KARL POPPER E A COOPERAÇÃO HOSTIL-AMISTOSA NO PROCESSO JUDICIAL Rafael Oliveira* SUMÁRIO. 1. Traçando os rumos. 2. Simples assim. 3. Sobre o pedigree do conhecimento: 3.1 Errar é humano. 3.2 Podemos aprender com os nossos erros. 4. A busca por regularidades: 4.1. Deve haver um compasso. 4.2. Contadores de mitos. 4.3. O valor das nossas velhas paredes. 5. Aprendendo pelo diálogo: 5.1. Tudo é doxa. 5.2. Caçadores de mitos. 5.3. Enfim, o criticismo. 6. Criticismo e participação: os filhos do diálogo. 7. A cooperação hostil-amistosa no processo judicial. 8. Conclusão: Popper é pop. 9. Referências. RESUMO: Este artigo pretende examinar a epistemologia de Karl Popper, dando especial ênfase à crítica racional como principal característica do método por ele desenvolvido para a construção do conhecimento científico. Pretende também discutir se é possível promover uma aproximação entre a crítica racional e os princípios do contraditório e da cooperação no processo judicial. Palavras-chave: Karl Popper. Epistemologia. Criticismo. Processo judicial. Contraditório. Cooperação. ABSTRACT: This article aims to examine the epistemology of Karl Popper, with particular emphasis on rational criticism as the main feature of the method he developed for the construction of scientific knowledge. It also discuss whether it is possible to promote an approximation between the rational criticism and the principles of contradictory and cooperation in the judicial process. Keywords: Karl Popper. Epistemology. Criticism. Judicial process. Contradictory. Cooperation. 1. TRAÇANDO OS RUMOS O objetivo deste trabalho é bastante modesto. Tão modesto quanto o espírito do filósofo que serve de inspiração para esta pesquisa, a cujas idéias me foi possível ter acesso em virtude da frutuosa convivência com os colegas e com os professores da disciplina Metodologia, os Drs. * Especialista em Direito Processual Civil (UNIJORGE/JusPodivm). Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professor da Faculdade Baiana de Direito e da Especialização em Direito Processual Civil do Curso JusPodivm. Procurador do Município do Salvador/BA. Advogado. Rodolfo Pamplona Filho e Nelson Cerqueira, durante o período de aulas do programa de Mestrado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Neste breve artigo, não é minha intenção, obviamente, exaurir o pensamento de Karl Popper. Nem poderia chegar a tanto, seja por julgar-me incapaz, seja por julgá-lo impossível: as idéias de Popper são inesgotáveis. Foi possível perceber isso à medida que me embrenhava nos seus textos, no seu raciocínio arguto, na sua escrita clara, direta, às vezes irônica e quase sempre poética. Numa espécie de metalinguagem, é possível definir a sensação de conhecer o pensamento de Popper a partir da sua própria teoria do conhecimento: Quanto mais aprendermos sobre o mundo, e quanto mais profunda essa aprendizagem for, mais consciente, específico e articulado será o nosso conhecimento daquilo que desconhecemos, ou seja, o nosso conhecimento da nossa ignorância.1 Este trabalho tem por objetivo tão-somente resumir em algumas linhas a essência do método proposto por Karl Popper para a formação e o desenvolvimento do conhecimento científico. A finalidade é entender o papel que a crítica racional, ou o criticismo, exerce no método popperiano de desenvolvimento do conhecimento científico. Mas não é só. Demonstrada a essência do seu método científico, tentarei verificar se e em que medida é possível e útil aplicar o criticismo popperiano à ciência jurídica, em especial ao processo judicial. 2. SIMPLES ASSIM Karl Raimund Popper foi, antes de tudo, um filósofo da simplicidade. Nascido em Viena, em 28 de julho de 1902, Popper foi criado entre os livros do pai, doutor em Direito pela Universidade de Viena, e a influência musical da mãe, uma excelente pianista. Pensou em dedicar-se à música, mas foi como aprendiz de um velho mestre marceneiro que, segundo suas próprias palavras, aprendeu mais sobre a teoria do conhecimento do que com qualquer outro professor: Foi ele, com efeito, quem me ensinou não apenas o quão pouco eu sabia, mas também que a sabedoria a que eu pudesse aspirar talvez consistisse apenas em darme eu conta mais amplamente do infinito de minha ignorância. 2 No alvorecer da sua adolescência, o horror da primeira guerra mundial deixou-lhe, como herança, um espírito inquieto e crítico, alimentado pelas opiniões políticas que se ouviam à 1 POPPER, Karl. Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância. In: ______. Conjecturas e refutações: o desenvolvimento do conhecimento científico. Tradução de Benedita Bettencourt e nota de apresentação de João Carlos Espada. Coimbra: Almedina, 2006, p. 50. 2 POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 13-14. época. Convencido de que os sérvios haviam mandado matar o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, quando em viagem a Sarajevo (Bósnia), o jovem Popper chegou a celebrar, em versos, o ataque do Império Austro-húngaro à Sérvia; mas pouco depois se apercebeu de que tudo não passara de propaganda de guerra, de que era má a causa da Áustria-Hungria e da Alemanha, e chegou a reputar merecida a derrota do seu país naquele confronto3. Muito mais do que uma experiência infeliz, o episódio pareceu impingir-lhe no espírito, mesmo em tão prematura idade, um senso de desconfiança e uma propensão inquietante à crítica das idéias dominantes. Em 1918, terminada a guerra, Popper, então com dezesseis anos, abandonou a escola e ingressou, como ouvinte, na Universidade de Viena. Inspirado pelos debates com o amigo Arthur Arndt e firme no propósito de acabar com a pobreza de parte da população vienense, algo que tanto o incomodava e comovia, Popper se enamorou das idéias e dos ideais comunistas: “durante uns dois ou três meses considerei-me comunista”4. No entanto, ele afirma que logo cedo veio a desilusão: O comunismo é um credo que promete a concretização de um mundo melhor. Diz basear-se em conhecimento: conhecimento das leis do desenvolvimento histórico. […] Preocupei-me com o fato de não só ter aceito, sem maior exame, uma teoria complexa, como também de haver efetivamente notado alguns dos pontos que estão errados na teoria e na prática do comunismo. Eu reprimira, todavia, essas considerações — em parte para ser fiel aos amigos; em parte para ser fiel à “causa”; em parte porque há uma espécie de mecanismo a nos envolver com força crescente: uma vez feita determinada concessão, que sacrifique a consciência intelectual, mesmo a propósito de algum aspecto de somenos relevância, não é fácil retroceder; procura-se então justificar a falha em nome da fundamental grandeza da causa, que parece sobrepujar os pequenos compromissos de ordem moral ou intelectual. […] Eu aceitara um credo perigoso; aceitara-o sem crítica, dogmaticamente. 5 Foram esses os desencantos que, quiçá por ironia, fizeram com que Popper, até então um jovem marxista, preparasse o terreno para semear as idéias antimarxistas que mais tarde defenderia com tanta devoção. Em A sociedade aberta e seus inimigos, ele aponta o historicismo marxista como um dos principais inimigos da sociedade aberta — isto é, da sociedade onde existe liberdade de crítica. Isso porque esse historicismo trabalhava com uma idéia determinista de que a história deveria ser interpretada como uma luta de classes, o que permitiria predizer, sob essa perspectiva, as ações do futuro. Daí a sua contradição com a 3 Ibidem, p. 20. Ibidem, p. 39. 5 Ibidem, p. 40. 4 idéia de uma sociedade aberta: limitava a liberdade do pensamento ao conhecimento do desenvolvimento histórico.6 Paralelamente à decepção com o marxismo, Karl Popper manteve seu primeiro contato com as idéias de Albert Einstein. Numa palestra feita em Viena, Einstein expôs a sua teoria da relatividade, cujos preceitos iam além da teoria mecânica de Newton, então dominante entre os cientistas. Segundo as palavras de Popper, “o que mais me impressionou foi a explícita asserção de Einstein, de que consideraria insustentável a sua teoria caso ela viesse a falhar em certas provas”7. Esse foi um acontecimento crucial para a formação da teoria do conhecimento popperiana. As afirmações de Einstein lançaram a semente do que mais tarde seria a sua doutrina do falibilismo e apontaram para a atitude que se espera de um cientista e para o método ideal de construção do conhecimento científico: o método crítico. Einstein procurava experimentos cruciais, cujo acordo com suas previsões não bastaria para estabelecer a teoria da relatividade, mas cujo desacordo, como ele próprio insistia em acentuar, revelaria a impossibilidade de aceitar-se a teoria. […] Essa era, sentia eu, a verdadeira atitude científica. Ela diferia por completo da atitude dogmática, que constantemente proclama haver encontrado “verificações” de teorias prediletas. Foi assim que, com apenas dezoito anos de idade, Popper chegou à conclusão de que a atitude científica era uma atitude crítica: formulada uma nova teoria, uma proposta de solução para determinado problema, a atitude científica exige que se submeta essa teoria a testes que busquem refutá-la — é dizer: testes que demonstrem que não se trata da melhor teoria — e não a testes que visem a confirmá-la. A confirmação experimental de uma teoria não prova que ela é verdadeira, mas apenas que ela ainda não foi refutada, razão por que as experiências que buscam simplesmente demonstrá-la pouco contribuem para o desenvolvimento da ciência. Para usar um exemplo de Popper: por mais que se encontrem corvos pretos, isso não será o bastante para que se tenha por verdadeira a teoria de que “todos os corvos são pretos”; bastará, porém, que se encontre 6 POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1987, v. 2, passim. Popper identifica o início dessa “abertura” da sociedade com o que ele chama de “Grande Geração” de Atenas no período que precedeu à Guerra do Peloponeso, onde se destacavam pessoas como Péricles, Protágoras e Demócrito, grandes defensores dos ideais democráticos. O principal expoente da sociedade aberta, no entanto, foi Sócrates, “que ensinou, em outras palavras, ser a crítica o espírito da ciência.” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1987, v. 1, p. 201) 7 POPPER, Karl. Autobiografia intelectual, op. cit., p. 44. apenas um corvo branco, ou de qualquer outra cor, para que se confirme a falsidade da asserção8. Esse breve panorama da vida de Popper, embora não reflita a intensidade da sua vivência, é suficiente para contextualizar as suas principais contribuições para a filosofia do conhecimento — ao menos, aquelas contribuições sobre as quais discutiremos nos próximos itens. Foram essas experiências pessoais que lhe permitiram formar a base da sua epistemologia. Como se pôde ver, seus problemas eram demasiadamente humanos e talvez tenha sido esta a razão por que as soluções por ele propostas tenham revelado-se sobremaneira simples. É isso que justifica ter-lhe atribuído o predicativo de “filósofo da simplicidade”. 3. SOBRE O PEDIGREE DO CONHECIMENTO 3.1. ERRAR É HUMANO O foco das atenções de Popper é a epistemologia, ou teoria do conhecimento. Embora tenha se dedicado ao estudo de outros assuntos, o grande problema sobre o qual ele se debruçou diz respeito ao processo de conhecimento: como se forma e se desenvolve o conhecimento científico? Sobre o assunto, são recorrentes as referências aos métodos indutivo e dedutivo de formação do conhecimento. Ainda hoje se pode constatar, em larga escala, a utilização, como base para a formação e desenvolvimento do conhecimento, do empirismo de Francis Bacon ou do intelectualismo (ou racionalismo) de René Descartes. Bacon propunha que a fonte do conhecimento era a observação: era a partir dos sentidos e da observação da natureza que se poderia alcançar o conhecimento, através da intuição de suas regras gerais (método indutivo). Já Descartes propunha que a fonte do conhecimento era a razão: era a partir da intuição intelectual, da clarividência permitida por Deus, e mediante a inferência lógica das conseqüências atribuíveis às leis gerais, que se poderia alcançar o conhecimento (método dedutivo). As idéias de Bacon e de Descartes tinham algumas semelhanças substanciais. Esses filósofos fomentaram no espírito humano da época a convicção de que o homem já traz em si a fonte do conhecimento — para Bacon, a observação da natureza; para Descartes, a intuição 8 Cf. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 71-73. intelectual. Portanto, não precisaria recorrer a autoridade alguma para alcançar a verdade. O homem por si se basta na busca do conhecimento. É o que Karl Popper alcunha de doutrina do “optimismo epistemológico” 9. Apesar da simplicidade, essas doutrinas são carregadas de forte conteúdo ideológico: a possibilidade de conhecer por si mesmo torna o homem livre. Para alcançar a verdade, o homem não precisa de muita coisa. Basta-lhe carregar na mochila os próprios sentidos para perceber a natureza (Bacon) ou a própria razão para intuir as leis básicas de todas as coisas (Descartes) e esses são os instrumentos para a construção do conhecimento. Ambos acreditavam na idéia de que a verdade é manifesta, de que ela precisa apenas de uma luz que a ilumine. Para se chegar até essa verdade é necessário, segundo Bacon, expurgar todas as suposições, as antecipações, as conjecturas, os preconceitos; para Descartes, é necessário duvidar de todo o conhecimento que se tem, a partir da negação de todas as crenças prévias, discernindo apenas aquilo que nós mesmos sabemos ser verdadeiro. A epistemologia desses filósofos é, como se vê, anti-autoritária e anti-tradicionalista, na medida em que aconselha a libertação de todas as crenças e preconceitos, mas, segundo Popper, “apesar das suas tendências individualistas, nenhum deles ousou apelar para o nosso juízo crítico”10. A despeito dessa postura anti-autoritária e anti-tradicionalista, eles simplesmente impuseram o seu modelo de autoridade: a autoridade dos sentidos, no caso de Bacon, e a autoridade da razão, no caso de Descartes.11 Para eles, se o cientista não consegue desvendar a verdade manifesta, isto é sinal de que não conseguiu se desvencilhar a contento dos seus preconceitos e crenças. Assim, eventual erro no resultado alcançado é justificado por alguma falha no processo de depuração da verdade manifesta. Em outras palavras, para Bacon e Descartes, não são os nossos sentidos ou a nossa razão que erram; nós é que erramos a partir do momento em que interpretamos equivocadamente o que nos é dado pelos sentidos ou pela razão. Numa perspectiva inversa, eles tentam justificar a idoneidade do conhecimento através da investigação da sua origem. É como se, conhecendo a sua fonte, fosse possível atestar se um 9 POPPER, Karl. Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit. p. 20. 10 Ibidem, p. 33. 11 A característica fundamental desse paradigma de racionalidade dominante é, segundo Boaventura de Sousa Santos, o de ser um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautam pelos seus princípios epistemológicos e metodológicos (cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 21). conhecimento é ou não digno de crédito12. No caso de Bacon, o conhecimento idôneo é aquele que tem sua fonte na observação da natureza; para Descartes, aquele que tem sua fonte na razão. Não conseguiram perceber, contudo, que todo conhecimento é conhecimento humano — a razão é razão humana; a observação depende dos sentidos humanos. Com isso, parecem ter fechado os olhos para o fato de que a possibilidade do erro é inerente à razão e aos sentidos, seja por desconhecimento ou má utilização da técnica de pesquisa, seja por força da influência de convicções pessoais, que normalmente induzem a alguma arbitrariedade. 3.2. PODEMOS APRENDER COM OS NOSSOS ERROS Se o conhecimento é humano e se a possibilidade do erro é inerente à condição humana, é necessário enfrentar esse problema e indagar qual seria o método adequado para depurar esses erros. Esta é exatamente a chamada doutrina da falibilidade de Karl Popper: Ela implica que podemos procurar a verdade, a verdade objectiva, ainda que na maioria das vezes possamos falhá-la por uma larga margem. E implica também que, se respeitarmos a verdade, teremos de a procurar, procurando persistentemente os nossos erros, por meio de uma infatigável crítica — e auto-crítica — racional.13 Chegamos, então, à tese básica de Popper, em torno da qual gira todo o seu pensamento sobre a filosofia da ciência. Na sua concepção, a chave para compreender o mecanismo que impulsiona o conhecimento científico consiste em que “podemos aprender com os nossos erros”14. Para Popper, “nem a observação nem a razão podem ser descritas como fontes do conhecimento”15. Ele entende que não existe fonte ideal do conhecimento. Todas elas podem nos induzir ao erro. “Não há fontes últimas do conhecimento. Todas as fontes, todas as sugestões, são bem-vindas; e todas as fontes, todas as sugestões, estão abertas a um exame crítico”16. 12 A confusão se dá, segundo Popper, por conta da aproximação que se faz entre a ciência e a linguagem. Muitas vezes, para atestar a correção de uma definição, é necessário buscar a origem das palavras de que ela é composta. Mas isso nem sempre ocorre com o conhecimento: “Com efeito, se tivermos dúvidas sobre uma dada asserção, o procedimento normal é testá-la, e não indagar acerca das suas fontes; e, se encontrarmos uma corroboração independente, é muito possível que aceitemos a asserção sem nos preocuparmos minimamente com as fontes.” (POPPER, Karl. Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 43) 13 POPPER, Karl. Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 34. 14 É o que ele mesmo afirma no prefácio a uma das suas mais importantes obras (Conjecturas e refutações, op. cit., p. 9). 15 POPPER, Karl. Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 19. 16 Ibidem, p. 48. A pergunta que ele faz, então, é a seguinte: “Como podemos esperar conseguir detectar e eliminar o erro?”.17 Não adianta buscar a origem do conhecimento, porque não é a sua genealogia que o tornará legítimo. O conhecimento não tem nem precisa de pedigree18. O que o tornará legítimo é a predisposição de técnicas que possibilitem detectar e eliminar os equívocos em que esse conhecimento eventualmente incorre. Diz ele: A resposta correcta à minha pergunta […] será, segundo creio, “Criticando as teorias ou suposições dos outros e — se nos conseguirmos ensinar a fazê-lo — criticando as nossas próprias teorias ou suposições.” (Este último ponto é altamente desejável, mas não indispensável, visto que, se não formos capazes de criticar as nossas próprias teorias, outros haverá que o façam por nós.)19 É neste sentido que podemos aprender com os nossos próprios erros: devemos buscar detectálos e eliminá-los, o que, para Popper, somente pode ser feito a partir da submissão de nossas teorias à crítica racional. 4. A BUSCA POR REGULARIDADES 4.1. DEVE HAVER UM COMPASSO Segundo Rubem Alves, “a exigência de ordem se fundamenta na própria necessidade de sobrevivência”, de sorte que “não importam as diferenças que separam o senso comum da ciência: ambos estão em busca de ordem”20. De fato, não podemos negar que vivemos, todos nós, numa eterna busca por regularidades. Uma das tarefas mais elementares do pensamento humano é, sem dúvida, a de tentar tornar as coisas e os fenômenos mais compreensíveis. Foi o que levou, por exemplo, Émile Durkheim a pretender encarar os fatos sociais como coisas, no intuito de enxergar neles uma projeção das leis da natureza21. É também essa expectativa que leva os economistas a buscar, nas oscilações das bolsas de valores do mundo inteiro, uma regularidade imanente, uma ordem de recorrência cíclica, que permita ao investidor fazer projeções sobre o comportamento do mercado — conquanto tais previsões nos dêem a impressão, mais das vezes, de que não passam de puro exercício de futurologia. 17 Ibidem, p. 46. Cf. ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 12 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 185. 19 POPPER, Karl. Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 47. 20 ALVES, Rubem. Filosofia da ciência, op. cit., p. 39. 21 Para Durkheim, “a primeira regra e a mais fundamental é: considerar os fatos sociais como coisas.” (DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 42) 18 A expectativa de regularidade gera um efeito curioso: comumente temos dificuldade de entender ou mesmo de apreciar aquilo em que não conseguimos discernir uma certa ordem. É, por exemplo, difícil entendermos os ritmos sincopados22, pelo só fato de que eles quebram nossas expectativas de regularidade, de cadência musical. É difícil nos acostumarmos com a assimetria e as antíteses da arte e da poesia barrocas23. É difícil, por fim, para uma criança, entender por que o plural de “mão” é “mãos”, mas o plural de “mamão” é “mamões”. Sobre a busca por regularidades dos signos, Saussure explica que: […] todo o sistema da língua repousa no princípio irracional da arbitrariedade do signo que, aplicado sem restrições, conduziria à complicação suprema; o espírito, porém, logra introduzir um princípio de ordem e de regularidade em certas partes da massa dos signos, e esse é o papel do relativamente motivado. Se o mecanismo da língua fosse inteiramente racional, poderíamos estudá-lo em si mesmo; mas como não passa de uma correção parcial de um sistema naturalmente caótico, adota-se o ponto de vista imposto pela natureza mesma da língua, estudando esse mecanismo como uma limitação do arbitrário.24 A expectativa de encontrar um padrão de regularidade em todas as coisas e em todos os fenômenos conduz à adoção, segundo Karl Popper, de um comportamento dogmático: “esperamos encontrar regularidades em todo o lado e tentamos vê-las até onde elas não existem”25. Assim, quando nos deparamos com um problema, tentamos imediatamente encontrar alguma explicação que nos permita compreender o caos em que nos vemos inserido. Nisto consiste, para Popper, o comportamento dogmático. 4.2. CONTADORES DE MITOS 22 “A síncope, outra característica típica da música africana e do candomblé, é o efeito rítmico produzido pelo prolongamento ou deslocamento do acento do tempo fraco ao tempo forte. O prolongamento do acento faz com que não exista uma percussão na batida forte. Assim, produz-se uma quebra da expectativa por uma batida forte e por isso verifica-se um choque. […] Os ritmos sincopados quebram a ordem dos ritmos esperados e criam assim um novo padrão de ordem. O nosso corpo, o coração, o nosso andar obedecem a um funcionamento rítmico isócrono. A falta desse ritmo provoca um choque, uma sensação de caída. Simbolicamente nos fala da possibilidade das coisas não acontecerem sempre na mesma forma, e obriga o corpo ao movimento.” (BARBARA, Rosa Maria Susanna. Os ritmos sincopados. Disponível em: <http://www.musicaeadoracao.com.br/efeitos/ritmos_sincopados.htm> Acesso em: 11 jul. 2008) 23 O que não afasta a beleza, por exemplo, da poesia de Gregório de Mattos, como no soneto À instabilidade das cousas no mundo, que bem demonstra a valorização da antítese e da inconstância: “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,/ Depois da luz se segue a noite escura,/ Em tristes sombras morre a formosura,/ Em contínuas tristezas, a alegria.// Porém se acaba o Sol, por que nascia?/ Se formosa a luz é, por que não dura?/ Como a beleza assim se transfigura?/ Como o gosto da pena assim se fia?// Mas no Sol e na luz, falta a firmeza,/ Na formosura não se crê constância,/ E na alegria sinta-se tristeza.// Começa o mundo enfim pela ignorância,/ E tem qualquer dos bens por natureza/ A firmeza somente na inconstância.” (MATTOS, Gregório de. À instabilidade das cousas no mundo. Disponível em: < http://www.sonetos.com.br>. Acesso em: 11 jul. 2008). 24 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Ed Cultrix, s/d, p. 154. 25 POPPER, Karl. Ciência: conjecturas e refutações. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 76. A busca por regularidade nos impulsiona a teorizar, a criar conjecturas, apresentando-as como propostas de solução. É exatamente por isso que, segundo Popper, se é possível dizer que o conhecimento tem alguma origem, decerto que ele surge a partir de problemas, não de percepções ou observações. A ciência surge a partir das conjecturas feitas acerca de problemas que, muitas vezes, se apresentam após uma única observação26. Na sua visão, não há conhecimento sem problema, nem há problema sem conhecimento. Isso significa que “o conhecimento começa da tensão entre conhecimento e ignorância”27. O filme Fim dos tempos (The Happening)28, embora de duvidosa qualidade, dá-nos um bom exemplo de comportamento dogmático. O roteiro cuida de um fenômeno que se alastra por várias cidades do nordeste dos Estados Unidos e que faz com que as pessoas percam o seu instinto de auto-preservação. Em razão disso, elas são induzidas a se submeter a situações extremamente perigosas, o que leva muitas delas ao suicídio ou à auto-mutilação. Diante do problema, surgem inúmeras especulações sobre qual seria a causa de tudo aquilo: as soluções propostas vão desde ataques terroristas com armas químicas, passam por uma possível ação proposital do governo norte-americano e chegam até a uma teoria de rebelião das plantas, que estariam liberando toxinas no ar. Eis então como surgem os dogmas: […] sempre que nos vemos de repente no meio de um ambiente, quer natural, quer social, tão desconhecido que não nos seja possível prever o que vai acontecer, então, em tais circunstâncias, todos ficamos ansiosos e atemorizados. E isso sucede porque, quando não temos possibilidade de prever o que vai acontecer no nosso ambiente — de prever, por exemplo, como é que as pessoas se vão comportar — também não temos, nesse caso, possibilidade de reagir racionalmente. 29 Assim, as nossas conjecturas e teorias nada mais são que uma tentativa de enxergar certa ordem no caos que um problema nos propõe. “Uma ‘tentativa’ ou um novo ‘dogma’ ou uma nova ‘expectativa’ é fruto, pois, em grande parte, de necessidades inatas, que originam problemas específicos”30. É na atitude dogmática que se encontra o germe da ciência. Tratase, na visão de Popper, de um momento pré-científico, um estágio necessário para atingir-se, 26 Cf. POPPER, Karl. Ciência: conjecturas e refutações. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 82. POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. In: ______. Lógica das ciências sociais. Tradução de Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho, Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 14. 28 FIM dos tempos. Diretor, roteirista e produtor: M. Night Shyamalan. Estados Unidos e Índia: Spyglass Entertainment, 2008, 95 min., widescreen, color. 29 POPPER, Karl. Avançando para uma teoria racional da tradição. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 182. 30 POPPER, Karl. Autobiografia intelectual, op. cit., p. 55. 27 mais à frente, o pensamento crítico31, este sim verdadeiramente marcante para o conhecimento científico. O pensamento dogmático é fundamental, conforme se verá mais detidamente no próximo item, para o desenvolvimento da crítica, porque é sobre aquele terreno que esta deve atuar. Os dogmas dão origem a uma rede de teorias e fornecem um sistema de diretrizes para que os próximos passos sejam dados no campo científico. Não se põe aqui, ao menos por enquanto, a questão de saber se essas diretrizes são boas ou ruins, ou se são falsas ou verdadeiras. O fato é que os problemas concretos levam à formulação de conjecturas que, por sua vez, têm por objetivo lhes dar alguma explicação. Essas conjecturas compõem, em conjunto, o material sobre o qual deverá incidir a crítica. A própria teoria popperiana que ora discutimos é, ela mesma, uma conjectura. Ela nasce da especulação de que a ciência, assim como a poesia, teria surgido a partir do mito. No livro Em busca de um mundo melhor, Popper afirma que: Os mitos são tentativas ingênuas, inspiradas pela fantasia, de dar uma explicação de nós mesmos e do mundo. Uma grande parte não só da poesia como também da ciência ainda pode ser descrita como uma tal tentativa ingênua, inspirada pela fantasia, de explicação do mundo.32 De fato, conforme lição de René Ménard: A mitologia primitiva é a língua poética de que se serviam os povos antigos para explicar os fenômenos naturais. […] Tudo quanto nos apresenta a natureza exterior era, aos olhos dos antigos, a forma visível de personalidades divinas. […] O sol, para os antigos, era um brilhante deus em luta contra a noite; quando um vulcão atirava aos ares as lavas, diziam que um gigante estava atacando o céu, e quando a erupção chegava ao fim, afirmavam que Júpiter, vitorioso, o arremessara ao Tártaro.33 Esses mitos, que eram o fruto da busca incessante por uma maior compreensão do mundo, compunham a tradição da época, é dizer, compunham a rede de teorias que, de um modo ou de outro, por mais improvável que nos pareça hoje em dia, serviam como explicação dos problemas que acossavam a mente e a vida das pessoas naquela época. 31 Ibidem, p. 48. POPPER, Karl. Autocrítica criativa na ciência e na arte. In: ______. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 294. Compartilha desse pensamento o nosso Rubem Alves, com a poesia que lhe é inerente: “As teorias nasceram com os sonhos, as fantasias, os poemas, as sonatas, em meio às visões dos místicos, ao prazer dos charutos, ao lazer das caminhadas, ao amor intelectual pelos objetos… Imaculada conceição? Ilusão de cientistas que não pararam para pensar sobre a origem de seus próprios pensamentos.” (ALVES, Rubem. Filosofia da ciência, op. cit., p. 173) 33 MÉNARD, René. Mitologia greco-romana. Tradução de Aldo Della Nina. São Paulo: Opus, 1991, v. 1, p. 1-2. 32 Popper conjectura34, então, que foi exatamente este o substrato sobre o qual os primeiros filósofos gregos começaram a trabalhar. Assim, por exemplo, em vez de admitir que “Atlas sustenta as colunas que separam a Terra do céu”35, Anaximandro de Mileto lançou mão de uma nova conjectura: a de que “a Terra se mantém equilibrada sem estar sustentada por nada, permanecendo em repouso por causa da igual distância em que se acha de tôdas as partes” 36. Ao propor novas conjecturas, os antigos filósofos terminavam por questionar os velhos dogmas e sugerir a sua substituição por outros, criando assim uma nova tradição. 4.3. O VALOR DAS NOSSAS VELHAS PAREDES Um dos problemas aos quais Popper se dedicou foi justamente o relativo à tarefa da tradição na formação e no desenvolvimento do conhecimento. O tema mereceu a sua atenção por conta da conhecida divergência entre racionalismo e tradicionalismo, que se assenta na premissa racionalista de que, na busca da verdade e na construção do conhecimento, todos os preconceitos e crenças devem ser deixados de lado. Bacon, por exemplo, vê os preconceitos como “ídolos” e os adjetiva de vários modos, classificando-os em espécies (ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro e ídolos do teatro)37. Esses “ídolos” — ou “fantasmas”, como preferem alguns — são vistos por ele como verdadeiros obstáculos à realização da ciência. Nas suas palavras: Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam. 38 Descartes, por sua vez, trabalha com a idéia da dúvida fundamental, segundo a qual o primeiro passo para a pesquisa da verdade consiste em duvidar de todas as nossas crenças. Esse primeiro passo, levado às últimas conseqüências, acabou levando Descartes à 34 É o próprio autor quem adverte: “A minha tentativa de explicar o fenómeno do racionalismo grego e a tradição crítica grega por uma tradição de escola é, evidentemente, mais uma vez, apenas conjectural. De facto, é em si mesma uma espécie de mito.” (POPPER, Karl. O mito do contexto. In: ______. O mito do contexto. Organização de M. A. Notturno. Tradução de Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 65) 35 HOMERO. A odisséia (em forma de narrativa). Tradução e adaptação de Fernando C. de Araújo Gomes. 16 ed. São Paulo: Ediouro, s/d, p. 8. 36 MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: história da filosofia greco-romana. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. 3 ed. São Paulo: Mestre Jou, 1971, p. 44. Segundo Mondolfo, “É notabilíssima esta concepção em que desaparece a necessidade de representar-se para a Terra um sustentáculo material em imediato contato (seja a água, o ar ou outra cousa) e aparece a capacidade de representarem-se as ações a distância (atrações).” (Ibidem, loc. cit.) 37 BACON, Francis. Novum organum ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. Pará de Minas/MG: Virtual Books Online M&M Editores, s/d., p. 14. 38 Ibidem, p. 14. formulação do argumento do cogito: posso duvidar de tudo, menos da minha própria existência. Daí o seu mais célebre axioma: “penso, logo existo”39. Quanto à tradição, afirma que “não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pelas mãos de diversos mestres, como naquelas em que somente um trabalhou” 40. Ele ilustra seu pensamento através da arquitetura, chamando atenção de que as mais belas obras arquitetônicas são aquelas em que houve trabalho de um só arquiteto; muito mais do que aquelas obras cujas reformas se fizeram sobre “velhas paredes levantadas para outros fins”41. Com essa metáfora, procura Descartes demonstrar que, em sua opinião, o método de busca da verdade não pode, a priori, tomar como verdadeiras as premissas testadas por outras pessoas (as tais “velhas paredes”), para sobre elas erigir suas próprias conclusões (o resultado da reforma). Antes, é necessário duvidar dessas premissas e derrubá-las, para, só então, reconstruí-las sob a mesma ou sob uma nova forma42. Já Durkheim, que buscou aplicar o método cartesiano aos fatos sociais, reconhece que toda ciência passa, necessariamente, por uma fase inicial, embrionária, consistente nas noções vulgares ou prenoções que temos das coisas. A partir de então, muitas ciências se desenvolvem tendo por objetivo único verificar o grau de veracidade ou falsidade dessas prenoções — “em vez de ciência de realidades, não fazemos senão uma mera análise ideológica”43. Com isso, a reflexão acaba por ser incitada a se afastar daquilo que deveria ser o próprio objeto da ciência (a realidade) para debruçar-se sobre as idéias que se tem dela. A sociologia, para ele, está repleta dessas prenoções, mas Durkheim não nega totalmente o seu valor: apenas alerta que elas devem servir tão-somente como indicadores: “indicam-nos, às vezes, embora genericamente, em que direção os fenômenos devem ser procurados”44. Popper tem uma outra idéia da tradição, por isso se diz um “racionalista híbrido”45. A tradição é fundamental para o progresso da ciência. Nossas velhas paredes têm valor, porque são pontos de apoio. Não é possível prescindir daquilo que outras pessoas, antes de nós, já fizeram. Certas ou erradas, completas ou incompletas, são as teorias atualmente vigentes que 39 DESCARTES, René. Discurso do método e Regras para a direção do espírito. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 41. 40 Ibidem, p. 27. 41 Ibidem, loc. cit. 42 “Por esse meio”, diz Descartes, “conseguiria conduzir a minha vida muito melhor do que se me limitasse a construir exclusivamente sobre velhos fundamentos e a apoiar-me nos princípios de que me deixara persuadir em minha mocidade, sem nunca ter examinado se eram verdadeiros.” (op. cit., p. 29) 43 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico, op. cit., p. 42. 44 Ibidem, p. 59. 45 POPPER, Karl. Avançando para uma teoria racional da tradição. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 169. compõem o substrato com o qual podemos trabalhar. “Se não tivermos nada para alterar e mudar, não chegaremos a lado nenhum”46. Assim, não dá para partir do zero. Não há nenhum motivo, nem mesmo lógico, para acreditar que, para progredir, temos que nos despir dos dogmas já estabelecidos. Segundo Popper, se queremos fazer progresso na ciência, “temos de nos empoleirar nos ombros dos nossos predecessores”47. Com efeito, precisamos deles, no mínimo, para que saibamos os caminhos que devemos evitar, ou os erros que não podemos cometer48. A questão, então, não passa pela rejeição da tradição, mas sim pela atitude que devemos adotar diante dela. Admitir a tradição como algo imprescindível para o progresso do conhecimento não significa concordar com ela — embora também não signifique, necessariamente, negá-la. Valorizar a tradição significa que não podemos ser indiferentes a ela, sob pena de nos tornarmos ingenuamente cegos a uma influência inexorável do contexto histórico-cultural em que vivemos. Essa parece ser também a opinião de Hans-Georg Gadamer. Gadamer, porém, prefere referirse a “preconceito”; mas a expressão pode ser tomada, no contexto, como sinônima de “tradição”. Isso porque, para Gadamer, “em si mesmo, ‘preconceito’ (Vorurteil) quer dizer um juízo (Urteil) que se forma antes do exame definitivo de todos os momentos determinantes segundo a coisa em questão”49. Trata-se, então, daqueles juízos que, por força da sua experiência de vida, o ser humano faz acerca das coisas. Para ele, cada um de nós tem seus preconceitos e isso não é necessariamente ruim; antes, é necessário, natural e sobretudo inevitável. Valendo-se de uma imagem — a análise de um texto —, que bem pode ser tomada como uma metáfora para toda forma de acesso ao conhecimento, Gadamer ensina que: Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e conseqüente possível […]. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem uma ‘neutralidade’ com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma 46 Ibidem, p. 181. Ibidem, p. 180. 48 Impossível não lembrar as palavras de José Souto Maior Borges (BORGES, José Souto Maior. O contraditório no processo judicial: uma visão dialética. São Paulo: Malheiros, 1996): “Pensar, no fundo abissal de onde brota o pensamento, é rememorar: um ato de reconhecimento pelo que de grandioso antes de nós foi pensado. […] A essência do reconhecimento é o agradecimento. Por isso proclama a velha divisa, que em tudo e por tudo nos concerne: Denken ist Danken (pensar é agradecer), onde o pensar e o agradecer se coimplicam” (p. 10). E mais adiante conclui: “A hostilidade ao passado é um ato de destruição do presente” (p. 11). 49 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 7 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, Bragança Paulista/SP: Universitária São Francisco, 2005, p. 360. 47 destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as opiniões prévias pessoais.50 Em outras palavras, o que Gadamer pretende dizer é que o “leitor” (observador, cientista, ser humano) deve adotar uma postura de receptividade frente ao “texto” (coisa, situação, objeto de análise) sobre o qual se debruça, o que não significa dizer que ele deve ser neutro. Com isso, o autor alemão destaca que o ser humano é, necessariamente, um ser preconceituoso — é dizer, um ser munido de preconceitos. E o que importa mesmo é que ele, ser humano, tenha consciência disso, ou seja, que tenha consciência das suas opiniões prévias e, a despeito disso, seja receptivo às coisas presentes. E continua: A questão portanto não está em assegurar-se frente à tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, ao contrário, trata-se de manter afastado tudo que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa em questão. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição.51 Tais preconceitos nada mais são que uma conseqüência natural e inevitável do fato de o ser humano contar com uma experiência histórica, uma experiência de vida. Para Gadamer, “[…] os preconceitos de um indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem a realidade histórica do seu ser”52. E mais adiante conclui: “Se quisermos fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é necessário levar a cabo uma reabilitação radical do conceito do preconceito e reconhecer que existem preconceitos legítimos”53. De fato, existem preconceitos legítimos. Na concepção popperiana, a tradição científica teve início exatamente entre os primeiros filósofos gregos não apenas porque eles buscaram compreender a natureza, mas fundamentalmente porque eles começaram a discutir os mitos que a tradição religiosa lhes havia legado54. Foi assim que surgiu o que ele chama de tradição crítica: A tradição crítica foi fundada pela adopção do método de crítica a uma história ou explicação recebidas, a que se seguiu uma nova história, melhorada e plena de imaginação que, por sua vez, é objecto de crítica. Acho que este método é o método da ciência.55 Eis que, então, chegamos num ponto crucial do pensamento popperiano: o papel da crítica racional no desenvolvimento do conhecimento científico. 50 Ibidem, p. 358. Ibidem, p. 359. 52 Ibidem, p. 368. 53 Ibidem, loc. cit. 54 POPPER, Karl. Avançando para uma teoria racional da tradição. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 177. 55 POPPER, Karl. O mito do contexto. In: ______. O mito do contexto, op. cit., p. 65. 51 5. APRENDENDO PELO DIÁLOGO 5.1. TUDO É DOXA É da essência da atitude dogmática — ao menos no sentido em que Popper utiliza a expressão dogma, que dá lugar ao adjetivo — ser ela um processo reversível de aprendizado, sujeitandose, pois, a revisões e correções56. Isso se dá porque, para a epistemologia popperiana, todo conhecimento é provisório. A tensão entre o conhecimento e a ignorância conduz a problemas e a soluções meramente conjecturais. O que se quer dizer com isso? Quer-se dizer que quando nos deparamos com algo que nos parece inexplicável, chegamos então ao limite do nosso conhecimento. A busca por regularidades, contudo, faz com que tentemos arriscar algumas teorias sobre o desconhecido. Essas teorias normalmente são submetidas a testes, à experimentação. Se a observação empírica as confirma, isto não significa, para Popper, que tais teorias sejam verdadeiras. Significa apenas que elas ainda não foram falseadas, isto é, ainda não foram refutadas. Relembro aqui a doutrina da falibilidade, vista linhas atrás, segundo a qual, só por ser humano, todo conhecimento científico é suscetível de incidir em erro. Por isso, todas as teorias que criamos para superar a tensão entre o nosso conhecimento e a nossa ignorância nada mais são que conjecturas, ou suposições acerca da verdade. Tudo é doxa, todo conhecimento é provisório. Ao contrário do que sugere o racionalismo tradicional, que duvida de tudo e só crê no verdadeiro conhecimento (epistēmē), tudo é doxa.57 5.2. CAÇADORES DE MITOS Considerando, pois, que tudo é doxa, é necessário buscar, nesse conhecimento provisório, onde se esconde o erro. É então que surge a possibilidade de aprendermos com os nossos próprios erros, pois aí começa efetivamente o processo de movimentação (progressiva) do conhecimento — a transição da sua fase pré-científica (dogmática) para a fase propriamente científica (crítica). 56 Cf. POPPER, Karl. Autobiografia intelectual, op. cit., p. 52. Isso não significa dizer, porém, que as conjecturas com as quais buscamos dar solução aos problemas são ou devam ser estabelecidas aleatoriamente. A tradição pode fornecer elementos suficientes para que essa tentativa de solução seja o mais sistemática possível. Também não significa que Popper sustenta a existência de verdades subjetivas, é dizer, verdades que valem apenas para determinados sujeitos ou para determinados contextos. Ao contrário, ele rechaça enfaticamente a idéia de relatividade acerca da verdade (cf. POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. In: ______. Lógica das ciências sociais, op. cit., p. 22). 57 Normalmente, quando conjecturamos sobre algo, quando teorizamos sobre alguma coisa ou algum fenômeno, somos incitados, numa espécie de ação instintiva, a sempre lançar mão de argumentos e de testes capazes de confirmar esse ponto de vista. Dificilmente temos abertura de espírito suficiente para procurar, nos caminhos que percorremos ou nos rumos que traçamos, a matriz dos nossos erros. É exatamente esta a mudança de postura que Popper propõe: preocuparmo-nos mais em falsear nossas teorias, em lugar de repetir experiências que simplesmente as confirmem. Para nós, por conseguinte, a Ciência não tem nada a ver com a procura de certeza, probabilidade ou fiabilidade. Nós não estamos interessados em estabelecer as teorias científicas como seguras, certas ou prováveis. Conscientes da nossa falibilidade, estamos apenas interessados em criticá-las e testá-las, na esperança de descobrir onde é que nos enganámos; de aprender com os nossos erros; e, se tivermos sorte, de avançar para teorias melhores.58 Dessa forma, “não é a tentativa, mas o método crítico, ou seja, o método da eliminação do erro após a tentativa […] que nos dirá quão satisfatória foi a suposição”59. Foi exatamente isso que impressionou Popper, quando teve acesso ao pensamento de Einstein: A teoria gravitacional de Einstein havia conduzido à conclusão de que a luz devia ser atraída pelos corpos pesados (como o Sol), precisamente do mesmo modo que os corpos materiais. Em conseqüência, podia ser calculado que a luz de uma estrela fixa distante, cuja aparente posição era próxima ao Sol, alcançaria a Terra vinda de uma direcção tal, que essa estrela pareceria estar levemente desviada do Sol. […] Este é um fenómeno que não pode, normalmente, ser observado, na medida em que o brilho ofuscante do Sol torna as estrelas invisíveis durante o dia. Mas durante um eclipse é possível fotografá-las. Se a mesma constelação for fotografada de noite, podemos medir as distâncias nas duas fotografias e verificar o efeito previsto. […] Ora, o aspecto impressionante deste caso é o risco envolvido numa previsão deste tipo. Se a observação demonstrar que o efeito previsto está definitivamente ausente, então a teoria será simplesmente refutada. 60 Desse modo, Popper resolveu o seu problema da demarcação entre o que considera teoria científica e o que não a considera: o critério está na refutabilidade. Assim, científica é a teoria que admite a possibilidade de ser empiricamente refutada. Na sua opinião, “a irrefutabilidade não é uma virtude da teoria (como as pessoas muitas vezes julgam), mas sim um defeito”61. 5.3. ENFIM, O CRITICISMO A crítica exerce papel fundamental no processo de produção do conhecimento científico. É justamente a partir do exame crítico das teorias que se podem encontrar eventuais equívocos 58 POPPER, Karl. Verdade, racionalidade e o desenvolvimento do conhecimento científico. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 311. 59 POPPER, Karl. Autobiografia intelectual, op. cit., p. 53. 60 POPPER, Karl. Ciência: conjecturas e refutações. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 58-59. 61 Ibidem, p. 59. no pensamento dogmático que até então é utilizado para explicar um dado problema. Detectado o equívoco, a crítica permite então o progresso do conhecimento científico, que, para saneá-lo, buscará novas e melhores teorias. É nesse ponto que entra uma idéia essencial da teoria do conhecimento popperiana: a idéia de que a participação da comunidade científica na discussão racional das teses até então estabelecidas é fundamental para que se alcance um resultado, um produto final, de melhor qualidade. Quando se fala em crítica, deve-se ter em mente tanto a autocrítica como a crítica interpessoal, assim entendida “a cooperação amistosa e hostil dos cientistas, que em parte se baseia na competição e, em parte, no objectivo comum de se aproximarem da verdade”62. Segundo Popper, […] o progresso na ciência, ou a descoberta científica, depende da instrução e da selecção: de um elemento conservador, tradicional ou histórico, e de uma utilização revolucionária de tentativa e eliminação de erro pela crítica, que inclui severos exames ou testes empíricos — ou seja, tenta examinar a fundo as possíveis fraquezas das teorias, tenta refutá-las.63 Na opinião deste epistemólogo, “a ortodoxia é a morte do conhecimento, uma vez que o aumento do conhecimento depende inteiramente da existência da discordância” 64. Com isso, não parece querer dizer que a crítica há de ser sempre e necessariamente contrária aos dogmas então estabelecidos. Se assim fosse, creio que aí já não teríamos crítica propriamente dita, mas sim um novo dogma de inspiração dadaísta: o dogma de refutar por refutar, de sempre rejeitar tudo o que fosse tradicional. Voltaríamos, então, para o racionalismo estéril, o que seria absolutamente irracional. A importância está na crítica, ainda que, por meio dela, sejam confirmados os dogmas. O que Popper parece querer dizer, contudo, é que a confirmação (mesmo crítica) dos dogmas não incrementa o conhecimento. Aqui é necessário fazer alguma digressão. Uma coisa é adotar-se uma postura crítica: em vez de justificar sua teoria através de testes que a confirmem, o cientista deve buscar encontrar seus erros, submetendo-a a experimentos que possam refutá-la (autocrítica), além de submetê-la à crítica hostil-amistosa da comunidade científica (crítica interpessoal). Outra coisa é saber se essa crítica (autocrítica ou 62 POPPER, Karl. A racionalidade das revoluções científicas. In: ______. O mito do contexto, op. cit., p. 26. Ibidem, loc. cit. 64 POPPER, Karl. O mito do contexto. In: ______. O mito do contexto, op. cit., p. 56. Novamente, eis as lúcidas palavras de Souto Maior Borges: “Na oficina do pensamento não há lugar para acomodações bem comportadas. O silêncio em torno do pensado e dito é intolerável. Pior do que ele, só a aquiescência gratuita, a mútua complacência dos estudiosos (como se o pensar fosse moeda de troca); a louvação convencional e entediante das corporações de elogios mútuos” (BORGES, José Souto Maior. O contraditório no processo judicial, op. cit., p. 17). 63 crítica interpessoal) vai, ou não, gerar o aumento do conhecimento. Este é um segundo passo. O aumento do conhecimento depende, então, da detecção de erros (falseamento), porque, uma vez detectados eventuais equívocos, ter-se-á um novo problema e, por conseguinte, uma nova tensão entre conhecimento e ignorância, o que abre a porta para novas conjecturas, novas teorias. Reinicia-se, assim, o ciclo da descoberta científica e o conhecimento avança. Tem-se então que: […] o contributo mais perdurável que uma teoria pode prestar para o desenvolvimento do conhecimento científico são os novos problemas que origina — o que nos conduz de regresso à idéia de que a Ciência e o conhecimento científico começam sempre, e acabam sempre, com problemas: problemas cada vez mais complexos e cada vez mais férteis na sugestão de novos problemas. 65 Por isso, quanto mais conhecemos, mais sabemos o quanto desconhecemos. E isso não é um paradoxo, nem um simples jogo de palavras. Aí se legitima a compreensão popperiana de que o conhecimento não se desenvolve por acumulação, mas pela crítica66. Penso que tudo é uma questão de perspectiva. Ao se referir a aumento do conhecimento, Popper não concebe como tal aquele aumento quantitativo, propiciado, por exemplo, pela profusão de experiências que tão-somente justifiquem as teorias já estabelecidas. Quer referirse, isto sim, a um aumento qualitativo: a qualidade do conhecimento científico só aumenta à medida que, através da crítica, conseguimos detectar equívocos nas teorias que nos iluminam, porque aí buscamos novas e melhores explicações. O raciocínio me parece adequado, mas é necessário colocar Popper em frente ao espelho. Analisando-o à luz da sua própria teoria, tenho que a sua explicação é apenas conjectural, é dizer, busca explicar uma determinada realidade e deve valer enquanto não for suplantada por outra que o faça mais adequadamente. Ela precisa ser analisada criticamente, a fim de que possamos detectar seus (eventuais) equívocos. Não há dúvida de que é essencial que o pesquisador paute a sua conduta por uma postura crítica diante de suas próprias teorias. Mas não se pode negar que, mesmo quando se adota uma postura meramente verificacionista, é possível se deparar com o erro. Em outras palavras, a detecção do erro e o conseqüente falseamento de uma teoria não me parecem ser conseqüências necessárias da postura crítica. De fato, trata-se de resultado que se alcança 65 POPPER, Karl. Verdade, racionalidade e o desenvolvimento do conhecimento científico. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 302. 66 POPPER, Karl. Avançando para uma teoria racional da tradição. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 180-181. mais facilmente através dessa atitude crítica, mas que pode ser alcançado, igualmente, através da tentativa de justificação empírica da tese. Não bastasse isso, parece-me importante, em matéria de desenvolvimento da ciência, levar em consideração também o aumento quantitativo do conhecimento, a par do aumento qualitativo. Com efeito, o americano Thomas Kuhn, mesmo admitindo como válido, em termos gerais, o método crítico-falsificacionista de Popper, sugere um redimensionamento da concepção popperiana de crescimento da ciência. Isso porque, da forma como foi formulada, esta concepção somente se aplicaria a episódios relativamente efêmeros da história da ciência, considerados pelo autor americano como momentos de “ciência extraordinária”. No seu plano geral, Kuhn explica que: […] a ciência normal, atividade na qual a maioria dos cientistas emprega inevitavelmente quase todo seu tempo, é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo. Grande parte do sucesso do empreendimento deriva da disposição da comunidade para defender esse pressuposto.67 Assim, ciência normal é o nome que ele dá à tradição científica vigente numa determina época e num determinado lugar — isto é, o conjunto de conhecimentos e paradigmas préestabelecidos até aquele momento. Sucede que essa ciência normal, de vez em quando, depara-se com problemas. Normalmente, a comunidade científica busca resolvê-los com base nos conhecimentos até então consolidados, numa tentativa de preservar a tradição científica vigente. Há casos, porém, em que esses problemas resistem e, em função disso, a ciência normal se desorienta. Kuhn continua: E quando isto ocorre — isto é, quando os membros da profissão não podem mais esquivar-se das anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica — então começam as investigações extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência.68 Tem-se então o que ele chama de revolução científica, que ocorre em período de ciência extraordinária. Essa nova teoria nunca, ou quase nunca, é um mero incremento ao que já é conhecido; sua assimilação requer a reconstrução da teoria precedente e a reavaliação dos fatos anteriores — ou seja, tal como Popper, Kuhn nega que o progresso do conhecimento se dê por acumulação. 67 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 24. 68 Ibidem, loc. cit. De fato, não parece que se possa restringir a idéia de crescimento da ciência aos períodos de revolução científica. A análise de Kuhn é interessante porque, como historiador da ciência69, não se debruça sobre o que deve ser, sobre o ideal, mas sim sobre o que é. Com isso, registra períodos de “ciência normal” em que houve inegável crescimento do conhecimento científico. Feita essa necessária digressão, é importante a anotação de Popper no sentido de que, assim como se deu com a evolução dos organismos vivos, também a evolução do pensamento humano se dá pelo método da tentativa e erro70. A diferença é que, para a teoria evolucionista dos organismos, a adaptação decorre de uma pressão seletiva vinda de fora do organismo, do ambiente; para Popper, essa pressão seletiva, seja quanto à evolução das espécies, seja quanto à evolução do pensamento, vem de dentro e se pauta na necessidade de superar problemas, afinal de contas “todos os organismos estão inteiramente ocupados com a solução de problemas. Seu primeiro problema é sobreviver”71. Além disso, na evolução dos organismos vivos, as tentativas errôneas terminam por gerar a própria eliminação do organismo (o “suporte” do erro); já na evolução do pensamento humano, as idéias podem ser discutidas criticamente e refutadas (eliminadas) “sem matar nenhum autor, nem queimar livro algum”72. Ou seja: “nossas escolhas, nossas hipóteses experimentais, podem ser eliminadas criticamente pela discussão racional, sem eliminarmos a nós mesmos. Este é, de fato, o propósito da discussão racional crítica”73. Popper diz que o suporte de uma hipótese serve para defendê-la de críticas erradas. Assim, o método da discussão racional crítica é a única alternativa à violência, substituindo-a pelo debate de idéias. É a partir da crítica aberta que se podem afastar as razões extra-científicas que influenciaram o resultado ou as premissas (hipóteses) da investigação, mantendo-se tãosomente aquelas razões puramente científicas. Não se pode exigir neutralidade do cientista. É um erro pensar que a objetividade de uma ciência depende da objetividade do cientista. A objetividade científica é o resultado social da crítica recíproca a que se submetem os cientistas. Cabe, pois, à crítica exercer essa filtragem. Nesse processo, para que se alcance o debate mais amplo possível, é fundamental a utilização de uma linguagem clara e simples. A meu ver, esta é uma das principais e mais contundentes 69 Thomas Kuhn registra, desde a introdução da sua obra, o seu objetivo com o livro: esboçar, a partir de registros históricos da própria atividade de pesquisa, um conceito de ciência bastante diverso do que é dado pelas obras clássicas e pelos manuais (KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas, op. cit., p. 19). 70 Cf. POPPER, Karl. Ciência: conjecturas e refutações. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 79. 71 POPPER, Karl. Conhecimento e formação da realidade: a busca por um mundo melhor. In: ______. Em busca de um mundo melhor, op. cit., p. 27. 72 POPPER, Karl. Razão ou revolução?. In: ______. Lógica das ciências sociais, op. cit., p. 39. 73 Ibidem, loc. cit. críticas que Popper faz à comunidade científica. Por sua exuberância, ela merece transcrição integral: Há muitos anos, eu costumava prevenir meus alunos quanto à idéia amplamente difundida de que alguém entra na universidade a fim de aprender como falar e escrever de maneira impressionante e incompreensível. Naquela época, muitos estudantes vinham à universidade com esta intenção ridícula, sobretudo na Alemanha. E a maioria destes estudantes que, durante seus estudos universitários, ingressa num clima intelectual que aceita tal gênero de valoração, talvez sob a influência de professores os quais, por sua vez, foram moldados num clima semelhante — está perdida. Eles aprendem e aceitam inconscientemente que uma linguagem altamente impressionante e difícil é o valor intelectual por excelência. Há pouca esperança de que eles jamais venham a compreender que estão errados; ou que se dêem conta de que existem outros padrões e valores; valores tais como verdade, a busca da verdade, a aproximação à verdade por intermédio da eliminação crítica do erro, e clareza. Nem descobrirão que o padrão da incompreensibilidade impressionante choca-se atualmente com os padrões da verdade e do racionalismo crítico. 74 Em sua opinião, a utilização de uma linguagem clara e simples, que permita o mais amplo debate, inclusive com o senso comum, é um esforço que aqueles que têm o privilégio de se dedicar ao estudo devem à sociedade.75 Romper com esse hermetismo lingüístico, ao que me parece, é fundamental para que se possa promover uma aproximação entre o conhecimento científico e o senso comum — que seria uma das finalidades do paradigma emergente na pósmodernidade, segundo Boaventura de Sousa Santos76. Por fim, a lógica dedutiva exerce importante papel no método da abordagem crítica, visto que ela consiste na teoria da transmissão de verdade das premissas à conclusão. Assim, se as premissas de uma dedução válida são verdadeiras, então a conclusão deve ser também verdadeira. Por outro lado, a lógica dedutiva é, também, “a teoria da retransmissão da falsidade da conclusão até, ao menos, uma das premissas”77. Assim, se a conclusão é falsa, isto significa que possivelmente ao menos uma premissa também o será. Desse modo, é a lógica dedutiva que inspira a crítica racional, pois ela faz o que o criticismo busca fazer: demonstrar que conclusões falsas podem derivar de premissas falsas. 6. CRITICISMO E PARTICIPAÇÃO: OS FILHOS DO DIÁLOGO Parece-me irresistível a idéia de que é possível traçar um paralelo entre o criticismo popperiano e a abertura à participação dos sujeitos envolvidos num processo, como forma de 74 Ibidem., p. 41. Ibidem, p. 47. 76 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências, op. cit., p. 88-92. 77 POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. In: ______. Lógica das ciências sociais, op. cit., p. 27. 75 legitimação do procedimento. Antes de explicar a possível aproximação entre essas idéias, é importante pontuar, ainda que brevemente, o sentido em que utilizo os termos participação, processo e procedimento. A referência a processo toma essa expressão no sentido mais amplo possível. Com efeito, a noção de processo está intrinsecamente vinculada à de exercício de poder. O processo é método de exercício de poder78. Assim, num Estado Democrático de Direito como o nosso, o poder somente pode ser legitimamente exercido através do processo. Poder aqui também deve ser visto num sentido amplo, abrangendo as relações em que figura o Estado — poder jurisdicional, poder de edição de leis e outros atos normativos, poder de administração —, mas também aquelas relações entre particulares — por exemplo, o poder negocial de uma empresa de saneamento básico em relação aos consumidores, ou o poder sancionador exercido em associações, partidos políticos ou condomínios, ou ainda o poder decisório exercido pela maioria do capital social de uma sociedade empresária. A exigência do processo como método de exercício de poder se dá porque a toda posição de poder corresponde, num outro pólo, um estado de sujeição. O que garante o equilíbrio entre poder e sujeição é o processo, na medida em que impede abusos e garante o respeito incondicional aos direitos fundamentais. Para que assim seja, para que o processo cumpra o seu papel garantista, é necessário que se abra espaço, no procedimento pelo qual ele se revela, à participação dos sujeitos direta ou potencialmente submetidos ao poder que se pretende exercer. Essa participação pode revelar-se de várias formas: por exemplo, através do respeito ao contraditório, nos processos judiciais, administrativos e em alguns processos negociais; através da representação parlamentar, da iniciativa popular, do plebiscito e do referendo, no processo político-legislativo; através do voto, no processo eleitoral; ou mesmo através da participação da comunidade em audiências públicas, nos processos decisórios da administração, dentre tantas outras possibilidades. Procedimento, por sua vez, é um ato jurídico complexo de formação sucessiva79. Em outras palavras, o procedimento constitui uma série de atos ordenados e tendentes a alcançar uma determinada finalidade. Sempre que essa finalidade consistir no exercício de um poder, o 78 A propósito, ver DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 67 e seguintes (especialmente, p. 85). 79 Cf. DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 18. procedimento deve desenvolver-se com a participação dos sujeitos que poderão ser direta ou potencialmente atingidos pelo ato final, caso em que ele é qualificado como um processo80. Em suma, temos que o processo é o método (procedimento) de exercício do poder, que se caracteriza pela abertura à participação daqueles que estão em situação de sujeição passiva. Parece-me possível visualizar uma aproximação entre a crítica popperiana e a participação processual porque esta última, assim como a crítica de que fala Popper, tem a dupla função de, primeiro, dar legitimidade ao procedimento pelo qual se busca chegar a uma certa finalidade e de, segundo, permitir que o resultado alcançado se apresente mais lapidado, um resultado de melhor qualidade. Verifiquemos essa conjectura. A crítica popperiana serve a um método, que, partindo de problemas, orienta-se no sentido de se aproximar, o máximo possível, da verdade objetiva, fomentando o progresso do conhecimento científico. É exatamente a crítica que, ao lado da tradição e da técnica da refutação, dá legitimidade ao método, qualificando-o, segundo Popper, como método científico. É também por meio dela que se pode pretender alcançar um resultado melhor, uma teoria nova, que conserve o conhecimento já estabelecido (naquilo que puder ser conservado, obviamente) e que possibilite o progresso científico. Vejamos o outro lado. A participação também serve a um método, que é o procedimento. O procedimento parte, igualmente, de problemas e busca soluções81. É exatamente a participação, ao lado da observância de outros princípios e dos direitos fundamentais, que dá legitimidade ao procedimento, qualificando-o como um processo. É, por fim, a participação que permite alcançar, ao cabo desse processo, um ato final de melhor qualidade, que possibilite o exercício adequado de um determinado poder. Decerto que não há, entre o criticismo popperiano e a participação processual, identidade absoluta. Não é isso que defendo aqui. Defendo, sim, que há entre essas duas idéias uma 80 Valho-me aqui de uma aplicação mais extensiva da lição de Elio Fazzalari: “C’è processo, dunque, quando nell’iter di formazione di un provvedimento c’è contraddittorio, cioè è consentito a più interessati di partecipare alla fase di ricognizione dei presupposti sul piede di reciproca e simmetrica parità.” (FAZZALARI, Elio. Processo. Teoria generale (verbete). Novissimo Digesto Italiano. Turim: UTET, 1966, v. 13, p. 1.072) 81 Não se pode, contudo, confundir o problema a que me refiro com litígio. O problema é aqui tomado como questão, como ponto de partida. Assim, embora comumente o procedimento seja deflagrado em decorrência de um litígio, casos há em que ele é deflagrado independentemente da pré-existência de uma situação conflituosa, servindo apenas para preparar o ato final. É o que acontece, para dar um exemplo corriqueiro na seara jurisdicional, com as chamadas demandas necessárias — v. g., interdição, alienação judicial de bens depositados judicialmente, abertura de testamentos —, que, por força de lei, exigem uma tramitação procedimental. Não custa ressaltar que o método científico, segundo o próprio Popper, nem sempre trabalha com problemas; às vezes, ele é deflagrado, por exemplo, por descobertas acidentais (POPPER, Karl. Avançando para uma teoria racional da tradição. In: ______. Conjecturas e refutações, op. cit., p. 179). sensível aproximação, o que permite dizer que a crítica racional de Popper nada mais é que a exigência de participação da comunidade científica no processo de depuração de uma teoria, através da técnica do falseamento. Do mesmo modo, a participação processual consiste na abertura do processo em que se procura exercer um determinado poder à crítica racional dos sujeitos que direta ou potencialmente se encontrem em estado de sujeição. Participação e crítica têm, pois, a mesma raiz: o diálogo. 7. A COOPERAÇÃO HOSTIL-AMISTOSA NO PROCESSO JUDICIAL Embora seja possível estabelecer uma aproximação entre a crítica e a participação num sentido amplo, restrinjo-me aqui, talvez por afinidade, talvez por comodidade, a cuidar apenas das formas de participação que podem ser visualizadas no processo judicial, a que damos os nomes de contraditório e de cooperação. A garantia do contraditório, prevista no art. 5.º, LV, da Constituição Federal, consiste no instrumento que viabiliza às partes o exercício do seu direito de participação num determinado processo, seja ele privado ou estatal, jurisdicional ou não82. Historicamente, o contraditório sempre foi visto, no processo judicial, como mera garantia de audiência bilateral das partes: deduzida a pretensão judicial, a parte contrária deveria ser convocada a atuar no processo, tomando ciência das afirmações e dos pedidos que lhe eram dirigidos e dispondo de um determinado prazo para apresentar as suas razões de defesa. Infelizmente, essa é a visão que muitas pessoas ainda têm do contraditório: vêem-no como uma garantia de participação meramente formal, como simples direito de ser ouvido. Mas o contraditório não é só isso. Vale aqui a comparação com o método popperiano: de que adianta ao cientista adotar uma postura apenas formalmente crítica, submetendo sua teoria a testes supostamente falsificacionistas, mas que, sabidamente, apenas servirão para justificar a sua tese? De que lhe adianta submeter suas conjecturas à crítica interpessoal e, no entanto, 82 Para Luiz Guilherme Marinoni, o contraditório nada mais é que a expressão processual do princípio democrático. Ele continua: “Democracia quer significar, acima de tudo, participação. A participação no poder é da essência da democracia. É essa participação que legitima o exercício do poder. [...] O exercício do poder estatal através do processo jurisdicional há de ser legítimo, mas a legitimidade do exercício do poder somente pode ser conferida pela abertura à participação. Ora, se o processo jurisdicional deve refletir o Estado Democrático de Direito, a idéia básica do processo deve ser a de garantir aos interessados uma participação efetiva no procedimento que vai levar à edição da decisão” (MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do direito processual civil. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 250-251). fazer ouvidos moucos às tentativas de refutação lançadas pela comunidade científica? 83 Uma tal atitude seria apenas aparentemente crítica e, a rigor, esconderia uma postura indevidamente dogmática. Para que o método seja legitimado e o seu resultado seja qualitativamente melhor, a crítica deve ser efetiva. Do mesmo modo, o procedimento, para que seja legítimo e almeje bons resultados, exige a abertura a uma participação efetiva. É aí que entra em cena a dimensão do contraditório a que se vem dando mais ênfase atualmente: a dimensão substancial do contraditório. Não basta que se possibilite aos sujeitos processuais a chance de serem ouvidos. É necessário que se lhes confira a chance de influenciar na convicção do magistrado, a chance de “interferir com argumentos, interferir com idéias, com fatos novos, com argumentos jurídicos novos”84, participando efetivamente da formação dos provimentos jurisdicionais85. Por efetiva participação deve-se entender o direito de “atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado, desenvolvendo antes da decisão a defesa das suas razões”86. A concepção substancial do contraditório tem conseqüências práticas. Sem pretender esgotar o assunto, podemos pensar em alguns exemplos: (i) conquanto o magistrado possa, normalmente, conhecer de ofício questões de direito, deve ouvir previamente as partes, acaso não tenha havido ainda, no processo, discussão sobre o ponto87; (ii) o magistrado deve valorar, nos fundamentos da sua decisão, não só as provas produzidas pela parte cuja tese sagrou-se, ao final, vencedora, como também aquelas produzidas pela parte derrotada, ainda que não tenham sido suficientes para convencê-lo, visto que a parte derrotada, tal como a vencedora, é titular do direito fundamental à prova e, por isso, precisa saber os motivos por que as provas que produziu foram refutadas88; (iii) nos casos em que a demanda (ou a defesa) 83 Popper reconhece que é possível que isso aconteça (POPPER, Karl. Autocrítica criativa na ciência e na arte. In: ______. Em busca de um mundo melhor, op. cit., p. 299). É possível, pois, que um cientista ignore um erro, conquanto o conheça, ou tente escondê-lo. É possível ainda que a tradição vigente tente criar hipóteses ad hoc para determinados problemas, como forma de “salvar” as teorias vigentes contra o falseamento crítico. 84 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 6 ed. Salvador: JusPodivm, 2006, v. I, p. 59. 85 Em sentido contrário, Nelson Nery Junior, afirmando que, no processo civil, “é suficiente que seja dada oportunidade aos litigantes para se fazerem ouvir no processo.” (NERY JR., Nelson. Princípios do processo cvil na Constituição Federal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 131) 86 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In: ______. Do formalismo no processo civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 234. 87 Cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de, op. cit., p. 238. 88 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 4 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 461. Ver também: MOREIRA, José Carlos Barbosa. O que deve e o que não deve figurar na sentença. In: ______. Temas de Direito Processual – 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 121. se assenta em mais de um fundamento, é bastante corriqueiro nos tribunais o entendimento segundo o qual o julgador não está obrigado a enfrentar todas as questões de fato e de direito postas pelas partes, bastando que a sua análise se restrinja àquelas questões essenciais ao julgamento da causa; efetivamente, se houver cumulação de fundamentos e apenas um deles for suficiente para o acolhimento da demanda (concurso próprio de direitos) ou para o acolhimento da defesa (no caso de cumulação de fundamentos de defesa), bastará que o julgador analise o motivo suficiente em suas razões de decidir, mas se não estiver convencido desses fundamentos, deverá apreciá-los todos89. O diálogo processual, no entanto, não se contenta apenas com o contraditório em sua perspectiva substancial. O contraditório efetivo, aliado à observância de outros princípios e dos direitos fundamentais, garante a legitimação do procedimento e a qualidade do resultado final, mas isso tudo pode (e deve) ser maximizado por uma outra forma de participação processual que, na verdade, complementa e confirma a participação em contraditório: é o princípio da cooperação. Enquanto o princípio do contraditório garante a participação ampla das partes no processo — em condições de influenciar no julgamento do magistrado —, o princípio da cooperação vai além, exigindo que também o juiz se porte ativamente, comunicando-se e interagindo com as partes, estabelecendo com elas um diálogo aberto e franco, de forma a que se possa extrair do processo o melhor resultado possível. Trata-se de princípio adotado explicitamente, por exemplo, nas legislações alemã90 e portuguesa91. No Brasil, embora não conte com reconhecimento expresso na lei, é visto como uma conseqüência do contraditório. 89 Ou seja: para negar a demanda ou a defesa, é necessário analisar todos os fundamentos cumulados; para acolher qualquer uma delas, no entanto, não há necessidade de analisar todos os fundamentos, se um deles for suficiente para tanto. 90 Eis a redação do § 139 da ZPO Alemã: “§ 139 — CONDUÇÃO MATERIAL DO PROCESSO. (1) O órgão judicial deve discutir com as partes, na medida do necessário, os fatos relevantes e as questões em litígio, tanto do ponto de vista jurídico quanto fático, formulando indagações, com a finalidade de que as partes esclareçam de modo completo e em tempo suas posições concernentes ao material fático,especialmente para suplementar referências insuficientes sobre fatos relevantes, indicar meios de prova, e formular pedidos baseados nos fatos afirmados. (2) O órgão judicial só poderá apoiar sua decisão numa visão fática ou jurídica que não tenha a parte, aparentemente, se dado conta ou considerado irrelevante, se tiver chamado a sua atenção para o ponto e lhe dado oportunidade de discuti-lo, salvo se se tratar de questão secundária. O mesmo vale para o entendimento do órgão judicial sobre uma questão de fato ou de direito, que divirja da compreensão de ambas as partes. (3) O órgão judicial deve chamar a atenção sobre as dúvidas que existam a respeito das questões a serem consideradas de ofício. (4) As indicações conforme essas prescrições devem ser comunicadas e registradas nos autos tão logo seja possível. Tais comunicações só podem ser provadas pelos registros nos autos. Só é admitida contra o conteúdo dos autos prova de falsidade. (5) Se não for possível a uma das partes responder prontamente a uma determinação judicial de esclarecimento, o órgão judicial poderá conceder um prazo para posterior esclarecimento por escrito”. Lúcio Grassi de Gouvea, com base em doutrina portuguesa, sistematiza os poderes-deveres atribuídos ao juiz pela máxima da cooperação intersubjetiva 92. São eles: (i) o dever de esclarecimento, segundo o qual o juiz deve expor às partes suas dúvidas sobre o material por elas trazido para o processo (pedido, alegações, posições), evitando que julgue mal por desinformação; (ii) o dever de consulta, que se confunde com o contraditório substancial, já que impõe que o julgador sempre deve ouvir previamente as partes quando queira apreciar questão de fato ou de direito por elas não debatida, evitando a prolação de decisões-surpresa; (iii) o dever de prevenção, pelo qual cabe ao juiz alertar as partes sobre a existência de irregularidades ou falhas em seus pleitos, em seus argumentos, nas provas colacionadas aos autos ou em sua atuação de uma forma geral; (iv) o dever de auxiliar as partes na superação de obstáculos que embaraçam a sua atuação processual — óbices que impeçam o exercício de direitos, faculdades, ônus e deveres. Considerando a complexidade dos assuntos submetidos à apreciação judicial e a permanente mudança por que passa a sociedade, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira considera: […] inadequada a investigação solitária do órgão judicial. Ainda mais que o monólogo apouca necessariamente a perspectiva do observador e em contrapartida o diálogo, recomendado pelo método dialético, amplia o quadro de análise, constrange à comparação, atenua o perigo de opiniões preconcebidas e favorece a formação de um juízo mais aberto e ponderado.93 Tem razão. De fato, a ciência não se faz com monólogos, tampouco o processo. Na ciência, sobretudo quando vista pela lente de Popper, é o diálogo, a abertura do espírito, que permite detectar onde estão os erros (e também os acertos), contribuindo para a depuração das teorias, para a objetividade do conhecimento, para a aproximação da verdade. No processo, sobretudo no processo judicial, ainda precisamos avançar bastante em matéria de diálogo. Precisamos entender que a cooperação hostil-amistosa não rende bons frutos somente como expressão de um método científico. É possível, a partir do contraditório (cooperação hostil) e da cooperação intersubjetiva (cooperação amistosa), fazer com que o processo renda frutos melhores. Parafraseando Gadamer94, quem pretende alcançar bons resultados com o processo deve ser receptivo à alteridade do discurso, deve estar disposto a deixar que o outro lhe diga alguma coisa. 91 Eis a redação do art. 266 do CPC português: “1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”. 92 Cf. GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na busca da verdade. Revista Dialética de Direito Processual, n. 6, p. 47-59, setembro, 2003. 93 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de, op. cit., p. 233-234. 94 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, op. cit., p. 358. A passagem original foi citada linhas atrás. Mas para isso é necessário abrir um pouco mais o espírito. 8. CONCLUSÃO: POPPER É POP Karl Popper morreu em 1994, em Londres. Ele aprendeu com a música da sua mãe, com os livros do seu pai e com a técnica do seu velho mestre marceneiro. Mais do que isso: foi envolvido pela propaganda de guerra e aprendeu a desconfiar, viveu o marxismo para depois criticá-lo e se tornou operário para avaliar o contexto das suas preocupações intelectuais e sociais. Em suma, viveu a sua vida e a vida dos outros. Experimentou cada coisa e, por isso, com a autoridade da vivência, pôde falar sobre cada uma delas. A sua filosofia não nos pode ser completamente alheia. Talvez esse exemplo de alteridade — a experiência de, numa relação interpessoal, colocarmo-nos no lugar do outro — possa nos ajudar a resolver problemas concretos como o da necessidade de uma consciência (ainda mais) dialógica no processo judicial. A cooperação hostil-amistosa talvez seja uma porta e um bom caminho, pois nos permite enxergar as coisas com os olhos do outro, para assim encontrar as falhas, os maus preconceitos e a possível virtude que pode existir numa nova forma de pensar. Popper dizia que todos os seres humanos — eu, você, todos nós — são filósofos, “porque de uma maneira ou de outra assumem uma atitude diante da vida e da morte” 95. Por um lado, a opinião é importante, porque nos permite ter consciência das nossas possibilidades diante daquilo que podemos conhecer. Por outro lado, a opinião nos deixa atônitos ao percebermos que, se é verdade que somos todos nós filósofos, decerto que não somos filósofos iguais a ele. A distância há de ser, de algum modo, explicada, mas Popper não a explica. Suspeito que a modéstia não lhe permitiu fazê-lo. Suspeito que essa distância entre ele, nós e todos os demais filósofos existe quiçá porque Popper não assumiu apenas uma atitude diante da vida e da morte, mas também uma atitude diante da própria filosofia: ele resolveu ser diferente. Decerto por isso suas idéias, mesmo sob intensa crítica, ainda hoje sobrevivem. Sobrevivem, por certo, até que venham a ser refutadas por teorias melhores — o que, de resto, somente confirmará, por paradoxal que seja, que o nosso filósofo estava totalmente certo. 9. REFERÊNCIAS 95 POPPER, Karl. O que entendo por filosofia. In: ______. Lógica das ciências sociais, op. cit., p. 101. ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 12 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. 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