1968
O ANO EM QUE A UTOPIA DESCEU ÀS
RUAS
Jorge E. Silva
Olhar para trás, quase sempre nos condena aos destino da mulher de Loth, o personagem
mítica da Bíblia. Passados trinta anos é esse o risco que corremos quando procuramos os sinais ou
pistas do maio de 68, o mês em que a utopia desceu às ruas. Restam-nos os rostos que vemos nas
fotos, os cartazes amarelecidos, os livros comidos do sol, saídos dum tempo que não parece mais o
nosso.
Foram muitos os maios ou os sessenta e oitos, talvez tantos quantos os personagens que os
viveram. Não foi só na Europa que a explosão das lutas juvenis marcaram essa época, também nos
EUA e na América Latina, esse ano emblemático foi agitado. No entanto, o epicentro do abalo foi
Paris, a cidade marcada pelas grandes revoluções modernas: da Grande Revolução de 1789, à
Comuna de Paris de 1871, primeira tentativa de autogestão social da polis moderna.
Passadas as agitações sociais do começo do século e os conflitos da luta antifascista, a
França e a Europa ocidental estavam estabilizadas na rotina da representatividade democrática e
com um capitalismo florescente que dava os primeiros passos na direção de uma sociedade de
consumo. A única coisa que alguém esperava é que de repente, quase sem pretexto, numa
Primavera se iniciasse uma agitação que incendiaria Paris e se estenderia pela França agitando em
seguida quase toda Europa, de Leste a Oeste.
O pretexto foi uma vulgar reforma do ensino, pensada pelos donos do poder. Mas as razões
profundas eram tensões, tédios e insatisfações que se haviam acumulado na sociedade,
particularmente entre os jovens; sem elas maio não teria sido possível e as ruas não se teriam
enchido, nem o movimento ultrapassaria os muros das universidades, se espalhando como uma
mancha de azeite pelas periferias operárias.
Olhando para aqueles que foram símbolos desse movimento, constatamos que o inevitável
envelhecimento biológico talvez não seja tão marcante quanto a decadência ideológica dos que hoje
só exigem o possível, quando chegaram a imaginar reproduzir as barricadas da Comuna de 1871, no
Quartier Latin, trocando o "sejamos realistas, exijamos o impossível" pela pacata administração dos
seus mais ou menos importantes cargos num sistema que juraram desprezar. Poucos mantiveram
alguma coerência com os desejos e paixões juvenis dessa época. O próprio Daniel Cohn-Bendit,
símbolo de uma época, é exemplo de alguém que procura ainda manter alguma lucidez e crítica,
num mundo onde não cabe mais sua utopia juvenil. Outros nem isso, o que já era manifesto à 10
anos atrás quando Cohn-Bendit, pelo mundo, procurou alguns dos personagens que viveram de
forma central essa época, reunindo seus depoimentos no "Nós que Amávamos tanto a Revolução".
Só uns quantos, como o libertário Jean-Pierre Duteuil, companheiro de Bendit no Movimento 22 de
março que desempenhou um papel importante nas agitações de Paris, e Barbara Koster, persistiam,
a pesar de tudo, na crítica radical.
Outros, como Jerry Rubin, que acenava com o seu cartão de crédito, mostravam até que
ponto o seu Do It (Aja) tinham um sentido bem mais pragmático de conquistar um pequeno lugar ao
sol da América. A um deles, Serge July, o ex-dirigente maoista que se tinha transformado em
diretor do jornal Libération, Cohn–Bendit, naquela ironia que alguma vez recupera dos seus
discursos dos anos 60, perguntou-lhe: "Antigamente você dirigia uma organização revolucionária,
atualmente você dirige um jornal. Sua paixão não seria a de dirigir?". Serge July responde com uma
realista justificativa do poder, demonstrando que certamente a recuperação de muitos dos
personagens dos anos 60 tem raízes nos próprios projetos políticos e desejos pessoais que pouco
têm a ver com uma imagem idealizada de pessoas e episódios onde não deixaram de estar presentes
as mais velhas e vulgares manias do ser humano de riqueza, fama e poder, mesmo que legitimados
por discursos ideológicos.
À véspera da comemoração destes trintas anos, outros personagens como Cornelius
Castoriadis e Thimoty Leary, importantes, cada um da sua forma para toda uma geração dos anos
60-70, desapareceram vítimas do inexorável processo biológico que não se compadece com a utopia
ou o realismo: a morte. Muitos outros vegetam na sua condição de fantasmas de uma época que não
irá regressar, mas à qual ficaram irremediavelmente presos, mesmo quando procuram recusar, pelo
seu atual quotidiano, sonhos que foram capazes de ter e hoje se esgotaram, na vã busca de encontrar
lugar num mundo sobre o qual já vomitaram.
Tem também aqueles que continuam a recusa, uns anonimamente, outros mais conhecidos,
como Raoul Vaneigem, o autor de "A Arte de Viver para a Nova Geração", um dos intelectuais
críticos que mantém seu solitário combate contra a sociedade do espetáculo, que foram capazes de
entender e denunciar numa época em que o entendimento do capitalismo e do socialismo de estado
ainda estava preso a velhas e já decadentes análises do século XIX.
Guy Debord, o mais enigemático símbolo dessa época, solitariamente, com a sua genial
arrogância despediu-se da vida, em 30 de novembro de 1994, com um tiro que interrompia como
ato de liberdade sua irremediável decadência física. Desaparecendo assim, aquele que foi um dos
principais personagens desses anos, mesmo quando esteve ausente do centro dos acontecimentos,
autor do livro "A Sociedade do Espetáculo", que marcou uma época e é ainda hoje um poderoso
documento de autópsia do cadáver adiado, que é a sociedade massificada pelo consumo e pelo
espetáculo.
Uma geração que produziu tais personagens e tais acontecimentos, mesmo que reduzidos a
uma breve primavera, em Paris ou Praga, certamente tem a certeza que viveu uma das raras
oportunidades que a história dá aos seres humanos de se sentirem realmente atores e donos de seus
próprios destinos. Pode, essa geração, carregar consigo o vazio dos desejos não satisfeitos; pode até
iludir-se sobre a irrelevância dos momentos vividos, até ter-se arrependido mas, esses anos ou para
muitos essas semanas ou meses, ficarão para sempre na forma de mito, como aqueles momentos
que muitos de nós e muitas gerações futuras lamentarão não ter vivido.
Viver com paixão, viver com prazer, viver com utopia, é cada vez mais uma impossibilidade
numa sociedade que segue os ensinamentos do romance Admirável Mundo Novo de Aldous
Huxley, sabendo que a estabilidade social só é viável pela impossibilidade da emoção e do desejo.
Certamente, não nos enganaremos, se afirmarmos que, de forma espontânea, elas retornarão,
possibilitando que tal como em Paris as barricadas reabram o caminho da festa imprevisível, onde
tudo pode ser possível.
Paris foi símbolo dessa possibilidade histórica de realizar o impossível, as semanas ou meses
em que o povo desceu às ruas, as velhas tutelas e dominações se desagregaram sozinhas. Mostrando
que não existe uma fronteira intransponível entre o possível e o impossível, entre o real e a utopia, e
que as sociedades e o mundo podem mudar restituindo ou nos dando aquilo que sistematicamente
nos é negado, sejam os direitos, a justiça ou o prazer da liberdade sem coações.
Por isso é que o maio francês é a mais moderna e a mais radical das revoluções: a revolução
espontânea, imprevisível e total, numa sociedade, onde todas as velhas reivindicações se
conjugaram com o vazio, que nenhuma sociedade de consumo poderá preencher porque é a vital
insatisfação do ser humano ante um mundo cada vez mais centrado sobre coisas e onde se perde o
sentido individual e coletivo de uma existência verdadeiramente humana.
Pouco importa hoje se a revolução de maio de 68 era possível, ou era impossível, naquele
velho sentido militar e estratégico dos velhos burocratas leninistas. Até porque eles foram os
últimos a entender o que estava em causa e os primeiros a afirmar explicitamente a necessidade de
impedir que a utopia descesse às ruas. A CGT, os sindicatos comunistas, e o PCF desempenharam
um papel decisivo na domesticação rápida do movimento, num momento em que os partidários
conservadores do regime do General De Gaulle estavam estupefactos ante a insólita e inesperada
possibilidade de uma nova Comuna de Paris.
Não era para menos, as idéias que fervilhavam em Paris a partir dos anos 50, seja através de
grupos como Socialisme et Barbarie, International Situacioniste ou de grupos anarquistas, eram uma
ameaça pela denúncia sistemática das satisfeitas sociedades de consumo, mas também dos regimes
perversos que criados em nome da insatisfação dos povos e do desejo de justiça e liberdade tinham
criado o mais kafkiano universo totalitário. O renascimento de uma nova utopia, de um novo
projeto de mudança social só podia ser visto também como ameaça pelos comunistas, sejam os que
no Leste europeu estavam dispostos até a usar as armas para tirar essa juventude das ruas de Praga;
sejam os comunistas ocidentais dispostos a tudo para chegar ao poder, mas que a última coisa que
desejavam era reabrir crises sociais que expusessem a sua insuperável contradição de serem
historicamente partidos de oposição a um sistema que, eram obrigados a aceitar por disciplina
partidária em relação ao impronunciável acordo de Yalta, que dividiu o mundo entre as
superpotências vitoriosas no final da Segunda Guerra Mundial.
O maio de 68, ou se quisermos o período que vai do final dos anos 60 ao começo da década
de 70, foi um dos momentos decisivos que o sistema capitalista viveu neste século, porque se
configurou a convergência de grupos e classes sociais, em vários locais do mundo, insatisfeitas com
um regime visivelmente injusto e absurdo, reforçadas por uma nova crítica social que dissecava
impiedosamente esse regime, possibilitando a sua compreensão. Debord, Marcuse, Castoriadis,
Fromm apontavam novas formas de entendimento sobre o modelo de sociedade capitalista que se
estava então constituindo.
Os estrategas do poder compreenderam a ameaça. Os anos seguintes foram dedicados a
meticulosa e engenhosa missão de desarmar a bomba: as reformas educacionais na Europa, as
coptações ideológicas, a repressão e posterior liberalização da América Latina e principalmente a
constituição de uma nova integração e solidariedade entre as elites e donos do poder sobre as
fronteiras e a priorização da sujeição das mentes, ao invés do domínio sobre as pessoas, contribuiu
para alicerçar a sociedade global que temos ante nossos olhos neste final do século.
Um mundo onde a vitória de um sistema abjeto e visceralmente injusto se legitima na nossa
falta de esperança e na nossa impossibilidade de acreditar em utopias, manifestação do imensurável
desejo de mudança social incompreendido numa sociedade onde tudo necessita ser quantificado
para se crer realizável.
No entanto, onde, contraditoriamente, mitos como o do maio de 68, são uma explícita
demonstração histórica – e esse é o seu mais definitivo contributo crítico – de que o tudo é possível,
até mesmo que as tranqüilas ruas de um grande cidade em abril se podem transformar
inexplicavelmente em maio em barricadas, onde flutuam as bandeiras, ontem esquecidas, da utopia.
(*) Membro do Centro de Estudos Cultura e Cidadania–Florianópolis (CECCA)
Fotos: Cohn-Bendit em maio de 68 - Primavera de Praga 1968
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