on a general ICU in Vitória city. The implantation of this Consortium in our state results in a traumatic brain
injury (TBI) epidemiologic study in our city with the objective to acquire knowledge about them and promote actions in
order to improve prevention and treatment of those patients.
METHODS: Retrospective study of 105 patients accepted in a general ICU since January 2003 through October 2003.
RESULTS: There were 92 (87.62%) men and 13 (12.38%) women. Twenty eight patients suffered TBI from fall (26.67%),
ten patients suffered TBI from penetrating gunshot (9.52%) and fifty seven patients suffered TBI from crashes (54.29%)
that was responsible for 54.76% of deaths. The overall mortality was 40% and was more prevalent in the elderly (80%),
falls (39.28%), penetrating gunshot (50%) and crush (50%). Eighty one patients had Glasgow Coma Scale less than 9 on
admission (77.19%). Mortality reached 92.31% (p = 0.0329) when APACHE II was more than 23.
CONCLUSIONS: The authors concluded that the adherence to the LABIC was responsible for the knowledge of the actual
situation of TBI in our city and give them means to make public those data in order to divulge the neurologic intensive care
and promote debates and actions to prevent TBI as well as treat them.
Key Words: brain hemometabolism, brain ischemia, intensive care, epidemiology, trauma, brain injury.
A
lesão isquêmica é o evento final mais comum na destruição do tecido encefálico, quer por ação primária
ou secundária, de forma difusa ou focal, ocorrendo
em conseqüência de alterações permanentes ou temporárias
do fluxo sangüíneo para um dado metabolismo encefálico.
Diversas condições etiológicas estão associadas com a lesão
encefálica1.
A compreensão crescente dos mecanismos de lesão e o
desenvolvimento de tratamentos específicos despertaram o
interesse de diversos grupos e agências. Surgiram drogas com
o objetivo de tratar, evitar ou diminuir as áreas de isquemia.
A necessidade de colaboração nacional e internacional,
em grande escala, sobre a lesão encefálica aguda foi claramente estabelecida pelo EBIC (Europen Brain Injury Consortium) e outras organizações2. A falta de dados epidemiológicos precisos na América Latina dificulta o conhecimento
da incidência real das lesões encefálicas nesse continente. A
análise de apenas um fator etiológico, o trauma, pode servir
como exemplo. Estudos indicam que o TCE é um grave problema de saúde pública nos EUA3,4 e que na América Latina
a situação pode ser ainda pior. Essa incidência estimada abre
um vasto campo para investigações clínicas multicêntricas e
o desenvolvimento de equipamentos, drogas sedativas, trombolíticas e de neuroproteção.
A possibilidade de estabelecer estudos multicêntricos re-
gionais e a existência de outros dois Consórcios (Europeu5
e Americano6) incentivaram pesquisadores a conceber uma
estrutura similar na América Latina.
Após a adesão ao LABIC, realizou-se um estudo epidemiológico do TCE e avaliou-se as possíveis repercussões da
adesão em uma UTI no Estado do Espírito Santo.
MÉTODO
Foram estudados 105 pacientes internados na Unidade de
Tratamento Intensivo (UTI), por traumatismo cranioencefálico (TCE), no período entre 01/01/2003 e 31/10/2003.
O grupo com TCE foi escolhido para o estudo pelos seguintes motivos: integra o núcleo de interesse do LABIC,
possui alta incidência, maior prevalência em adultos jovens,
apresenta tempo de internação prolongado, possui elevada
taxa de morbidade e mortalidade, necessita de reabilitação,
envolve elevado custo social e financeiro, os fatores de risco
são conhecidos e possibilitam a implantação de programas
de prevenção.
Os pacientes foram avaliados quanto ao sexo, idade, tempo de permanência na UTI, fator causal e APACHE II (Acute Physiology and Chronic Health Evaluation versão II).
O grupo Faixa Etária (FE) foi dividido em quatro subgrupos: subgrupo I, idades entre 15 e 29 anos; subgrupo II, entre
1. Médico Intensivista do Hospital São Lucas. Especialista em Terapia Intensiva pela AMIB. Membro do LABIC Espírito Santo.
2. Neurocirurgião. Diretor do Instituto de Tratamento Neurológico e de Terapia Intensiva (INETI). Membro fundador do LABIC.
3. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Neurocirurgia da UNIFESP.
*Recebido da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital São Lucas, Vitória, ES
Apresentado em 19 de julho de 2004 - Aceito para publicação em 04 de outubro de 2004
Endereço para correspondência: Dr. Cláudio Piras - Rua Alaor de Queiroz Araújo, 175/602 - Enseada do Suá - 29055-010 Vitória, ES - Fone: (27)
3345-1118 / Fax (27) 3345-1297 - E-mail: [email protected]
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RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva
RBTI / NEUROINTENSIVISMO - ARTIGO ORIGINAL
30 e 44 anos; subgrupo III, entre 45 e 59 anos; e subgrupo IV,
idade igual ou superior a 60 anos.
O grupo Fator Causal (FC) foi dividido em sete subgrupos: subgrupo A, pacientes vítimas de acidente de trânsito
em automóvel; subgrupo B, pacientes vítimas de acidente
de trânsito envolvendo motocicletas; subgrupo C, pacientes
vítimas de atropelamento; subgrupo D, pacientes vítimas de
lesão encefálica por projétil de arma de fogo (PAF); subgrupo
E, pacientes vítimas de espancamento; subgrupo F, pacientes
vítimas de quedas; e subgrupo G, outros fatores causais não
incluídos nos demais grupos.
O índice APACHE II foi utilizado para se correlacionar a
gravidade dos pacientes, através de faixas de pontuação com
a mortalidade obtida. Foi utilizado também para se analisar
a existência de diferença estatística significativa entre os valores médios obtidos nos pacientes que tiveram alta da UTI e
os que evoluíram para o óbito.
O Grupo APACHE II (AP) foi dividido em quatro subgrupos: subgrupo 1, valores de APACHE II entre 0 e 7 pontos; subgrupo 2, valores de APACHE II entre 8 e 15 pontos;
subgrupo 3, valores de APACHE II entre 16 e 23 pontos; e
subgrupo 4, valores de APACHE II igual ou superior a 24
pontos.
A mortalidade foi analisada em cada grupo, entre os seus
subgrupos, entre os sexos e de forma global.
Os resultados foram apresentados na forma de números,
percentuais (com duas casas decimais) e, quando cabia, através de análise estatística. Os testes utilizados foram o Quiquadrado e o Exato de Fisher (quando uma ou mais variantes tinham número inferior a cinco). O programa estatístico
utilizado foi o EpiInfo for Windows 2002 (Centers for Disease
Control and Prevention, Atlanta). Foram considerados significativos os valores de p menores que 0,05 (apresentados com
4 casas decimais), tendo sido registrados no texto e nas tabelas apenas esses.
RESULTADOS
Dos 105 pacientes estudados 92 (87,62%) eram do sexo
masculino e 13 (12,38%) do sexo feminino. A permanência na
UTI variou de 1 a 55 dias, com média de 10,85 ± 9,74 dias).
A idade dos pacientes variou entre 15 e 82 anos (Grupo
FE). O subgrupo I (15 e 29 anos) com 46 pacientes (43,81%);
o subgrupo II (30 e 44 anos) com 33 pacientes (31,43%); o
subgrupo III (45 e 59 anos) com 16 pacientes (15,24%); e o
subgrupo IV (60 anos ou superior) com 10 pacientes (9,52%).
Esses resultados estão apresentados na tabela 1.
Tabela 1 - Distribuição dos Pacientes Portadores de
Traumatismo Cranioencefálico por Faixa Etária (Grupo FE)
Subgrupos
I (15 a 29 anos)
II (30 a 44 anos)
III (45 a 59 anos)
IV (60 anos e superior)
Total
Nº de pacientes
46
33
16
10
105
%
43,81
31,43
15,24
9,52
100,00
Quanto ao fator causal (Grupo FC) observou-se a incidência de 9 pacientes (8,57%) no subgrupo A (vítimas
de acidente de trânsito em automóvel); de 22 (20,95%) no
Volume 16 - Número 3 - Julho/Setembro 2004
subgrupo B (vítimas de acidente de trânsito em motocicleta); de 26 (24,76%) no subgrupo C (vítimas de atropelamento); de 10 (9,52%) no subgrupo D (vítimas de lesão
encefálica por arma de fogo); de 8 (7,62%) no subgrupo E
(vítimas de espancamento); de 28 (26,67%) no subgrupo
F (vítimas de queda); e de 02 (1,91%) no subgrupo G (outros fatores causais). Esses resultados estão apresentados
na tabela 2.
Tabela 2 - Distribuição dos Pacientes Portadores de Traumatismo
Cranioencefálico por Fator Causal (Grupo FC) e Mortalidade
Subgrupos
A (automóvel)
B (motocicleta)
C (atropelamento)
D (projétil arma
fogo)
E (espancamento)
F (quedas)
G (outros)
Nº de
Pacientes
9
22
26
8,57
20,95
24,76
Nº de
Óbitos
2
8
13
22,22
36,36
50,00
10
9,52
5
50,00
8
28
2
7,62
26,67
1,91
2
11
1
25,00
39,28
50,00
%
%
Não houve diferença estatística significante na mortalidade entre os subgrupos
Na internação, 81 pacientes (77,14%) apresentavam
pontuação na Escala de Coma de Glasgow (ECG) ≤ 8; 20
(19,05%) ECG entre 9 e 13 pontos; e 4 (3,81%) acima de 13.
O Grupo APACHE II (AP) apresentou os seguintes resultados: 6 pacientes (5,71%) no subgrupo 1 (0 a 7 pontos); 42
(40%) no subgrupo 2 (8 a 15 pontos); 44 (41,91%) no subgrupo
3 (16 a 23 pontos) e 13 (12,38%) no subgrupo 4 (24 pontos ou
superior). Esses resultados estão apresentados na tabela 3.
Tabela 3 - Distribuição dos Pacientes Portadores de Traumatismo
Cranioencefálico por Pontuação no APACHE II (Grupo AP)
Subgrupos
1 (0 a 7 pontos)
2 (8 a 15 pontos)
3 (16 a 23 pontos)
4 (24 pontos ou superior)
Total
Nº de Pacientes
6
42
44
13
105
%
5,71
40,00
41,91
12,38
100,00
APACHE – Acute Physiology and Chronic Health Evaluation
A mortalidade global foi de 40% (42 óbitos em 105 pacientes). A incidência de óbito no sexo masculino foi de 38,04%
(35 óbitos em 92 pacientes) e no sexo feminino de 53,85%
(7 óbitos em 13 pacientes). Não houve diferença estatística
significativa entre os dois grupos.
Relacionando a faixa etária com a mortalidade encontrou-se 30,43% de óbitos no subgrupo I, 36,36% de óbitos no
subgrupo II, 50% de óbitos no subgrupo III e 80% de óbitos
no subgrupo IV. Não foi observada diferença estatística significante na mortalidade entre os subgrupos (Tabela 4).
Tabela 4 - Distribuição da Mortalidade por Faixa Etária em
Pacientes Portadores de Traumatismo Cranioencefálico (Grupo FE)
Subgrupos
I (15 a 29 anos)
II (30 a 44 anos)
III (45 a 59 anos)
IV (60 e superior)
Nº de Pacientes
46
33
16
10
Nº de Óbitos
14
12
8
8
%
30,43
36,36
50,00
80,00
Não houve diferença estatística significante na mortalidade entre os subgrupos
165
RBTI / NEUROINTENSIVISMO - ARTIGO ORIGINAL
A mortalidade no grupo FC (fator causal) foi de: 22,22%
(2 óbitos em 9 pacientes) no subgrupo A; 36,36% (8 óbitos
em 22 pacientes) no subgrupo B; 50% (13 óbitos em 26 pacientes) no subgrupo C; 50% (5 óbitos em 10 pacientes) no
subgrupo D; 25% (2 óbitos em 8 pacientes) no subgrupo E;
39,28% (11 óbitos em 28 pacientes) no subgrupo F; 50% (1
óbito em 2 pacientes) no subgrupo G. Não houve diferença
estatística significante na mortalidade em os subgrupos analisados. Esses resultados estão apresentados na tabela 2.
O valor médio do APACHE II nos pacientes que obtiveram alta foi de 14,06 (DP 6,17) e nos que evoluíram para
o óbito de 19,98 (DP 6,48). Não houve diferença estatística
significante entre os valores obtidos.
Analisando a mortalidade no Grupo AP (APACHE II)
encontrou-se: 0% (0 óbitos em 6 pacientes) de mortalidade
no subgrupo 1 (0 a 7 pontos); 23,81% (10 óbitos em 42 pacientes) no subgrupo 2 (8 a15 pontos); 45,45% (20 óbitos em
44 pacientes) no subgrupo 3 (16-23 pontos); e 92,31% (12 óbitos em 13 pacientes) no subgrupo 4 (24 pontos ou superior).
Houve diferença estatística significante entre os subgrupos 1
e 4 (p=0,0368); e 2 e 4 (p=0,0093). Não foi encontrada diferença estatística significante entre o subgrupo 3 e os demais
subgrupos, nem entre os subgrupos 1 e 2 (Tabela 5).
Tabela 5 - Distribuição da Mortalidade por Pontuação
de APACHE II nos Pacientes Portadores de Traumatismo
Cranioencefálico (Grupo AP)
Subgrupos
1 (0 a 7 pontos)
2 (8 a 15 pontos)
3 (16 a 23 pontos)
4 (24 pontos ou superior)
Nº de
Pacientes
6
42
44
13
Nº de
Óbitos
0
10
20
12
%
0,00 (*)
23,81 (#)
45,45
92,31
APACHE – Acute Physiology And Chronic Health Evaluation
(*) p = 0,0368 quando comparado com o subgrupo 4 (teste Exato de Fisher)
(#) p = 0,0093 quando comparado com o subgrupo 4
O subgrupo 3 não apresentou diferença estatística significante com os demais
subgrupos
Os subgrupos 1 e 2 não apresentaram diferença estatística significante entre si
DISCUSSÃO
O neurointensivismo apresentou um crescimento marcante na última década. Vários fatores contribuíram para essa
tendência, entre eles destacam-se:
• Alta incidência de lesões neurológicas em pacientes jovens internados em UTI.
• Possibilidade de diagnósticos precisos e rápidos com os
novos exames de imagem.
• Melhor conhecimento da fisiopatologia das doenças
neurológicas em suas diferentes fases evolutivas.
• Possibilidade de controle adequado dos parâmetros
ventilatórios e cardiovasculares na UTI.
• Evolução das técnicas neurocirúrgicas.
• Novas técnicas de monitorização do hemometabolismo
encefálico.
As medidas empíricas de neuroproteção deram lugar ao
tratamento objetivo direcionado pela manutenção das condições hemodinâmicas e metabólicas adequadas7,8. Para atingir
essa meta o tratamento deve ser instituído de forma precoce
e agressiva9,10.
166
Atreladas a esse conceito foram publicadas e, posteriormente revisadas, diretrizes de tratamento para algumas condições, tais como: TCE5,6,11-13, AVCI, HSA.
A alta incidência projetada de lesões encefálicas agudas, a
falta de dados epidemiológicos precisos, diferenças locais e regionais no tratamento e evolução dos pacientes demonstram
a necessidade de divulgação e adoção do neurointensivismo
na América Latina. A existência de outros dois Consórcios
(Europeu5 e Americano6) incentivou pesquisadores latinoamericanos a conceber uma estrutura similar. Em outubro de
2003 foi formado o LABIC com representantes de Unidades
de Terapia Intensiva (UTI), de diversos países da América
Latina.
O LABIC tem os seguintes objetivos principais:
1. Capacitar os profissionais envolvidos no neurointensivismo.
2. Promover e conduzir investigações clínicas para melhorar os resultados.
3. Propiciar maior intercâmbio entre os centros (UTIs)
participantes.
4. Negociar e participar, junto aos patrocinadores, no desenho e condução do estudo, análise e publicação dos resultados obtidos.
5. Atuar como um órgão de assessoria nos aspectos teóricos e práticos relacionados com os diversos estudos.
6. Estabelecer consensos de tratamento e monitorização
em neurointensivismo.
O Consórcio estabeleceu as seguintes áreas de interesse
para atuação: TCE, traumatismo raquimedular (TRM), hemorragia subaracnóidea (HSA), estado de mal epiléptico,
acidente vascular isquêmico e hemorrágico (AVCI e AVCH).
O núcleo formador do Consórcio elaborou um questionário para analisar o perfil epidemiológico dos centros (UTIs)
participantes. As questões exploram e, conseqüentemente, incentivam a organização do centro através de várias medidas,
entre elas destacam-se:
• Disponibilizar meios para diagnóstico precoce.
• Armazenar as informações de forma confiável.
• Utilizar escalas para avaliação da condição do paciente
na internação e alta da UTI.
• Estabelecer diretrizes de tratamento.
Ainda que o objetivo do questionário não fosse sugerir
ou criar preceitos, a auto-avaliação ocorre naturalmente. O
centro passa a ter um modelo “ouro” de comparação. Se por
um lado a comparação pode expor as deficiências de cada
centro, por outro serve como referencial para o planejamento
das mudanças necessárias. Os resultados serão registrados e
formarão um banco de dados latino-americano sobre lesão
encefálica. Essa medida permitirá conhecer as características
de atendimento em cada região e possibilitará a implantação
de medidas de capacitação e treinamento.
A proposta central do LABIC é justamente incentivar a
produção científica e divulgar o neurointensivismo, visando
uma melhora nos resultados do tratamento. O Consórcio
poderá criar um programa de educação continuada para médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e demais profissionais envolvidos no tratamento ao paciente neurológico crítico, assim
como credenciar Centros de Pesquisa Neurológica na América Latina para realização de estudos multicêntricos clínicos
para novas drogas, procedimentos e equipamentos. No nosso
RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva
RBTI / NEUROINTENSIVISMO - ARTIGO ORIGINAL
meio estimulamos a realização de um estudo epidemiológico
em pacientes vítimas de TCE.
O estudo foi realizado em um hospital público, terciário,
referência para o atendimento de pacientes adultos politraumatizados. Essas características explicam a baixa incidência
em idosos e a ausência de vítimas com menos de 15 anos.
Apesar da falta de significância estatística em diversas
correlações, os resultados encontrados estão de acordo com
as tendências observadas em outros estudos nacionais e internacionais. O número pequeno da amostra pode ter sido responsável pela não confirmação das correlações investigadas.
O estudo de Langlois e col.3 revelaram a importância do
tema e o impacto no planejamento das ações de saúde. Cerca
de 1,5 milhões de TCE ocorrem anualmente nos EUA, desses
250.000 necessitam de internação e cerca de 80.000 pacientes
necessitam de ajuda para atividades diárias um ano após o
trauma. A lesão encefálica traumática é a maior causa de epilepsia14. Os gastos diretos e indiretos com TCE chegam a US
$56 bilhões/ano. A incidência global é maior entre adultos
jovens do sexo masculino. Nesse grupo a principal causa observada foram os acidentes com veículos automotivos (carros
e motocicletas).
Vários estudos demonstraram que as causas etiológicas
podem variar em níveis regionais e grupos etários específicos.
BALDO et al.15 revisaram a epidemiologia de 55.368 casos de
TCE, no nordeste da Itália, no período de 1996 a 2000. Em
60% dos casos foi identificada a causa: 48,5% acidentes com
automóveis (maior incidência em adultos jovens e nos finais
de semana), 8,8% acidentes de trabalho e 12,2% domésticos
(maior incidência em crianças e idosos). Aare e von Holst16
revisaram 27.122 casos de TCE por acidente com motocicleta, no período de 1987 a 1999, na Suécia. A incidência foi
maior em homens (8 vezes) e nos indivíduos com menos de
26 anos. Andersson e col.17 detectaram uma alta de incidência
(546 por 100.000) de TCE na região oeste da Suécia. A causa
principal foi queda do mesmo nível (31%). Hukkelhoven e
col.18 encontraram características regionais com impacto na
epidemiologia, tratamento e evolução de pacientes com TCE.
Diferenças significativas foram encontradas entre o continente europeu e americano e entre os países europeus que refletem variações sociais, culturais e aspectos organizacionais de
cada local.
Observou-se que a principal causa de TCE nos pacientes com mais de 60 anos foram as quedas da própria altura
e a taxa de mortalidade foi elevada nesse grupo. Hukkelhoven e col.19 alertaram para os fatores de risco para queda,
em idosos: artrite, fraqueza muscular, distúrbio da marcha,
equilíbrio ou visão e uso de 4 ou mais medicamentos por dia.
Masson e col.20 realizaram um estudo prospectivo, baseado
em população, da epidemiologia de 248 pacientes com TCE
grave e compararam os resultados com o perfil observado em
centros especializados. Concluíram que no estudo baseado
em população os pacientes eram mais idosos, vítimas de queda e com taxa de mortalidade maior (52%) do que os pacientes dos centros de trauma. Diversos estudos também encontraram relação entre evolução pior (aumento da morbidade
e mortalidade) e idade avançada. Hukkelhoven e col.19 realizaram uma extensa metanálise de 5600 pacientes com TCE e
determinaram que as proporções de mortalidade e resultado
insatisfatório aumentam com a idade: 21% e 39%, respectivaVolume 16 - Número 3 - Julho/Setembro 2004
mente, para menores de 35 anos e 52 e 74% para maiores de
55 anos. Harris e col.21 analisaram 13.908 casos de TCE, entre
1994 e 1995, divididos por décadas de idade. Concluíram que
o risco de mortalidade aumenta progressivamente a partir
dos 30 anos e o maior aumento ocorre após os 60 anos.
Encontramos elevado número de pacientes vítimas de
agressão física (17,14%), sendo 9,52% de ferimentos por PAF
e 7,62% de vítimas de espancamento. Gerhart e col.22 revisaram 2.771 casos de TCE causados por agressão entre 1996 e
1999. Concluíram que as vítimas de agressão são, predominantemente, homens jovens, membros de grupos minoritários
(gangues), solteiros e com antecedentes de alcoolismo. Um
ano após o trauma, ainda apresentavam cefaléia, confusão
mental, distúrbios de atenção e dificuldade para integração
na comunidade. Burnett e col.23 confirmaram os achados de
Gerhart e col.22. O ferimento por PAF pode ser considerado como a forma mais violenta de agressão física. Martins
e col.24, no Brasil, revisaram 319 casos de PAF na cabeça,
no período de 1994 a 2000. Os seguintes fatores foram considerados preditivos de alta mortalidade ou morbidade: baixa
pontuação na ECG na admissão, anisocoria, pupilas médias
e fixas, trajeto central do projétil (tipo transventricular ou
bihemisférico) e ferimentos bi ou multilobar detectados pela
TC. Eles concluíram que a cirurgia não deve ser recomendada
em pacientes com ferimento penetrante e com 3 a 5 pontos na
ECG, na ausência de hematoma causando efeito de massa.
Langlois e col.3 revisaram a epidemiologia dos sobreviventes de TCE, em 1997, nos EUA. A incidência foi maior em
adolescentes (15 –19 anos) e idosos (≥ 65 anos). As principais
causas do TCE foram acidente com veículos motorizados,
quedas e assaltos. Eles relataram que 46% dos ocupantes de
veículos, 53% dos motociclistas e 41% dos ciclistas não estavam usando equipamentos de proteção pessoal no momento
do trauma. As elevadas taxas de morbidade e mortalidade, e
a falta de uso de equipamentos de proteção individual verificadas nos estudos citados, levaram vários autores a propor a
adoção de medidas preventivas para os fatores causais mais
relevantes. Essas foram direcionadas, principalmente, para
os acidentes com veículos automotivos, agressões e quedas
(campanhas de educação no trânsito, prevenção do TCE)15,16.
Servadei e col.25 verificaram que a lei italiana que obriga o
uso de capacete reduziu a incidência de TCE e procedimentos neurocirúrgicos em motociclistas, com o desaparecimento
quase que completo dos hematomas extradurais. A lei e o policiamento foram efetivos na prevenção do TCE nesse grupo.
O questionário do LABIC levou os autores a realizarem
uma avaliação epidemiológica e organizacional do centro.
Os resultados encontrados descrevem a realidade da região
e servirão de base para a discussão de medidas preventivas,
em grupos específicos. Servadei e col.26 utilizaram um estudo
da epidemiologia local (Roma e região) para planejar o tratamento do TCE. Concluíram que o número de internações
de TCE leve pode ser reduzido com o uso adequado da tomografia de crânio em adultos. Santos e col.27 observaram
que o atendimento pré-hospitalar teve impacto relevante na
mortalidade global dos pacientes com TCE.
A taxa de mortalidade global foi elevada (40%), variou
diretamente com a idade, foi maior nas mulheres (predominantemente idosas), em vítimas de atropelamento (50%)
e ferimento por PAF (50%). Esses resultados estão de acor-
167
RBTI / NEUROINTENSIVISMO - ARTIGO ORIGINAL
do com o material discutido anteriormente. Houve evidente
presença de maior mortalidade nos pacientes com índice de
APACHE II superior igual ou superior a 24 pontos, quando
comparados com pontuações inferiores a 15 pontos.
Não avaliamos a incidência de seqüelas neurológicas que
poderiam expressar a morbidade associada aos diferentes
agentes causais e demais parâmetros epidemiológicos. E não
pesquisamos o atendimento pré-hospitalar que pode ter impacto relevante na mortalidade global.27
Merecerão atenção especial na adoção de medidas preventivas os pedestres (atropelamentos 20,95%), os motociclistas (acidentes com motocicletas 24,76%) e a segurança pública (agressão física 17,14%).
Os achados reforçam a necessidade de se ampliar esse estudo epidemiológico a fim de levantar subsídios para campanhas preventivas, no que se refere a associação de drogas
e álcool com acidentes de trânsito em geral e no que diz respeito às seqüelas funcionais que geram incapacidade para o
trabalho, associando menor massa produtiva com maior custo em benefícios.
As vantagens regionais para o estabelecimento de um centro associado ao LABIC são várias e podem ser divididas em:
• Científica – possuir um centro de pesquisa, treinamento
e formação especializada no tratamento de doenças neurológicas em fase aguda.
• Operacional - divulgar diretrizes de tratamento a outras
unidades para uniformização dos processos. Acompanhamento das incidências reais das diversas lesões neurológicas
(banco de dados), do impacto das medidas de tratamento e
desenvolvimento de campanhas profiláticas dirigidas.5,6,28
• Financeira - reduzir gastos na área da saúde, através de
um programa organizado, racional e focado na prevenção.
• Social - todos nós estamos sujeitos a lesões neurológicas
graves. Nessa situação tempo e tratamento racional são fundamentais para uma boa recuperação.
CONCLUSÃO
Os preceitos, indiretamente, divulgados e estimulados
pelo questionário do LABIC foram importantes para a reflexão sobre o tratamento dos pacientes com lesão encefálica
aguda e, especificamente nesse trabalho, vítimas de TCE.
A auto-avaliação baseada nos aspectos positivos e negativos
encontrados na análise retrospectiva desencadeou o interesse em
se promover ações para melhorar a organização do centro e os
resultados do tratamento de pacientes portadores de TCE.
Pode-se concluir que:
1. A idéia de se estabelecer centros especializados em neurointensivismo é fundamental para o tratamento de pacientes
com lesões encefálicas.
2. A adesão ao LABIC resultou em uma análise epidemiológica que permitiu o reconhecimento da real situação
local.
3. Os estudos epidemiológicos são fundamentais para
subsidiar campanhas de prevenção de TCE.
4. As informações obtidas pela análise do APACHE II
nos diversos subgrupos são relevantes e demonstram a importância da adoção de escalas de avaliação do paciente (específicas e gerais).
5. A adesão de mais centros ao grupo LABIC-ES deverá
168
ter repercussão benéfica no tratamento e prevenção das lesões encefálicas.
Essas conclusões incentivaram os autores a divulgar o
neurointensivismo, no Estado do Espírito Santo, através das
seguintes medidas:
1. Divulgar os objetivos do LABIC;
2. Incentivar a adesão de novos centros (UTIs) ao LABIC;
3. Incentivar a adoção de diretrizes e consensos de tratamento em neurointensivismo;
4. Sugerir medidas estaduais de prevenção ao TCE;
5. Estimular a pesquisa científica em neurointensivismo.
RESUMO
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: O LABIC (Latin
American Brain Injury Consortium) pretende capacitar profissionais, incentivar a pesquisa científica e divulgar diretrizes
de tratamento em neurointensivismo. O núcleo formador do
Consórcio elaborou um questionário para analisar o perfil
epidemiológico dos centros (UTI) participantes. A adesão ao
LABIC, com o preenchimento do questionário proposto, resultou no interesse em se estudar o perfil epidemiológico de
pacientes vítimas de traumatismo cranioencefálico (TCE). O
objetivo de se traçar o perfil dos pacientes vítimas de TCE é o
de ter-se dados fidedignos para serem utilizados no estímulo
dos órgãos competentes a promover ações de prevenção e de
adequação das Unidades de Terapia Intensiva para o tratamento desses pacientes.
MÉTODO: Estudo retrospectivo de 105 pacientes, com
traumatismo cranioencefálico internados em uma UTI geral
estadual, no período de janeiro a outubro de 2003.
RESULTADOS: Dos pacientes estudados 92 (87,62%)
eram homens e 13 (12,38%) mulheres. A idade variou entre
15 e 82 anos. Vinte e oito pacientes sofreram queda (26,67%),
ocorreu incidência importante (9,52%) de ferimentos por
projétil de arma de fogo (PAF). O tempo médio de internação
foi de 10,85 dias. Na internação, 81 pacientes (77,19%) possuíam escala de Coma de Glasgow ≤ 8. A mortalidade global foi
de 40%, 35 óbitos no grupo masculino (38,04% do grupo) e
7 no feminino (53,85%). A mortalidade foi maior, porém sem
diferença estatística significante, nos pacientes com idade acima de 60 anos (80%), nos grupos vítimas de queda (39,28%),
atropelamento (50%) e PAF (50%). Os acidentes no trânsito
(resultado de acidentes envolvendo automóvel, motocicleta
ou atropelamento) foram responsáveis por 54,76% dos óbitos. Pacientes com valor de APACHE II (Acute Physiology
and Chronic Health Evaluation) acima de 23 pontos tiveram
taxa elevada de mortalidade, 92,31% (p = 0,0329). Os sobreviventes apresentaram valor médio de APACHE II de 14,06
pontos (DP 6,17).
CONCLUSÕES: A adesão ao LABIC desencadeou uma
análise epidemiológica que permitiu o reconhecimento da real
situação local e a discussão de possíveis medidas preventivas
a serem apresentadas aos órgãos competentes. A divulgação
do neurointensivismo e a adesão de mais centros ao grupo
LABIC-ES deverão ter repercussões benéficas no tratamento
e prevenção das lesões encefálicas.
Unitermos: hemometabolismo encefálico, traumatismo
cranioencefálico, isquemia encefálica, neurointensivismo,
epidemiologia, trauma, lesão encefálica.
RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva
RBTI / NEUROINTENSIVISMO - ARTIGO ORIGINAL
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Estudo Epidemiológico do TCE em Unidade de Terapia