Uma Epistemologia da Administração: Dilemas e Debates analisados sob a visão de Karl Popper Autoria: Liliane Magalhães Girardin Pimentel Furtado, Michelle Moretzsohn Holperin Propósito Central do Trabalho: A Administração, como ciência social aplicada, está sujeita a diferentes visões ontológicas. Enquanto epistemologia específica, a Administração compreende o estudo detalhado de suas relações com outras disciplinas ou áreas do saber. Apesar de ser um campo dominado por um paradigma funcionalista, outras abordagens têm emergido, a partir do entendimento de que pretensões funcionalistas não atendem nem resolvem os problemas das organizações. Isso leva ao surgimento de abordagens mais plurais que valorizam aspectos subjetivos e enfocam a relevância prática das pesquisas. Tal movimento gera, em resposta, uma oposição positivista cujo argumento se baseia na concepção de que as críticas das outras epistemologias decorrem de suas excessivas aberturas para os aspectos subjetivos e da extensa valorização à problematização, ao invés da busca por respostas para os problemas. Afirmam que tais problemas, além de não contribuírem para a consolidação do campo, podem enviesar as pesquisas empíricas e prejudicar o rigor científico-metodológico. Nessa interposição epistemológica, o objetivo deste ensaio é expor como a filosofia de Karl Popper pode ser utilizada para beneficiar a ciência da Administração. Recupera-se a trajetória da Administração para discutir tensões relativas à interdisciplinaridade e ao debate rigor versus relevância. Os dilemas foram postos à luz da epistemologia popperiana, para a qual o conhecimento científico baseia-se na contínua interação entre conjecturas e refutações. Destaca-se como o sistema teórico de Popper pode esclarecer a questão rigor versus relevância. A partir dos enunciados de Popper promove-se uma integração, de forma que rigor e relevância são vistos como indissociáveis, além de intimamente relacionados com a interdisciplinaridade. Marco Teórico: O pensamento de Popper oferece uma abordagem de pesquisa alternativa que parece resolver muitos debates recentes, inclusive a questão da interdisciplinaridade na Administração e o debate sobre rigor e relevância das teorias administrativas. Sua filosofia pode ser frutífera para a reflexão sobre estes temas e pode trazer novos entendimentos sobre o caminho que o campo da Administração deve seguir. Basicamente, Popper recusa a indução como lógica científica, e propõe “o método dedutivo de prova”. Sua solução enfoca que nenhuma afirmação pode ser definitivamente comprovada pela verificação experimental, mas pode ser negada por ela, pois bastaria uma observação seguramente contrária para afastar, com certeza definitiva, o caráter geral de um enunciado. Assim, o que traz a segurança ao conhecimento existente é sua resistência à novas observações, sua capacidade de ser posto à prova, de estar sempre aberto à tentativas de falseamento. Uma teoria não rejeitada continua sendo científica, se ainda for testável e se à ciência for útil ter resultado de outros testes adequados. As teorias, testadas sob a forma de hipóteses, são explicações desenvolvidas e indefinidamente testadas em sua falseabilidade, tendo-se no final não as teorias comprovadas, mas apenas a teoria/hipótese ainda não refutada em certo aspecto. A verificação, portanto, não cria nem garante o conhecimento, isto é, não leva à uma verdade final ou absoluta, apenas assegura o prosseguimento de uma investigação. Percebe-se, assim, que o paradigma de Popper é um conceito prescritivo e normativo da ciência como revolução permanente. O seu objetivo fundamental é gerar melhores teorias a partir da refutação de teorias antigas, após terem sido falseadas em rigorosos testes empíricos. Popper clama a ciência revolucionária como princípio orientador da investigação científica. Mas para que isso realmente seja possível, algumas premissas precisam ser aceitas (Shareff, 2007). Neste sentido, Popper aponta para a 1 necessidade de se enxergar as teorias como soluções temporárias e não como paradigmas sagrados e imutáveis. Na visão popperiana, a comunidade científica precisa ser aberta a ponto de entender que mesmo teorias dominantes são apenas tentativas, e, desta forma, os cientistas não devem hesitar em rejeitar uma teoria, pois a evolução ocorre justamente por meio da eliminação de teorias rejeitadas (Popper, 2006). Popper dedicou boa parte de sua obra a estudar como o conhecimento realmente pode progredir. Para ele, o surgimento de uma teoria não está preso à experimentação, podendo surgir de qualquer fonte ou até mesmo da simples imaginação do cientista. Para ele, não há fontes últimas do conhecimento. Toda fonte, todas as sugestões são bem vindas; e todas as fontes e sugestões estão abertas ao exame crítico. Uma hipótese teórica pode surgir tanto de outras teorias científicas quanto do senso comum ou “simplesmente da opinião”. O processo de criação de uma teoria pode envolver a imaginação, a criatividade, a especulação (Popper, 2006). Resultados e contribuições do trabalho para a área: Com base na epistemologia de Popper, deduz-se que a interdisciplinaridade é bem-vinda. A abordagem indutiva por ele criticada não aproveita o potencial da observação, ao pressupor que esta ocorre de forma desinteressada. Já a dedução exige algo especial: a ideia, o pensamento largo, imaginativo. Quem toma grandes decisões precisa, por hábito, cultivar grandes ideias. Pensar que estas ideias devem limitar-se ao campo de origem não parece ser o pensamento de Popper. Ora, se para ele a ciência pode começar “de qualquer ponto”, então a ciência da Administração pode começar sua aprendizagem de qualquer conhecimento − sem preconceitos − e de quaisquer outras disciplinas. Assim, de acordo com Popper, estar aberto à interdisciplinaridade é ampliar as possibilidades de se buscar ideias e conhecimentos que possam servir de substrato para a refutação de teorias até então tidas como “verdadeiras”. É uma oportunidade para a construção do conhecimento em Administração. Por meio da abertura às outras disciplinas, a Administração não perde espaço, pelo contrário, amplia as chances de se consolidar como campo, pois mostra-se capaz de incorporar novas ideias e a partir delas ratificar ou retificar as teorias existentes. O processo de construção do conhecimento popperiano deixa de ser algo pessoal, e torna-se um processo compartilhado por um grupo de pessoas, que, em grupo, manifestam suas insatisfações com a teoria vigente, almejando algo mais abrangente, ou mais compatível com suas realidades. Neste sentido, seja a teoria propriamente de Administração, ou seja uma teoria oriunda de outra área, o que se pretende é utilizar a refutação como critério de substituição, buscando novas teorias que, emergindo de teorias refutadas, tragam novos aportes e integrem o corpo do conhecimento até então construído (Popper, 1975) e passível de reconstrução. Isso porque, de acordo com filosofia popperiana, a ciência não quer teorias científicas seguras, certas, ou demonstráveis (Popper, 2006). Ao contrário, o que propõe o filósofo austríaco é uma crítica racional das conclusões deduzidas das teorias existentes, para que estas possam ser testadas e avaliadas a partir da conclusão destes testes. No que tange ao debate rigor e relevância, anteriormente exposto, a filosofia de Karl Popper também contribui para um direcionamento. Para ele, quanto maior for a precisão da hipótese formulada, melhores e mais rigorosos serão os testes possíveis e, caso não seja refutada ao final da investigação, a hipótese será aceita com mais segurança pela comunidade científica, o que implica em uma maior relevância perante o conhecimento construído (Popper, 2006). Quando Popper aborda o conceito de falsificação seu objetivo é justamente privilegiar este rigor científico. E a relevância aparece como uma consequência inevitável do rigor. Assim, teorias existentes são substituídas por outras mais precisas e com melhor substrato empírico, carregando em seu bojo o condão da relevância, por terem sido capaz de falsear teorias anteriores. Portanto, na visão popperiana, rigor e relevância caminham juntos, e são alcançados a partir do confronto crítico das teorias. Para além da aproximação do rigor e relevância, a teoria popperiana também suporta a conjugação 2 da interdisciplinaridade. O confronto crítico de teorias pode – e até deve, segundo tal visão – abarcar teorias de diversas áreas. Assim, o conhecimento constantemente se renova, numa relação dialética entre conjecturas e refutações que propicia meios para o avanço do campo. Desta feita, ressalta-se que as questões analisadas sob o enfoque popperiano não têm como meta colocar um ponto final nos debates que permeiam a Administração. Trata-se, na verdade, de uma oportunidade de trazer ao grande debate uma nova perspectiva capaz de gerar reflexão. As pesquisas em Administração carecem de maiores reflexões epistemológicas, o que gera um obstáculo para entendimentos diferentes dos tradicionais. Neste sentido, o presente ensaio teórico ajuda a preencher essa lacuna e abre caminho para novas pesquisas que possam, assim como essa, inovar na perspectiva e ampliar no conhecimento. Referências bibliográficas: Popper, K. R. (1975). Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária. Tradução de Milton Amado. São Paulo: EdUSP. ; Popper, K. R. (1999). All life is problem solving. London: Routledge, 3-22. ; Popper, K. R. (2006). Conjecturas e Refutações: o desenvolvimento do conhecimento científico. Tradução de Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina. ; Shareef, R. (1997). A Popperian view of change in innovative organizations. Human Relations, 50(6), 655-670. ; Shareef, R. (2007), Want better business theories? Maybe Karl Popper has the answer. Academy of Management Learning & Education, 6(2), 272-280. 3