A EXECUÇÃO FORÇADA NO DIREITO LUSITANO DAS ORDENAÇÕES DO REINO RENATO LUÍS BENUCCI 1. INTRODUÇÃO: A INFLUÊNCIA INSTITUTOS JURÍDICOS LUSITANOS DO DIREITO ROMANO NOS O direito, em sua evolução histórica, exprime as tradições culturais e os sentimentos dos povos. A análise histórica do instituto da execução forçada espelha de modo exemplar esta evolução e o desenvolvimento da civilização humana. De fato, através da abordagem historiográfica, é possível verificar-se, por exemplo, a passagem da autotutela para o monopólio estatal na solução de conflitos, bem como a superação do caráter penal da execução, antes exercida sobre o corpo do devedor, de forma desumana e sobre a totalidade de seu patrimônio1, para uma execução incidente apenas sobre a parte do patrimônio do devedor necessária à satisfação do direito do credor. O objetivo deste estudo visa a análise do processo de execução forçada nas Ordenações do Reino, procurando identificar suas características fundamentais e sua contribuição para o processo de execução atual. Para o perfeito entendimento do processo de execução no direito lusitano das Ordenações do Reino, faz-se mister compreender a importância e a influência do direito romano, que penetrou profundamente nos institutos jurídicos lusitanos. De fato, na Península Ibérica, o direito romano sobreviveu ao domínio visigótico, pois à época em que os conquistadores visigodos se fixaram definitivamente na Península, no século VI, enquanto os conquistadores regiam-se por seus costumes tradicionais, as populações hispano-romanas eram regidos pela lei romana (lex romana), conhecida modernamente como Breviário de Aniano, ou por Breviário de Alarico, código compilado e promulgado no ano de 506 por ordem de Alarico II, rei dos visigodos, texto em que se refletiam textos romanos correntios no século V, como excertos do Código Theodosiano, das Institutas de Gaio e outros textos de origem romana2. Tal distinção de tratamento jurídico apenas seria deixaria de existir em meados do século VII, através de uma legislação comum, o célebre código visigótico denominado Livro das Leis, ou dos Godos, ou ainda Liber judicium, denominação pela qual ficou conhecida após a queda do império visigótico, e que na edição castelhana recebera a denominação Fuero Juzgo, e que trazia em seu bojo instituições de origem romana e visigótica3. Assim, de certo modo, o direito romano aplicava-se através de leis germânicas, pois o código visigótico representou um precioso repositório do direito romano vulgar4. 1 Cândido Rangel Dinamarco, Execução Civil, pp. 31-33 Waldemar Martins Ferreira, História do Direito Brasileiro, II, pp. 259-260. 3 Idem, Ibidem, pp. 258-259. 4 Paulo Merêa, Estudos de Direito Visigótico, Coimbra, 1948, p. IX. 2 Destarte, o evoluído sistema jurídico romano não restou destruído pelos invasores bárbaros, que antes preferiram utilizar-se do sofisticado sistema jurídico romano5. Não foi, todavia, apenas através do código visigótico que o direito romano foi introduzido na Península Ibérica, uma vez que também foi compilado na Espanha e em Castela o código conhecido pelo nome de Sete Partidas, ao tempo de D. Afonso IX, que contém profunda influência romana. O direito romano, assim, quer de forma direta; quer de forma indireta, isto é, por efeito da assimilação de seus dispositivos através do código visigótico e das Sete Partidas, adaptou-se às necessidades do tempo, transformando-se em verdadeiro direito consuetudinário6. A Influência marcante no direito romano na formação do direito lusitano decorreu também dos estudos jurídicos realizados na Universidade de Bolonha. De fato, nos primórdios do século XII, ocorre o renascimento das ciências, notadamente a ciência jurídica. O estudo do direito prestigiou a cidade de Bolonha, na Itália, através da instituição de sua Universidade, que se celebrizou pela renovação dos estudos jurídicos feita por Irnerio, que introduziu o método das glosas (explicações interliniárias e marginais dos textos do Corpus Juris Civilis) e dos brocardos (condensação de textos romanos em máximas)7. Como o grande prestígio da cidade de Bolonha ocorreu à época da criação do Reino de Portugal, numerosos juristas que passaram por esta Universidade, como D. João Peculiar, Mestre Alberto João das Regras, ocuparam postos de destaque junto à Coroa Portuguesa, influindo profundamente na formação jurídica do Estado Lusitano8. Por outro giro, à medida que aumentava a importância das Universidades italianas em terras européias, a partir do século XIII, com o declínio da dominação árabe, e a retomada territorial promovida pelos reis espanhóis, estes passaram a legislar o direito próprio, adaptando o direito romano às exigências locais9. Pode-se afirmar, portanto, que a romanização na Península Ibérica, embora não tenha sido tão precoce e profunda quanto na Itália, ocorreu, sobretudo por influência indireta exercida pelo código visigótico (a partir do século VII) e pelas Sete Partidas (séculos XIV e XV); bem como pela utilização direta do direito romano como fonte subsidiária do direito lusitano, assim regulado pelas Ordenações Afonsinas (14461447), e sobretudo pela versão definitiva das Ordenações Manoelinas (1521)10. De fato, no século XIV inicia-se um movimento de crítica e repúdio e cada vez menor aceitação à subserviência do direito às versões de segunda mão de origem hispânica. São encaminhados protestos ao Rei contra a primazia dada aos textos com bagagem hispânica, abrindo possibilidade de acesso direto às obras romanas. Isso possibilitou o acesso e o conhecimento do verdadeiro direito subsidiário, que passou a ser estudado e traduzido. 5 Cândido Rangel Dinamarco, Execução Civil, p. 62. Waldemar Martins Ferreira, História do Direito Brasileiro, II, pp. 267. 7 Idem, Ibidem, p. 279. 8 Idem, Ibidem, pp. 281-285. 9 Alfredo Buzaid, Do concurso de credores no processo de execução, pp. 106-107. 10 John Gilissen, Introdução histórica ao direito, p. 351. 6 Durante D. João I foi ordenado que os textos, agora traduzidos (Decretais foram traduzidas em 1359; a compilação Justiniano, as Glosas de Acurcio da escola fundada por Irnerio, e os comentários de Bartolo), fossem acatados nos tribunais como direito subsidiário. A partir de 1446, com as Ordenações Afonsinas (livro dois, título 9), o legislador se dedica ao problema das lacunas do direito, e estipulou uma ordem hierárquica, no título denominado "quando a lei contradiz decretal qual delas deve ser guardada", estabelecendo os limites de influência do direito romano e também do direito canônico na formação do direito lusitano. Não se pode olvidar também que Portugal, quando se desmembrou do Reino de Leão, erigindo-se em Monarquia independente, tornou-se feudatário da Santa Sé, o que possibilitou a recepção, além do direito romano, também do direito canônico. Verifica-se, portanto, que a influência do direito romano no direito lusitano resultou na absorção por este de muitos dos institutos originados no direito romano, como a execução forçada, tanto através da utilização direta de seus conceitos, através do direito subsidiário, como através da utilização indireta, em razão da influência do denominado “direito imperial” nas legislações compiladas e produzidas na Península Ibérica e em Portugal. 2. DA EXECUÇÃO FORÇADA NO CÓDIGO AFONSINO 2.1. Historiografia das Ordenações Afonsinas A partir da segunda metade do século XIV, o poder real português sentiu a necessidade de submeter todos os seus súditos ao império de uma só e única lei, diminuindo o poder das cidades, que exercitavam poderes administrativos, disciplinares e judiciários11. Uma vez que a nação portuguesa fora unificada pelo poder real em detrimento dos poderes locais, tornara-se necessário unificar a lei nacional. A figura do rei crescia paulatinamente, fato que acompanhado da expansão marítima exigia uma nova produção legislativa. Com o desiderato de estudar e cultivar o direito romano, D. Diniz fundou o Estudo Geral de Lisboa12, que após várias transferências entre Lisboa e Coimbra, acabou fixando-se nesta última, dando origem à renomada Universidade de Coimbra. Deste modo, com o cultivo do direito romano e do direito canônico, editaram-se as Ordenações Afonsinas, por iniciativa de D. João I, que incumbiu João Mendes, corregedor do Reino, a compilar as leis gerais do Reino, uma vez que havia dúvidas sobre o direito vigente, tendo em vista a dificuldade de divulgação das mesmas, e o desconhecimento de técnicas de direito intertemporal, como a revogação da lei, ou o princípio de que a lei posterior revoga a anterior. O jurista João Mendes iniciou a tarefa sendo seguido por Rui Fernandes, que continuou a compilar. Como trabalho preparatório temos “O livro das leis e posturas”, que foram anteriores as ordenações 11 12 Waldemar Martins Ferreira, História do Direito Brasileiro, II, pp. 282. Idem, ibidem, pp 183-184. Afonsinas, e as ordenações de D. Duarte, que foram compiladas por Fernão Rodrigues e Luiz Martins. Finalmente, em 17 de julho de 1446 advém uma compilação definitiva sob o reinado de Don Afonso V, sendo esta a data oficial da publicação das ordenações Afonsinas, que teriam vigoraram até 1514, quando dom Manoel edita as Ordenações Manoelinas. Cabe ressaltar que as Ordenações Afonsinas apenas ganharam tipos impressos em 1792, que utilizaram como modelo as Decretais do Papa Gregório IX13. Verifica-se, portanto, que os institutos romanos, como a execução forçada, inseriram-se no direito lusitano, sob os auspícios e a influência que o direito romano desfrutou em toda a Europa, e na península ibérica em particular. 2.2. Características principais da execução forçada nas Ordenações Afonsinas Podem ser apontadas como características principais da execução forçada nas Ordenações Afonsinas: a existência de uma execução realizada através do estado, realizada com base em sentença judicial; a possibilidade de prisão do devedor; a proibição de serem constritados bens além do necessário para a satisfação da dívida (princípio da utilidade da execução); a impenhorabilidade sobre determinados bens (princípio da execução digna); a determinação de que a execução seja feita de maneira menos gravosa ao devedor (princípio da utilidade da execução); bem como a primazia da primeira penhora. A existência de uma execução com forte presença estatal já se fez presente no período clássico do direito romano14. Ocorre que, com o domínio bárbaro, embora a estrutura básica do direito romano não tenha sofrido grandes alterações, alguns institutos entraram em declínio, como a participação do Estado na execução, que é reduzida, iniciando-se o processo com a penhora privada, sendo pressuposto básico da execução neste período a voluntária submissão do devedor15. A partir do século XII, com a recuperação do prestígio do direito romano em razão dos estudos jurídicos realizados, sobretudo, pela Escola de Bolonha, consagra-se a fórmula de participação exclusiva do juiz no processo de apreensão dos bens do devedor, presidindo o processo até o final. Mantendo esta tendência de execução estatal, a Ordenações Afonsinas consagram a execução através de sentença judicial, denotando de forma clara a participação estatal na apreensão de bens do devedor. Pode-se verificar também que embora se possa verificar uma certa autonomia da fase executiva, com a previsão de embargos, tal execução prescindia de citação, que apenas ocorria no caso de condenação ilíquida, o que hoje se conhece como “fase de liquidação da sentença”, conforme pode ser verificado nos excertos transcritos do Livro Terceiro, Título 89 “Das Execuçoens, que se fazem geralmente pólas sentenças”, e do Livro Terceiro, Título 91 “Se citarám a parte condenada ao tempo da execuçam, que se faz por Porteiro per poderio de seu Officio, sem outra Carta D’El Rey”: 13 Waldemar Martins Ferreira, História do Direito Brasileiro, II, pp. 289-291. Paulo Furtado, Execução, p. 9. 15 Candido Dinamarco, Execução Civil, pp. 51-52. 14 I Outro sy he mandado per ElRey nos feitos das Execuçoens, que fazem pelos seus Sacadores por razam de suas dividas, e nas outras, que se fazem per seus Porteiros por rezam das dividas, que devem alguuns de seu senhorio, ou de fora delle, se aquelle, contra que se faz execuçam, dicer perante o Juiz da terra, hu esta execuçam fezerem, que se não deve fazer esta execuçam por alguuas rezoeens, que digua loguo perante o juiz essas rezoeens são boas, ou cada huuma dellas, que mande logo a esse Sacador, ou Porteiro, que nam faça a dita execuçam; e que assine dia a esse sacador, ou Porteiro, e a parte que o embargua, a que vam perante os Ouvidores da Portaria, ou perante aquelles, que ham de veer o haver d’ElRey, quando for a execuçam sobre divida d’ElRey, pêra todo verem esses, que ham de livrar os feitos, e as rezoeens, por que embarguam as execuçoeens, e fazerem o que for direito. (Livro Terceiro, Título 89, caput). (...) E se o Reo for condenado ao vencedor em alguuma auçam pessoal, que descenda de contrato, ou quase contrato, per que pague alguuma quantidade de dinheiro, pam, vinho, azeite, ou qualquer outra couza, que se costuma contar, pezar, medir, em tal caso deve a parte condenada ser citada ante da execuçam, perque a condenaçam nam foi feita em certa, e especificada cousa, em que se aja de fazer execuçam (Livro Terceiro, Título 91, parágrafo 6). No que se refere à admissão da possibilidade de prisão do devedor, embora esta prisão possa, em primeira análise, parecer violenta e desumanizante, cabe lembrar que a prisão prevista nas Ordenações Afonsinas, se comparada com sua origem romanística, foi uma grande evolução. De fato, no período da legis actiones a execução ocorria contra a pessoa do devedor. Caso este não satisfizesse o débito ou alguém comparecesse para prestar fiança, era adjudicado ao devedor e reduzido a cárcere privado, levado a três feiras sucessivas, e se ninguém solvesse seu débito, o credor podia matar o devedor. Havendo pluralidade de credores, o executado poderia ainda ser retalhado16. Esta possibilidade de penhorar o próprio devedor posteriormente foi adotada pelo direito dos forais17. Nas Ordenações Afonsinas permaneceu a possibilidade de se prender o devedor, como regra, após a sentença, nos termos Livro Quarto, Título 67, 1: Dizemos, que por a divida privada, que decenda de feito civil, assi como d’auguu contrauto ou casi contrauto sem 16 “A execução romana era privada e penal, e tinha por objeto a pessoa do devedor e não seu patrimônio”, cfr. Alfredo Buzaid, Do concurso de credores no processo de execução, pp.42-44. 17 Alfredo Buzaid, op. cit, p. 111. outra algua malicia, nom deve algu homem seer preso, ainda que nom tenha per onde pagar, atee que seja condapnado per sentença, que passe em cousa julgada; ca enton se deve fazer eixecuçon em seus bees, e nom lhe achando tantos, que abastem pera a dita condapnaçom, em tal caso deve ser preso devedor atee que pague da cadeia. Assim, a prisão do devedor, antes da sentença, aplicava-se apenas como exceção, em determinados casos especiais, como dívida para com o Rei, nos termos do disposto no Livro Terceiro, Título 121, caput: Lê-se nas Leys Imperiaes, que nam deve algu homem ser preso por divida, ante que seja condenado por sentença; salvo se a divida for d’El Rey, o descender d’algum crime, quer seja civel, quer criminalmente intentado. Pero onde a divida descendesse em todo de feyto civel, ainda que o devedor fosse condenado por sentença, dando elle luguar aos bees, em tal caso nom deve ser preso por essa divida; e ainda segundo Direyto he livre da obrigaçam civel, em que era obrigado, ainda que fique naturalmente obrigado a esses, a que antes era. Outro ponto a ser destacado na execução forçada prevista no Código Afonsino, diz respeito ao reconhecimento de determinados princípios do processo de execução, que são reconhecidos atualmente, como o princípio de que não poderiam ser constritados bens além do necessário para a satisfação da dívida (princípio da utilidade da execução), previsto no Livro Terceiro, Título 104: Ao que ao que dizem que no vinte artiguo, que os nossos Porteiros, e Sacadores metem em preguam todollos beens movees, e de raiz, que alguum nosso devedor ha, posto que nos nom deva mais de vinte livras, e o devedor haja valor de mil livras, e que por esta rezam ficam envergonhados muitos nossos devedores: e pediam-nos por merce, que mandassemos que quanta fosse a divida, que tanta parte metessem em preguam dos beens do devedor, e mais nom. A este artigo Respondemos e Mandamos, que o Sacador, o Porteiro nam meta, nem traga mais beens do devedor empregam, que quantos avondarem pera se paguar a divida, e se o fizer maliciozamente, mandamos que correga aa parte toda a perda e dapno que receber, em mais seja-lhe estranhado, como for Direito. Quanto à determinação da inexpropriabilidade de certos bens, o Título 98, do Livro Terceiro, das Ordenações Afonsinas, denominado “Que nam fação penhora, ou execuçam nos cavallos, e armas dos Vassallos, e aconthiados”, é reconhecido atualmente como um dos princípios gerais de execução, isto é, a restrição da penhora sobre determinados bens, podendo ser identificado com o princípio da execução digna, e que possui o sentido intrínseco de manter o devedor com o mínimo para a sua sobrevivência, não podendo ser reduzido a uma situação que o destitua de bens essenciais à preservação da vida. Embora em grande parte tal disposição fosse destinada a privilegiar fidalgos e cavaleiros, que resguardavam da execução seus cavalos e armas, também tinha por objetivo proteger da penhora os bois de arado e sementes, conforme excerto que reproduzo: 1 Ao que dizem aos doze artigos, que alguns aconthiados de cavallos, e armas do nosso Senhorio sam individados a Nós, e outras pessoas, e no tempo das execuçoens penhoram-nos nos cavallos, e armas, que tem pera nosso serviço, e outro sy nos bois do arado, e no pam da semente, avendo outros beens assy movees, como raiz, que valem essas dividas; e que desto se segue grande dapno ao da nossa terra, porque em alguns Luguares nom podemos tam compridamente ser servidos destes assy acontiados, porque assy são penhorados nas cousas sobreditas, nem as terras per minguoa dos bois e semente serem lavradas; e que em alguns Luguares do nosso Senhorio, especialmente no Algarve, se guarda esto: E pendiam-nos por merce, que mandassemos assy fazer, e guardar nos outros Luguares do nosso Senhorio. 2 A este artigo Responderemos, querendo Nós fazer graça e merce aos do nosso Povo, Mandamos que aquelles que tiverem armas e cavallos pera nosso serviço, nom sejão em ello penhorados, se mostrarem outros beens movees ou de raiz desembarguados; nem outro sy nos bois, que cada hum tever pera lavrar suas Herdades, segundo as Herdades forem, e as Lavouras fezerem; nem outro sy nas sementes, que teverem para semear suas Herdades, sem outro enguano. Ainda quanto a princípio geral da execução, reconhecido atualmente, ou seja, podemos identificar na Ordenações Afonsinas o princípio da economia da execução, no sentido de que a execução deve efetuar-se do modo menos gravoso devedor, no Livro Terceiro, Título 99, denominado “Que não entrem os Porteiros nas casas dos condenados a fazerem execuçam, se acharem penhores fora dellas”, conforme excerto que transcrevo: I Recebem agravamento dos Mordomos, e Almoxarifes, e dos outros, que ham poder de penhorar, porque quando ham de fazer as penhoras, entram nas casas dos homens bons sem lho fazendo ante saber, e não lhe pedindo ante o penhor, e andam-lhe muitas vezes transtornando suas casas, e câmaras, e quello, que em ellas tem: e pedem-nos por mercê, que queiram llo fazer correger. A este artigo diz ElRey que tem por bem, quando os Mordomos, ou outros que ouverem de penhorar, quizerem fazer a penhora nas cazas dos homens bõos, que se acharem fora das cazas alguuns beens movees, em que possam fazer as penhoras em a quantia daquello, por que ham de penhorar, que a façam hy; e se hy tanto nam ouver, ou nam acharem nada fora da caza, em que possam penhorar, que entam peçam no penhor de fora ao dono da caza, ou aos que hy acharem, e dem-lho loho hy; e se lho dar nom quizerem, emtam entrem dentro, e façam essas penhoras como devem Deve ser ressaltado também, não obstante a evolução sofrida pela execução forçada desde sua origem no direito romano, que inúmeras disposições previstas nas Ordenações Afonsinas visavam unicamente atribuir direitos aos nobres e fidalgos, que possuíam muito mais privilégios que o cidadão comum. A este respeito, observe-se, por exemplo, o Livro Terceiro, Título 94 “Que não dê El Rey Porteiros especiaes, pêra fazerem execuçoens honde ouver Mordomos, senam a certas pessoas”; ou o Livro Terceiro, Título 100 “De como se há de fazer execuçam nas cazas dos Fidalgos, Cavalleiros, ou Donas”. Quanto ao princípio “prior tempore potior jure”, ou seja, o princípio da prioridade da satisfação do crédito em favor daquele que primeiro executa, e que já fora consagrado também no direito visigótico18, também foi adotado pelas Ordenações Afonsinas no Livro Terceiro, Título 97 “Do Credor, que primeiramente houver sentença, e fizer execuçam, que preceda outras todas, ainda que sejão primeiras no tempo”. Verifica-se que a primeira lei citada no referido Título foi estabelecida sob D. Diniz, nestes termos: Que se alguum dever muitas dividas, e alguum daquelles, a que elle he devedor, lhe vem demandar sua divida, que lhe deve, e andar com elle a preito perante algum Juiz, que deve desembarguar esse preito, se o demandador vencer, e lhe for julgada a cousa sobre que for a demanda, se se os beens venderem por esta rezam, ou trazendo-os em almoeda veer outro, a que este condenado deve outra divida primeiramente, e ante que os beens sejam vendidos, ou depois disser que elle deve d’aver os ditos beens, ou os dinheiros, por que forem vendidos, por sua divida, por que diz que foi primeira, tel rezam como esta nom lhe seja guardada, nem se possa della ajudar en este passo, se aquelle, que demandou sua divida, contendeo perante o juiz com aquelle seo devedor, e o venceo em sua face daquelle, que diz que a sua divida he primeira, e elle, nem outrem por elle nam refertou, nem contradice perante o juiz, em mentre o demandador, que venceo a divida, andava em demanda com aquelle seu devedor: salvo se aquelle, que diz que a sua divida he primeira, nom era da terra, nem no Luguar, honde foi a demanda, que pudesse saber o sobredito demandou a sua divida áquelle seu devedor. E se o devedor, que lhe deve a 18 Alfredo Buzaid, op. cit., p. 109. divida, ouver outros beens, filhem-nos, e aja per elles sua divida aquelle, que diz que a sua divida he primeira, e nom seja embarguado aquelle, que venceo a divida por nenhuuma destas rezoens. Mas se elle nam era na terra, nem no luguar, honde foi feita demanda, e o demandado nam ouver outros beens, entam aquelle, cuja a divida he primeira, aja esses beens, ou os dinheiros, por que se venderem, ou se fizer certo, sendo na terra onde a demanda foi, que protestou, e refertou aver sua divida primeira. Este privilégio de direito de prelação possui sólida tradição romana, tendo sido posteriormente introduzido no artigo 612 do Código de Processo Civil brasileiro19. 3. DA EXECUÇÃO FORÇADA NO CÓDIGO MANOELINO 3.1. Historiografia das Ordenações Manoelinas Dom Manoel, conhecido como virtuoso ou felicíssimo, era o oitavo na linha sucessória, porém, em decorrência de uma série de infortúnios que atingiram a família real, com a morte, entre outros, de Dom Afonso, e pouco depois de Dom João II, Dom Manoel acaba assumindo o trono, em 1495, designando no ano de 1505 uma comissão para redigir as ordenações, composta por Rui Boto, Chanceler do Reino, Rui da Grã, desembargador do paço e João Cotrim, corregedor da Corte. As Ordenações Manoelinas procuram modernizar a legislação, tendo, como regra, estilo decretatório, diferentemente das ordenações Afonsinas, que apenas possuíam o livro primeiro com tal característica. Consistiam, basicamente, em revisão e atualização das Ordenações Afonsinas, pois as Ordenações Afonsinas estavam em vigor há apenas pouco mais de 50 anos. Foi pela primeira vez publicada por volta do ano de 1514, havendo uma reforma definitiva em 1521, em conseqüência da promulgação, neste interregno, de leis extravagantes de grande importância. É reconhecida a importância das Ordenações Manoelinas dentre as Ordenações do Reino, uma vez que as Ordenações Filipinas, que a sucederam, são criticadas exatamente pela falta de originalidade e pelas constantes contradições nelas presentes (denominadas como "filipismos"). Ocorre, entretanto, que as próprias Ordenações Manoelinas, em sua essência, repetiram, em grande parte, as Ordenações Afonsinas, com modificação apenas no modo de exposição. Quanto à forma, permaneceu a divisão em cinco livros, com o livro primeiro cuidando da organização judiciária e administrativa de Portugal, o livro segundo cuidando dos clérigos, o Livro Terceiro do processo civil, o livro quarto do direito privado, e o livro quinto o direito penal e processual penal. 19 O direto de prelação é considerado um prêmio à vigilância e à diligência no processo executivo, e contou com a preferência do professor Alfredo Buzaid, que o incluiu no anteprojeto do Código de Processo Civil. O Livro Primeiro foi terminado em 1512, o livro II em 1513, e os demais 1514, porém, tal texto desagradou ao Rei Dom Manoel, tendo sido suspensa a edição, com a destruição de quase todos os exemplares a pedido do rei. A edição definitiva das Ordenações Manoelinas foi conhecida apenas em 1521. 3.2. Características principais da execução forçada nas Ordenações Manoelinas Nas Ordenações Manoelinas a execução das sentenças era realizada pelo Juízo, ou seja, realizada através de atividade estatal, conforme o previsto no Livro Terceiro, Título 71, sendo mantida, em linhas gerais, a execução forçada prevista nas Ordenações Afonsinas, podendo ser apontado como novidade a assinação em dez dias, disciplinada no Livro Terceiro, Título 36, que era tratada como verdadeira execução sumária20, que vigorou também no Brasil até o avento do Código de Processo Civil de 1939, e pode ser apontada como precursora de nossa atual ação monitória21. De fato, verifica-se a analogia dos procedimentos entre a assinação de dez dias, prevista na Codificação Manoelina e nossa atual ação monitória, reintroduzida em nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 9.079/95. O réu era citado para, em dez dias, pagar, comprovar que realizou o pagamento, ou oferecer embargos. Uma vez opostos e recebidos os embargos, seguia-se o rito ordinário, do mesmo modo que ocorre com a ação monitória. O professor José Alberto dos Reis, da Faculdade de Coimbra, identifica ainda a assinação de dez dias com a actio judiciati de origem romana, e que no direito lusitano das Ordenações aquela deve ser considerada um meio excepcional de executar sentenças, uma vez que o meio normal e comum de execução ocorria através do ofício do juiz22. Com relação à citação na fase executiva, pode ser encontrada uma diferença nas Ordenações Manoelinas, cotejando-a com as Ordenações Afonsinas, uma vez que, ao invés de citação, no caso de sentença ilíquida, o termo utilizado é “requerido”, apenas fazendo-se menção à citação no caso do devedor não ser encontrado, conforme transcrição do de excerto Livro Terceiro, Título 71, caput: Quando algua sentença for apresentada a algum Julguador, pola qual se deva fazer execuçam, sendo dito Julguador requerido pêra ello, a mandará com diligência executar. E sendo a condenação por algua ação pessoal, que descenda de contrato, ou quas contrato, por que algua parte seja condenada, que pague ao vencedor algua quantidade de dinheiro, pão, azeite, ou qualquer outra cousa, que se costuma contar, pesar, medir, em tal caso será o dito condenado requerido que pague o contheudo na dita sentença, ou dee penhores abastantea aa condenaçam, sendo achado no Luguar onde se faz a execuçam; e nom sendo achado para seer requerido, seja 20 Candido Dinamarco ao comentar sobre a assinação de dez dias cita obra de Morais (De executionibus), que a define como execução sumária, mas argumenta que o entendimento atual é que era um ação sumária de conhecimento, Execução civil, p. 66, nota 148. 21 Leonardo Greco, O Processo de Execução, pp. 33-34. 22 Processo de execução, pp. 77-78. citado, segundo a forma que Dissemos neste Livro, no Título Das citações; (...) No Código Manoelino subsiste o princípio da prioridade na satisfação do crédito em favor daquele que primeiro executa23, nos termos do disposto no Livro Terceiro, Título 74, do qual transcrevo o caput: Se alguã pessoa for obrigada a muitos credores, e alguu delles o demandar por sua divida, e anda com elle o feito perante o Juiz, a que o conhecimento pertencer, e ouver contra elle sentença, e fezer por ella penhora em seus bens, e andando ainda em almoeda, ou sendo já vendidos, e arrematados, vier outro credor, a que esse condenado por Dereito era primeiramente obrigado a pagar, e requerer que em os ditos bens (se ainda forem vendidos) se faça execuçam por sua divida, por sua obrigaçam dever proceder a outra segundo Dereito, ou que lhe entreguem o dinheiro, se já os bens forem vendidos, nom lhe seja recebida tal razam, se o credor que ouve a sentença demandou o devedor em presença d’aquelle que diz, e alegua, que a sua divida deve preceder, e elle nunca o contradisse per si, nem por outrem, nem o refertou perante o Juiz em quanto o feito durou; salvo se aquelle, que diz que a sua divida era primeira, nom era no Luguar onde se trautou a demanda, nem teve razam de saber quando o dito creedor demandava sua divida; porque nom sendo elle no Luguar onde a demanda trautava, ou se fou presente refertou, e protestou perante o Juiz de aver sua divida primeiro, e o devedor nom tever outros bens, per que esse primeiro creedor possa aver paguamento de sua divida; porque em estes casos o creedor que precede por estes bens, em que se faz execuçam, ou por preço d’elles, averá primeiramente paguamento de sua divida, posto que o dito preço já fosse entregue ao outro creedor. E porem tendo o devedor outros bens, por que o creedor que deve preceder possa aver seu paguamento, aja-o por elles, e nom per os bens em que o outro creedor per sua sentença fez primeiro execuçam, e penhora. As Ordenações Manoelinas são importantes quanto à evolução histórica do concurso de credores, pois pela primeira vez estabelece uma exceção ao princípio da precedência da primeira execução, ocorrida em caso de quebra, estabelecida no parágrafo 3o do mesmo livro e título acima mencionado: E porem quando alguu quebrar, Queremos, que dentro de huu mez inteiro do dia que quebrar nom aproveite deligencia algua, que qualquer creedor fezer no dito mez, 23 Alfredo Buzaid, Do concurso de credores no processo de execução, pp. 115-116. assi acerca d’aver sentença. Como de fazer primeiro penhora, e execuçam no dito mez, pera por ello poder preceder os outros, soomente se averá respeito pera a precedencia segundo for a qualidade da obrigaçam; e passado o dito mez entam averá luguar a desposiçam desta Ley, segundo nella he contehudo. No Código Manoelino é mantida a pena de prisão do devedor que não tivesse bens suficientes para o pagamento do credor, estabelecendo, porém, que tal apenas ocorreria com sentença transitada em julgado, apenas excepcionado nos casos em que o devedor tencionasse fugir, ou efetivamente fugia, para não pagar a dívida24. Pode-se também observar como uma característica importante das Ordenações Manoelinas a restrição da penhora sobre determinados bens, dispositivo limita a execução quando esta possa levar o executado a uma situação incompatível com sua dignidade, conforma se verifica no Livro Terceiro, Título 71, parágrafos 10 e 11: 10 Emperó nom penhorarám os Fidalguos, e Cavaleiros, e Nossos Desembarguadores, nos cavalos, nem em armas, nem em os livros, nem em vestidos de seu corpo, nem às molheres dos sobreditos, nem molheres Fidalguas nos seus vestidos, e de seus corpos, e camas de suas pessoas, avendo respeito ao que lhe a cada huu he necessario para seu serviço, e uso, segundo a qualidade de suas pessoas, e esto, posto que outros bens nom tenham; e nos mais cavalos, e vestidos, e cada hua das sobreditas cousas, que nom forem necessarias, como dito he, se fará execuçam, quando outros bens movees, ou de raiz nom teverem. E esto se nom entenda nos roubos, e malfeitorias, porque por taes casos seram penhorados, e constrangidos, atee que paguem assi por seus bens, posto que sejam dos sobreditos, como nos corpos. 11 E bem assi Mandamos, que nom se faça penhora, nem execuçam por dividas Nossas, nem d’outras quaesquer pessoas nos cavalos, nem em armas, dos que forem Acontiados em cavalos e armas, nem daqueles que continuadamente custumarem teer armas, e cavalo de estada para Nosso Serviço, nem se faça penhora, nem execuçam no seus bois d’arado, que teverem, lhes forem necessario pera lavrarem suas herdades, nem em as sementes que teverem, e lhe necessarias forem pera as samear; nem faram isso mesmo penhora, nem execuçam nas armas dos Vassalos, nem dos Acontiados em arnefes, ou outras armas, posto que não sejam Acontiados em cavalos, nem se fará execuçam nas armas dos Beesteiros de cavalo, nem do conto, nem dos Acontiados em beesta de garrucha, ou lança, e dardo, e de qualquer outros que armas tenham pera Nosso Serviço. Peró se os sobreditos 24 Ordenações Manoelinas, Livro Quarto, Título 52, nºs 1 e 3. teverem alguas armas em casa de alguus Pregoeiros, ou Armeiros, ou em outros luguares para vender, podera nellas fazer execuçam como nas outras coisas; nem faram penhora nas armas, e espingardas, e beestas que teverem os Espigardeiros, e Beesteiros de monte, que teverem Nossos privilegios, que nom forem pera vender, como emcima dito he, amostrando as ditas pessoas contehudas neste parrafo outros seus bens movees, ou de raiz desembarguados, em que se possa fazer execuçam. No mesmo Título 71, parágrafo 14, pode ser verificado o princípio da execução às expensas do executado, indicando que a execução forçada no direito lusitano das Ordenações, do mesmo modo que a sistemática jurídica da execução forçada adotada atualmente no Brasil, devia ser custeada pelo executado: 14 E mandamos, que em todo caso onde se faz penhora e execuçam, que sempre o condenado pague as custas do processo de execuçam, e assi o Escrivam, e Porteiro e Pregoeiro de tudo o que lhe for contado. O Código Manoelino também prevê forma de fraude à execução, cuja sanção era a prisão, diferentemente da sanção de ineficácia atualmente prescrita pelo ordenamento jurídico brasileiro, conforme prescrição do Livro Terceiro, Título 71, parágrafo 15: E se alguu devedor despois de seer condenado em algua quantidade de dinheiro, pam, ou vinho, ou outra semelhante cousa que se custuma contar, pesar, ou medir, emalhear seus bens em prejuizo do vencedor, por em elles se nom fazer execuçam, Mandamos, que seja preso, e o nom soltem atee compridamente satisfazer ao vencedor (...) Do mesmo modo que ocorre atualmente no ordenamento jurídico brasileiro, após a penhora eram previstos pregões, com as peculiaridades de que eram realizados em dez dias contínuos do dia da penhora, para os bens móveis, e em trinta dias contínuos do dia da penhora, para os bens de raiz25, com a distinção de que, diferentemente do que ocorre hoje em dia, não havia avaliação dos bens penhorados, ou previsão de remição da execução ou dos bens, nem tampouco da adjudicação. Entretanto, pode ser considerada uma forma análoga de adjudicação a possibilidade conferida ao credor de oferecer lance e concorrer à licitação no último dia dos pregões26, nos termos do disposto no Livro Terceiro, Título 71, parágrafo 13: 13 E mandamos, que atee o derradeiro dia dos pregões nom se achar quem lance em quaesquer bens, que assi andarem em pregão, ou se lançar pouco, e o vencedor quiser mais lançar, entam poderá lançar o vencedor, ou 25 26 Ordenações Manoelinas, Livro Terceiro, Título 71, parágrafo 12. Candido Dinamarco, Execução civil, p. 68. quem por elle requerer a execuçam, com tanto que peça licença ao Julgador, que a execuçam manda fazer, o qual lha dará no dito derradeiro dia, quando vir que outro nom lança, ou que lança pouco, e que elle quer mais lançar. 4. DA EXECUÇÃO FORÇADA NO CÓDIGO FILIPINO 4.1. Historiografia das Ordenações Filipinas Com a morte de D. Sebastião, o trono português acabou sendo reivindicado pelo Rei Filipe II da Espanha, que também assume o reinado em Portugal, formando a União Ibérica. Através de lei promulgada em Madrid, em junho de 1595, El Rey houve por bem fazer nova recompilação das Ordenações Manoelinas, em razão do grande número de leis aprovadas e que não integravam as Ordenações Manoelinas, cuja versão definitiva foi conhecida em 1521, embora houvesse quem atribuísse à vaidade de Filipe II a iniciativa da codificação27. Houve ainda quem entendesse que a codificação teria por objetivo fortalecer a realeza, pois a partir do Concílio de Trento, aceito sem restrições por D. Sebastião, que realçava o direito canônico, em detrimento da legislação civil que lhe era adversa28. A obra codificadora ficou a cargo de dois desembargadores do Paço Pedro Barbosa e Paulo Afonso, nela trabalhando também os juristas Jorge de Cabedo e Damião de Aguiar, sendo a predominância dos trabalhos exercida por Jorge de Cabedo, chanceler-mór do Reino29. A falta de método e economia a compilação, bem como as matérias são as mesmas que se acham na Ordenações Manoelinas, a qual se inseriram leis posteriores. As Ordenações Filipinas foram editadas em 1603, já sob o reinado de seu filho e sucessor Filipe II de Portugal e III da Espanha, e foram muito criticadas pela falta de originalidade, e por seguir de modo obstinado e conservador as tradições portuguesas. Quanto ao conteúdo, acolhem quase toda a matéria contida nas Ordenações Manoelinas, que lhe serviu de modelo, integrando também como fontes as decisões das Cortes, os assentos da Casa de Suplicação de Lisboa e do Porto, as leis gerais, sem esquecerem as contribuições do Fuero Jusgo, das Sete Partidas, do direito romano e do direito canônico. No Brasil, as Ordenações Filipinas vigoraram até 1833, quanto ao direito penal, e até 1917, quanto ao direito civil. 4.2. Características principais da execução forçada nas Ordenações Filipinas 27 Waldemar Martins Ferreira, op. cit., pp. 302-305. Idem, ibidem, p. 305 29 Idem, ibidem, p. 303. 28 A execução nas Ordenações Filipinas, do mesmo modo que suas antecedentes, era promovida por órgão jurisdicional, conforma se verifica pelo Livro Terceiro, Título 86 “Das execuções, que se fazem geralmente pelas sentenças”, fazendo, do mesmo modo que as Ordenações Manoelinas, referência à citação no caso de o devedor não ser encontrado, o que para Cândido Dinamarco evidencia a idéia de autonomia da execução forçada30. No que se refere ao concurso de credores na execução, as Ordenações Filipinas reconhecem o princípio da diligência, dando preferência aos credores segundo a ordem das respectivas penhoras31. No sistema do Código Filipino, com a condenação do devedor por sentença, com trânsito em julgado, o mesmo era executado, com a penhora de seus bens. Caso não houvesse bens bastantes para fazer face à condenação, o devedor era preso, sendo assim mantido até que pagasse, mas se fizesse cessão de seus bens poderia ser solto32. Além das obrigações de pagar, as Ordenações Manoelinas também previram a execução específica das obrigações de entregar coisa certa, sendo que ao devedor era assinado o prazo de dez dias para a entrega da coisa, e uma vez superado esta prazo sem a entrega da coisa e sem embargos, “ser-lhe-á tomada diretamente pela Justiça, segundo o caso requerer, sem mais ser a parte condenada para ello citada” (Título 71, parágrafo 30), a indicar que era adotado, quanto às obrigações de dar coisa certa, uma sistemática efetiva e dotada de meios adequados para obtenção da proteção judicial específica. Cabe também lembrar as hipóteses legais de impenhorabilidade de bens, previstas no Livro Terceiro, Capítulo 86, parágrafos 23 e 24, ou seja, a restrição da penhora sobre determinados bens. Feitos os devidos descontos quanto aos exageros decorrentes da organização social da época, com seus privilégios, o que se pode observar é sempre o impedimento de penhora sobre objetos de uso especial ou que expliquem, por si só, o meio de vida do penhorado. Assim, vislumbra-se a possibilidade de tais hipóteses legais também serem identificadas com o princípio da execução digna, em seu sentido intrínseco de manter o devedor com o mínimo para a sua sobrevivência, ao resguardar da penhora os bois de arado e as sementes dos lavradores: 23. Porém não se penhorarão os Fidalgos e Cavaleiros nossos desembargadores nos cavalos, armas, livros, vestidos de seus corpos, nem as mulheres do sobreditos, e mulheres Fidalgas nos vestidos de seus corpos e camas e suas pessoas, a havendo respeito ao que a cada um é necessário para seu serviço e uso, conforme a qualidade de suas pessoas, pôsto que outros bens não tenham. E nos mais cavalos, vestidos em cousas sobreditas, que lhes não forem necessários, se fará execução, quando não tiverem outros bens móveis, ou de raiz. E isto se não entenda nos roubos e malfeitorias; porque por tais casos serão penhorado se constrangidos, até que paguem, assim por 30 Execução civil, p. 67. Enrico T. Liebman, Processo de execução, pp. 276-277. 32 Ordenações Filipinas, Livro Quarto, Título 76, parágrafo 1. 31 seus bens, pôsto que sejam dos sobreditos, como por prisão e suas pessoas. (princípio da execução digna: no sentido de que a execução não deve levar o executado a uma situação incompatível com a dignidade humana, devendo manter o mínimo para sua sobrevivência). 24. E bem assim não se fará penhora, nem execução por quaisquer dívidas, pôsto que sejam nossa nos cavalos e armas dos que continuadamente costumam ter armas de cavalos de estada para nosso serviço, nem nos bois de arado, que tiverem os Lavradores, e lhes forem necessários para lavrarem as terras e herdades, nem nas sementes, que tiverem, e lhes forem necessárias para semear. Nem nas armas de quaisquer pessoas, que estiverem por obrigação, nem de outros que as tenham para nosso serviço, nem nas armas, espingardas e bêstas, que tiverem os Espingardeiros, e Besteiros do monte, que tiverem nossos privilégios, mostrando as pessoas contidas neste parágrafo outros seus bens móveis, ou de raiz, desembargados, em que se possa fazer penhora e execução. Porém, se o sobreditos tiver algumas armas em poder de Prègoeiros, Armeiros, Adéis, Adelas, ou em algum lugar para vender, poder-se-á fazer nelas execução, como nas outras coisas. Pode também ser observado, no mesmo Título 86, parágrafo 31, o princípio da execução às expensas do executado: 31. E em todo caso, onde se fizer penhora e execução, o condenado pagará as custas, assim do processo de execução, como da pessoa, e assim pagará ao escrivão, porteiro e pregoeiro tudo o que lhes for contado. Na vigência das Ordenações Filipinas, caso a quantia a ser executada superasse a quantia de mil réis, a penhora era realizada por Tabelião ou Escrivão, acompanhados pelo Porteiro. Caso a penhora a condenação não ultrapassasse a quantia de mil réis, a penhora seria feita apenas pelo Porteiro33. As obrigações de entregar coisa certa seguiram a mesma estrutura adotada nas Ordenações Manoelinas34. Do mesmo modo, as disposições acerca dos pregões são basicamente as mesmas das Ordenações Manoelinas, com exceção dos prazos previstos para os pregões, que deviam ser realizados em oito dias contínuos do dia da penhora, para os bens móveis, e em vinte dias contínuos do dia da penhora, para os bens imóveis. 5. CONCLUSÃO 33 34 Ordenações Filipinas, Livro Terceiro, Título 89, caput. Ordenações Filipinas, Livro Terceiro, Título 86, parágrafo 15. À guisa de conclusão pode-se afirmar que o estudo da execução forçada no processo lusitano das Ordenações, a identificação de suas características fundamentais, bem como sua inegável contribuição para o processo de execução atual do ordenamento jurídico brasileiro, pode contribuir de maneira importante para a melhoria do processo executivo. De fato, qualquer pessoa que trabalhe com o direito certamente já se deparou com a problemática do alto índice de ineficácia do processo de execução. É comum, no vocabulário forense, a expressão: “ganhou, mas não levou”. Quando finalmente se obtém uma manifestação definitiva do Judiciário sobre quem tem razão, verifica-se, nas ações condenatórias, a total ineficiência do título executivo. De fato, nosso sistema processual, pertencente à família da civil law, influenciado como foi pelo direito lusitano das Ordenações, que, por sua vez, foi influenciado pelo direito romano, sempre foi extremamente protetor do direito de defesa do litigante demandado, o que resultou na disciplina de solução dos litígios, salvo raras exceções, através do procedimento comum, no qual a cognição exercida pelo órgão jurisdicional é plena e exauriente. Assim, nesta sistemática, contra a sentença proferida com cognição plena, há ainda possibilidade de interposição de apelação, que é recurso dotado de efeito suspensivo, o que retira toda força executiva imediata do provimento jurisdicional. E mesmo após o julgamento do recurso, quando a sentença proferida for de natureza condenatória, ainda há necessidade dessa sentença ser efetivada através de um novo processo, denominado o processo de execução, com a possibilidade de interposição de embargos, um dos legados que o processo lusitano nos deixou. Assim, o estudo da historiografia do processo executivo - que é aquele onde se satisfaz o direito, efetivando o que foi decidido, conferindo ao vencedor o bem jurídico material - pode vir a contribuir de maneira importante para o entendimento integral do instituto da execução forçada adotada atualmente em nosso ordenamento jurídico, em especial pelo método crítico, buscando sua superação e aperfeiçoamento. BIBLIOGRAFIA BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução, São Paulo: Saraiva, 1952. CAMPEIS, Giuseppe. Le esecuzioni civili. Padova: CEDAM, 1994. DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 7a ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2000. ––––––––. 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