DA AUTORIDADE À LIBERDADE
Cristina Alpalhão Caixeiro*
Resumo:
Este texto procura ser um pequeno contributo para pensarmos a educação hoje. É vulgar ouvirmos
dizer que o mundo actual padece de uma profunda e aguda crise: crise económica, social, cultural,
política…Com efeito, conceitos como poder, valores, autoridade, liberdade sofreram alterações
morfológicas profundas em virtude das constantes convulsões que assolam diariamente a sociedade.
Exercer a autoridade reveste-se de uma complexidade assinalável em todos os segmentos da
sociedade, sobretudo, no domínio da escola. A autoridade dos professores continua a ser banalizada
numa altura em que a recente revisão Estatuto do Aluno dos Ensino Básico e Secundário tenta
implementar algumas medidas positivas que pretendem, certamente, aliviar a situação de conflito
que muitas das nossas escolas vivem diariamente.
Palavras-chave: autoridade, liberdade, educador, professor.
A educação é uma oficina de Humanidade
Rui Grácio
A educação é um acontecimento humano por excelência. Nas palavras de Kant, o homem é o que é unicamente
pela educação. A educação é a marca distintiva que o caracteriza em relação aos demais seres. Patrício (1990:52)
define educação como sendo a «acção de uma certa espécie». Acrescenta o mesmo autor que a educação é
«realizada pelo homem, e apenas pelo homem, tem por objecto o homem, e apenas o homem. O que essa acção
visa é a construção plena do homem na sua humanidade. O homem é, ao nascer, apenas, homem virtual. O que
faz dele homem real é a educação».
Atendendo a esta característica humana, não se pode deixar de filosofar sobre a educação. Os grandes filósofos
do passado abordaram o tema/problema da educação. Platão, Aristóteles, os Estóicos, Santo Gostinho, S. Tomás
de Aquino, Erasmo, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Kant, Fichte, Hegel, Nietzsche, Reboul, … fizeram da
educação um dos temas dominantes do seu pensamento.
Perante os múltiplos desafios do futuro, a educação aparece como um trunfo imprescindível à humanidade na
sua construção dos ideais de paz, da liberdade e da justiça social. Mas o homem é homem pelo nascimento ou
pela educação?
*Cristina Alpalhão Caixeiro, Professora do Quadro de Agrupamento, Grupo de Recrutamento 300, Agrupamento de Escolas
n.º 3 de Évora
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As ciências humanas defendem que os nascituros actuais continuam a ser iguais aos nascituros da pré-história.
Tudo o que a humanidade alcançou recai numa perspectiva “cultural”, não-natural: isto é, não se transmite por
hereditariedade, mas pela educação. Tudo o que torna o homem verdadeiramente humano é adquirido porque o
aprendeu, seja a linguagem, o pensamento, as técnicas, as ciências ou as artes. O organismo humano, ao nascer,
apresenta-se inacabado, sobretudo no campo do sistema nervoso. A grandeza humana está nesta imperfeição e
na possibilidade de evolução constante. O homem deve tornar-se o que deve ser. A fraqueza inicial da criança
constitui mais tarde uma vantagem dada a sua plasticidade.
Reboul (2000: 21) aponta que alguns filósofos «negam pura e simplesmente a natureza humana e dizem que
cada homem é o que é apenas pela educação.». Neste sentido surgem os sofistas, os empiristas (com a teoria da
tábua rasa sobre a qual a experiência pode inscrever todas as coisas), os culturalistas. Segundo estes últimos, os
homens diferem entre si nos gostos, nos sentimentos, nos costumes e nos valores morais e intelectuais tendo em
conta as culturas em que foram educados. É neste sentido que deve ser entendida a frase de Helvétius «a
educação pode tudo».
Deste modo, o homem seria natural numa perspectiva animal e cultural numa perspectiva humana. Repare-se na
educabilidade das crianças selvagens e na não-educabilidade de um animal. Nesta lógica existe uma natureza
humana universal que consiste na capacidade de aprender.
No processo da educação, o educador encontra, por sua vez, uma resistência psicológica da criança face à
aprendizagem. Porque educar não é fabricar adultos de acordo com modelos é necessário ter em conta o
carácter próprio de cada criança, a sua maneira de agir e aprender. Educar é, segundo o filósofo Reboul (2000:
22), «libertarem cada homem o que o impede de ser ele mesmo e lhe permite realizar-se segundo o seu génio
singular».
Deste modo, o homem tem necessidade de ser educado. Esta necessidade é universal e inerente à condição
humana. A natureza humana determina a necessidade da educação.
Os culturalistas defendem, então, que a criança seja educada para a sociedade, em função dos princípios desta.
Os partidários da natureza advogam que se eduque a criança por si mesma, para lhe possibilitar desenvolver-se
segundo a sua própria natureza.
Que papel terá, então o educador na educação da criança? Que valores e princípios estarão na base da sua
actuação? Se o grande centro da educação é a criança, enquanto factor altamente digno e valioso, ao serviço da
qual se ordena e realiza todo o processo educativo, que papel é atribuído ao professor?
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A AUTORIDADE DO EDUCADOR / PROFESSOR
Nas discussões actuais sobre educação, a autoridade do educador aparece como uma das principais questões
que urge resolver. A questão da autoridade ocorre no discurso daqueles que estão envoltos no contexto
educacional e está intimamente ligada à (in)disciplina. O trabalho pedagógico subentende uma relação
assimétrica de poder, na qual aquele que ensina exerce uma autoridade sobre aquele que aprende: o educador e
o aluno. Esta autoridade resulta do papel social do professor e do domínio que este detém do conhecimento
científico. Assim, a autoridade pressupõe uma relação hierárquica, onde o professor tem como função dar
ordens, que dizem respeito ao funcionamento do processo ensino-aprendizagem e o aluno deverá obedecer
desde que elas sejam justas e eficazes.
Como refere Sebastião (1998), a escola sempre agiu como se de uma instituição de reprodução social se tratasse.
Refere o mesmo autor que os valores residiam «no respeito pela Ordem do mundo, que a própria organização
escolar e a hierarquia, das relações reproduziam em escala humana. O estatuto e a autoridade do professor
advinham-lhe da sua posição nessa ordem externa» (Sebastião: 2998:298).
Nos nossos dias, a autoridade é contestada e pode assumir vários graus. O que alguns rejeitam à partida é a
autoridade do educador. De acordo com Reboul (1982: 117) «nega-se ao homem o direito de ensinar ao homem,
mesmo que exista entre o primeiro e o segundo a distância do sábio ao ignorante, do adulto à criança». Esta
questão da autoridade é de tal modo importante que nos pode fazer repensar a educação.
Mas, afinal, o que é a autoridade? Etimologicamente a palavra remete para o latim augeo que significa fazer
crescer. A autoridade deve começar na família e prolongar-se na escola. A educação surge como um processo
vertical, na medida em que os pais se situam acima dos filhos, os professores acima dos alunos, os adultos acima
das crianças.
A autoridade refere Reboul (2000: 53) resulta do poder «que alguém tem de fazer que os outros façam o que ele
quer, sem ter de recorrer à violência, poder devido quer à sua posição social, quer à sua competência ou ao seu
ascendente». Acrescenta o mesmo autor que «toda a autoridade se baseia numa legitimidade que é de uma
ordem totalmente diversa da força física, e as diferentes figuras da autoridade definem-se a partir daquilo que as
torna legítimas». O modo como o professor exerce a sua autoridade (se de forma autoritária ou liberal) é
vital para a criação de uma relação pedagógica equilibrada. A autoridade do educador resulta simultaneamente
de um “carisma de função”e de um “carisma pessoal”. Reboul (1982: 127) defende que a «autoridade do
docente provém da sua competência, que é dupla (…) consiste em saber o que ele ensina e em saber ensiná-lo».
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Como adianta Savater (2006: 95), a «verdade é que o ensino implica sempre uma certa forma de coacção, de luta
de vontade». Os alunos não querem aprender aquilo que lhes dá trabalho, exige esforço e os afasta das suas
brincadeiras. Interroga-se o mesmo autor se os adultos terão o direito de impor às crianças a disciplina sem a
qual não aprenderiam o que se considera ser pertinente. Por este motivo se fala de tirania: na tirania de quem
tem a força e pretende fazer aprender aquilo que é útil para educar um ser humano. O egoísmo do educador
passa por educar a criança para seu bem mas também para que a espécie humana não desapareça. Hubert
Hannoun adianta que (Citado em Savater, 2000: 96) educamos «para não morrermos, para preservarmos uma
certa forma de perenidade, para perdurarmos através do educando».
É evidente que para fazer este trabalho o educador não carece de perguntar ao educando se quer aprender. As
crianças são forçadas a colaborar com o educador. As sociedades precisam de homens e precisam de os
“produzir” para garantir a continuidade. A humanidade é imposta à criança pela educação independentemente
da sua vontade.
Para alcançar tal desígnio, o educador deve estar consciente do valor da sua autoridade. A autoridade pode ser
exercida de duas maneiras: pelo domínio ou pelo poder institucionalizado (como acontece na escola) ou pelo
prestígio daquele que demonstra possuir competência num dado assunto. Assim teremos dois tipos de
autoridade: a autoritária, vinculada ao uso da força, e a por competência, que se fundamenta na admiração
nutrida pelos subordinados a partir do prestígio e da capacidade. Apesar de ser uma forma de poder, a
autoridade do educador não deve ser confundida com autoritarismo. Ao fazer-se obedecer por intermédio de
castigos, punições, advertências, notas baixas e ameaças de reprovação, o educador consegue uma obediência
que não é legitimada pelos educandos.
O conceito de regra deverá surgir em associação com a noção de autoridade. Na escola como na vida é preciso
haver regras, que se constituem em instrumentos fundamentais da educação. O professor na escola deverá saber
implementar as regras de modo a que a sua autoridade seja reconhecida. A autoridade constitui-se a partir de
uma aliança entre conhecimento e experiência. Por meio da autoridade do professor, os alunos deverão
aprender a regular o seu próprio comportamento para garantir a apropriação dos conhecimentos indispensáveis
para a sua humanidade. Segundo Piaget (citado em Novais, 2004), a autoridade do professor não deve ser posta
em causa visto que é legítima e imprescindível na relação pedagógica. A tarefa de educar a criança na sua
humanidade reveste-se de tamanha importância que é muito difícil modelar a sua liberdade sem autoridade.
No entanto, não é a existência da autoridade que é paradoxal, mas o seu abuso, o exagero, a autoridade
desmedida, o autoritarismo. A autoridade do educador deve ser usada nos limites da democracia. É importante
que o educador saiba que a sua autoridade deve permitir ao educando apropriar-se da sua humanidade
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conduzindo-o, em última instância, à sua própria liberdade. Neste sentido, o educador não está a fazer uso da
autoridade para seu próprio benefício. Caso utilize a sua força para fazer valer as suas próprias vontades, o
educador não estará a exercer a sua autoridade mas a ser autoritário e despótico. Esta última posição poderá
constituir um factor determinante nos casos de indisciplina dos alunos. Porém como pode o educador decidir
sobre a forma e o grau de autoridade que deve exercer para favorecer os seus alunos?
DA AUTORIDADE DO EDUCADOR À LIBERDADE DO EDUCANDO
A educação, como adianta Savater (2000: 98), é «sempre uma tentativa de resgatar o semelhante da fatalidade
zoológica ou da limitação nauseante da mera experiência pessoal». O objectivo da educação moderna passa por
proporcionar aos indivíduos uma certa liberdade. Porém, como será admissível que nesse percurso para
encontrar a liberdade se passe por um conjunto de coacções instrutivas e diversas modalidades de autoridade? A
liberdade de que falamos não é inata à condição humana, é uma conquista que resulta da integração a posteriori
do indivíduo na sociedade. A liberdade não é um princípio mas um fim. Savater (2000: 98) refere que «ser livre é
libertar-se: da ignorância primeira, do determinismo exclusivamente genético moldado pelo nosso ambiente
natural e/ou social circundante, de apetites e impulsos instintivos que a convivência ensina a controlar».
A educação permite, então que a criança se vá progressivamente libertando dos seus condicionamentos. Como a
criança inicia o seu processo educativo à força, sem perceber muito bem o que está em causa e o alcance futuro
das aprendizagens, o educador deverá apresentar uma certa disciplina no processo educativo. A disciplina está
intimamente ligada à educação. A etimologia latina do vocábulo, discipulina (discis+pueripuella), remete de
imediato para o ensino: trata-se da imposição que obriga o educando a manter-se atento ao saber que lhe é
apresentado e a executar as actividades impostas pela aprendizagem. Na modernidade, o processo ensinoaprendizagem já não se realiza sob coacção física, mas mediante um vigilância que controla psicologicamente e
padroniza os educandos com o intuito de os tornar socialmente produtivos. Disciplina e autoridade, são então
dois conceitos que se correlacionam.
Neste sentido, Reboul (2000: 56) questiona-se se «será possível fazer seres livres com meios constringentes,
impondo modelos que eles não escolheram, uma disciplina que nem sempre compreendem, uma avaliação que
não é a sua?»
Kant (Citado em Reboul, 2000: 58) encontrou um ponto de equilíbrio ao enunciar que se deve «demonstrar à
criança que se exerce sobre ela um constrangimento que a leva ao uso da sua própria liberdade». Esse tal
constrangimento não deve ser colocado à criança com autoritarismo. O mesmo autor adianta que a autoridade
«é indispensável para impedir a criança de prejudicar e de se prejudicar, para a incitar a aprender o que por si
mesma não aprenderia, para a avaliar quando ela de tal não é capaz».
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De facto, a educação carece de autoridade. A finalidade da educação é aprender a dispensar essa tal autoridade.
O educador (o professor, na escola) trabalha para os alunos, mas trabalha também para a sociedade que o
incumbiu de instruir, de avaliar…
A autoridade do educador é indispensável no processo da educação. Para encontrar o caminho da liberdade, o
educando deve encontrar a responsabilidade do adulto que, incumbido pela sociedade, o pretende formar na
sua humanidade. Não esqueçamos que a principal produção das sociedades é a “manufactura de seres humanos”
que têm como paradigma os seres humanos já existentes.
Num discurso político Jacques Delors, disse em 2004, que na base da educação está a relação entre professor e
aluno feita de autoridade, reconhecida pelo aluno e assumida com sabedoria pelo professor. A autoridade, sem
autoritarismo é, indubitavelmente, um valor pedagógico. A autoridade não deve ser entendida como um valor de
distância ou de não-comunicação.
O respeito pela autoridade do professor/educador é a condição de toda a relação de ensino motivada pela
intenção de apoiar o processo de desenvolvimento do aluno. Enquanto figura de autoridade, o professor não
está isolado. O professor só terá condições de exercer a sua responsabilidade no processo de ensinoaprendizagem eficazmente, em colaboração com os outros agentes educativos envolvidos, salientando o papel
determinante das famílias.
A autoridade do professor não está dissociada da autoridade da própria escola enquanto instituição.
Actualmente a crise de autoridade do professor não está alheia à pluralidade e diversidade de mandatos sociais
que pesam sobre a escola e sobre os professores. O respeito pela autoridade do professor não começa e não
acaba dentro dos muros da escola. O vandalismo e a indisciplina que grassam nas comunidades escolares, com
progressiva frequência, constituem uma sintomatologia de um mal maior e que remete para o universo de
responsabilidades partilhadas e que ninguém quer assumir.
Ignorar estes sinais por mais tempo é continuar a não cumprir integralmente a missão que é de todos – construir
a humanidade numa perspectiva da cidadania participativa e universalmente inclusiva.
Os problemas pedagógicos revestem-se de uma dimensão política que não é possível escamotear. Se por um
lado, o ensino determina a sociedade, por outro lado, a sociedade é determinada pelo ensino. Ensino e
sociedade vivem, então, agregados num composto difícil de destrinçar. Servem-se e são simultaneamente
servidos, numa tentativa de fazer alcançar aos indivíduos o caminho da liberdade e da democracia.
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A escola e a sociedade têm o dever de formar indivíduos na sua humanidade de forma completa assegurando
ambas que a «educação é a oficina da humanidade» como dizia o pedagogo português Rui Grácio. O mesmo
autor acrescenta que o mestre proporciona ao discípulo a compreensão de si, do mundo, das coisas e dos
homens, mas também do inconformismo de os modificar, solidário com os outros e aberto aos outros e ao
mundo que se espera venha a acontecer.
Nesta perspectiva, uma pedagogia autoritária corre o risco de formar indivíduos submissos ou revoltados, uma
pedagogia laxista enferma na criação de irresponsáveis. Por isso, a educação deve basear-se, tanto quanto
possível, na autoridade do contrato, isto é, na gestão partilhada de projectos adoptados em conjunto durante um
tempo julgado fundamental. A educação, de preparação para a vida, segundo Dias (1998: 11) «passa a ser
considerada como dimensão da própria existência (…) todos os seres humanos – crianças, jovens e adultos – nos
encontramos na respectiva fase de educação permanente e, dentro das comunidades de que fazemos parte,
interagimos uns com os outros, dessa interacção resulta o processo de desenvolvimento das comunidades, ao
longo da história».
Reparamos que Coménio continua a ser actual quando afirma que a educação deve ser entendida como a
dimensão de todo o homem e do homem todo. As grandes revoluções educativas continuam a apontar nessa
direcção.
Embora os caminhos da educação não sejam lineares, continua a ser pertinente que a humanidade não desista
de encontrar o seu caminho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Educação e Psicologia. Braga: Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho.
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DOMINGUES, I. (2001). Controlo Disciplinar na Escola, Processos e Práticas. Lisboa: Texto Editora.
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