0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA LINHA MARXISMO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES JORGE LUÍS DE OLIVEIRA O MARXISMO COMO TEORIA REVOLUCIONÁRIA NA FORMAÇÃO POLÍTICO-EDUCATIVA DOS TRABALHADORES VERSUS A FORMAÇÃO POLÍTICO-SINDICAL CUTISTA: UM EXAME ONTO-CRÍTICO Fortaleza 2012 1 JORGE LUÍS DE OLIVEIRA O MARXISMO COMO TEORIA REVOLUCIONÁRIA NA FORMAÇÃO POLÍTICO-EDUCATIVA DOS TRABALHADORES VERSUS A FORMAÇÃO POLÍTICO-SINDICAL CUTISTA: UM EXAME ONTO-CRÍTICO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Educação. Área de concentração: Educação Brasileira. Orientadora: Professora Drª. Josefa Jackline Rabelo Fortaleza 2012 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca de Ciências Humanas O47m Oliveira, Jorge Luís de. O marxismo como teoria revolucionária na formação político-educativa dos trabalhadores versus a formação político-sindical cutista: um exame onto-crítico / Jorge Luís de Oliveira. – 2012. 345 f. , enc. ; 30 cm. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de PósGraduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2012. Área de Concentração: Educação brasileira. Orientação: Profª. Drª. Josefa Jackline Rabelo. 1. Sindicalismo – Brasil. 2.Socialismo – Brasil. 3.Trabalhadores – Atividades políticas – Brasil. 4.Central Única dos Trabalhadores(Brasil). I. Título. CDD 331.880981 3 O MARXISMO COMO TEORIA REVOLUCIONÁRIA NA FORMAÇÃO POLÍTICOEDUCATIVA DOS TRABALHADORES VERSUS A FORMAÇÃO POLÍTICO-SINDICAL CUTISTA: UM EXAME ONTO-CRÍTICO JORGE LUÍS DE OLIVEIRA APROVADA EM 16 / 05/ 2012 BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Josefa Jackline Rabelo (Orientadora) Universidade Federal do Ceará (UFC) ___________________________________________________________________________ __Profª. Pós-Drª. Susana Vasconcelos Jimenez Universidade Estadual do Ceará (UECE) Universidade Federal do Ceará (UFC) ___________________________________________________________________________ _Profª. Drª. Cristiane Porfírio de Oliveira do Rio Faculdade do Ceará (FAC) Profª. Drª. Betânia Moreira de Moraes Universidade Estadual do Ceará (UECE) Profª. Drª. Maria das Dores Mendes Segundo Universidade Estadual do Ceará (UECE) Universidade Federal do Ceará (UFC) 4 Ao Vovô Luiz e Vovó Raimunda (in memorian) e à minha Mãe. Aos meus queridos avós do século passado, semianalfabetos, que chegaram a Fortaleza nos anos 1950, vindo de Areia Branca/RN, de barco, com nove filhos/as para ter uma vida melhor, dando-lhes educação escolar que eles não tiveram num lugar tão longínquo. Ao meu avô, que começou a trabalhar aos sete anos, pescando no rio para sustentar sua mãe, junto com mais dois irmãos e uma irmã que não conheceram o pai. À minha avó, uma mulher de fibra, que perdeu três filhos de onze, sendo dois no final dos anos 1930: José, com meses de vida, devido a uma queda de rede, Socorro que morreu aos dois anos por causa de uma bolhinha no pé, devido à escassez de médicos em Areia Branca, e outro, com 23 anos, devido à violência urbana. Uma mulher que passei a amar profundamente nos últimos anos de sua vida, dando-lhe assistência presencial e todo meu afeto, da qual jamais esquecerei até o fim de minha vida. E, por fim, à minha querida Mãe, que sempre me incentivou nos estudos, dando todo apoio financeiro possível, buscando bolsas de estudos para minha formação no ensino escolar e curso de inglês. Uma mulher que poderia ter ido longe nos estudos, pois tirou o primeiro lugar, estudando com Lirycce Porto, para fazer o ginásio no Colégio São João,sendo reportagem no jornal da época (1955?). 5 AGRADECIMENTOS À minha família, pelo apoio incansável, ensinando-me os primeiros passos para a vida e a ser persistente na minha trajetória intelectual, em especial, à minha mãe, que me incentivou a estudar desde a minha infância até hoje. Ao professor Dr. Eduardo Ferreira Chagas, a quem agradeço a contribuição intelectual, desde a revisão e prefácio do meu primeiro livro Alienação, Trabalho e Emancipação Humana em Marx, além de meu artigo, “A importância do marxismo na formação educativa sindical”, do livro Filosofia em Onze Atos, até na maior parte da minha orientação da Tese de Doutorado em Educação. À minha orientadora de mestrado em Filosofia, Professora Pós-Doutora Mirtes Miriam Amorim Maciel, por quem tenho um verdadeiro apreço e respeito humano e que sempre apostou na minha capacidade intelectual, mesmo depois do final de defesa de minha dissertação. À Professora Drª. Josefa Jackline Rabelo, que foi minha coorientadora na minha primeira fase do Doutorado em Educação Brasileira e que se tornou nessa última fase minha orientadora, dando as orientações finais para a conclusão desta Tese. À Professora Pós-Doutora Susana Vasconcelos Jimenez, que apostou na minha capacidade intelectual para desenvolver esta pesquisa, ao me aprovar para o Concurso de Doutorado em Educação Brasileira, sempre reconhecendo os pontos positivos das minhas reflexões intelectuais. À Professora Drª. Cristiane Porfírio de Oliveira do Rio, que me deu sugestões de leituras importantes para o desenvolvimento desta pesquisa, fazendo suas averiguações na minha segunda qualificação, já que a mesma é especialista em movimento sindical. À Professora Drª. Betânia Moreira de Moraes, por ter aceitado o convite para participar da Banca da minha Tese. À Professora Drª Maria das Dores Mendes Segundo, por sempre ter me motivado a ir em frente nesta pesquisa e também por ter aceitado o convite para participar da Banca da minha Tese. Aos meus amigos e amigas, do SINTSEF-CE e da Base Aérea de Fortaleza, que sempre tiveram confiança na minha capacidade intelectual de desenvolver raciocínios críticos e, às vezes, severos sobre o movimento sindical, mas que sempre estão ao meu lado para o que der e vier. Aos meus amigos e minhas amigas, do passado e presente, que sempre tiveram uma grande afeição à minha pessoa e admiração pela minha perseverança de sempre seguir em meus estudos, como também aos meus amigos e amigas do curso de Doutorado em Educação que contribuíram para o aprimoramento de minhas reflexões. E por fim, ao IMO – Instituto do Movimento Operário do Ceará –, que me impulsionou a fazer o Mestrado em Filosofia em 2002, a partir de um curso de Marxismo realizado no meu sindicato (SINTSEF-CE), em 2001, com os professores José Ferreira Alencar, Auto Filho, Francisco Teixeira e Susana Jimenez. 6 [...] a classe operária não deve exagerar a seus próprios olhos no resultado final dessas lutas diárias. Não deve esquecer de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos; que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo mudar de direção, que aplica paliativos, mas não cura a enfermidade. Não deve, portanto, deixar-se absorver exclusivamente por essas inevitáveis lutas de guerrilhas, provocadas continuamente pelos abusos incessantes do capital ou pelas flutuações do mercado. A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõem, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez do lema conservador de ‘Um salário justo para uma jornada de trabalho justa!’, deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária “Abolição do sistema de trabalho assalariado!” (Karl Marx) 7 RESUMO A Tese trata do Marxismo como uma teoria revolucionária na formação política sindical dos trabalhadores. O objetivo é investigar e expor a relação entre marxismo e movimento sindical a partir dos cursos de formação política. Nesse sentido, a formação política da CUT foi tomada como ilustração para este estudo, já que esta Central Sindical se propõe a representar um sindicalismo socialista, classista e combativo. A pesquisa é teórica, bibliográfica, cuja metodologia é o método de conhecimento de Marx: a investigação e a exposição da realidade. Já que a realidade é o ponto de partida para ser exposto no plano da idealidade, segundo Marx, o caminho para apreender e expor essa problemática foi diferente, ou seja, partiu-se do concreto pensado, como textos, livros, teses, dissertações e documentos, para se chegar a conclusões plausíveis. Portanto, se a teoria marxiana é importante e imprescindível para formar o sujeito revolucionário ao capitalismo, é preciso defender a sua validade e atualidade. Para isso, o primeiro capítulo explicita as bases fundamentais do marxismo, a saber, o método de conhecimento, a concepção de trabalho e a política em Marx, desconhecidas pela maioria dos trabalhadores sindicalizados. O segundo capítulo busca relatar a relação entre marxismo e movimento sindical, apresentando a concepção marxista de sindicato, a crise entre marxismo e movimento sindical a partir das crises das Internacionais, da crise teórica dentro do marxismo e da crise e derrocada do socialismo soviético e, por fim, a ofensiva neoliberal e o recuo do movimento sindical enquanto expressão da debilidade teórica e prática dos trabalhadores. Para entender esse ateoricismo e acriticismo marxista dos trabalhadores, o terceiro capítulo aprofunda a discussão sobre a questão da importância do marxismo na formação humana como instrumento de revolução da consciência proletária para a revolução social. De tal modo que foi preciso expor a concepção de formação humana em Marx, a formação educativa como instrumento dessa revolução ideológica para e pelo socialismo, quer dizer, esclarecendo a concepção de socialismo e comunismo em Marx, Engels e seguidores. O quarto capítulo ilustra essa relação entre marxismo e movimento sindical a partir da formação sindical cutista. Foi necessário historiar sucintamente a formação sindical no Brasil desde o sindicalismo livre, passando pelo sindicalismo corporativo do Estado Novo, até o Novo Sindicalismo que se concretizou na criação da CUT. Foi feito um breve histórico sobre o surgimento e a trajetória da CUT, com suas estratégias e táticas modificadas, a partir das resoluções congressuais e sua repercussão na Política Nacional de Formação (PNF) e no Plano Nacional de Qualificação Profissional (PNQP). A pesquisa mostra que os trabalhadores, ligados à maior Central Sindical da América Latina e à quinta do mundo (CUT), não tiveram uma formação contínua no campo dos fundamentos marxistas para entender os limites da luta no capitalismo e suas contradições socioeconômicas. Isso denota a sonegação do marxismo nos cursos de formação política, pelo sindicalismo dito de esquerda, enquanto legado teórico de compreensão da crise estrutural do sistema do capital e do socialismo, como também denota um sindicalismo “antimarxista”. Palavras-Chave: Marxismo. Movimento sindical. Formação política. Socialismo. 8 ABSTRACT This thesis deals with Marxism as a revolutionary theory in the union trade political formation of workers. Its objective is to investigate and expose the relationship between Marxism and the union trade movement from the political formation courses. In this sense, CUT’s political formation was taken as an illustration to this study, since the Trade Union Central intends to represent a socialist, class, militant unionism. The research is theoretical, bibliographic and its methodology relies in Marx’s knowledge method: the investigation and exposition of reality. According to Marx, since reality is the starting point to be exposed in terms of ideality, the way to learn and to expose this issue was different, meaning that it originated from concrete thought such as texts, books, theses, dissertations and documents, in order to reach plausible conclusions. Therefore, if the Marxist theory is important and indispensable to form the revolutionary subject against capitalism, it’s necessary to protect both its validity and timeliness. In order to achieve this, the first chapter explains the fundamentals of Marxism, namely Marx’s knowledge method, concept of work and politics, which are unknown to the majority of the unionized workers. The second chapter aims to report on the relationship between Marxism and the trade union movement, presenting the Marxist trade union, the crisis between Marxism and the trade union movement from the international crises, the theoretical crisis within Marxism, the Soviet socialism’s crisis and collapse, and finally the neoliberal offensive with the retreat of the union movement as an expression of the workers' theoretical and practical weaknesses. To understand this lack of Marxist theoreticism and criticism by workers, the third chapter deepens the discussion on the matter of the importance of Marxism human formation as a proletarian consciousness revolution instrument towards social revolution. It is such that it was necessary to expose Marx’s conception of human formation, the educational formation as an instrument for this ideological revolution by and for socialism, which means, to clarify the concepts on socialism and communism by Marx, Engels and their followers. The fourth chapter illustrates the relationship between Marxism and the trade union movement from CUT's trade union formation. It was necessary to briefly chronicle the union formation in Brazil ever since the free trade unions, through the corporate unionism of the New State, up to the New Unionism which has resulted in the creation of CUT.A brief history report was conducted about the emergence and path of CUT, with its changed strategies and tactics, from congressional resolutions and its impact on the National Policy on Education (PNF) and the National Professional Qualification (PNQP). Research shows that the workers linked to the greatest Central Trade Union of Latin America and the fifth of the world (CUT) had no continuous formation in the field of Marxism fundamentals to understand the struggle limitations against capitalism and its socioeconomic contradictions. This denotes the Marxism withholding in political formation courses by the so-called leftist unions, as an understanding theoretical legacy on the structural crisis of both capitalist and socialist systems, as well as it denotes an anti-Marxist unionism. Keywords: Marxism. Union trade movement. Political formation. Socialism. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 – AS BASES FUNDAMENTAIS DO MARXISMO 1.1 A Importância do Método de Marx...................................................................... 24 1.2 O Trabalho como Fundamento da Realidade Social............................................ 46 1.3 A Política: Consciência de Classe e Luta de Classes em Rumo ao Socialismo.. 70 CAPÍTULO 2 – MARXISMO E MOVIMENTO SINDICAL 2.1 A Concepção Marxista de Sindicato: Marx, Engels, Rosa, Lênin e Trotsky....... 100 2.2 A Crise entre Marxismo e Movimento Sindical................................................... 130 2.3 A Ofensiva (Neo)liberal e o Refluxo do Movimento Sindical............................. 158 CAPÍTULO 3 – O MARXISMO NA FORMAÇÃO HUMANA COMO INSTRUMENTO DE REVOLUÇÃO PARA E PELO SOCIALISMOCOMUNISMO 3.1 Concepção de Formação Humana em Marx........................................................ 199 3.2 Formação Educativa como Instrumento de Revolução........................................ 208 3.3 Formação Educativa para e pelo Socialismo-comunismo.................................... 229 3.3.1 O socialismo...................................................................................................... 229 3.3.2 O comunismo.................................................................................................... 236 CAPÍTULO 4 – MARXISMO E FORMAÇÃO SINDICAL CUT 4.1 Marxismo e Formação Sindical CUT – Introdução............................................. 244 4.2 A Política de Formação Sindical no Brasil no Início do Século XX................... 247 4.3 O Surgimento e a Trajetória da CUT: um Breve Histórico.................................. 256 4.4 A Política Nacional de Formação da CUT: da Formação da Consciência Política à Formação Profissional Cidadã............................................................. 267 CONCLUSÃO........................................................................................................ 314 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 334 10 INTRODUÇÃO 11 A presente pesquisa, desenvolvida no âmbito da linha “Marxismo, Educação e Luta de Classes”, resultou da curiosidade pessoal de entender o porquê da classe trabalhadora ainda pautar a sua consciência e ação sindical dentro dos marcos do sistema capitalista, ou seja, o porquê dos trabalhadores não conseguirem desenvolver uma ação revolucionária de combate ao sistema capitalista de opressão da humanidade e de degradação da natureza, do planeta, a partir de sua União. Tendo todo um legado teórico-prático de crítica e denúncia do capitalismo feito pelo marxismo, a partir de seus fundadores Marx e Engels e seguidores, seja do ponto de vista ético, histórico, econômico, político, sociológico e mesmo ecológico, por que a classe trabalhadora não tem tido acesso, de forma sistemática, correta e contínua, a esse conhecimento “científico”, método de análise, para compreender a sua situação histórica alienante e, assim, modificá-la a partir da construção de um novo processo de desenvolvimento social? Eis, pois, a minha primeira indagação enquanto pesquisador. O interesse pela temática da relação entre “Marxismo e Movimento Sindical” é consequência da experiência de quem viveu e ainda vive o sindicalismo no Serviço Público Federal (SINTSEF-CE) desde 1989, no qual não percebeu o desenvolvimento teórico-prático desses trabalhadores a partir do marxismo (com raríssimas exceções), mesmo que, em alguns momentos, a formação política tenha sido dada em bases marxistas no começo dos anos 1990 pela CUT/CE-IMO e, posteriormente, somente pelo SINTSEF/CE-IMO em 2001. De todo modo, tais cursos de formação marxista não foram suficientes para formar quadros teóricos sólidos que pudessem ser antitéticos à burocracia e ao corporativismo sindical e, sobretudo, à ideologia do capital (neoliberalismo); esclarecendo, pois, que não houve a continuidade dessa formação. Também é resultado da minha inserção no campo dos fundamentos do marxismo, a partir do curso de Mestrado em Filosofia, no qual comecei a ler algumas obras de Marx, da juventude à maturidade, para dissertar sobre “Emancipação Humana em Marx”. Com certeza, tais experiências me impulsionaram a ampliar a minha área de conhecimento, de modo que me senti desafiado a desenvolver outro ponto de discussão de caráter mais pedagógico que é “o marxismo como teoria crítico-revolucionária na formação educativa sindical dos trabalhadores”. O objetivo da pesquisa, portanto, é perceber qual é a relação entre marxismo e movimento sindical, ou melhor dizendo, qual é a relação entre marxismo e formação política sindical. Este foi o ponto de partida para o desenvolvimento desta tese, visando observar, perceber e relacionar práxis sindical com a ciência marxiana enquanto subsídio teóricometodológico da luta dos trabalhadores. A partir dessa inquietação intelectual, outras questões foram surgindo para construir o caminho de investigação e de exposição da temática, tendo como parâmetro o método de 12 conhecimento de Marx, a saber, pesquisar o objeto de estudo em suas múltiplas determinações e descrever o seu movimento real no plano ideal. Nesse sentido, o fundamento para pensar esta temática é a realidade, ou seja, enfatizar o primado do real sobre a consciência, justamente por ser o real o critério da verdade. Em outras palavras, o objeto de estudo nos fornece pistas de como ele se apresenta na realidade e o sujeito pesquisador informa à subjetividade as determinidades do objeto com seu filtro de apreensão. Assim sendo, a realidade possui sua lógica intrínseca própria que precisa ser apreendida e compreendida no seu movimento, na sua totalidade, na sua contradição e nas suas íntimas conexões. Embora “conhecer” e “ser” sejam distintos, mas formam uma unidade. Como diz Marx, em Para a Crítica da Economia Política, é o objeto de conhecimento que vai definindo os passos que o pesquisador deve fazer para atingir a sua cognoscibilidade. Esta é a nossa proposta teóricometodológica de pesquisa. Como o nosso objeto de estudo é perceber a relação entre marxismo e movimento sindical, a partir da formação política planejada pela CUT, então colocamos algumas questões centrais para nos guiar nesta pesquisa. Senão vejamos: O marxismo é ainda um conhecimento (uma teoria, método ou doutrina) atual, válido, que ainda pode auxiliar os trabalhadores a compreenderem a sua situação histórica de exploração no capitalismo? Se sim, por que o movimento sindical em geral abandona a teoria marxiana de análise da sociedade capitalista, tornando-se um movimento de colaboração com o capital? A crise do movimento sindical (de lideranças) não estaria relacionada à falta de uma formação mais revolucionária no campo do marxismo, cujo resultado é um discurso sindical confuso e perdido teoricamente, e, portanto, não apenas uma crise relacionada às questões estruturais/conjunturais do mundo do trabalho? Por causa da precariedade teórica marxista revolucionária entre várias lideranças sindicais, não estaria o movimento sindical suscetível às capitulações e à inércia política quando limita a luta sindical à condição meramente economicista-salarial sem imprimir nela a luta política? A “desideologização”, a “despolitização” e a ausência de uma utopia anticapitalista tornaram o movimento sindical mais sensível às cooptações patronais? 1 A falta de um discurso antagônico ao capital, a partir do marxismo, por parte dos dirigentes sindicais, não levou os trabalhadores a permanecerem numa luta corporativista, ateórica e acrítica ao capital, ou melhor, levou-os a um rebaixamento teórico e/ou a um acriticismo político face ao capital? Tais questões nos levaram a percorrer o caminho da investigação teórica, 1 “Desideologização” e “despolitização” entre aspas indicam que, na verdade, não há uma desideologização ou despolitização no sentido pleno da palavra, mas ao contrário, há uma ideologização e politização dos trabalhadores em sentido contrário à sua ideologia de classe. 13 bibliográfica, para esclarecer, dentro do possível, essa problemática, já que averiguar a relação entre Marxismo e Movimento Sindical, a partir da pesquisa empírica ou de campo, fica mais difícil de realizar, devido ao tempo limitado para a sua conclusão e à falta de recursos financeiros, dentre outras coisas. Por isso, delimitamos abordar teoricamente a temática nos marcos do Plano Nacional de Formação da CUT, como sendo ilustrativo para perceber e analisar a relação entre o Marxismo e o Movimento Sindical no campo da formação política. Sendo a maior Central Sindical de “esquerda” da América Latina e a quinta do mundo, acreditamos que a CUT possa refletir essa realidade de “relação” ou “não” entre Marxismo e Movimento Sindical. Sabemos que o real é o ponto de partida para se formar as abstrações razoáveis na forma de conceitos, categorias, já que estas são ontologicamente formas de existir do ser, do objeto, possibilitando-nos fazer o caminho inverso da viagem para o desvendamento da lógica das coisas; mas entendemos que os estudos realizados sobre esse tema, a partir da leitura de livros, documentos, teses e dissertações, nos permitiram chegar a conclusões plausíveis sobre as questões postas durante o percurso de desenvolvimento da Tese. De qualquer forma, os livros ou documentos não deixam de refletir a realidade concreta estudada pelos autores em suas áreas específicas; e a análise desses estudos nos poupa de realizar uma pesquisa empírica na qual teríamos quase as mesmas apreensões e percepções, já refletidas nas nossas experiências do cotidiano sindical. Seria o mesmo que extrair novamente a universalidade da particularidade já amplamente pesquisada em sua singularidade, ou seja, repetir o já pesquisado. Ler o concreto pensado, como diz Chasin, é também uma escavação do objeto enquanto possibilidade de outras prospecções, como leitura imanente. Tomamos como base teórica, para validar e atualizar o pensamento marxista, os autores clássicos, seus comentadores e intérpretes; como também os autores contemporâneos que analisaram o pensamento sindical de Marx e Engels, o movimento sindical na história, a trajetória da CUT e seus planos de formação política etc. Apoiamo-nos, portanto, no referencial teórico de Marx, Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky enquanto clássicos e de seus comentadores (Gramsci, Suchodolski, Lukács etc.); como também nos estudos feitos pelos autores contemporâneos como Hobsbawm, Mészáros, Chenais, Boito Jr., Jácome Rodrigues, Martins Rodrigues, dentre outros. Partimos, então, do pressuposto de que os trabalhadores enquanto agentes potencialmente revolucionários só poderão ser agentes transformadores da história humana, se eles conhecerem a realidade capitalista, ao qual estão subsumidos, em suas múltiplas determinações. Esse conhecimento não pode ser o puramente perceptivo-emocional ou imediatista, nem mesmo o puramente racional, mas o teórico-metodológico, em que teoria e 14 prática se medeiam como práxis na história, isto é, a partir do materialismo histórico e dialético. Nesse sentido, o desconhecimento da teoria marxiana pela maioria dos trabalhadores faz com que eles só desenvolvam a luta corporativa, artesanal, objetivando apenas auferir aumento em seus soldos, conquistas de direitos sociais e melhores condições de trabalho, mas dentro da concessão capitalista, ou melhor, dentro de uma conjuntura favorável de expansão e acumulação do capital, caso contrário, os trabalhadores ficam acuados em sua luta cotidiana em tempos de recessão. Disso decorre, geralmente, certa apatia, aparticipação e até mesmo rejeição à luta sindical por parte dos trabalhadores, justamente por não compreenderem o objetivo final da luta, nem os seus limites, mas apenas a sua condição imediatista. Como no cotidiano da luta sindical pouco se ganha, a descrença e a falta de engajamento da maioria dos trabalhadores acabam enfraquecendo a luta sindical que faz parte, ou pelo menos deveria fazer, da luta pela emancipação humana. Tal situação nos levou a outra questão relevante, ou seja: a ausência do marxismo na formação política é responsável, em larga medida, pela precariedade teórica e prática ambivalente dos trabalhadores no movimento sindical para o desenvolvimento de uma consciência emancipatória de classe? Noutras palavras, poderíamos desdobrar essa questão em outras três, a saber: na formação política sindical, o conhecimento do marxismo enquanto teoria ou método de reflexão poderia tornar a práxis sindical dos trabalhadores menos economicista, corporativista e, portanto, mais política, para anteverem uma nova concepção de sociedade antagônica ao capitalismo? A teoria marxista por si só levaria a uma mudança mais radical no comportamento dos trabalhadores face à constante ofensiva do capital? Ou o aprendizado teórico e prático poderia ocorrer simultaneamente no processo da luta? Problematizando o estado da questão, observamos que o movimento sindical está, predominantemente, ignorando o marxismo enquanto teoria revolucionária dos trabalhadores da sociabilidade capitalista devido a um conjunto de fatores: 1) a chamada crise do marxismo como a crise e quase completa desintegração dos movimentos políticos que professavam lealdade à concepção marxiana de socialismo (MÉSZÁROS, 2002); 2) crise do socialismo como decorrência da stalinização do projeto socialista original que refletia em detalhes, conforme Mészáros, a estrutura do comando do capital, liquidando a memória dos legítimos objetivos socialistas; 3) crise sindical como consequência da crise de lideranças, do pragmatismo e burocratismo sindical, do sindicalismo propositivo em detrimento do sindicalismo combativo, do desemprego estrutural, da dessindicalização, do declínio do número de greves realizadas, da reestruturação produtiva, da “despolitização” e “desideologização” da luta etc.; e por fim, 4) crise estrutural do sistema do capital, como 15 corolário das recessões periódicas ou contínuas, que trouxe o projeto neoliberal em substituição à política keynesiana do Estado de bem-estar social, ou seja, o Estado “mínimo” e a ascensão do mercado, com apoio estatal, como regulador das relações sociais de produção, restringindo o movimento sindical às lutas de caráter defensivo dos empregos e direitos trabalhistas, ou melhor, às lutas setoriais e institucionais, fragmentando e pulverizando a luta dos trabalhadores etc. A conexão desses fatores, associados a uma formação política sindical não marxista, contribuiu para desencadear o sindicalismo economicista, propositivo, portanto, não combativo e “despolitizado”, liquidando a luta de classes e optando, assim, pela linha da menor resistência. Ora, se o desconhecimento das contradições (insolúveis) do sistema capitalista pelos trabalhadores produz esse tipo de comportamento sindical, que aconteceria se eles tivessem conhecimento da teoria marxista como reveladora desse antagonismo social? Para entendermos as questões colocadas anteriormente, e submetermos à defesa esta Tese, estruturamos o texto em quatro capítulos. O primeiro capítulo, As bases fundamentais do marxismo, tem como objetivo mostrar a validade e a importância do pensamento de Marx/do marxismo para a luta dos trabalhadores, expondo seu método, sua concepção onto-histórica de trabalho como protoforma do ser social e sua reflexão sobre a política. Em outras palavras, visamos resgatar a atualidade e a profundidade do pensamento de Marx, fazendo a defesa do marxismo como instrumento analítico fundamental para os trabalhadores perceberem e se contraporem à condição histórica de sua exploração laboral nos marcos do capitalismo. Dividimos este capítulo em três seções. A seção – A importância do método de Marx – explicita o seu método de análise, apresentando uma proposta de conhecimento, baseada nos princípios da contradição, da negação, da totalidade, enfim, objetivando fornecer as condições de possibilidade de conhecimento da realidade social, a partir da ideia de movimento dialético, pois a realidade não é estática, mas sim movimento na/da materialidade histórico-social, como “negação da negação” enquanto “nova afirmação” ou “superação” do que está caducando historicamente. Nesse sentido, compreender o método de Marx e aplicá-lo na análise da realidade social é conditio sine qua non para a luta política dos trabalhadores contra a exploração dos capitalistas. A exposição do método de Marx é também uma forma de desmistificar as ciências especializadas que fragmentam a realidade social em particularidades específicas sem fazer relação com a totalidade. A importância do método de Marx, segundo Lukács, em Existencialismo e Marxismo, é que ele permite determinar se uma crise grave do capitalismo pode tornar-se fatal em determinadas circunstâncias concretas. Vale dizer que para discorrer 16 sobre o método de conhecimento de Marx, tivemos que garimpar trechos reflexivos em O Capital, Para a Crítica da Economia Política, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Sagrada Família, Teses sobre Feuerbach dentre outros, como também nas obras específicas de Engels, Lênin e Lukács. A seção – O trabalho como fundamento da realidade social – visa reafirmar o trabalho como uma atividade inalienável do homem, condição de sua eterna relação metabólica com a natureza e os outros homens, para reprodução de sua espécie enquanto gênero humano em todas as formas histórico-sociais. Outrossim, denuncia o caráter negativo do trabalho na sua forma de trabalho alienado, estranhado e abstrato, como negação do ser humano em seu existir, a partir de uma história construída sob a exploração do homem pelo homem. O objetivo é desmistificar a forma de trabalho no capitalismo, antevendo, a partir de um ato consciente da classe trabalhadora, uma nova forma de atividade humana que resgate seu ser genérico enquanto ser de liberdade, de criação e de realização individual. Em seguida, fazemos uma inversão do que seja o trabalho “não alienado/estranhado” a partir dos Manuscritos Econômico-Filosóficos. A finalidade, portanto, é denunciar o trabalho em sua expressão negativa no capitalismo e anunciar a sua condição positiva numa sociabilidade de produtores associados, pois, infelizmente, não percebemos esta reflexão marxista no movimento sindical. A crítica sindical se reduz a uma crítica moral dos baixos salários e condições de trabalho, sem a perspectiva crítica, materialista-dialética, do capitalismo que possa determinar as causas da crise estrutural do capital no interior de uma totalidade social. Por outro lado, em O Capital, explicitamos o duplo caráter do trabalho abstrato e concreto que produzem valor e valor de uso; como também apresentamos os componentes fundamentais do processo de trabalho: trabalho, matéria-prima e instrumentos de trabalho. Complementando a análise, tomamos Lukács, em As bases ontológicas do pensamento e da atividade, para analisar o caráter ontológico do trabalho no processo de formação social a partir de Marx, ou seja, seu desvelamento e aperfeiçoamento. A seção – A política: consciência de classe e luta de classes em rumo ao socialismo – apresenta a crítica de Marx à política liberal-burguesa, isto é, ao aperfeiçoamento do Estado burguês e à sua política de dominação. Noutras palavras, buscamos desmistificar o caráter “democrático” do Estado burguês e sua política de formação do cidadão. Aqui temos uma reflexão profunda que contrasta com o tipo de política sindical atual que visa fazer a política cidadã, sem combater o capitalismo que produz as mazelas sociais a partir de suas contradições. Para isso, apreendemos as reflexões políticas de Marx/Engels em Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Glosas Críticas, A Questão Judaica, As Lutas de 17 Classes na França, 18 Brumário de Luís Bonaparte, A Guerra Civil na França, Crítica ao Programa de Gotha e Manifesto do Partido Comunista. Pelo menos quatro categorias fazem parte do desenvolvimento teórico-político de Marx: o Estado moderno, a sociedade civil, a emancipação humana e o socialismo. Para Marx, o entendimento político é entendimento político, porque pensa dentro dos limites da política (burguesa). No entanto, três perguntas se nos impõem: a classe trabalhadora tem hoje consciência do objetivo final da sua luta histórica que é a emancipação humana? Ela percebe a contradição entre o social e o político como algo inconciliável? E que ela é a classe antagônica a essa base social? Desse modo, tentamos demonstrar com Marx que se torna improfícuo a luta política do Estado moderno em combater as mazelas sociais, porque sua natureza é contraditória e os limites de sua ação esbarram nos interesses do capital, pois os “libertadores políticos”, como diz Marx, reduzem a cidadania e a comunidade política ao meio de preservar os direitos dos homens, mas sem realizá-los plenamente na prática. Quebra-se, portanto, o aspecto revolucionário das reivindicações sociais dos trabalhadores, pois estes se infectaram com os princípios democráticos burgueses. O segundo capítulo, Marxismo e movimento sindical, objetiva relacionar marxismo e movimento sindical, a partir de três pontos de discussão: uma discussão teórico-prática sobre a concepção de sindicato nos clássicos do marxismo, uma discussão político-ideológica sobre a crise entre marxismo e movimento sindical e uma discussão político-prática sobre a ofensiva neoliberal e o recuo do sindicalismo. Analisamos o processo histórico do movimento sindical desde o fim do século XIX, com suas tendências ao sindicalismo revolucionário, até o final do século XX, com suas tendências para o sindicalismo mais reformista. Também dividimos o capítulo em três seções que se complementam em suas análises e nos dão um parâmetro crítico-reflexivo sobre o que foi e como está sendo o movimento sindical surgido no campo da luta pelo socialismo. A seção – A concepção marxista de sindicato em Marx, Engels, Rosa, Lênin e Trotsky – explicita como esses clássicos entenderam o papel do sindicato no processo de evolução da luta de classes dos trabalhadores, apontando seus limites, contradições e estratégias e táticas de atuação econômica e política. Com Marx e Engels, apreendemos essa reflexão, sobretudo, nas obras Miséria da Filosofia, Manifesto do Partido Comunista e A Situação da Classe Operária na Inglaterra, como também em alguns textos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). O que vai caracterizar essa discussão sobre o papel do sindicato no processo da luta emancipatória dos trabalhadores é a sua União e Ação Política. Também eles desmistificam o caráter da luta meramente econômica, apontando a 18 contraposição entre salário e lucro e denunciando as péssimas condições de trabalho na esfera da produção; além, claro, das violentas leis criadas para criminalizar as coalizões operárias. Já com Rosa, Lênin e Trotsky, recuperamos o caráter político da luta sindical, a importância do papel da teoria para dar significado prático à luta dos trabalhadores, o sentido da greve geral (greve de massas) e da greve política para a educação revolucionária e o desenvolvimento da luta de classes. O objetivo é mostrar, e contrastar com o que vemos hoje, o que é e como se forma a consciência de classe, o que ensina a luta sindical ao trabalhador, o significado das greves, as tarefas e o papel do sindicato e a fusão da luta econômica com a política. A seção – A crise entre marxismo e movimento sindical – aborda tanto a chamada crise no marxismo como a crise no movimento sindical, ou seja, uma crise que provoca uma crise de relação entre teoria e prática. Com relação à crise do e no marxismo, apresentamos os momentos históricos em que ela se originou e suas consequências, como a crise nos movimentos político e sindical que professavam lealdade ao marxismo enquanto teoria, método ou doutrina. Assim, apontamos três momentos históricos que desencadearam a crise nos movimentos marxistas e, em particular, o distanciamento do movimento sindical das ideias de Marx: Crise da II Internacional, Crise do stalinismo e Fim do “socialismo real”. Também, damos ênfase à crise no interior do marxismo enquanto crise teórica sobre a atualidade e validade das ideias de Marx (do marxismo tradicional), denominados de revisionismo ou pluralismo que fragmentou o Movimento Comunista Internacional. Com relação ao movimento sindical, a repercussão da crise do e no marxismo foi sintomática, pois essa relação teórico-prática ficou abalada. Portanto, explicitamos o distanciamento ou abandono dos movimentos sindicais em relação à teoria marxista, a partir da derrocada do socialismo soviético, cujo resultado foi a “desideologização” e desmarxianização da luta sindical, pois o ceticismo, relativismo e pragmatismo contaminaram, em geral, o movimento sindical. A seção – A ofensiva (neo)liberal e o refluxo do movimento sindical – trata de como o neoliberalismo, a reestruturação do capitalismo na produção e no sistema financeiro mundial, enfraqueceu o poder sindical. O propósito é traçar a relação entre neoliberalismo e recuo do movimento sindical a partir de algumas análises estruturais e conjunturais. De início, mostramos a filosofia da doutrina liberal clássica, sua forma política e ação econômica, a partir da concepção de direito natural, em Hobbes, Locke e Stuart Mill, que fundamenta os pressupostos filosóficos e políticos do liberalismo, fazendo a posteriori uma diferenciação entre o pensamento liberal clássico e o neoliberalismo. Em seguida, apresentamos, a partir de vários estudiosos do movimento sindical, da globalização e do neoliberalismo, a relação 19 conflituosa, tensa e de cooperação forçada entre neoliberalismo e movimento sindical, como também os fatores que acarretaram o enfraquecimento do sindicalismo mundial. Nesse ínterim, mencionamos algumas teses de autores que negam a centralidade do trabalho como Gorz, Kurz e Habermas, confrontando este último com Lukács. Discorremos brevemente como ocorreu o advento do neoliberalismo no Brasil e na América Latina, as crises financeiras dos anos 1990 na Ásia e América Latina, como também a crise estrutural do capital, e suas consequências para o mundo do trabalho. Tomamos a CUT e a Força Sindical como ilustração para comparar a ação sindical destas duas Centrais que ficaram ou numa postura defensivista ou de conciliação com o neoliberalismo. O objetivo é, pois, apropriar-se desses fatos e das teses sobre eles e mostrar que o enfraquecimento do movimento sindical não é só resultado da conjuntura e reestruturação do capital, mas da ausência de uma estratégia teórico-prática do movimento sindical face à ofensiva do capital no campo do marxismo. O terceiro capítulo, O marxismo na formação humana como instrumento de revolução para e pelo socialismo-comunismo, visa compreender a formação humana e educativa em Marx, enquanto instrumento de revolução, para a emancipação. O objetivo é fazer uma correlação com o tipo de formação política que é dado hoje pelo movimento sindical CUT, que foi a expressão mais emblemática no campo do sindicalismo classista. Daí extrairmos de Marx a sua concepção de formação humana e educação política para formar o sujeito revolucionário e antagônico ao capitalismo. Tomamos Gramsci e Suchodolski para ampliar essa reflexão e explicitamos, em seguida, a concepção de socialismo e comunismo em Marx e Lênin. Enfim, o objetivo é perceber o contraste entre formação política marxista e formação política cutista, sendo esta última uma negação do marxismo. Vejamos as seções que se articulam neste capítulo. A seção – Concepção de formação humana em Marx – expõe in nuce os tipos de formação humana desde a Grécia Antiga, passando pela Idade Medieval, até chegar à Idade Moderna e Contemporânea. Tomamos como parâmetro de formação e/ou educação humana algumas reflexões de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, Manuscritos Econômico-Filosóficos e n’A Ideologia Alemã, isto é, a educação revolucionária, a formação do “ser genérico” do homem e a formação do ser social a partir das relações materiais de produção. A seção – A formação educativa como instrumento de revolução – tem como foco a formação política e/ou intelectual do proletário em Gramsci e as concepções de ensino e educação em Marx a partir de Suchodolski. Ambos buscam definir que tipo de educação ou 20 formação política precisa ter a classe trabalhadora para tornar-se sujeito revolucionário da transformação social. Gramsci trabalha com a ideia de que o processo revolucionário não se limita às dimensões políticas e econômicas, mas envolve também a preparação cultural dos trabalhadores para elevar o seu nível de consciência. Gramsci dá ênfase na preparação intelectual dos trabalhadores para desenvolver a consciência da realidade de forma ideológica em contraposição à consciência limitada do conflito e de si mesmos. Já Suchodolski expõe os elementos básicos da teoria da educação materialista, elucidando o caráter pedagógico nas obras Marx e Engels; também ressalta a importância das instituições proletárias como locus de formação educativo-revolucionária. Em outras palavras, Suchodolski enfatiza a atividade educativa proletária para organizar a luta revolucionária e, assim, construir as condições sociais fundantes do novo homem. A seção – Formação educativa para e pelo socialismo-comunismo – está intrinsecamente ligada à seção anterior, sobre o objetivo da formação educativa revolucionária, explicitando os conceitos de “socialismo” e “comunismo”. De Marx e Engels, apreendemos essa reflexão nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Manifesto do Partido Comunista, A Ideologia Alemã, Critica ao Programa de Gotha e n’O Capital. Para complementar, Lênin e Fromm nos auxiliam teoricamente, ampliando essa discussão de forma mais sistemática, ou seja, em O Estado e a Revolução apreendemos essa concepção leninista diferenciando o socialismo do comunismo e em Conceito Marxista de Homem, Fromm faz uma correlação entre conceito marxista de socialismo e conceito marxista de homem. O quarto capítulo, Marxismo e formação sindical CUT, começa com uma seção introdutória para as três seções seguintes que ilustram como o movimento sindical no Brasil se relacionou com o marxismo enquanto teoria revolucionária desde os primórdios até hoje, isto é, da formação política realizada nas lutas cotidianas até à formação política realizada em cursos sindicais. A finalidade é saber até que ponto o marxismo, como teoria crítica ao capitalismo, foi disseminado na formação política sindical, através de seus processos educativos. E se a sua precária apreensão ou não pelos trabalhadores foi empecilho para travar uma luta mais ideológica contra o capital do que corporativista ou colaboracionista. Iniciamos, assim, a problematização da crise do sindicalismo, da crise do fordismo e do advento do neoliberalismo; ressaltamos a importância do marxismo e a sua presença ou não no sindicalismo cutista. Colocamos em foco de análise a preparação teórica e prática dos trabalhadores para enfrentar os desafios históricos postos pela crise estrutural do capital, isto é, do ponto de vista político-ideológico, e não apenas pragmático. A formação política da 21 CUT é, portanto, o nosso objeto de análise enquanto Central que representou o sindicalismo classista durante certo período. Desdobramos o capítulo em quatro seções. A seção – Marxismo e formação sindical CUT - Introdução – inicia-se com o pressuposto do abandono do movimento sindical cutista da perspectiva marxista; retoma en passant a questão da crise do sindicalismo, da reestruturação produtiva capitalista e do fim do socialismo; e reintroduz o debate da cultura marxista a partir da II Internacional, a importância do marxismo para luta sindical e a chegada tardia do neoliberalismo ao Brasil. São reflexões propedêuticas para se discutir a política nacional de formação da CUT e assim perceber ou não a relação entre marxismo e movimento sindical cutista. A seção – A política de formação sindical no Brasil no início do século XX – tece um resumo histórico das primeiras experiências do movimento operário brasileiro no campo da educação política e profissional. Apresentamos sucintamente como os primeiros sindicalistas – socialistas, anarquistas, anarco-sidicalistas e comunistas – compreendiam a educação e a formação política dos trabalhadores desde o final do século XIX até o século XX com a Primeira República, Estado Novo, Ditadura Militar, chegando à redemocratização do Brasil nos anos 1980-1990 com o Novo Sindicalismo, tendo a CUT como estandarte da formação política de caráter classista e socialista em seu nascedouro. Para isso, pautamo-nos nos estudos de Manfredi, Ghiraldelli Jr., Oliveira do Rio e Gonçalves. Nesse sentido, objetivamos relatar a ascendência teórica do movimento sindical brasileiro em seus primórdios, e perceber a sua descendência teórica na atualidade, sem ideologia ou utopia classista que norteie o rumo da luta pela emancipação humana. A seção – O surgimento e a trajetória da CUT: um breve histórico – trata da criação da CUT a partir dos CONCLAT’s e de sua estruturação e institucionalização a partir dos CONCUT’s, ou seja, o aparecimento da CUT como resultado do sindicalismo combativo do final dos anos 1970 contra o fim da ditadura militar e a favor da redemocratização do Brasil. Elaboramos uma sinopse do I ao V CONCUT, mostrando suas especificidades, isto é, da primeira fase da CUT como uma Central combativa, classista e socialista à sua fase mais negociativa, propositiva e participacionista. Nesses CONCUT’s podemos perceber como se deu o processo de institucionalização e burocratização da luta sindical cutista em detrimento de uma luta classista, anticapitalista e de confronto com o capital. O III e IV CONCUT’s foram definidores para a CUT ser o que ela é hoje, ou seja, uma Central de caráter socialdemocrata, anticlassista, concertacionista e corporativista. Das resoluções congressuais, decorreu a Política Nacional de Formação da CUT: formação política e formação profissional. A seção – A política nacional de formação da CUT: da formação da consciência 22 política à formação profissional cidadã – relata as fases na trajetória da CUT desde 1983 até o presente, mostrando sua mudança na forma de luta sindical e seu reflexo na sua Política de Formação Nacional. Demonstramos os enfoques políticos e históricos de vários estudiosos do movimento sindical brasileiro sobre essa transição do movimento sindical cutista, de uma linha de ação mais combativa e classista para uma mais propositiva e conciliadora; dentre eles, destacamos Tumolo, Giannotti & Lopes Neto, Boito Jr. e Manfredi. Buscamos assim estabelecer, a relação entre os últimos fatos históricos contemporâneos e o comportamento da CUT face às adversidades que surgiram a partir dos anos 1990, sobretudo, no que diz respeito ao fim do socialismo real e advento do neoliberalismo e suas consequências para o mundo do trabalho e sindical. Mas o ponto central da discussão é a questão da formação sindical cutista que abandona uma formação ideológica classista e opta por uma formação profissional e cidadã. Apresentamos alguns cursos e temáticas dados pela CUT em seus sindicatos, para demonstrar a ausência da perspectiva marxista da realidade capitalista. Tomamos como dados, livros de autores que pesquisaram a formação política da CUT, teses e dissertações que abordaram a temática para dar subsídios teóricos e práticos para a corroboração de nossa Tese do afastamento do movimento sindical cutista do marxismo como teoria revolucionária na formação educativa dos trabalhadores. Para isso, citamos várias teses sobre o enfraquecimento do movimento sindical que podem ser resumidas em duas: a tese conjuntural e a estrutural. Por fim, na conclusão, buscamos fazer um cotejo entre marxismo e movimento sindical cutista, mostrando o seu distanciamento das teorias marxistas sobre a sociabilidade capitalista, em que é possível perceber o rebaixamento teórico no projeto de formação dos trabalhadores no movimento sindical brasileiro, a saber, do ponto de vista marxista, percebemos que a classe trabalhadora foi “desideologizada” e/ou “despolitizada” para não fazer a crítica ao capitalismo, quer dizer, para não ser o sujeito antagônico ao capital. Nessa perspectiva, destacamos o papel da CUT como uma Central Sindical que prioriza a luta na forma de emancipação política em detrimento da luta na forma de emancipação humana, ou seja, sua linha de atuação sindical e/ou sua política nacional de formação vai na contramão do marxismo enquanto legado teórico-metodológico que visa superar revolucionariamente a ordem do capital. 23 CAPÍTULO 1 AS BASES FUNDAMENTAIS DO MARXISMO 24 1.1 A Importância do Método de Marx Tematizar a importância do método de Marx suscita uma questão que está intrinsecamente ligada ao tema deste trabalho, ou seja: qual a finalidade do método marxista para o desenvolvimento teórico da luta dos trabalhadores? Lukács nos dá uma resposta plausível a esta indagação, a saber, “[...] a doutrina e o método de Marx fornecem, enfim, um método correcto para o conhecimento da sociedade e da história.” 1 Para Lukács, o método marxiano é na sua essência íntima um método histórico e sua finalidade é o conhecimento do presente. Em O que é o Marxismo Ortodoxo?, Lukács – ao dizer que a ortodoxia em matéria de marxismo refere-se ao método e não uma adesão acrítica aos resultados da pesquisa de Marx – conclui que com o marxismo dialético encontrou-se o método de investigação justo, podendo ser aperfeiçoado e aprofundado a partir de seus fundadores. Deste modo, o método marxista, a dialética materialista como conhecimento da realidade, só é possível do ponto de vista de classe, da luta do proletariado, pois o método é produto desta luta. Nesse sentido, a grande tarefa é tornar os trabalhadores cientes do método de Marx, objetivando esclarecer-lhes a fecundidade deste método para solucionar problemas que se apresentam insolúveis no nível da aparência. O ponto central desta indagação sobre o método de Marx se manifesta na falsa dicotomia entre conhecer e ser, entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível, entre teoria e prática. Superar essas antinomias é o que Marx faz no seu processo reflexivo, dando primazia ao ser em relação ao conhecer, não descartando, porém, o papel ativo do pensamento nesse processo de apreensão e exposição do objeto, quer dizer, da matéria em suas determinidades. A famosa carta de Marx em Berlim ao pai, de 1837, revela bem esse outro caminho do conhecimento, id est, “o princípio de buscar a ideia na própria realidade”. Conforme Chasin 2, não há método em Marx, se entendemos como método uma arrumação operativa a priori da subjetividade que necessita de um conjunto de procedimentos ditos “científicos” que são utilizados pelo investigador para fazer sua pesquisa, sem precisar de um fundamento gnosiológico como pressuposto de investigação. Apropriar-se, então, desse método investigativo adotado por Marx é uma tarefa imprescindível para os trabalhadores que buscam entender sua situação histórica de explorados pelos capitalistas para transformar esta realidade social que se lhes opõe. Partindo do pressuposto de que o método abstrativo de Marx é uma superação tanto do 1 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Porto: Escorpião, 1974. p. 9. Cf. CHASIN, José. Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: TEIXEIRA, Francisco J. S. Pensando com Marx. São Paulo: Ensaio, 1995. p. 389. 2 25 idealismo subjetivo quanto do idealismo objetivo3 ou, melhor dizendo, do subjetivismo da filosofia especulativa (baseado no primado da razão) e do objetivismo das ciências naturais (baseado no empirismo grosseiro, no qual o objeto por si só se impõe ao pensamento), podemos explicitar como esse novo modo de se fazer ciência e filosofia se apresenta no pensamento de Marx. Já dizia Marx, no “Posfácio da 2ª Edição” de O Capital, que o método empregado por ele não foi bem compreendido, e assinala as várias críticas feitas ao seu método. Primeiramente, a “Revue positiviste” de Paris acusa Marx de tratar a economia metafisicamente e de limitar-se à analise crítica de uma situação dada, em vez de fornecer fórmulas positivistas que fossem úteis para o futuro; em contraposição a esta visão, o professor Sieber afirma que Marx não é metafísico, mas que seu método é o dedutivo da escola inglesa; por conseguinte, o senhor M. Block – em seu trabalho “Les Theóriciens du socialisme en Allemagne” – assevera que o método de Marx é analítico; por outro lado, os censores alemães denominam o método de Marx como uma sofisticação hegeliana; e, por fim, o periódico de São Petersburgo, o “Mensageiro Europeu”, num artigo que trata de O Capital, define o método de pesquisa de Marx como rigorosamente realista e não idealista como aparentemente se possa perceber. Todavia, Marx dá uma resposta para o autor deste artigo, citando alguns trechos do próprio artigo, fornecendo uma pista onde ele afirma que o autor ventilou o fundamento materialista de seu método. Senão vejamos: Diz o autor do artigo sobre O Capital que para Marx a única coisa importante é descobrir as leis dos fenômenos que ele pesquisa, mas não apenas a lei que rege os fenômenos enquanto forma definida e situada num determinado período histórico, mas, sobretudo, o que mais lhe importa, é descobrir a lei da transformação, do desenvolvimento de um determinado período histórico, ou seja, entender como se dá a transição de uma forma histórica de produção para outra ou de uma ordem de relações sociais para outra. Ao descobrir a lei, é possível investigar os efeitos pelos quais tal lei se manifesta na vida social. Daí – diz o autor – o esforço de Marx demonstrar, a partir de uma rigorosa 3 Há diversas orientações no interior do idealismo subjetivo: aquela orientação em que “a consciência se identifica com todas as formas de consciência individual, da qual a existência é apenas produto, enquanto sensação, ilusão, idéia etc.”; aquele tipo de idealismo subjetivo que afirma a existência objetiva como algo incognoscível por princípio (Kant); e o solipsismo que considera inexistente tudo que ultrapassa as formas e os conteúdos da consciência. Quanto ao idealismo objetivo, este confere o caráter exclusivo de realidade propriamente dita e tem a natureza “de criar mitos para demonstrar e ilustrar a existência dessa consciência objetiva e seu papel de criador universal”. Sobre essa discussão, ver LUKÁCS, Georg. Existencialismo ou Marxismo?. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda., 1979. p. 209. 26 investigação científica, a necessidade de determinadas relações sociais e verificar os fatos que servem de base e ponto de partida para tais relações. Contudo, para atingir o objetivo é só observar a necessidade de outra ordem (social) que, certamente, transformará a primeira, mesmo que os seres humanos não tenham consciência disso ou acreditem nisso. Em outras palavras, segundo o autor, Marx entende o movimento social como um processo histórico-natural, isto é, governado por leis independentes da vontade, da consciência e das intenções humanas. No entanto, é aqui que o autor do artigo cita o fulcro do método de investigação de Marx, a saber: Se o elemento consciente desempenha papel tão subordinado na história da civilização, é claro que a investigação crítica da própria civilização não pode ter, por fundamento, as formas ou os produtos da consciência. O que lhe pode servir como ponto de partida, portanto, não é a idéia, mas, exclusivamente, o fenômeno externo.4 Desse modo, a inquirição crítica se restringirá a comparar e confrontar fato com fato e não o fato com a ideia. O importante é que os fatos se investiguem precisamente, ou seja, que eles se constituam forças do desenvolvimento, ao comparar-se um com o outro. Tal inquirição tem que levar em conta o estudo da série de ordens de relações, a sequência e a ligação dos estágios de desenvolvimento que aparecem. Conforme o autor do artigo de o “Mensageiro Europeu”, Marx contesta a proposição de que as leis econômicas sejam sempre as mesmas, isto é, as mesmas leis utilizadas no passado e no presente. Não há leis abstratas para Marx, pois cada período histórico possui suas próprias leis que regem a vida quando passamos de uma fase histórica para outra, determinada, pois, por uma etapa do desenvolvimento. Em suma, Marx busca pesquisar e esclarecer, deste ponto de vista, a ordem econômica capitalista, ao estabelecer, com maior rigor científico, o objetivo que deve ter qualquer investigação correta da vida econômica; portanto, o valor científico da pesquisa marxiana se manifesta, à medida que ela esclarece as leis especiais que regem o nascimento, a existência, o desenvolvimento, a morte de um determinado organismo social, cuja teleologia é substituir por outro de mais alto nível. Para Marx, o autor do artigo sobre O Capital (“Mensageiro Europeu”) não faz nada mais do que caracterizar seu método de dialético. Sua preocupação está em fazer uma 4 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988. v. I, p. 15. 27 distinção entre o método de pesquisa e o método de exposição. Marx esclarece então esses dois momentos da pesquisa: a investigação e a descrição do movimento do real. De acordo com Marx, A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído êsse trabalho, é que se pode descrever, adequadamente, o movimento do real. Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori.5 Assim sendo, os trabalhadores precisam ter ciência do método de análise marxista da realidade para entender que a sua situação de classe não é produto natural da história ou simples condição da evolução histórica (pensamento do marxismo vulgar), e sim que, ao tomar consciência teórica da sua condição proletária, eles podem ser agentes transformadores dessa etapa histórica que os confinam na alienação negativa do trabalho. E Marx salienta no final do “Posfácio da 2ª Edição” de O Capital que “Para o burguês prático, as contradições inerentes à sociedade capitalista, patenteiam-se, de maneira mais contundente, nos vaivéns do ciclo periódico, experimentados pela indústria moderna e que atingem seu ponto culminante com a crise geral.”6 São as crises periódicas do capitalismo que apontam as condições objetivas “de como fazer” o movimento emancipatório dos trabalhadores na história, mas para isso, é imprescindível que as condições subjetivas da luta de classes estejam também desenvolvidas: a consciência de classe “para si”. Marx, no “Prefácio da Edição Francesa” de 1872 de O Capital, nos dá uma dica fundamental para se adquirir esse conhecimento teórico emancipatório, declarando que “Não há estrada real para a ciência, e só tem probabilidade de chegar a seus cimos luminosos, aquêles que enfrentam a canseira para galgá-los por veredas abruptas.”7 Daí a importância da educação teórica marxista para os trabalhadores fazerem o enfrentamento com a classe capitalista que os vem explorando durante mais de três séculos de história, sobretudo, com o processo de exploração mais degradante que é a forma de trabalho industrializado, impondo à natureza humana um funesto desgaste físico e mental. Todavia, na “Introdução”, em Para a Crítica da Economia Política, Marx nos mostra elementos reflexivos que são a base para o seu método de investigação. Diz ele, logo no começo da subseção “O Método da Economia Política”: “Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva;” 8 Segundo Marx, a Economia 5 MARX. Posfácio da 2ª Edição. In: O Capital, v. I, p. 16. Ibid., p. 17. 7 MARX. Prefácio da Edição Francesa de 1872. In: O Capital, v. I, p. 19. 8 MARX, Karl. Introdução. In: Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 14. 6 28 Política faz isso começando pela população. Mas se tomada essa categoria na sua pura abstração, sem levar em conta as classes que a compõem e os elementos que repousam nela como trabalho assalariado, o capital etc. e que estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc., isso já seria um caminho equivocado. É preciso que a palavra população não seja vazia de sentido e, nesse sentido, é preciso determinar os elementos imanentes nessa categoria, justamente para chegarmos, a partir de uma análise mais precisa e determinada, a conceitos mais simples, ou seja, do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingir as determinações mais simples. Teríamos então o método da volta: “Chegados a esse ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas.” 9 No entanto, quando se descobre, por meio da análise, que há certas relações gerais abstratas como elementos determinantes para se compreender o todo, esse é que é o método cientificamente exato. Para Marx, O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, a unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, ponto de partida também da intuição e da representação.10 Se no primeiro momento do método, a representação plena (do real) se transforma em determinações abstratas (conceitos), no segundo momento, as determinações abstratas levam o pensamento a reproduzir o concreto. Hegel agiu de modo inverso, ao admitir o real como produto do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si e se move por si mesmo. Para Hegel, a ideia, o pensamento ou o espírito absoluto, é demiurgo (criador) da história. O método marxista de investigação consiste em elevar-se do concreto ao abstrato, mas de uma maneira diferente, ou seja, o pensamento que se apropria do concreto nas suas múltiplas determinações para reproduzi-lo a posteriori como concreto pensado 11. Marx mostra, pois, a diferença entre o seu método dialético e o de Hegel, afirmando que o processo de pensamento em Hegel é criador do real, id est, o real como pura manifestação externa da ideia, ou melhor expressando, a ideia se transforma no sujeito autônomo criador do real. 12 Para Marx, pelo contrário, o ideal é o material levado para a 9 Ibid., p. 14. Ibid., p. 14. 11 Cf. MARX, Para a crítica da economia política, p.14. Cf. também LENIN, V. I. O materialismo filosófico. In: As três fontes e as três partes constitutivas do Marxismo. São Paulo: Global Editora, [s.d.]. p. 16-19. (Coleção Bases, 9). 12 Em Materialismo Filosófico, Lênin trata dessa questão e ressalta a concordância de Engels com essa filosofia materialista, ao dizer: “A unidade do mundo consiste no seu Ser [...] A unidade real do mundo consiste na sua 10 29 cabeça do homem e por ela interpretado. Assim, como bem disse Engels: “Querer demonstrar a realidade de um resultado mental qualquer por meio da identidade entre o que se pensa e o que existe é, de fato, uma das fantasias febris mais loucas de... (sic) Hegel”13. Dessa maneira, Marx caracteriza a dialética hegeliana como misticismo lógico, embora ressalte o valor do pensamento hegeliano no que tem de revolucionário, afirmando que Hegel foi o primeiro a apresentar as formas gerais do movimento de modo amplo e consciente. A dialética hegeliana, segundo Marx, está de cabeça para baixo e, por conseguinte, faz-se necessário pô-la de cabeça para cima, para descobrir a substância racional dentro do invólucro místico. A dialética hegeliana mistificada sublima a situação existente da burguesia (e do proletariado), mas, por outro lado, sua forma racional deixa a burguesia inquieta e apavorada, à medida que reconhece o princípio da negação, da destruição do existente, sobretudo, porque o devir é a prova do caráter transitório da história, das suas formas sociais; e assim, na sua essência, a dialética hegeliana é crítica e revolucionária por suscitar a mudança enquanto processo de negação do existente, de sua superação. Na Miséria da Filosofia, Marx se confronta com Proudhon nas sete observações, nas quais ele faz duras críticas ao modo como este senhor expõe distorcidamente a dialética hegeliana. O movimento, que está presente na materialidade como forma de transição, de transformação e de desenvolvimento da matéria, fica reduzido, na reflexão de Proudhon, ao movimento da razão pura, dos pensamentos abstratos, separada da realidade externa, viva. As categorias como divisão do trabalho, crédito, dinheiro etc. são aí categorias fixas, imutáveis e eternas, produtos das ideias e dos pensamentos espontâneos, ou senão, apenas expressões teóricas ou categorias lógicas, tornando-se, assim, categorias metafísicas, ao se apartar as análises dos objetos reais, concretos. Nesse sentido “proud-hegeliano”, o movimento é pura abstração, a saber, um movimento construído pelo e no pensamento, pela ideia abstrata, onde a coisa ou o real se reduz a uma mera categoria lógica. O movimento, nessa perspectiva proudhoniana a “la hegeliana”, é a simples oposição entre o bem e o mal, ou seja, basta eliminar o mal para que o bem supremo vingue e, assim, a proposta proudhoniana de igualdade seria efetivada. Desta forma, bastaria eliminar as coisas más no capitalismo para que este se transforme num sistema do bem, onde todos possam desfrutar das “coisas boas” materialidade, e esta se prova [...] por um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e da ciência da natureza [...] O movimento é o modo de existência da matéria [...] Mas se em seguida nos perguntamos o que são o pensamento e a consciência e de onde vêm, descobrimos que são produtos do cérebro humano e que o homem é ele próprio um produto da natureza, que se desenvolveu no seu meio e com o seu meio [...]” (LENIN, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, p. 16.). Cf. também ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 39. 13 ENGELS, Anti-Dühring, p. 38. 30 que ele pode oferecer. Portanto, a dialética proudhoniana é a completa deturpação da dialética hegeliana, já que nessa dialética proudhouniana a contradição inexiste como elemento importante do movimento14. Tudo se reduz na oposição entre o bem e o mal, isto é, na eliminação deste último. Entretanto, é nos Manuscritos Econômico-Filosóficos que Marx vai criticar a dialética hegeliana, ressaltando Feuerbach como primeiro a fazer essa crítica, só que de forma incompleta. Nesse texto, Marx nos dá algumas linhas de interpretação e apreciação sobre a dialética hegeliana, como ele mesmo afirma, logo no início do manuscrito. Para Marx, a moderna crítica alemã (neo-hegelianos) se tornou acrítica face ao método crítico, isto é, não se confrontou com a dialética de Hegel. Já Feuerbach, segundo Marx, teve como grande empreendimento a superação da dialética e da filosofia antiga, ou seja: 1) a filosofia transformou-se, para Feuerbach, numa religião convertida em pensamento e desenvolvida pelo pensamento; 2) Feuerbach fundamentou o autêntico materialismo e a ciência positiva quando fez da relação social do homem ao homem como princípio básico de sua teoria; e 3), por último, ele se opôs à “negação da negação” enquanto princípio que se funda em si mesmo. Por outras palavras, Feuerbach concebe a “negação da negação” como a contradição da filosofia consigo mesma, ou seja, uma filosofia que afirma a teologia (transcendência) depois que a aboliu, afirmando-a a si mesma. Marx anota que, para Feuerbach, a posição ou a autoconfirmação e autoafirmação, que está implícito na “negação da negação” hegeliana, é um postulado incerto, oprimido pelo seu contrário, que duvida de si mesmo, logo incompleto, quer dizer, não demonstrado pela sua própria existência implícita. Tal postulado, indubitável e baseado em si mesmo, se lhe opõe diretamente. Para Chasin, Feuerbach não se limitou a desmontar criticamente a filosofia hegeliana, pois ele “formula com nitidez a esfera sustentada como resolutiva das novas premências ontológicas: ‘o verdadeiro nexo entre pensamento e ser só é este: o ser é sujeito; o pensar, predicado. O pensamento provém do ser, mas o ser não provém do pensamento’.” 15 Em outras palavras, o ser só existe a partir de si e por si mesmo, quer dizer, o ser é dado pelo ser, sendo o seu próprio fundamento. O ser é, nessa perspectiva, sentido, razão, necessidade, verdade, por fim, tudo em todas as coisas. Assim sendo, pensar e conhecer as coisas e os seres 14 Sobre a diferença entre a lógica formal (lógica estática) e lógica dialética (lógica do movimento e da contradição), Cf. MANDEL, Ernest. Introdução ao marxismo. Lisboa: Edições Antídoto, 1978. p. 241-252: Mandel explicita didaticamente as categorias fundamentais da lógica dialética (contradição, oposição, totalidadeparticularidade, quantidade-qualidade, negação etc.) e da lógica formal (lei da identidade, da contradição e do terceiro excluído). 15 CHASIN. Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: op. cit., p. 348. 31 como são, é a tarefa máxima da filosofia, pois a filosofia é conhecimento do que é.16 É por isso que Marx, segundo Chasin 17, se opõe ao fundamento das operações hegelianas enquanto o grande defeito da especulação, quando esta toma a ideia como princípio de entificação do multiverso sensível, pois, o fato não é a realização da ideia, caso contrário, cairíamos num misticismo lógico, ao desconsiderar as essências específicas das distintas entificações existentes. A máxima de Hegel “o real é racional” se complica, porque a ideia pura, a ideia abstrata, a ideia lógica ou a ideia como sujeito não é capaz de reproduzir a peculiaridade concreta dos objetos reais, e nem o conhecimento como força reprodutora das entidades efetivas. Por conseguinte, Marx afirma que o grande mérito de Hegel na sua Fenomenologia, consiste em conceber a autocriação do homem como processo, a objetivação como perda do objeto, como alienação e como abolição da alienação, e por isso, a dialética da negatividade é o princípio motor e criador; e também consiste em ele apreender a natureza do trabalho e conceber o homem objetivo (real) como resultado do seu próprio trabalho. Desse modo, o homem como ser genérico, ativo e real, como ser humano possível, só é capaz de se reapropriar da sua essência objetiva, se ele realizar seus poderes específicos, cuja condição fundamental é a ação coletiva dos homens na história para efetivar essa promoção ontológica de seu ser numa modalidade de sociabilidade comunal. Assim, o homem enquanto trabalhador sucumbido à forma de trabalho alienado, estranhado ou explorado, deve se opor a si mesmo enquanto trabalhador da reificação social. Se o trabalho, na visão hegeliana, é a essência confirmativa do homem, o tornar-se do homem para si mesmo no processo da sua objetivação, então é imprescindível que ele busque abolir essa forma de trabalho capitalista. É nesse sentido que Marx critica Hegel por conceber o trabalho apenas no seu aspecto positivo e não negativo, a saber, o trabalho apenas como uma atividade intelectual abstrata. Dois momentos positivos da dialética hegeliana são considerados por Marx, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, no interior da condição da alienação: a) a ab-rogação como movimento objetivo que reabsorve em si a alienação, ou seja, a apropriação do ser objetivo (o homem) pela superação da sua alienação; em outras palavras, é a partir da aniquilação do caráter alienado do mundo humano, pela anulação de um modo de existência estranhado, que o humanismo, na forma de comunismo, abole as condições inumanas de empobrecimento da natureza humana e, assim, restaura a genuína natureza humana como algo real; e, dessa maneira, Hegel compreende o significado positivo da negação, isto é, o 16 17 Cf. CHASIN, op. cit., p. 348. Cf. Ibid., p. 375. 32 humanismo positivo como abolição da propriedade privada, conforme Marx; b) o segundo momento positivo no interior da alienação é quando Hegel concebe o trabalho como ato de autocriação do homem, ou seja, o movimento de autocriação, de auto-objetivação na forma de alienação positiva, constitui a absoluta expressão da vida humana, cuja finalidade é a paz e a realização da sua natureza humana. No entanto, Marx percebe o reducionismo de Hegel, à medida que este iguala o homem à autoconsciência. Daí ser uma abstração vazia a “negação da negação” hegeliana por ser uma simples negatividade absoluta, justamente por constituir um conteúdo formal, produzido pela abstração. Para Marx, ao contrário, o verdadeiro não é a pura ideia que constitui a forma do seu ser-outro. A abstração, quando iluminada pela experiência e esclarecida a sua verdade, deixa de ser especulativa, para ser reflexo da realidade no pensamento, mas a partir de uma mediação recíproca entre o ser e o conhecer, em que o real é transportado para a razão por intermédio da abstração enquanto momento ativo da reflexão. Daí a especulação hegeliana enquanto razão autossustentada não conseguir ascender à decifração da mundaneidade imperfeita, não lograr esclarecer essa mundaneidade, compreendendo sua gênese e necessidade para capturá-la em seu significado próprio, por meio da determinação de lógicas específicas atualizadoras dos objetos de seu multiverso. Portanto, a negatividade absoluta encontra seus limites no modo de reprodução real a partir do ideal enquanto exibidor arbitrário das essências dos objetos reais. N’A Sagrada Família, em “O Mistério da Construção Especulativa”, Marx já enunciava em poucas palavras a caracterização do mistério da construção especulativa de um modo geral. Na verdade, ele apresenta o caráter abstrato do método idealista, quer dizer, do método dialético-especulativo de Hegel, que cria o mundo real através de categorias abstratas, ou seja, a partir do conceito irreal ou universal, de uma ideia geral, concebemos os seres naturais, objetos concretos, com significação mística. O exemplo da fruta ilustra muito bem esse método especulativo-abstrato. Quando partimos das pêras, maçãs, morangos, amêndoas reais, temos a imaginação de que a representação abstrata fruta, extraída das frutas reais, é algo que existe fora de nós, quer dizer, acabamos afirmando que a ideia fruta é a substância da pêra, da maçã, do morango e da amêndoa. Nesse sentido, o ser pêra, ser maçã etc. não é essencial enquanto existente real, os quais os sentidos humanos apreciam, mas o essencial é o ser abstraído por alguém e as frutas reais atribuídas como um ser de representação, isto é, a fruta. Todas as frutas reais se reduzem, portanto, ao conceito universal fruta. Agora a fruta na condição de ser intelectivo sobrenatural, como pura abstração do ser natural, não brota do solo material, mas sim do cérebro humano. A fruta torna-se a expressão, unidade e 33 universalidade de todas as frutas singulares. Suas determinações reais são invenções do próprio pensamento especulativo. E, assim sendo, esse procedimento metodológico “leva o homem a tomar o desenvolvimento especulativo como real, e o desenvolvimento real como especulativo.”18 Então declara Marx que “por esse caminho não se chega a uma riqueza especial de determinações.”19 O conteúdo real do objeto, da coisa em si, é assim subsumido no mistério da especulação subjetiva da razão. Já na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução, Marx apresenta um quadro analítico que enfatiza o caráter puramente subjetivo do homem, ao denunciar a religião como um produto da sociedade e Deus como um produto da sua imaginação. Ele coloca o seguinte argumento: “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade.”20 São a sociedade e o Estado que produzem a religião como consciência invertida do mundo. Aqui podemos perceber qual é o sujeito produtor da realidade – o homem social, e seu predicado, a religião, como objeto dessa produção. Nesse caso, o homem é o próprio demiurgo dessa existência imaginária, e da existência profana como invólucro daquela. Percebemos então aqui, com as palavras de Marx, o ser concreto tendo a primazia ontológica face ao ser abstrato, produto de uma consciência coletiva. A autêntica realidade que o homem deve procurar e buscar – como diz Marx, no segundo parágrafo deste texto – reside no reflexo da sua prática social; esta sim é o ponto de partida do conhecer humano sobre a origem das suas produções imaginárias: Deus enquanto ser abstrato e a Religião enquanto entidade “prática profana” que encapsula o Ser Supremo. Buscar, portanto, a realidade da essência humana é – segundo Marx – fazer a crítica a essa razão especulativa, transcendentalista (religiosa), que fundamenta o existir humano a partir de uma visão imaginária e ilusória que aponta o ser humano como ser posposto por outro Ser imaginativo enquanto princípio de tudo. E nesse texto/contexto da Contribuição, quando Marx afirma que a crítica da religião é a forma de libertar o homem da ilusão, do pensamento especulativo ou abstrato, ou seja, recuperar o homem da escravidão da sua própria imaginação (que cria um Senhor para si) para reconquistar a razão “não-ilusória”, sua autonomia humana, é o passo fundamental para resgatar a sua condição de ser genérico enquanto ser primaz da sua própria condição existencial. Nesse sentido, o ser (homem) é conditio sine qua non de conhecimento de seu próprio ser enquanto ser prático-histórico, de 18 CHAGAS, Eduardo. O método dialético de Marx. In: JIMENEZ, Susana; OLIVEIRA, Jorge Luís; SANTOS, Deribaldo (Orgs.) et al. Marxismo, educação e luta de classes. Fortaleza: EdUECE, 2008. p. 50. 19 MARX e ENGELS. A Sagrada Família. São Paulo: Editora Moraes, 1987. p.72. 20 MARX, Karl. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: Manuscritos económicofilosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 77. 34 sua criação imaginária do Ser Perfeito de imitação e/ou submissão, um ícone celestial para ser espelho da sua humanização perfeita, eterna e imortal. Em outras palavras, essa reflexão marxiana sobre a religião nos revela que o “ser homem” é o ponto de partida para conhecer “o ser não-homem” (Deus) e, assim, compreender sua expressão humano-social; nesse sentido, para conhecer os elementos que determinam a criação de um Ser Sagrado/Absoluto enquanto ato imaginativo é preciso ir ao produtor do Ser celestial, isto é, ao próprio homem. Este é o ponto de partida para se conhecer como se deu o ato especulativo transcendental religioso enquanto prática social. E qual seria o legado da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução sobre a questão da importância do método de Marx para os trabalhadores enquanto protagonista histórico da negação do nosso presente político, econômico e social? Marx mesmo responde, embora noutro contexto: seria “estabelecer a verdade desse mundo”, “desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas” (já que autoalienação sagrada foi desmascarada); tudo isso depois que o mundo, que se sustenta sobre essas condições, se desvanecer.21 Assim, o princípio da negatividade hegeliana, ao modo dialético marxista enquanto suprassunção, se reflete nesse contexto, quando ele afirma que é preciso negar o presente político22, ou seja, negar uma situação que está empoeirada historicamente e libertar o homem que está sob o acicate de uma determinada estrutura social que impossibilita sua humanização, o desenvolvimento pleno de suas capacidades humanas. Para confirmar essa crítica contra a filosofia especulativa, que se limita à crítica do céu sem fazer a crítica da terra, Marx afirma que “Na luta contra essa situação, a crítica não é paixão da cabeça, mas a cabeça da paixão. Não é uma lanceta anatómica, mas uma arma. O seu alvo é um inimigo que ela procura, não refutar, mas destruir.”23 Não é à toa que Marx reivindica a crítica da terra, ou da terrenalidade que sustenta essa condição humana, como ponto de partida da investigação, para compreender as determinidades sociais que fazem o homem ou a sociedade ser assim e não de outra forma. O objeto investigativo é o homem e sua condição desumana ou sua natureza inumanizada. Se o ser social, como objeto de conhecimento, deve ser captado nas suas íntimas conexões, essa captação não pode se dar pela pura atividade sensível-intuitiva, quer dizer, apenas pelas sensações ou impressões humanas, mas pelo pensamento ativo e crítico. A reprodução do real pelo pensamento requer que o objeto exterior forneça seus componentes essenciais e/ou os 21 Cf. MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 78. Cf. Ibid., p. 79. 23 MARX, op. cit., p. 80. 22 35 elementos constituidores do seu ser assim, a partir de uma mediação entre teoria e prática, em que o homem, na condição de ser cognoscente, não seja passivo face ao objeto que ele deseja conhecer. Entrever essa situação humana aí posta laboral ou teleologicamente é buscar compreender como ela se desenvolve na totalidade histórica enquanto locus do nascimento, envelhecimento e morte das formações econômico-sociais. Como diz Marx, “A história é sólida e atravessa muitos estádios ao conduzir uma formação antiga ao sepulcro.”24 Certamente, é a atividade prática do homem (uma revolução) que o libertará das cadeias, as quais ele se acorrentou. O método marxiano de conhecimento do real tem como princípio a radicalidade do conhecimento, pois como Marx mesmo diz, “Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem.” 25 Segundo Chasin, “Ao postular a atividade do pensamento de rigor como produção teórica da lógica intrínseca ao objeto investigado, Marx apenas deu início, com inflexão decisiva e emblemática, é verdade, à composição de sua plataforma científica.” 26 E é dessa maneira que Marx define a tarefa do sujeito e assinala o lugar da verdade, fazendo a ruptura antitética com a filosofia especulativa hegeliana. Sujeito e objeto, reivindicados na sua terranalidade, embora distintos, não se faceiam como simples exterioridade. Tanto nos Manuscritos de 1844 como n’A Ideologia Alemã, os sujeitos são determinados como homens ativos e os objetos como atividade sensível. Nos Manuscritos de 1844, na compreensão de Chasin, “Marx adota o princípio determinativo de que ‘o ser é uno com a coisa que é’ ”27; ou como ele assegura no Primeiro Manuscrito: “Um ser não objetivo é um não-ser (Unwesen)”28; um ser não objetivo é, portanto, um ser não efetivo, não sensível, e sim, somente pensado e imaginado, um ser da abstração. Ser sensível, ser objetivo, é ser dos sentidos. N’A Ideologia Alemã, Marx já prenunciava as condições fundamentais para a efetividade do conhecimento humano em bases reais e não abstratas, a saber: As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação, são os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois verificáveis por via puramente empírica.29 Por isso, Marx indagou por que os filósofos críticos alemães não se perguntaram sobre a ligação entre a filosofia alemã e a realidade alemã, ou seja, a ligação entre a sua crítica e o 24 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p.82. Ibid., p.86. 26 CHASIN. Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: op. cit., p. 390. 27 Ibid., p. 391. 28 MARX. Crítica da dialéctica e da filosofia de Hegel. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 250. 29 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 10. 25 36 seu próprio meio material, entre o pensamento e o mundo real. As ideias, segundo Marx, não são produto do puro pensamento, pois há uma mútua determinação entre ideia e realidade. E o pensamento é ancorado na realidade. Nessa perspectiva, a produção das ideias, das representações e da consciência está inelutavelmente ligada à atividade material ou ao intercâmbio material dos homens. 30 Partindo de suas afirmações em A Ideologia Alemã, quando ele diz que são os homens que produzem suas representações, suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, e que são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações sociais de produção, então o conhecimento humano não pode ser mais do que consequência do seu processo de vida real. Como Marx assevera, “é aí que termina a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens. Cessam as frases ocas sobre a consciência, para que um saber real as substitua.”31 Eis a arquitetônica de seu pensamento como postura antiespeculativa. Este breve destacamento teórico nos leva à primeira tese sobre Feuerbach onde Marx aponta o grande erro deste filósofo, a saber, Feuerbach não concebe o homem como atividade sensível, enquanto práxis, só o concebe como objeto sensível, ou melhor, não concebe o homem em sua ligação com a realidade social existente que faz os homens serem como são. Na sexta tese sobre Feuerbach, Marx só faz confirmar seu aforismo, ao dizer que “a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado, mas sim o conjunto das suas relações sociais.”32 É esse ajuste de contas com a filosofia idealista alemã que Marx faz, pois a materialidade é o que existe objetivamente e, por isso, para ele, o primado é a realidade sobre a consciência, logo o pensamento não é o critério da verdade. O fundamento do pensar é a realidade. Assim, a correspondência entre sujeito e objeto se apresenta na segunda tese sobre Feuerbach: “É na práxis que o homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade do seu pensamento.”33 E complementa dizendo que discutir sobre a realidade ou irrealidade do pensamento é pura escolástica se isolado da práxis. Na quinta tese, Marx solapa o materialismo antropológico/contemplativo de Feuerbach quando relata que este, não se conformando com o pensamento abstrato, busca a intuição sensível, porém não considera a sensibilidade como uma atividade prática humana e sensível, pois, para Marx, apreender o mundo é uma construção histórico-social. O homem religioso ou abstrato pertence, portanto, a uma determinada forma social, e a vida social é essencialmente prática 30 Cf. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 18. Ibid., p. 20. 32 Cf. MARX. Teses sobre Feuerbach. In: A Ideologia Alemã, p. 101. 33 Ibid., p.100. 31 37 (Conforme as VII e VIII Teses sobre Feuerbach). Essa tensão objetiva da relação entre sujeito e objeto, como condição de possibilidade do conhecimento, propõe, na verdade, a dissolução da unilateralidade ou dos limites que desfiguram as condições de “ser do sujeito” e de “ser o objeto”. A dinâmica dessa tensão do face a face entre sujeito e objeto – como nos diz Chasin 34 – só faz emergir a regulação de suas trocas de “in-formações” que elimina a arbitrariedade dessa dualidade, isto é, o objeto existente nos fornece pistas de como ele se apresenta na realidade e o sujeito informa à subjetividade as determinidades do objeto a partir do seu filtro de apreensão. Essa mediação evita a unilateralidade ou a tirania do conhecer por via de “mão única”. Nas palavras de Chasin, “O sujeito se confirma pela exteriorização sensível, na qual plasma sua subjetividade, e o objeto pulsa na diversificação, tolerando formas subjetivas ao limite de sua plasticidade, isto é, de sua maleabilidade para ser outro.”35 Reconfigurar o objeto a partir da subjetividade, enquanto atividade prático-crítica, suscita um serviço de transgressão, quer dizer, é preciso ter a priori uma prévia ideação sobre o que vai se conhecer para apreender o real não passivamente; e, nesse sentido, o homem no processo de conhecimento tem que ser ativo, sem ser impositivo. O objeto ou o real possui sua lógica intrínseca própria que precisa ser compreendida e apreendida no seu movimento, na sua totalidade, nas suas íntimas conexões. E a prática já traz embutida em si dois momentos do pensar: a subjetividade proponente (teleologia) e a subjetividade receptora (capacidade cognitiva). Como afirma Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos: “O modo como a consciência é e como algo para ela existe é o conhecer. O conhecer constitui o seu único acto. Algo existe, portanto, para consciência, na medida em que ela conhece este algo. O conhecer é a sua única relação objectiva.” 36 E continua Marx: “Sem dúvida, o pensamento e o ser são distintos, mas formam ao mesmo tempo uma unidade.”37 De outra maneira, Lukács afirma que a grande proeza de Marx é a sua investigação concreto-ôntica ou ontológica, rechaçando o método hegeliano de expor conexões em bases de esquemas lógicos, porém, apontando um caminho que se delineia no sentido de concretizar cada vez mais as formações, as conexões etc. do ser social, cujo ponto de inflexão ele alcança nos estudos econômicos. E é nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, segundo Lukács, que as categorias econômicas surgem pela primeira vez como categorias da produção e da reprodução humana, possibilitando, então, a descrição ontológica do ser social em bases 34 CHASIN, op. cit., p. 398-399. Ibid., p. 398. 36 MARX. Crítica da dialéctica e da filosofia de Hegel. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 252. 37 Idem. Propriedade privada e comunismo. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 196. 35 38 materialistas. A economia torna-se, dessa forma, o centro da ontologia marxiana na visão lukacsiana. Ou como diz Lukács citando Marx: “Tal como, em toda a ciência social histórica, há que nunca perder de vista, no estudo do movimento das categorias econômicas, que as categorias exprimem formas e condições de existência.”38 Marx já afirmava no primeiro parágrafo da Introdução (Para a Crítica da Economia Política), no item I – “Produção, Consumo, Distribuição, Troca (Circulação)”, que seu objeto de estudo é, em primeiro lugar, a produção material.39 E no Prefácio desta obra, ele já justificava seu caminho de pesquisa: “Tenho diante de mim o conjunto do material sob a forma de monografias que foram redigidas com longos intervalos, não para serem impressas, mas para minha compreensão, e cuja elaboração sistemática, segundo o plano dado, dependerá de circunstâncias exteriores.”40 Em seguida, Marx anota que toda antecipação perturbaria resultados ainda por provar e, alerta ao leitor – que se dispõe a segui-lo – que ele “terá que se decidir a ascender do particular para o geral.” 41 “Por outro lado,” – continua Marx – “poderão aparecer aqui algumas indicações sobre o curso dos meus próprios estudos político-econômicos.”42 A partir destas palavras, podemos inferir que o método de análise de Marx se distingue dos métodos ditos científicos, à medida que estes já vêm com um traçado de procedimentos a priori para apreender o objeto de pesquisa. O caminho escolhido por Marx, para atingir seu objetivo de pesquisa, é o inverso, ou seja, é o objeto de conhecimento que vai definindo os passos que o pesquisador deve fazer para atingir a sua cognoscibilidade. Desse modo, concordando com Chasin, o critério da verdade é ontológico, ou melhor, onto-prático. Contudo, a Segunda Tese sobre Feuerbach define bem o caráter do problema do conhecimento, isto é, a questão, se o pensamento humano alcança uma verdade concreta, não é uma questão teórica, mas sim uma questão prática. Noutras palavras, “a determinação do que é, antecede a admissão e o tratamento de temas gnosio-epistêmicos.”43 Para Chasin, o tratamento ontológico dos objetos, incluindo aí o sujeito, não é apenas imediato e independente, mas autoriza e fundamenta o exame da problemática do conhecimento. Examinar essa problemática requer o critério ontológico e só a partir dele é que é possível uma adequada investigação. No entanto, a fundamentação onto-prática do conhecimento nos leva a outra questão que é a determinação social do pensamento, isto é, a sociabilidade como condição de possibilidade do conhecimento, pois, como anota Marx nos Manuscritos de 1844, há um nexo 38 MARX, Contribuição à critica da economia política apud LUKÁCS, História e consciência de classe, p.19 Cf. MARX. Introdução. In: Para a crítica da economia política, p. 3. 40 MARX. Prefácio. In: Para a crítica da economia política, p. 23. 41 MARX, op. cit., p. 24. 42 MARX, loc. cit. 43 Cf. CHASIN, op. cit., p. 400. 39 39 fundamental entre a consciência, suas formações ideais e a sociedade, quer dizer, a consciência geral do homem é somente a figura teórica daquilo cuja figura viva é a própria comunidade. O homem confirma sua consciência na existência, justamente porque a atividade ideal é a sua atividade social. Nesse sentido, o pensamento tem um caráter social, porque sua atualização é atualização do predicado do homem, cujo ser é atividade social. Por outras palavras, a consciência geral é uma abstração da vida efetiva, logo a existência teórica do homem é uma existência enquanto ser social. Em Questões Metodológicas Preliminares, Lukács afirma que “Tão-só a base de um conhecimento pelo menos imediatamente correto das propriedades reais das coisas e processos é que a posição teleológica do trabalho pode cumprir sua função transformadora.”44 Podemos concluir a partir daí, numa outra direção reflexiva, que os trabalhadores enquanto potenciais sujeitos revolucionários só podem se fazer agentes transformadores de sua história humana, se conseguirem conhecer a realidade e o processo social, aos quais estão submersos, em suas múltiplas determinações. Isso requer um salto qualitativo, como diz Tumolo, da consciência imediatista ou sensitiva (baseada na impressão, na sensação ou emoção), passando, porém, por uma consciência racional-pragmatista (mas ainda fragmentária), para uma consciência teórico-política (sistemática)45 que dará aos trabalhadores a subjetividade revolucionária como condição sine qua non de abolição da objetividade social capitalista antagônica à sua generalidade humana. Nessa perspectiva, a prioridade ontológica da economia no pensamento de Marx, como diz Lukács, está pressuposta de uma ontologia materialista da natureza que compreende em si a historicidade e a processualidade, a contradição dialética, estando já implicitamente contida no fundamento metodológico da ontologia marxiana. Marx parte da premissa de que a contradição não é apenas uma passagem de um estágio para outro como em Hegel, mas ela é a força motriz do próprio processo normal. A contradição se revela como princípio do ser e, portanto, possível de ser apreendida na sua realidade. É nesse sentido que Marx formula uma concepção nova de superação das contradições, como afirma Lukács. Se a economia (capitalista) enquanto base do desenvolvimento do ser social é composta por um feixe de contradições, então é preciso compreender como elas se dão a partir de uma totalidade histórico-social, como portadoras inelimináveis de novos elementos mutantes para a 44 LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda., 1979. p.19. 45 Cf. TUMOLO, Paulo. Educação, consciência de classe e o problema da transição socialista. In: JIMENEZ, Susana; OLIVEIRA, Jorge Luís; SANTOS, Deribaldo (Orgs.) et al. Op. cit., p.72. 40 configuração de um novo modo de produção do ser social, baseado numa economia comunal. É nesse sentido que Lukács compreende que A economia marxiana está penetrada por um espírito científico que jamais renuncia a essa consciência e visão crítica em sentido ontológico; ao contrário, na verificação de todo o fato, de toda conexão, emprega-as como metro crítico permanentemente operante. [...] trata-se aqui, portanto, de uma cientificidade que não perde jamais a ligação com a atitude ontologicamente espontânea da vida cotidiana; ao contrário, o que faz é depurá-da (sic) e desenvolvê-la continuamente a nível crítico, elaborando conscientemente as determinações ontológicas que estão necessariamente na base de qualquer ciência.46 Por essa linha de reflexão, Lukács quer tornar claro o método de Marx, fazendo uma dura crítica às falsas ontologias emergidas no campo da filosofia e tentando resgatar uma cientificidade ontológica e filosófica correta, quer dizer, mostrando que Marx era contra as construções abstratas do idealismo filosófico que violentavam a realidade. Por outro lado, Lukács apresenta os limites da ciência contemporânea, cujo objetivo seria limpar as ciências dos preconceitos neopositivistas que introduzem deformações substanciais nas próprias ciências. Em outras palavras, Lukács parte de uma questão central e importante para clarificar o método marxiano; para isso, trata o ser social como um problema ontológico da diferença, da oposição e da conexão entre fenômeno e essência, assumindo, assim, este problema um papel decisivo, sobretudo, porque “na vida cotidiana os fenômenos ocultam a essência do seu próprio ser, ao invés de iluminá-la”47, como bem demonstra Lukács. Quando Marx enuncia que “toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e sua forma fenomênica coincidissem diretamente”48, tal enunciado – para Lukács – seria extremamente importante para a ontologia do ser social; principalmente, porque a relação entre fenômeno e essência no ser social, devido a sua indissolúvel ligação com a práxis, revela traços novos, novas determinações. Para Lukács, essa afirmação filosófica de Marx tem uma função crítica ontológica de combate a algumas falsas representações, para despertar a consciência científica, objetivando restaurar no pensamento a realidade autêntica, o existente em-si. É isso que vai caracterizar a estrutura interna das obras da maturidade de Marx, isto é, uma estrutura de novo tipo, cuja cientificidade tem em vista a totalidade do ser social, não abandonando, claro, este nível científico; por outras palavras, os fatos singulares nas suas inter-relações, na sua reprodução ideal de conexões concretas, só podem ser analisados em sua totalidade para avaliar a realidade e o significado de cada fenômeno singular que eles expressam. 46 LUKÁCS, Os princípios ontológicos fundamentais de Marx, p. 24. Ibid., p. 25. 48 MARX, Karl. O Capital, III, 2, Hamburgo, 1904, p. 352 apud LUKÁCS, op. cit., p. 26. 47 41 Conforme Lukács, Marx separa dois complexos: “o ser social, que existe independentemente do fato de que seja ou não conhecido corretamente; e o método para captá-lo no pensamento, de uma maneira adequada possível.” 49 Dessa maneira, é dada a prioridade do ontológico face ao mero conhecimento, ou seja, a objetividade tem um maior peso do ponto de vista ontológico, justamente por causa da sua estrutura e dinâmica interna, do seu “ser-precisamente-assim”. “A objetividade é uma propriedade primário-ontológica de todo ente. O ente originário é sempre uma totalidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade”50, como nos diz Lukács. Muitos caminhos podem nos levar a totalidade na natureza, mas por um raciocínio rigoroso. Já no campo social, a totalidade é dada de modo imediato ou, como diz Marx na Miséria da Filosofia, “toda sociedade constitui uma totalidade” e “ela é o produto da ação humana”. Desta feita, inferimos que Marx inaugura uma nova forma de cientificidade geral como de uma ontologia, ou, melhor dizendo, uma forma de superar no futuro a constituição problemática da cientificidade moderna, mesmo que esta tenha uma riqueza imensa de fatos descobertos. Vale ressaltar a importância de Lênin, ao recusar a supremacia filosófica da lógica e da gnosiologia que se apoia em si mesmas. Ele retoma a concepção originária de Hegel que propõe a unidade entre a lógica, a gnosiologia e a dialética, porém traduzida em termos materialistas. A sua gnosiologia, enquanto gnosiologia do reflexo de uma realidade material que existe independentemente da consciência, é sempre subordinada a uma ontologia materialista. Lukács anota que “O essencial da crítica leninista consiste em afastar resolutamente todas as especulações vazias, para voltar à questão sobre a qual deve repousar toda a teoria do conhecimento, a saber: primado da existência ou primado da consciência.”51 Lênin ressalta, pois, que Marx e Engels viam na dialética hegeliana uma rica, vasta e profunda doutrina da evolução, do desenvolvimento, ou seja: conforme Engels – nos diz Lênin – a ideia fundamental é que o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas sim como um complexo de processos onde as coisas, aparentemente estáveis, passam por mudanças ininterruptas de devir e perecer. Sendo assim, a filosofia dialética mostra a caducidade das coisas e em todas as coisas: seu nascimento, evolução e perecimento, da ascensão do inferior para o superior; e ela é apenas o reflexo no cérebro pensante, como afirma Lênin. Desta feita, a dialética para Marx é, então, “a ciência das leis gerais do 49 LUKÁCS. Crítica da Economia Política. In: Os princípios ontológicos fundamentais em Marx, p.35. Cf. Ibid., p. 36. 51 LUKÁCS, Existencialismo ou Marxismo?, p. 213. 50 42 movimento, tanto do mundo exterior como o do pensamento humano.”52 Na reflexão lukacsiana, se caminharmos do fenômeno para a essência, o conhecimento segue um movimento da própria existência; se esse caminho do conhecimento é o reflexo complexo e indireto do movimento e da transformação do ser na consciência humana, então a teoria do conhecimento materialista – na qual a consciência humana reflete a realidade objetiva, cuja existência independe da consciência – apresenta-se sob uma luz completamente nova. Dessa maneira, a dialética é a condição sine qua non para que a realidade objetiva (enquanto processo produzido pelo movimento dos fenômenos que evoluem para tornar-se seu contrário) possa ser refletida adequadamente no cérebro. É assim que se suprimem as questões aparentemente insolúveis da teoria do conhecimento do idealismo. “A essência é objetividade real” – como nos diz Lukács – e, portanto, tal descoberta elimina o erro de querer rebaixar o fenômeno ao nível da aparência. Não há mais uma rígida oposição entre fenômeno e essência, entre o imediato e a “coisa-em-si”, pois a essência está dotada de uma existência mais profunda do que o fenômeno imediato, que é apenas um de seus elementos, porque a essência é a síntese, a unidade desses elementos. E para o conhecimento chegar à essência, é preciso descobrir suas leis imanentes. É nesse sentido, portanto, que Lukács afirma que seria ingênuo não acreditar que a gênese dialética da consciência de classe não se aplica ao proletariado. E aí ele cita Lênin de O que fazer?, quando diz que é impossível o proletariado por si só desenvolver uma consciência antagônica ao capital, isto é, uma consciência revolucionária comunista, como resultado de uma compreensão (reflexo dialético) bem mais adequada da totalidade social. E tal consciência política de classe não pode ser levada ao proletariado, senão do exterior, quer dizer, do exterior da luta econômica, do exterior das esferas entre operários e patrões. Dessa forma, para se criar uma organização de revolucionários profissionais, há que desaparecer a distinção entre operários e intelectuais e entre as várias formas de profissões estancadas, atomizadas e separadas das demais. 53 Em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, Lênin tece críticas sobre a falsa imparcialidade da ciência burguesa (oficial e liberal), quando esta defende a escravatura assalariada, ao contrário do marxismo que declara guerra a essa sociedade fundada na exploração do trabalho alheio. Para Lênin, é pueril e ingênuo uma ciência “imparcial” pedir para os fabricantes serem imparciais em querer diminuir seus lucros para aumentar os salários dos trabalhadores. Partindo desse pressuposto, Lênin define o 52 53 LENIN, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, p. 20. Cf. LUKÁCS, Existencialismo ou Marxismo?, p. 183-184. 43 materialismo como a filosofia do marxismo, claro, criticando os equívocos do antigo materialismo (mecanicista, das ciências naturais). Ao desenvolver e aprofundar o materialismo filosófico, segundo Lênin, Marx fê-lo chegar ao seu fim lógico, estendendo do conhecimento da natureza ao conhecimento da sociedade humana. É por isso que Lênin declara que o materialismo histórico de Marx foi a maior conquista do pensamento científico; em outras palavras, se o conhecimento do homem reflete a natureza que existe independentemente dele, isto é, uma matéria em pleno desenvolvimento, então o conhecimento social do homem reflete o regime econômico da sociedade. 54 A questão teórica abordada por Lênin sobre “o conhecimento como uma aproximação” diz respeito à questão da relatividade do conhecimento no materialismo dialético. Quando Lukács afirma que, para Lênin, “A lei concreta não será jamais senão a aproximação da totalidade real, sempre móvel, incessantemente mutável em todos os sentidos infinita, que o pensamento não poderá jamais esgotar de uma maneira perfeita” 55, na verdade, ele quer dizer que os nossos conhecimentos são apenas aproximações da plenitude da realidade, logo relativos. São absolutos, quando representam a aproximação efetiva da realidade objetiva que existe independentemente da nossa consciência. Eis, portanto, a unidade dialética entre o caráter absoluto e relativo da consciência. Nessa perspectiva, a concepção de Lênin do conhecimento científico introduz a noção de “aproximação”. Dessa forma, conforme Lukács, O método marxista permite perfeitamente determinar se uma crise grave do capitalismo pode tornar-se fatal, em certas circunstâncias concretas, mas que a questão de saber se tal ou tal crise comporta uma saída, não poderia ser resolvida senão pela luta, pela ação prática das classes em presença.56 Daí a importância do método de Marx para o desenvolvimento teórico-prático dos trabalhadores no processo de sua emancipação. Não poderíamos deixar de tocar na questão da totalidade quando explicitamos o modo marxiano de abordar a realidade, pois como nos relata Lukács, uma análise da relação entre o absoluto e o relativo requer que o conhecimento apreenda e estude seu objeto de todos os ângulos, sob todos seus aspectos. Mandel aponta essa questão, quando explicita a dialética do conhecimento: conteúdo e forma, causas e efeitos, geral e particular, relativo e absoluto; para ele, é preciso compreender que a existência possui uma infinidade de situações transitórias, em movimento, que é a unidade da continuidade e descontinuidade e, nesse sentido, as coisas 54 Cf. LÊNIN, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, p. 73-74. LUKÁCS, op. cit., p. 233. 56 Ibid., p. 236. 55 44 são relativas ou, melhor dizendo, “é preciso relativizar a reletavidade”57 A categoria da totalidade hic et nunc (nestas circunstâncias) reflete relações reais, ou, como diz Marx, as condições de produção de toda a sociedade formam um todo, ou melhor ainda, deve encontrar-se o todo em cada uma das coisas e cada uma das coisas deve ser encontrada no todo. A categoria totalidade quer aí significar, por um lado, que a realidade objetiva é um todo coerente, onde seus elementos se relacionam um com outro, e, por outro lado, que tais relações formam, na realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligadas entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas. Determinar o lugar do fenômeno que tomamos como objeto de estudo no interior de uma totalidade concreta da qual faz parte, é o objetivo do conhecimento dialético marxista. Podemos, então, perceber que toda essa discussão teórica visa combater o solipsismo, o racionalismo e o irracionalismo moderno que escamoteavam a realidade objetiva. Lênin, segundo Lukács, teve um empenho teórico fundamental de pôr a questão do sujeito do conhecimento, ligado a sua atividade prática como ponto central da sua teoria do conhecimento, ou seja, fez da atividade prática o critério decisivo do conhecimento e, assim, coloca as questões mais relevantes da teleologia sob um prisma inteiramente novo. É nessa perspectiva que somente o materialismo dialético tem condições de explicar como a atividade essencial do homem – o trabalho produtivo – se transforma, a partir da prática consciente da conquista da natureza, em formas abstratas do pensamento. Tal abstração não é um produto do espírito, mas manifestação das ações e das interações reais presentes nos fenômenos concretos do mundo real. É por isso que Lukács nos adverte, no final da obra Existencialismo ou Marxismo?, que ter um conhecimento mais próximo da realidade (inesgotável) suscita o homem completo que reencontrou sua totalidade. A teoria leniniana, para Lukács, mostra um caminho seguro para reconquista da totalidade humana, quando demonstra que o conhecimento é inseparável da prática humana e do trabalho, ratificando, portanto, que a teoria leniniana do conhecimento (que reconhece a existência objetiva real) é uma brilhante manifestação do humanismo combativo que engaja os homens na luta, no conhecimento e na conquista do mundo e que trabalha para fazer nascer o homem novo numa totalidade humana reencontrada. Ora, se a consciência geral do homem é somente a figura teórica daquilo cuja figura viva é a própria comunidade, então o homem confirma sua consciência na existência, justamente porque a atividade ideal é a sua atividade social. O homem, portanto, tem um 57 MANDEL, Introdução ao Marxismo, p. 248. 45 caráter social e a existência teórica do homem é uma existência enquanto social. O trabalhador como figura ontológica do capitalismo reflete essa forma de consciência social que o repõe como homo faber no cotidiano da exploração laboral capitalista. Compreender a sua posição nessa totalidade histórica da exploração capitalista exige do trabalhador a ruptura com os modos de conhecimentos da realidade, baseados no puro subjetivismo e no puro objetivismo, ou seja, o rompimento com o teoricismo e empirismo grosseiros. A dialética então, é uma teoria, um instrumento do conhecimento, mas na sua forma materialistamarxista, ela é definida, conforme Mandel, como a teoria do conhecimento do proletariado, submetida a uma prova implacável, a prova prática, da experiência. Isso não reduz de modo algum o caráter objetivamente científico da dialética enquanto lógica do movimento, das contradições e da totalidade, pois, como diz Lênin, “A verdade é sempre concreta”, ou Hegel, “O verdadeiro é a totalidade”. Nesse sentido, se o método marxista de apreensão da realidade tem um fundamento teórico-prático imprescindível para a análise histórica dos trabalhadores, então tomá-lo como instrumento de transformação e revolução social é algo imperativo. Como diz Lukács, “O método dialéctico de Marx tem por objetivo o conhecimento da sociedade como totalidade” 58 ou, ainda, [...] o que há de fundamentalmente revolucionário na ciência proletária não é apenas o facto de opôr à sociedade burguesa conteúdos revolucionários, mas sim, em primeiro lugar, a essência revolucionária do próprio método. O reino da categoria totalidade é o portador do princípio revolucionário da ciência59 A importância do método de Marx como instrumento de análise para a classe trabalhadora se dá, sobretudo, pela sua capacidade de apreender o real nas suas contradições, na sua totalidade histórica, pois a contradição, como nos diz Engels no Anti-Dühring, é a propriedade inerente à materialidade, principalmente, nas formas superiores de movimento da matéria, em particular, na vida orgânica e na sua evolução; a contradição contém o germe da negatividade enquanto suprassunção (negação da negação ou superação conservante), e o movimento (histórico) é uma contradição (uma luta entre contrários), uma sucessão contínua de contradições presentes nas coisas, nos fenômenos, isto é, uma força efetiva. Se o trabalho assalariado é a expressão máxima da contradição capitalista, sua figura onto-histórica, o trabalhador, é o princípio ontológico de negação daquilo que o nega humanamente. Sendo assim, o método de conhecimento de Marx é condição sine qua non para que o proletariado, enquanto classe organizada politica e ideologicamente, possa apreender os processos 58 59 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 38. Ibid., p. 41. 46 históricos e as tendências evolutivas do capitalismo, buscando superar os antagonismos que se lhes impõem. Nas palavras de Lukács, “A força e a superioridade da verdadeira consciência prática de classe reside justamente na capacidade de perceber, por detrás dos sintomas dissociadores do processo económico, a sua unidade como evolução de conjunto da sociedade.”60 Eis, portanto, a relevância do método de Marx para apreensão e exposição da realidade na sua essência e não simplesmente na sua pura aparência. 1.2 O Trabalho como Fundamento da Realidade Social Partimos do pressuposto de que o trabalho é uma atividade inalienável do homem, condição de sua perpetuação enquanto espécie humana ou ser genérico, social. “O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem, – quaisquer que sejam as formas de sociedade, – é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana.” 61 Esta proposição de Marx em O Capital nos dá a confirmação de que o trabalho é algo irrevogável hoje na sociedade complexa, com as suas múltiplas e infinitas necessidades, das quais algumas perecem, outras permanecem e novas aparecem, a partir do desenvolvimento das forças produtivas, juntamente com a evolução das relações sociais de produção. O próprio Engels – criticando Adam Smith que concebe o trabalho apenas como dispêndio de força de trabalho, isto é, como sacrifício do ócio, da liberdade e da felicidade – entende o trabalho como uma função normal da vida. 62 Não é à toa que Marx, já na A Ideologia Alemã63, afirma que o trabalho é o único laço que une os indivíduos ainda às forças produtivas e à sua própria existência, mas o trabalho não é mais a manifestação dos próprios indivíduos na sociedade capitalista, sua exteriorização ou objetivação consciente e voluntária, e sim uma atividade que desrealiza o próprio indivíduo, à medida que só mantém sua vida degenerando-a, quer dizer, limitando a existência humana à sua pura sobrevivência física natural. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos64, o trabalho aparece (positivamente) como atividade vital, vida produtiva do homem, logo é uma atividade criativa e consciente, diferente da do animal que é a sua própria atividade vital. Estes são, certamente, os pressupostos teóricos marxianos mais importantes que reafirmam o trabalho como condição sine qua non de efetivação da vida humana em 60 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 89. MARX, O Capital, v. I, p. 50. 62 Cf. Ibid., v. I, p.54, nota 16. 63 Cf. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 82. 64 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 164-165. 61 47 sociedade, ou seja, condição eterna de realização da troca metabólica entre o homem e a natureza e entre os próprios homens no seu processo (re)produtivo. Nesse sentido, tais pressuposições são elementos reflexivos inelimináveis para se contrapor aos modismos teóricos que tentam forjar “um Marx” que nega totalmente o trabalho, em seu sentido universal, para fundamentar a ideologia da “sociedade sem trabalho” ou do “ócio absoluto”, isto é, para se opor aos ideólogos que limitam a reprodução social a uma tarefa puramente tecnológica, baseada num total automatismo do trabalho. Dessa forma, o presente texto pretende explicitar a concepção marxiana de trabalho em suas obras clássicas, sobretudo, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos e em O Capital, para saber como Marx apresenta o caráter positivo e negativo do trabalho. Nesta obra juvenil de 1844, essas pistas positivas do trabalho podem ser obtidas a partir de uma releitura do Manuscrito – “Trabalho Alienado ou Estranhado” –, fazendo, portanto, uma leitura inversa do “trabalho estranhado”, ou seja, como seria o “trabalho não-estranhado”; como também na sua obra maior, O Capital, em que ele apresenta tais caracteres – positivo e negativo – apontando a sua superação numa forma social superior onde o trabalho se resgata enquanto atividade vital prazerosa e criativa do ser humano na sociabilidade comunista. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx nos fornece “nas entrelinhas” uma concepção positiva do trabalho a partir da sua exposição negativa do trabalho, ou seja, o trabalho seria, nesse sentido, o oposto do trabalho estranhado, na forma de objetivação enquanto alienação positiva humana. Fazendo a crítica do “trabalho alienado” ou “estranhado”, Marx nos dá os elementos intrínsecos e fundamentais, presentes no seu discurso, contra a forma de alienação da atividade prática, para uma concepção superior de trabalho. Todavia, toda a reflexão marxiana nos Manuscritos parte de um fato econômico contemporâneo, a saber, as condições do trabalho a partir da propriedade privada capitalista. Mas, de forma negativa, Marx descreve a condição laboral do trabalhador da seguinte maneira: O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto o maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção directa a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias, produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens.65 Se fôssemos inverter essas asserções, poderíamos dizer que o trabalhador torna-se tanto mais humanamente rico, quanto mais riqueza produz (racionalmente) para toda a sociedade, quanto mais a produção aumenta em poder e extensão, para haver uma equitativa 65 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 159. 48 distribuição com todos os trabalhadores sem haver a escassez, porque ninguém poderá mais se apropriar do trabalho alheio de forma extorquida. Com a não supervalorização do mundo das coisas, a valorização do mundo dos homens se efetivaria, pois o homem, deixando de ser mercadoria e/ou coisa, tornar-se-ia um ser genérico, senhor de si mesmo e daquilo que produz, e não servo da sua atividade vital, do seu trabalho. O trabalho livre das condições da alienação capitalista, isto é, dessa forma perversa de “apropriação” enquanto alienação, mas sob uma nova forma de associação produtiva, realizaria o homem como ser construtorvolitivo da sua vida social. Em outras palavras, o trabalho realizaria o trabalhador, a objetivação tornar-se-ia ganho e/ou assenhoreamento do objeto e a apropriação seria a própria recompensa do ato teleológico. McLellan cita um trecho dos Manuscritos EconômicoFilosóficos que representa para ele uma espécie de contrapartida positiva à descrição do trabalho alienado, senão vejamos na íntegra: Suponhamos ter produzido enquanto homens: cada um de nós teria, em sua produção, afirmado duplamente a si mesmo e ao outro. Eu teria: 1) objetivado, em minha produção, a minha individualidade e a sua peculiaridade, e teria assim desfrutado, no curso da atividade, de uma manifestação individual da vida, assim como, ao contemplar o objeto, teria desfrutado da alegria individual de experimentar a minha personalidade como objetual, sensivelmente visível, e, portanto, como uma potência elevada acima de qualquer incerteza; 2) na tua fruição ou utilização do meu produto, eu teria imediatamente a fruição consistente na consciência de ter satisfeito com o meu trabalho um carecimento humano e, portanto, de ter objetualizado a essência humana, e de ter assim proporcionado um objeto adequado a satisfazer o carecimento de um outro ser humano; 3) de ter sido para ti intermediário entre tu e o gênero e, portanto, de ser entendido e sentido por ti mesmo como uma integração do teu próprio ser e, como tal uma parte indispensável de ti mesmo; de saber-me, portanto, confirmado tanto em teu pensamento quanto em teu amor; 4) de ter colocado imediatamente em minha manifestação individual de vida a tua manifestação de vida, e, portanto, de ter confirmado e realizado imediatamente na minha atividade a minha verdadeira essência, a minha essência comum e humana.66 Contudo, é o fato econômico contemporâneo o ponto de partida da reflexão marxiana. Marx assinala que o objeto produzido pelo trabalho se lhe opõe como ser estranho, como um poder independente do trabalhador. Ora, reverter essa situação de servidão ao trabalho capitalista suscita que a produção seja um ato em que o produtor se reconheça no ato laboral e no produto laborado, como algo realizado pela própria vontade criativa, consciente e livre. Assim, o trabalhador se realizaria no trabalho, porque sua atividade seria prazerosa, sobretudo, porque o objeto que produz lhe pertenceria, já que tudo produzido pela/para a sociedade é produzido para saciar o próprio indivíduo, logo uma pertença social garantida. O 66 MARX. Karl. Estratos de “Elementos de Economia Política” de James Mill. In: Opere apud MCLELLAN, David. A concepção materialista da história. In: HOBSBAWM, Eric J. História do Marxismo I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 80. 49 indivíduo seria então um ser social integrado, incluído, associado laborialmente e, portanto, “comunizado”. Entretanto, os aspectos positivos do trabalho na reflexão de Marx, a partir dos Manuscritos, se revelam quando ele coloca o trabalho como o demiurgo da evolução da história humana, quer dizer, quando o trabalho realiza a segunda natureza humana, transformando a própria natureza, o homem e tudo que o rodeia. “Homem-NaturezaTrabalho” forma o tripé dessa ontologia social; sua inter-relação permite que o mundo natural seja humanizado pela conjugação do cérebro, das mãos, dos nervos etc. (trabalho intelectual associado ao trabalho manual) na recriação do mundo, onde a tecnologia seria o quarto componente desta intrínseca relação: Natureza, Homem, Trabalho e Tecnologia (como anota Ricardo Antunes).67 A objetivação realizada pelo trabalho é vida humana cristalizada nos objetos produzidos. Neste sentido, o trabalhador poderia produzir sob o domínio da vontade, da liberdade e da subjetividade, a partir de um ato teleológico, consciente e livre, para satisfazer suas necessidades. No entanto, essa relação vertical ou hierárquica entre o homem e a natureza, enquanto aquele dominador e esta dominada, precisa transformar-se numa relação simétrica, horizontal, na qual a natureza deixe de ser coisa para ser outro ser, e o homem como mediador ecossocialista desta nova relação. Ou, como mesmo diz Marx, “O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo externo sensível. Este é o material onde se realiza o trabalho, onde ele é activo, a partir do qual e por meio do qual produz as coisas.” 68 Se há quatro aspectos negativos sobre as formas de estranhamento que Marx ressalta no texto “Trabalho Alienado” – alienação do produto do trabalho, estranhamento no próprio ato de trabalho, a autoalienação (alienação do homem de si mesmo) e a alienação do homem em relação aos outros homens –, então podemos extrair quatro aspectos positivos do trabalho nesse mesmo texto. Senão vejamos: numa relação social na qual o trabalho seja a efetividade de relações sociais produtivas justas, quer dizer, onde não exista a exploração do trabalho humano, 1) o produto do trabalho humano não pertencerá a uma única pessoa, mas a toda sociedade; 2) o trabalho não será trabalho forçado, mecânico, desprazeroso e estranhado, e sim, trabalho livre, criativo e associativo, em que o homem dominará o processo de produção e não a produção dominará o processo de trabalho humano; 3) o homem tornar-se-á ser genérico, não animalizado, ou seja, em que o trabalho “não-alienado” restituirá sua condição de vida enquanto espécie da vida genérica, e não manter sua vida como espécie animal que 67 Cf. ANTUNES, Ricardo L. C. Adeus ao trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. São Paulo, SP: Cortez, 2010. 213p. 68 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 160. 50 trabalha apenas para manter sua atividade vital, sua existência física. O homem tornar-se-á então um ser universal e genérico, quer dizer, livre e consciente de si e para si; e, por fim, 4) o homem não será apartado dos outros homens, no sentido de que o outro é um ser estranho e hostil, mas um ser “igual”, a saber, suprime-se a oposição entre os homens enquanto homens antagônicos ou competidores entre si, mas efetivam-se homens colaboradores, cooperativos. Desta feita, convertendo as palavras de Marx, a atividade prática do homem (o trabalho), numa sociedade de produtores associados, será fonte de gozo e de prazer; o objeto produzido será resultado da ação volitiva do seu processo criativo, útil, servil às suas necessidades, isto é, o “homem criador” será o senhor de seu produto e o “objeto criado” será servo de seu produtor, propriedade deste; o corpo humano, a natureza, a vida intelectual e a vida humana não serão mais alienadas pelo processo de trabalho estranhado, porque o homem restituirá a si sua vida genérica enquanto condição de recomposição de sua individualidade humana; e a relação entre os homens deixará de ser uma relação entre estranhos e/ou coisas, entre seus objetos de permuta, para ser uma relação de cooperação (troca de atividades), de solidariedade, de convivência entre indivíduos socialmente “iguais” na diversidade de suas singularidades. Desta forma, a “hostilidade”, o “domínio fetichista” e a “estranheza” presentes nestas formas de relações de produção desaparecerão, se abolirmos os fundamentos que impedem a emancipação da sociedade, isto é, a propriedade privada e o trabalho estranhado. Como bem disse Marx, Da relação do trabalho alienado à propriedade privada deduz-se ainda que a emancipação da sociedade quanto à propriedade privada, à servidão, toma forma política da emancipação dos trabalhadores; não no sentido de que somente está implicada a emancipação dos últimos, mas porque tal emancipação inclui a emancipação da humanidade enquanto totalidade, uma vez que toda a servidão humana se encontra envolvida na relação do trabalhador à produção e todos os tipos de servidão se manifestam exclusivamente como modificações ou consequências da sobredita relação.69 Se para Marx a emancipação da humanidade tem como condição a emancipação dos trabalhadores da servidão do trabalho estranhado/abstrato, das formas de produção capitalista das quais este trabalho é o motor de seu desenvolvimento, então urge ao próprio trabalhador abolir a forma de trabalho assalariado que sustenta a forma de organização privada da sociedade capitalista. A “positividade” do trabalho, agora, alienado, numa outra dimensão reflexiva, está no fato de que o trabalhador enquanto escravo deste trabalho é o único sujeito histórico que poderá abolir essa condição servil, a partir do não reconhecimento do senhor capitalista como proprietário da sua força de trabalho, de parte do seu tempo de vida e da 69 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 170. 51 riqueza social produzida por ele. Só o “escravo assalariado” pode se rebelar contra o seu senhor (dono do dinheiro/capital), como diz Hegel, na “Dialética do Senhor e do Servo” na Fenomenologia do Espírito. A relação entre a propriedade privada burguesa e a propriedade genuinamente humana, como ilustra Marx, é uma relação antagônica de cooperação forçada que se desdobra em múltiplas outras relações, ou, melhor expressando, a relação do trabalhador com seu ato de trabalho e com o objeto produzido pelo seu trabalho como uma relação estranha, hostil e de fetiche do objeto; a relação do trabalhador com sua condição (des) humana na qual ele não se reconhece como um ser genérico, dono de seu trabalho e do produto do seu trabalho, dono de si mesmo, a saber, a sua autoalienação; a relação estranha e antagônica do trabalhador com o comprador da sua força de trabalho. Por outro lado, Marx apresenta a relação do “não trabalhador” (do capitalista) em relação ao trabalhador, ao trabalho e ao produto do trabalho como uma relação de propriedade absoluta sobre os mesmos. O grau denunciativo da perversidade da propriedade privada burguesa exposta nesse Manuscrito de 1844 revela como a aparência do sistema de reprodução capitalista escamoteia a falsa troca de equivalência entre o salário e a força de trabalho, cuja essência “não manifesta” é a produção de mais-valia (trabalho não pago). A igualação dessa forma de troca vela o grau de exploração capitalista efetivada nesta forma de trabalho alienado/explorado. Entretanto, Marx em O Capital, embora apresente o caráter positivo do trabalho ou a irremovibilidade dele em qualquer forma social, demonstra como o trabalho concreto/útil, sob a forma imperceptível de trabalho abstrato70, engendra mais-valia (absoluta e/ou relativa), lucro, e daí, valor. N’O Capital, capítulo 1 “A Mercadoria”, Marx levanta a questão do duplo caráter da mercadoria como “valor de uso” e “valor de troca” ou “valor”, e também o duplo caráter do trabalho, isto é, como “trabalho concreto ou útil” e “trabalho abstrato”. Porém, o trabalho, nessa reflexão, tem a teleologia de ser a atividade social inextinguível que visa a satisfazer as necessidades humanas, e isso é algo inalienável na história da produção material do homem. Este, para sobreviver e/ou existir, consome, e só faz isso, porque alguma coisa lhe é útil ou tem utilidade para si. Como Marx afirma, “O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o 70 Ruy Fausto aborda a questão do trabalho abstrato e do valor em Marx, a partir dos seus críticos como Lefort e, sobretudo, Castoriadis que entende que Marx oscila na questão da teoria valor-trabalho, ou seja, se o valortrabalho já está pressuposto ou posto na fase pré-capitalista ou capitalista. Uma discussão que, no final, Ruy Fausto conclui como uma leitura débil de Castoriadis sobre o valor e trabalho abstrato em Marx, principalmente, do capítulo 5 do tomo I de O Capital. Ver a respeito Ruy Fausto, Marx: lógica e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, tomo I, p. 89-138. 52 consumo. Os valôres-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela.”71 Em outras palavras, “valores de uso” pressupõem trabalho humano, troca dos objetos produzidos pelos diferentes trabalhos e, sobretudo, diversas necessidades humanas que buscam bens para saciação, pois, se não há carência humana por determinados produtos que satisfaçam as necessidades humanas, tais objetos não têm utilidade social, logo não serão produzidos. Entretanto, quando Marx analisa a “mercadoria”, extraindo seu caráter de “valor de uso”, ele aponta uma outra propriedade que lhe é inerente, ou seja, a de ela ser produto do trabalho. As mercadorias, ou os produtos do trabalho humano, têm uma substância comum que é o trabalho humano corporificado. E é aí que Marx vai distinguir o duplo caráter do trabalho presente na mercadoria, a saber, “trabalho concreto” e “trabalho abstrato”. A conceituação desses pares categóricos leva Marx a enfatizar como um bem produzido socialmente que, se antes visava a satisfazer a necessidade social da família, grupos sociais, estamentos etc., torna-se a posteriori, com o desenvolvimento social, um objeto de troca mercantil, cuja finalidade é o entesouramento de uma classe e o empobrecimento de outra, isto é, da burguesia e do proletariado. É essa trama da produção material humana, sob o domínio e o controle do modo de produção capitalista, que Marx vai desvendar e denunciar como uma forma de exploração de trabalho humano, escamoteada pela ideologia da naturalidade do sistema de produção de mercadorias, ou melhor, pelos economistas clássicos como Adam Smith, David Ricardo, dentre outros. Se os diferentes trabalhos são trabalhos concretos particulares, porque visam produzir valores de uso, bens úteis, que satisfaçam as necessidades humanas, então, se abstrairmos o seu caráter útil, desaparecendo, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, sobra-lhe apenas ser trabalho humano abstrato que põe valor nas coisas produzidas. Para analisar a magnitude do valor de um objeto, Marx expõe os elementos constituidores desse valor, isto é, a quantidade de trabalho corporificado no objeto e o tempo de trabalho necessário para a sua produção. É preciso deixar claro que quase todo trabalho concreto, na sociedade capitalista, é trabalho abstrato e é este que confere a grandeza de seu valor. Um valor de uso ou um bem só possui valor, segundo Marx, se está cristalizado nele trabalho humano abstrato. E, para medir essa grandeza de valor, é necessário perceber a quantidade de trabalho, ou o tempo de trabalho nele materializado, quer dizer, a quantidade de trabalho mede-se pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho, por frações de tempo, como 71 MARX, O Capital, v. I, p. 42. 53 hora, dia, mês etc. Por outro lado, conforme Marx, o trabalho, como a substância dos valores de uso, é trabalho humano homogêneo, dispêndio de idêntica força de trabalho. Mesmo que toda força de trabalho na sociedade seja força de trabalho única, ela se constitui de inúmeras forças de trabalho individuais. Daí Marx definir a força média de trabalho a partir de um tempo médio de trabalho socialmente necessário para produzir uma determinada mercadoria. “Trabalho” e “Tempo” são assim duas categorias-chave inseparáveis na reflexão marxiana em O Capital, para se compreender como se dá a magnitude do valor, isto é, a partir da quantificação desse tempo e da qualificação desse trabalho. Diz Marx, “O que determina a grandeza de valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor-de-uso.”72 Sabemos que a produtividade trabalho é determinada por vários fatores tais como a destreza média dos trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a organização social do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e, claro, as condições naturais. Tais condições podem determinar a maior ou menor produtividade num determinado tempo e o maior ou menor valor de um produto, seja direta ou inversamente. Contudo, é fundamental discriminar melhor estas duas categorias – trabalho concreto e trabalho abstrato – de forma mais sistemática. Marx, na seção 2, “O Duplo Caráter do Trabalho Materializado na Mercadoria”, afirma que o trabalho concreto é aquele cujo produto é valor de uso e, nesse sentido, ele associa o trabalho concreto a seu efeito útil. O exemplo do casaco e do linho pode clarificar essa exposição, pois, sendo ambos os objetos valores de uso qualitativamente diversos, seus trabalhos concretos/úteis são também qualitativamente diferentes. Cada mercadoria, com seu valor de uso, é um trabalho útil particular, logo um trabalho concreto. Assim, o corpo de uma mercadoria é sempre a encarnação de trabalho humano abstrato, como também de um trabalho útil, concreto, quer dizer, o trabalho concreto torna-se a expressão do trabalho humano abstrato. Vale salientar que os valores de uso, as mercadorias, são conjunções de dois fatores: matéria fornecida pela natureza e trabalho. Logo, a relação metabólica do homem com a natureza e com o trabalho de outros homens é a condição fundamental da sua existência social, isto é, o trabalho é o fundamento da realidade social. Portanto, nas palavras de Marx, Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de fôrça humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de fôrça humana de 72 MARX, O Capital, v. I, p. 46. 54 trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valôres-de-uso.73 Desse modo, Marx ratifica o trabalho (abstrato) como dispêndio do cérebro, músculos, nervos, mãos etc., quer dizer, força humana de trabalho que atinge certo desenvolvimento para ser empregada de múltiplas formas. O trabalho humano é medido então pelo dispêndio da força de trabalho simples que qualquer homem comum tem em seu organismo, ou seja, dependendo dos países e/ou estágios de civilização de uma determinada sociedade, o trabalho médio simples muda de caráter. Sabemos, no entanto, que as mercadorias são trabalho humano cristalizado e, nesse sentido, elas se reduzem a uma abstração, a um valor. Todavia, a força humana de trabalho em ação só cria valor quando se cristaliza na forma de um objeto, pois, caso contrário, não cria valor. Daí a importância do trabalho abstrato, a “igualização” dos trabalhos, para criar o valor das mercadorias no sistema capitalista. Reduzir todo trabalho da sociedade a um trabalho social médio necessário à produção de um determinado produto é imprescindível para a determinação dos lucros e dos salários no capitalismo. É isso que vai definir o grau de subsistência do trabalhador e/ou o enriquecimento do capitalista. Desta forma, a riqueza material de uma sociedade é medida pela quantidade de valores de uso que ela produz, e, portanto, pela quantidade e qualidade do tipo de trabalho empregado conjuntamente com o nível de desenvolvimento das forças produtivas, isto é, os instrumentos de produção (tecnologia) e a organização social do trabalho. Na verdade, é o trabalho médio socialmente necessário que vai definir o padrão econômico de uma sociedade, porém, isso não quer dizer que esse padrão seja homogêneo em toda sociedade, sobretudo, numa sociedade de classes com interesses antagônicos, na qual alguns se beneficiam mais que outros com o resultado da produção da riqueza social. Diz Marx, por conseguinte, que em todos os estágios sociais, o produto do trabalho é valor-de-uso, mas somente a partir de um determinado período do desenvolvimento histórico é que o trabalho, realizado na produção de uma coisa útil, trabalho despendido, transforma o produto do trabalho numa mercadoria. E, assim, Marx demonstra o caráter misterioso da mercadoria na seção “O fetichismo da mercadoria” 74. Fazendo então uma digressão, o caráter misterioso da mercadoria esconde os trabalhos sociais úteis nela encarnados. Em primeira mão, Marx afirma que a mercadoria parece algo trivial, algo compreensível, no entanto, vê nela algo de muito estranho, com sutilezas metafísicas e até argúcias filosóficas. Como valor de uso, a mercadoria não tem nada de 73 MARX, O Capital, v. I, p. 54. Sobre essa discussão do caráter misterioso da mercadoria, ver Ruy Fausto, Marx: lógica e política, tomo I, p. 103 ss. 74 55 misterioso, pois se destina a satisfazer as necessidades humanas, mas como produto da atividade humana, enquanto desgaste do cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. do homem, ela é dispêndio de energia humana. Porém, o caráter misterioso da mercadoria provém do disfarce da igualdade dos trabalhos humanos na forma de igualdade dos produtos dos trabalhos como valores. Em outras palavras, a medida desses valores se dá a partir da duração e do dispêndio da força humana de trabalho, tomando a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; e, por fim, à medida que as relações entre produtores tomam a forma de relação social entre os produtos do trabalho. Mas o que caracteriza, de fato, o mistério da mercadoria, segundo Marx, é o encobrimento das características sociais do próprio trabalho humano, como se fossem características materiais e propriedades sociais inerentes à própria mercadoria. O caráter misterioso da mercadoria é, na verdade, o ocultamento das relações sociais entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total; quer dizer, quando tais mercadorias refletem uma relação social à margem dos seus produtores, dissimulando o caráter social de trabalhos nelas cristalizado, pois é o caráter social do trabalho (estranhado e/ou alienado) que produz a mercadoria, possibilitando o seu fetichismo. Desta feita, é o conjunto dos trabalhos particulares que forma, em suma, a totalidade do trabalho social embutido nas mercadorias. Nessa discussão sobre o fetichismo da mercadoria, Marx sinaliza algumas outras reflexões relevantes sobre o trabalho social nela materializado. Primeiro, os objetos úteis se convertem em mercadorias (objetos de troca), por serem produtos dos trabalhos privados, pois o conjunto destes trabalhos forma a totalidade do trabalho social; segundo, os trabalhos privados, como componentes do conjunto do trabalho social, se intercambiam a partir da troca dos produtos de seus trabalhos; terceiro, as relações sociais dos trabalhos particulares aparecem como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, mas não como relações sociais entre os indivíduos e seus trabalhos; quarto, os trabalhos dos produtores manifestam duplo caráter social, isto é, de acordo com sua utilidade, buscam satisfazer determinadas necessidades sociais e, em seguida, a necessidade de seus produtores, se cada trabalho privado útil puder ser trocado por outro trabalho privado; por último, Marx complementa essa reflexão, ao dizer que os trabalhos úteis têm o caráter socialmente útil, quando é necessário à sociedade; e socialmente igual, quando tal igualdade dos diferentes trabalhos se dá na forma do valor, quer dizer, de valores de trocas. O trabalho como fundamento da realidade social, portanto, está presente nas várias reflexões marxianas, inclusive na seção “O fetichismo da mercadoria: o seu segrêdo”. Se é o tempo de trabalho a medida de valor dos valores de troca, se é a quantidade de trabalho 56 materializado no objeto que determina as proporções deste valor, então é o trabalho social médio ou socialmente necessário à produção de uma mercadoria qualquer que vai determinar o valor da troca dos produtos. Por isso, para Marx, a determinação da quantidade do valor pelo tempo do trabalho é um segredo oculto sob os movimentos visíveis dos valores relativos das mercadorias. Descobrir este segredo é destruir essa aparência de casualidade que reveste a determinação do valor das mercadorias produzidas pelo trabalho. Diz Marx, “os trabalhos particulares realizados independentemente uns dos outros, mas interdependentes, em todos os sentidos, como parcelas naturalmente integrantes da divisão do trabalho, são, de modo contínuo, ajustados às proporções requeridas pela sociedade.”75 Dessa maneira, as formas que transformam os produtos do trabalho em mercadorias, em meios de trocas, como pressupostos da circulação das mesmas, já possuem as formas naturais da vida social, antes mesmo de os homens apreenderem seu significado (já que consideram suas formas historicamente imutáveis). É a forma do mundo das mercadorias ou a forma dinheiro, segundo Marx, que dissimula o caráter social dos trabalhos privados entre os produtores particulares, em vez de evidenciar o caráter universal do trabalho como trabalho humano abstrato. Será o desenvolvimento de uma forma de trabalho superior a essa forma estranhada ou alienada de trabalho capitalista que vai devolver ao ser social a sua condição humana genérica. Marx já entrevê essa possibilidade histórica, quando – ao afirmar o desaparecimento do reflexo religioso do mundo, como conditio sine qua non para haver condições práticas das atividades cotidianas dos homens como relações racionais claras entre eles e entre eles e a natureza – diz que A estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material, só pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico, no dia em que fôr obra de homens livremente associados, submetida a seu contrôle consciente e planejado. Para isso, a sociedade de uma base material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, só podem ser resultado natural de um longo e penoso processo de desenvolvimento.76 Para encerrar essa discussão fetichista dos valores de uso, concluímos que a mercadoria, na sua aparência material, oculta as características sociais do trabalho, pois este, na sua forma estranha, é a substância ou fonte da riqueza social; em outras palavras, a mercadoria dissimula e ao mesmo tempo exprime a maneira social de um determinado trabalho realizado, isto é, encobre seu caráter de trabalho explorado. Marx, entrementes, em O Capital, no capítulo V – “Processo de trabalho ou o processo de produzir valores-de-uso” –, apresenta os componentes fundamentais do processo 75 76 MARX, O Capital, v. I, p. 83-84. Ibid., p. 88-89. 57 de trabalho que se inter-relacionam para efetivar um pôr teleológico, ou melhor, criar um objeto que seja pari passu (simultaneamente) valor de uso (objeto de consumo) e valor de troca (valor). Nessa reflexão, Marx ratifica o processo de trabalho como uma atividade humana imprescindível em qualquer estrutura social determinada. Para Marx, Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas fôrças. Põe em movimento as fôrças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jôgo das fôrças naturais.77 Não se trata, para Marx, das formas instintivas ou animais do trabalho, como na época do homem primitivo que usava sua força física instintivamente, mas de um trabalho exclusivamente humano, diferentemente da atividade do animal. N’A ideologia Alemã78, Marx já denota esse caráter diferencial, quando afirma que podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e por tudo o que se queira, mas o que os distingue mesmo dos animais é a forma de produzir seus meios de existência, pois, ao fazerem isso, produzem sua própria vida material. Com outras palavras, Marx diz que Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia (sic). Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que êle figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Êle não transforma apenas o material sôbre o qual opera; êle imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esfôrço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias fôrças físicas e espirituais.79 Estas duas citações anteriores, nessa seção de O Capital, confirmam o aspecto positivo do trabalho, quando Marx enfatiza o caráter teleológico e ontológico do trabalho na sociedade humana, sobretudo, quando ele diferencia a atividade vital do homem da do animal, na qual o primeiro produz sob o domínio da consciência e da liberdade, e o último, sob o domínio da pura necessidade instintiva. É impossível aos homens abrirem mão dessa condição laboral para se perpetuar e/ou se reproduzir como espécie/gênero humano, como ser social interdependente na complexa sociedade dita civilizatória. Desta feita, diz Marx, portanto, que 77 MARX, O Capital, v. I, p. 202. Cf. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 10-11. 79 MARX, loc. cit. 78 58 1) toda atividade adequada a um fim é o próprio trabalho; 2) a matéria a que se aplica o trabalho é o objeto de trabalho; e 3) os meios de trabalho é o instrumental de trabalho. Estes são os elementos, a seu ver, que compõem o processo de trabalho. “Trabalho”, “matéria-prima” e “instrumentos de trabalho” formam o tripé dessa teleologia humana que busca construir uma ontologia do ser social. Marx começa então a explicitar esses elementos que compõem o processo laboral que determina a condição ontohistórica do homem, ou seja, especifica a finalidade de cada um deles no processo da atividade humana adequada a um fim. Primeiramente, Marx expõe a diferenciação entre objeto de trabalho e matéria-prima, a saber, a matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem todo objeto de trabalho é matéria-prima; por conseguinte, Marx afirma que o meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre ele e o objeto de trabalho ou matéria-prima, quer dizer, é o processo de mediação teleológica que vai fazer com que o trabalhador ponha sua atividade em ação, id est, trabalhe; e, por último, revela a imanência do caráter teleológico e/ou ontológico do trabalho, dizendo que No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação, subordinada a um determinado fim, no objeto sôbre que atua por meio do instrumental de trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o produto. O produto é um valor-de-uso, um material da natureza adaptado às necessidades humanas através da mudança de forma. O trabalho está incorporado ao objeto sôbre que atuou. Concretizou-se e a matéria está trabalhada. O que se manifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto. Êle teceu e o produto é um tecido. 80 Desse modo, fica evidente que em todo o processo de trabalho, do ponto de vista do resultado ou do produto, meio e objeto de trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho produtivo. Sendo assim, o que diferencia as épocas históricas, conforme Marx, não é o que se produz, mas como e com que meios de trabalho os homens produzem ou, melhor dizendo, A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência encontrados e que eles precisam produzir. [...] O que eles são coincidem, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.81 São os meios de trabalho, portanto, que definem o desenvolvimento da força humana de trabalho, como também indicam as condições, nas quais se realiza o trabalho humano. Marx82 também reconhece que o grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma nação depende do grau de desenvolvimento alcançado pela divisão social do trabalho; e esta 80 81 82 MARX, O Capital, v. I, p. 205. (Grifo nosso). MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 11. Cf. Ibid., p.11-12. 59 divisão determina as relações dos indivíduos entre si no tocante à matéria, aos instrumentos e produtos do trabalho. Isso mostra como o caráter teleológico e ontológico do trabalho se realiza na história da humanidade. Por outras palavras, a maneira como os indivíduos manifestam sua vida revela o que realmente eles são, ou seja, o que eles são coincide com sua produção material. No entanto, discutindo sobre os fatores de produção – matéria-prima e instrumentos de produção –, Marx reflete sobre a relação entre trabalho vivo e trabalho morto, isto é, homem e máquina. Para ele, uma máquina que não serve ao processo de trabalho é inútil, além, claro, de ela ser também inutilizável por sofrer a deterioração do tempo pela ação destruidora das forças naturais. Mas é o trabalho vivo que põe a máquina em movimento, em ação, arrancando-a da inércia para produzir valores de uso ou valor, pois o trabalho é um processo de consumo, quer dizer, de consumo individual (consumo de produtos como meio de vida) e de consumo produtivo (consumo dos meios que põe a força de trabalho em movimento). A ênfase nesta reflexão marxiana sobre os elementos necessários ao processo de trabalho é a reafirmação da importância do trabalho como fundamento da existência humana, pois nessa mesma seção, um pouco mais adiante, ele reforça esse aspecto teleológico e ontológico do trabalho, dizendo que O processo de trabalho [...] é atividade dirigida com o fim de criar valôres-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a tôdas as suas formas sociais.83 Podemos inferir então que 1) o trabalho é uma atividade humana “inabolível” da sua existência histórica, pois é algo indispensável para o processo de perpetuação da humanidade, ou seja, ele é ontológico mesmo, à medida que “o trabalho se transmuta de ação em ser, de movimento em produto concreto”84; 2) que são as necessidades humanas (costumeiras ou novas) que determinam o processo da produção humana; e 3) que a produção social determina também tais necessidades. Esse jogo determinativo recíproco, portanto, é algo que se sobrepõe à própria vontade individual, porque esta fica refém de um fetichismo criado pelo próprio sistema da produção social. Vários são os qualificativos que Marx extrai da categoria trabalho no modo de produção capitalista. Isto ele faz no decorrer de toda a sua exposição do livro primeiro de O Capital. É, sobretudo, na explicitação da mais valia (absoluta e relativa) como processo de 83 84 MARX, O Capital, v. I, p. 208. Ibid., v. I, p. 214. 60 exploração do trabalho – que não só produz valores de uso, mas também valores de troca ou valor, ou seja, transforma capital em mais capital, – que Marx tipifica os trabalhos como: necessário e excedente, produtivo e improdutivo, abstrato e concreto, simples e complexo; como também faz a distinção entre trabalho e força de trabalho 85 (o grau de sua exploração). Embora tenhamos referido antes, en passant, às formas de trabalho abstrato, concreto, produtivo etc., não nos cabe aqui explicitar esses usos terminológicos em Marx, devido aos limites que esta investigação nos impõe. Porém, é interessante ressaltar a contradição entre trabalho produtivo e improdutivo 86 – que Mészáros explicita – como algo inerente ao antagonismo fundamental entre os interesses do capital e do trabalho, ou seja, tal contradição surge do caráter de exploração do próprio processo de trabalho capitalista e da necessidade de se encontrar uma forma de controle adequada à sua perpetuação, pois o capitalista para valorizar o capital, além de modernizar seus meios de produção com aquisição de novas máquinas ou instrumentos de produção, reorganiza o processo do tempo de produção do trabalho para evitar desperdício de tempo e matéria-prima, contratando uma espécie particular de assalariado (capatazes, foremen, overlookers contre-maîtres), isto é, fiscais dos trabalhadores que comandam o processo de produção em nome do capitalista. Seria, portanto, um trabalho de superintendência feito pelos trabalhadores, como faz o sistema toyotista japonês, pois, como diz Marx nos Grundrisse, “Riqueza é tempo disponível e nada mais [...]”87 Também seria importante tomar aqui, a partir dos Manuscritos EconômicoFilosóficos, uma questão conflitante que se efetiva como contradição e luta amarga entre dois sujeitos antagônicos na sociedade capitalista (o capital e o trabalho), ou seja, expor tout court a temática marxiana do “Salário do Trabalho”. Marx expõe nesse texto as péssimas condições de trabalho e salário do trabalhador, o perigo da união dos trabalhadores e sua proibição para evitar consequências penosas para a união dos capitalistas e, sobretudo, o porquê do salário baixo como conditio sine qua non para a acumulação capitalista. Entretanto, limitemo-nos à questão do valor do salário que Marx desmascara como uma falsa troca de equivalência entre o capital e o trabalho. 85 MARX, O Capital, v. I, p. 187: “Por fôrça de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades físicas e mentais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais êle põe em ação tôda a vez que produz valôres-de-uso de qualquer espécie.” Sobre esses conceitos de trabalho em Marx, ver a sucinta reflexão em OLIVEIRA, Jorge Luís de. Trabalho. In: Alienação, Trabalho e Emancipação Humana em Marx. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 93-126. 86 Cf. MÉSZÁROS, István. Contradição entre trabalho produtivo e não-produtivo. In: Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 617. 87 MARX, Grundrisse apud MÉSZÁROS, op. cit., p. 619, nota 15. 61 Assevera Marx que o capitalista toma como valor do trabalho ou preço do trabalho, o salário, ou seja, a compra de uma jornada de trabalho do operário. Mas o que é o salário? Vejamos. Marx, em Miséria da Filosofia, já se contrapunha a Proudhon que confundia a quantidade de trabalho, contido num produto, como retribuição ao valor do trabalho, ou seja, confundia a medida do tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria como a medida do valor do trabalho. Em outras palavras, para Proudhon, o salário é o custo de trigo etc., ou preço íntegro de todas as coisas, ou, melhor dizendo, a proporcionalidade dos elementos que compõem a riqueza. Para Marx, o salário é, ao contrário, o preço do custo de vida do trabalhador durante o trabalho, id est, o custo mínimo de reprodução da sua existência enquanto trabalhador (da sua família), como reposição do desgaste físico e mental com o mínimo de provimentos: alimentação, habitação, criação dos filhos (futuros proletários potenciais a se explorar) etc. Anota então Ruy Fausto mutatis mutandis que há uma ilusão na circulação capitalista, quando se parte da ideia de que o operário encontra o capitalista no mercado e lhe vende a sua força de trabalho. Na realidade, os dois são meros suportes do movimento do capital, (re) criados e reunidos neste movimento que denota uma falsa troca de equivalência entre dinheiro (salário) e força de trabalho (operário).88 O dinheiro que se apresenta na forma de salário é deveras trabalho extorquido do próprio operário, ou seja, ele mesmo labuta para pagar seu salário, seus mantimentos de sobrevivência humana enquanto trabalhador. Portanto, “o que o capitalista dá ao operário (à classe operária) em forma de salário é na realidade uma parte da riqueza criada pela própria classe operária. [...] A riqueza produzida por uma classe é sugada continuamente pelos representantes de uma outra classe [...]”89 Citando Balibar,90 Fausto declara sans phrases (sem rodeios) que a análise da reprodução faz desaparecer a aparência do contrato livre entre o operário e o capitalista que está no começo da reprodução. Compreender este processo equivale a dizer que o capital não é apenas apropriação do trabalho alheio, um poder de compra desse trabalho somente, mas uma forma inapropriada de se apropriar do trabalho alheio sem troca igual, equivalente, quer dizer, o capital se apropria 88 Sobre a ideologia da troca de equivalentes no capitalismo liberal e no tardo capitalismo em Habermas, Cf. MENEZES, Ana Maria Dorta de. Habermas: Indicações para uma reflexão sobre a crítica à centralidade do trabalho. In: Idem (Orgs.) et al. Trabalho, educação, estado e a crítica marxista. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p. 38 et seq. 89 FAUSTO, Marx: lógica e política, tomo I, p. 48. 90 Cf. Ibid., tomo I, p.49. Neste primeiro capítulo, Fausto coloca a questão dos dois sujeitos históricos principais do capitalismo – o capitalista e o trabalhador – como suportes deste sistema e analisa essa dialética, essa passagem entre os sujeitos e os predicados, componentes da transição do capitalismo para o socialismo, não enquanto uma negação abstrata tais como os discursos do entendimento, mas enquanto uma dialética que entende o predicado como sujeito plenamente ontológico (o homem é socialista), ou seja, o sujeito não mais negado pelo predicado, mas afirmado por este. 62 do trabalho sob a aparência da troca justa como resultado do livre contrato entre possuidores de mercadorias e nunca como uma expropriação contínua. Por isso, Fausto adverte – ao analisar a questão da segunda negação na reprodução – que [...] não se deve comparar salário e força de trabalho, isto é, uma mercadoria e uma soma de dinheiro que corresponde ao valor dessa mercadoria, deve-se comparar o valor em dinheiro que é transferido ao operário com o valor que ele produz. Ora, uma parte do valor que ele produz e que é apropriado é de qualquer modo compensado pelo fato de que há uma transferência de uma soma de dinheiro, que representa o mesmo valor, das mãos do capitalista às mãos do operário. É a maisvalia que aparece rigorosamente como trabalho extorquido, isto é, apropriado como todo valor criado, mas não compensado por um desembolso correspondente por parte do capitalista.91 Para Marx, “A mais baixa e a única necessária tabela de salários é aquela que prevê à subsistência do trabalhador durante o trabalho e a um suplemento adequado para criar a família a fim de que a raça dos trabalhadores não se extinga.” 92 Adam Smith – diz Marx – define o salário normal como o mais baixo, o mais compatível com uma existência bestial. Neste jogo da oferta e procura da força de trabalho, o trabalhador sempre sai perdendo, pois os preços de trabalho são mais estáveis do que os preços dos meios de subsistência, inversamente variando muitas vezes. Enquanto os lucros do capital podem ter uma variação mínima ou média entre os capitalistas, no caso dos trabalhadores essa variação é muito maior, promovendo a concorrência entre os próprios trabalhadores no mercado de trabalho. A descida e subida dos salários trazem algumas desvantagens para o trabalhador no sistema salarial capitalista. Os salários descem por causa da baixa procura de trabalhadores, e sobem quando aumenta o preço dos alimentos. Em anos baratos, o aumento dos salários ocorre devido à intensificação da busca por trabalhadores, e caem quando os preços das provisões diminuem. Dessa forma, preços dos salários e preços dos meios de subsistência se contrabalançam no jogo da acumulação capitalista. Assim o trabalhador, segundo Marx, não só luta pelos meios físicos de subsistência, mas luta também para (man)ter o trabalho, luta pela possibilidade e meios de realizar sua atividade. Percebemos então, em “Salário do Trabalho” (Manuscritos de 1844), elementos reflexivos que referendam o trabalho como o fundamento da realidade social: primeiro, à medida que a riqueza da sociedade diminui, o trabalhador sofre mais, porém, a classe dos proprietários ganha e acumula mais, podendo viver melhor que a classe trabalhadora que vive seu momento de declínio; segundo, quando a riqueza da sociedade começa a crescer, a situação favorece os trabalhadores, porque há justamente a competição entre os capitalistas 91 92 FAUSTO, Marx: lógica e política, tomo I, p. 191. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 101. 63 pela procura da força de trabalho, ou seja, a demanda por trabalhadores é maior do que a oferta (neste caso, porém, a subida dos salários implica excesso de trabalho entre os trabalhadores, pois para ganhar mais, os trabalhadores têm que trabalhar mais, subtrair seu tempo livre e realizar o trabalho extenuante, quase escravo, isto é, sua liberdade fica alienada a serviço da avareza do capital); terceiro, quando o país atinge o último grau possível de riqueza, provavelmente os salários do trabalho serão muito baixos, mas os lucros também, pois a competição por empregos crescerá absurdamente, provocando a redução dos salários e, também, a dos trabalhadores. Tendo em vista essas pressuposições, Marx não hesita em dizer que a miséria social é o objetivo da economia capitalista. Há, portanto, miséria progressiva do trabalhador numa situação decrescente da sociedade, miséria complicada numa situação em expansão e miséria estacionária na situação final. Está aí, nas palavras de Adam Smith – diz Marx –, o tipo de sociedade baseada na mercantilização do trabalho, cuja maioria não é feliz. Tomando o ponto de vista de A. Smith, de que todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador, porém este recebe somente uma parte mínima e absolutamente indispensável do produto, Marx denuncia o “ser-aí” do trabalhador como um ser inumano, enquanto classe escravizada, pois o trabalhador, impossibilitado de comprar tudo, é obrigado a vender a si mesmo e a sua humanidade. 93 Como consequência, diz Marx citando os economistas, o trabalho é o único preço imutável das coisas, pois está submetido às flutuações do mercado. Mesmo que a divisão do trabalho aumente o poder de produção do trabalho e a riqueza da sociedade, o trabalhador fica empobrecido e se transforma em apêndice da máquina que controla seu ritmo de trabalho, a partir de um tempo mínimo determinado pela produção (automação). De tal modo, Marx se apossa desses pontos de vista, justamente para retratar o quadro ontológico do trabalho na sociabilidade capitalista. Para Marx, “o trabalho em si, não só nas presentes condições, mas universalmente, na medida em que a sua finalidade se resume ao aumento da riqueza, é pernicioso e deletério, e que semelhante conclusão se tira do próprio argumento do economista, se bem que ele não preste atenção.”94 Por isso, para Marx, dependendo da situação social em que vive o homo faber, qualquer forma de privação que o ser humano possa ter é devido à condição da sociedade, do trabalho que esta sociedade realiza para se autorreproduzir. Se a sociedade tem uma situação progressiva, o declínio e o 93 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 107. No momento, não vamos abordar a ideologia da perda da centralidade do trabalho feita por um pensamento sociológico dominante, isto é, os ideólogos da sociedade sem trabalho que advogam o fim da teoria marxiana do valor ou crise do trabalho abstrato no capitalismo contemporâneo, cuja validade teórica, para eles (Habermas et al.), só tinha no capitalismo liberal do Séc. XIX estudado por Marx. Cf. DORTA DE MENEZES, Ana Maria (Orgs.) et al. Op. cit., p.37-48. 94 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 108. 64 empobrecimento do trabalhador é resultado do seu próprio trabalho e da riqueza produzida por ele, logo a miséria surge como corolário da essência do trabalho moderno. Se a sociedade vive uma condição de opulência, os trabalhadores vivem uma situação de miséria estacionária. No entanto, para ir além do nível da economia política, Marx põe duas questões ético-políticas: 1) Qual o significado da redução da maior parte dos homens ao trabalho abstrato no desenvolvimento da humanidade?; 2) Que erros cometem os reformadores que querem elevar os salários para melhorar a vida dos trabalhadores ou mesmo que consideram a “igualdade” dos salários como o fim da revolução social? O trabalho para economia política, segundo Marx, é a forma de atividade aquisitiva, pois ela concebe o trabalhador como simples animal, besta de carga, cujas necessidades se limitam às necessidades corporais. Uma nação que deseja desenvolver-se espiritualmente com maior liberdade, não pode ser vítima das suas necessidades materiais, escrava do corpo, pois o ser humano precisa usufruir da cultura e, para isso, necessita de tempo livre. Nesse sentido, a máquina, afirma Marx em O Capital, pode conceder tal tempo para o exercício do ócio, com menos esforço de trabalho a realizar, ou seja, para além do reino da necessidade, “começa o desenvolvimento das forças humanas com um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho.” 95 Todavia, não é isso que acontece, pois o que a máquina faz é bestializar o homo faber, tornando-o peça acessória de seu movimento. Isso elevou bastante os acidentes de trabalho e até mesmo a mortalidade do trabalhador, como também seu esgotamento físico e psíquico. Somente numa vida futura, tais forças brutas (as máquinas) poderão ser escravas e servas dos trabalhadores. A economia política, portanto, só vê o trabalho abstratamente como uma coisa, uma mercadoria que sobe ou desce seu valor de acordo com a variação da oferta e da procura de trabalhadores ou do desenvolvimento das forças produtivas. Trabalho é vida. E se não tem trabalho para trocar por alimento, o ser humano “morre”, diz Marx. Contudo, o trabalho como fundamento da realidade social, realizado no capitalismo, é apenas motor do fundamento de uma riqueza fetichista de uma classe social, a burguesa. Em As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem, Lukács analisa o caráter ontológico do trabalho no processo da formação social e do próprio indivíduo. Inicia a reflexão, afirmando que o marxismo raramente foi entendido como uma ontologia na história da filosofia, porém infere que há um elemento filosoficamente resolutivo em Marx que 95 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, v. VI, p. 942. 65 consiste no esboço de uma ontologia histórico-materialista para superar teorica e praticamente o idealismo lógico-ontológico de Hegel. Assim, a ontologia marxiana afasta-se da ontologia de Hegel, de todo o elemento lógico-dedutivo, como também de todo elemento teleológico no plano da evolução histórica. O ponto de partida para Marx, diz Lukács, não é dado pelo átomo (como nos velhos materialistas), nem pelo ser abstrato (como em Hegel), mas pela materialidade da realidade social. Para Lukács, todo o existente deve ser objetivo, ser sempre parte de um complexo concreto, logo a consequência é que o ser em seu conjunto é visto como processo histórico; e “as categorias” – como formas moventes e movidas – “são formas do existir”, “determinações da existência”. Isso não quer dizer que Marx subestimava a importância da consciência em relação à materialidade, pois ele compreendia a consciência humana como produto tardio do desenvolvimento do ser material. Isso é bastante explicitado em seu livro A Ideologia Alemã, onde surge o embrião do novo materialismo (marxista). Então, a base ontológica do pensamento é a realidade, quer dizer, a consciência reflete a realidade, e é sobre essa base que é possível intervir na realidade para modificá-la e, portanto, a consciência tem um real poder no plano do ser, ou seja, um poder ontológico efetivo. Mas para chegarmos a uma compreensão plausível do trabalho como fundamento da realidade social, faz-se necessário compreender essa ontologia do ser social desenvolvida por Lukács, expressado no parágrafo anterior. Anota Lukács “que um ser social só pode surgir e se desenvolver sobre a base de um ser orgânico e que esse último pode fazer o mesmo apenas sobre a base do ser inorgânico.”96 As formas simples do ser requerem formas preparatórias de passagem de um tipo de ser para outro. E é na forma de salto que isso ocorre, ou seja, entre uma forma simples de ser e o aparecimento real de uma forma de ser mais complexa qualitativamente nova, embora sua gênese não possa ser deduzida da forma mais simples. Salto, nesse sentido, quer significar aperfeiçoamento da nova forma de ser. O trabalho torna-se, a partir daí, a categoria ontológica fundante da realidade social, da condição do existir humano. Consoante Lukács, um determinado grau de desenvolvimento do processo de reprodução orgânica é imprescindível para que possa nascer o trabalho como base dinâmico-estruturante de um novo tipo de ser. Por outro lado, a essência do trabalho não se resume em os seres vivos competirem biologicamente com seu mundo ambiente para apenas se reproduzir, pois, ao fabricar seus produtos para saciar-se, o homem se aparta dessa condição existencial meramente biológica, justamente a partir de uma consciência a priori de 96 LUKÁCS, George. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: Temas de Ciências Humanas. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, nº 4, 1978. p. 3. 66 que ele tem de produzir algo. Como diz Marx, o homem projeta idealmente o que ele vai produzir, a saber: “O produto [...] é o resultado que no início do processo existia ‘já como representação do trabalhador’, isto é, de modo ideal.” 97 Portanto, a consciência tem um papel decisivo na delimitação materialista entre ser da natureza e ser social. Tanto o complexo da necessidade como o complexo da liberdade só adquirem verdadeiro sentido, sobretudo no plano ontológico, quando se atribui um papel ativo da consciência. O homem é um ser que dá respostas às suas problemáticas existenciais, pois toda atividade de trabalho é uma resposta à carência humana. Em outras palavras, o homem como ser que dá respostas, pari passu (simultaneamente) ao desenvolvimento social, generaliza, isto é, ele transforma em perguntas seus carecimentos e as possibilidades de satisfazê-los. Assim, resposta e pergunta são produtos imediatos da consciência que orienta a atividade. O homem, desse modo, funda e enriquece sua própria atividade. Nessa perspectiva ontológica, a necessidade material enquanto motor do processo de reprodução individual e social põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho. Assim, o trabalho é a condição fundamental para que haja o desenvolvimento superior da atividade humana, quer dizer, desenvolvimento dos próprios homens que trabalham. É a partir do trabalho que há a transformação consciente e ativa do mundo, ou melhor, o trabalho é, de facto, a expressão nova da peculiaridade do ser social, convertendo-se no modelo de uma nova forma de ser em seu conjunto. Na visão lukacsiana, portanto, o trabalho é formado por várias posições teleológicas que põem para funcionar séries causais. Diferenciando da causalidade, que, nesse sentido, representa uma lei espontânea em que os movimentos das formas de ser encontram a sua expressão geral, “a teleologia é um modo de pôr” – posição realizada sempre pela consciência – que pode movimentar apenas as séries causais. Nenhuma das filosofias anteriores reconheceu a posição teleológica como uma particularidade do ser social, pois elas se viam obrigadas a inventar um sujeito transcendente e/ou uma natureza especial, em que as correlações atuavam de modo teleológico, a fim de atribuir à natureza e à sociedade tendências de desenvolvimento de tipo teleológico. Numa sociedade, a maior parte das atividades, cuja totalidade é posta em movimento com origem teleológica, é feita realmente de conexões causais que não são de caráter teleológico. Dessa maneira, a práxis social, que tem o trabalho como modelo, possui então caráter contraditório. Mas, se por um lado, a práxis é uma escolha por alternativas, à medida que todo 97 LUKÁCS. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: op. cit., p. 4. 67 ser humano tem que escolher, por outro lado, o ato social aparece como uma decisão entre alternativas com relação a posições teleológicas futuras. Na verdade, a necessidade social só se afirma por pressão exercida sobre os indivíduos, objetivando orientar as decisões deles. Essa condição já foi expressa por Marx quando ele diz que os homens são forçados pelas circunstâncias a ter uma determinada ação, senão podem se arruinar. Isso está expresso por Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “os homens não fazem a história como a querem, mas a partir das circunstâncias com que se deparam”. Neste sentido, Lukács declara que, desta ineliminável condição humana na sociedade, surgem os problemas reais (complicados nas situações mais complicadas) do complexo chamado liberdade. Lukács ressalta, por conseguinte, as categorias de “valor” e “dever-ser” como categorias ontológico-sociais do homem. Tais categorias não se encontram na natureza inorgânica ou orgânica, em que, na primeira natureza, as mudanças de um modo de ser para outro não têm nada a ver com valores; e na segunda, o processo de reprodução é ontologicamente uma adaptação ao ambiente, onde pode ocorrer fracasso ou êxito. No trabalho, acontece o inverso, ou seja, “o ser-para-nós” do produto torna-se uma propriedade objetiva realmente existente que pode desempenhar suas funções sociais, isto é, caso o produto seja posto e realizado corretamente. Por isso, o produto do trabalho tem um valor (porém, em caso de fracasso, não o tem), à medida que tal objetivação do real do “ser-paranós” faça com que realmente possam nascer os valores. Portanto, o “dever-ser” possui o conteúdo teleológico que determina o comportamento social do homem, porque tal comportamento é determinado por finalidades sociais, e não por inclinações puramente naturais ou espontaneamente humanas. Entretanto, o que torna o trabalho essencial é que os movimentos e os homens que os realizam são dirigidos por fins determinados previamente e, neste sentido, todo movimento está submetido a um “dever-ser”. No processo global do trabalho, o sujeito realiza uma posição teleológica conscientemente, embora não esteja em condições de perceber todos os condicionamentos da própria atividade, ou, talvez, todas as suas consequências. Claro que o ato humano consciente pode se realizar, mesmo que ele não tenha um domínio total das circunstâncias em que está envolvido. Esta ineliminável situação nos coloca duas importantes consequências: primeiro, a dialética interna do constante aperfeiçoamento do trabalho, ou seja, quando o trabalho é realizado, seus resultados são observados e com isso aumenta a faixa de determinações cognoscíveis, tornando o trabalho mais variado e abarcando campos maiores de conhecimentos em extensão e intensidade; segundo, o processo de aperfeiçoamento do trabalho não elimina a incognoscibilidade do conjunto das circunstâncias, 68 pois esse modo de ser do trabalho desperta no homem uma sensação íntima de realidade transcendente. Assim sendo, o trabalho não é somente o modelo objetivamente ontológico de toda práxis humana, mas o modelo que serve de exemplo à criação divina da realidade, quer dizer, onde as coisas surgem como criação de um “ser onisciente” (o homem). Nessa perspectiva, o trabalho é então concebido como “um ato de pôr consciente” que pressupõe um conhecimento concreto das finalidades e dos meios determinados. O trabalho traz como uma de suas características ontológicas o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. Quando o trabalho se constitui ontológica e teleologicamente, ele chama à vida produtos sociais mais elevados. Quando a autonomia das atividades se dá, é por causa da separação entre o conhecimento e as finalidades e os meios no próprio trabalho concreto. Um exemplo ilustrativo é quando as ciências se tornam campos autônomos de conhecimento e de investigação. Ou como diz Lukács, Quanto mais universais e autônomas se tornam essas ciências, tanto mais universal e perfeito se torna o trabalho; quanto mais elas crescem, se intensificam etc., tanto maior se torna a influência dos conhecimentos assim obtidos sobre as finalidades e os meios de efetivação do trabalho.98 Isso demonstra que tal diferenciação entre os trabalhos e as ciências como seus suportes resulta no aperfeiçoamento da divisão do trabalho 99, a saber, uma consequência do desenvolvimento do próprio trabalho. No entanto, o que percebemos é que essa nova divisão social do trabalho fundamenta um modo de trabalho que estrutura a sociedade baseada na produção fetichista das mercadorias, a saber, o trabalho como suporte teleológico de uma determinada ideologia calcada no interesse antagônico das classes sociais que estruturam o sistema capitalista. Desse modo, o trabalho se confina numa unilateralidade finalística de executar interesses de uma única classe social, a que domina politica e economicamente numa sociedade. Daí os conflitos emergirem das contradições das modalidades de produção mais desenvolvidas como a capitalista. Isso envolve, de forma profunda, a totalidade da vida social, os sujeitos históricos que determinam a realidade social. Ao se tornarem conscientes desses conflitos de interesses classistas, os homens se inserem na luta por uma nova modalidade de sociedade, de ser social. 98 LUKÁCS. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: op. cit., p. 9. Sobre a temática da divisão social do trabalho, ver Karl Marx, La division del trabajo y las máquinas. In: Miseria de la Filosofia, p. 103-117; Manuscritos económico-filosóficos, p. 220-227; A Ideologia Alemã, p. 1213, 26-28,34,49,55,56,59,62,92; e Divisão do trabalho e manufatura. In: O Capital, v. I, p. 386-422. Há também outra discussão interessante, a partir de Benetti e Cartelier, sobre os trabalhos concreto e abstrato, trabalhos privados, independentes um dos outros, mas dependentes materialmente uns dos outros enquanto membros particulares da divisão do trabalho, embora cujo contexto reflexivo se situe na crítica da forma do valor. Ver a respeito Ruy Fausto, valor de uso, trabalho concreto, divisão do trabalho. In: Marx: lógica e política, tomo I, p. 145 et seq. 99 69 Lukács menciona, assim, a base sócio-ontológica da realidade humana. Sabemos que todo evento social é resultado de posições teleológicas dos indivíduos que é, em si mesmo, de caráter puramente causal. No entanto, sabemos que o processo global da sociedade é um processo também causal, com suas normatividades, embora não seja objetivamente direcionado para realizar determinadas finalidades. Apesar de alguns homens terem conseguido realizar seus objetivos, nem sempre os resultados produzidos não são os que eles previram anteriormente. Essa discordância interior entre as posições teleológicas e os seus efeitos causais aumenta com o crescimento e complexificação das sociedades e com a intensa participação dos indivíduos nas sociedades. Isso é naturalmente, conforme Lukács, resultado da contraditoriedade concreta. Lênin chamava isso de fator subjetivo, ou seja, um fator modificador e decisivo que resulta da reação humana em relação às tendências de movimento no processo histórico-social. A transformação interna e externa do ser social a partir do trabalho faz com que o homem deixe a condição de ser natural para tornar-se pessoa humana, ou melhor afirmando, o homem transforma-se de espécie animal em gênero humano, devido a determinado grau relativo de desenvolvimento. Isso é o resultado das séries causais que aparecem no conjunto da sociedade. Tal progresso é uma síntese das atividades humanas que se deu com o progresso econômico objetivo, mesmo que sob forma de conflitos sociais que lhe são inerentes. No desenvolvimento econômico realizado até hoje, podemos então apresentar três perspectivas evolutivas: 1) uma tendência de diminuir o tempo de trabalho necessário à reprodução dos homens; 2) o processo de reprodução tornou-se cada vez mais social (globalizado); e 3) o desenvolvimento econômico cria ligações qualitativas e quantitativas mais intensas entre as sociedades singulares (pequenas e autônomas). Na visão de Lukács, Marx extrai todas as consequências do desenvolvimento histórico a partir da sua teoria do ser e do devir; e faz a grande descoberta de que através do trabalho os homens se criam e se autocriam, advertindo, porém, que a história humana até hoje tem sido a pré-história da humanidade. Para Marx, uma autêntica história só começa com o comunismo ou com o estágio superior do socialismo. Isso quer significar que as relações sociais humanas vão ter uma base ontológica laboral superior a esta, ou seja, onde o trabalho humano deixará de ser mercantil, fetichista, para se tornar uma troca “de” e/ou “entre” atividades. Essa nova forma do ser social, essa vida comunitária baseada na inter-relação de atividades intercambiáveis, é a condição sine qua non para o desenvolvimento autêntico das energias humanas. A autêntica história da humanidade, portanto, é a do “reino da liberdade” que só pode 70 florescer sob a base do “reino da necessidade” (com uma nova base material de reprodução humana). É aí que a personalidade humana, sua individualidade sui generis, se consolida enquanto indivíduo livre, criativo e singular, pois é na coletividade que a verdadeira individualidade se manifesta plenamente. O desenvolvimento das capacidades ou a manifestação dos talentos naturais vai se diversificar cada vez mais para poder realizar o devir genuíno da personalidade humana. E, assim, só quando o trabalho enquanto “pôr teleológico” consciente e volitivo for completamente dominado pela humanidade, não sendo mais apenas um meio de vida, mas a primeira carência da vida, quando ele não for mais coercitivo, estranhado e desprazeroso, é que o homem terá aberto o caminho social da atividade humana como fim verdadeiramente autônomo, isto é, a realização da própria liberdade da humanidade autêntica em toda sua plenitude. 1.3 A Política: Consciência de Classe e Luta de Classes em Rumo ao Socialismo Sabemos que há formulações gerais acerca da política em diversos textos de Marx, embora de forma fragmentária e pouco sistematizada. Conforme Chagas 100, Marx participou intensamente da política, mesmo não sendo um militante ativista, e cita os episódios principais dos quais Marx participou ativamente ou apenas observou atentamente, escrevendo sobre os mesmos, tais como a Revolta dos Tecelões da Silésia (1844), a Revolução Alemã (1848) e a Comuna de Paris (1871). A partir desses três episódios históricos, Marx nos legou uma vasta produção teórica em que analisou, criticou e narrou tais momentos políticos, ou seja, as Glosas Críticas (sobre a Revolta dos Tecelões), Artigos da Gazeta Renana (sobre a Revolução Alemã) e A Guerra Civil na França (sobre a Comuna de Paris). Também escreveu outros textos que trataram da política como forma de emancipação universal da humanidade e aqui podemos citar Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questão Judaica, os Manuscritos Econômico-Filosóficos, A Ideologia Alemã, Manifesto do Partido Comunista, As Lutas de Classes na França, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, A Revolução e Contra-Revolução, O Capital e a Crítica ao Programa de Gotha que constituem, assim, as contribuições teóricas mais importantes para se compreender as matrizes e os fundamentos da reflexão marxiana sobre a política. Na verdade, quatro categorias, pelo menos, fazem parte desse desenvolvimento teórico-político de Marx que podem ser resumidas em Estado (político moderno), Sociedade Civil, Emancipação Humana e Socialismo. 100 Cf. CHAGAS, Eduardo Ferreira. A crítica à política em Marx. In: ADRIANA E SILVA SOUSA (Orgs.) et al. Trabalho, filosofia e educação no espectro da modernidade tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 67 et seq. 71 Iniciemos, então, a partir da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução (1843), onde Marx se coloca contra a tentativa de se aperfeiçoar o Estado e a política. Nessa exposição, Marx se contrapõe a Hegel que concebe o Estado como instância universal em que se diluem os interesses particulares da sociedade, mesmos os interesses antagônicos e conflitantes, ou seja, a família, a sociedade civil, a individualidade e a particularidade são amalgamadas no interesse universal de todos, a saber, numa entidade universal chamada Estado. O Estado é aí o sujeito determinante, o princípio fundante, e a família e a sociedade civil são predicados da ideia universal. Noutras palavras, o Estado é, para Hegel, a Razão Universal, a Ideia Absoluta, que contempla todos os interesses de classes sociais; o Estado é o mediador das diferentes vontades sociais. Para Marx, em contraste com Hegel, o Estado (burguês) é o grande fomentador da separação entre sociedade civil e sociedade política, quer dizer, ele aliena da sociedade civil o poder de decisão política para si, só que em benefício da classe que o domina economica e politicamente, isto é, a classe dominante da sociedade. Quando Marx afirma nesse texto da Introdução que o homem não é um ser abstrato que está fora do mundo e diz que “o homem é o mundo do homem, o Estado e a sociedade”101, ele assevera que a realidade social é o demiurgo das instituições que controlam o homem. O mundo é o próprio reflexo político e religioso do homem, isto é, do Estado e da sociedade, nos quais está inserido como ser social. Fazendo uma análise sobre o torpor da religião, como produto da sociedade em que o homem constrói uma história e uma felicidade ilusória, Marx anota que a miséria religiosa é a expressão da miséria real ou protesto contra a miséria real. A religião substitui, de certa forma, a política como consolo ao sofrimento humano, pois abolir a felicidade ilusória, patrocinada pela religião, é exigir impreterivelmente a felicidade real, na qual é construída a partir de uma ação política radical que possa abolir a condição social que precisa dessas ilusões, sejam elas políticas ou religiosas. Se o homem se livra dessas ilusões e reconquista a razão, a sua tarefa histórica se realiza, ao estabelecer a verdade deste mundo que é resgatar o homem da sua perda de si próprio e para si mesmo enquanto ser genérico, ser universal, ou, melhor dizendo, desmascarar a autoalienação humana tanto nas suas formas sagradas (religiosas) como não sagradas (econômicas), ou como mesmo diz Marx: “A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.”102 Em outras palavras, cabe agora fazer a crítica da política na forma como ela se desenvolve 101 102 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 77. MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 78. 72 historicamente na sociedade moderna, isto é, negar o nosso presente político (Marx fala aqui da Alemanha de 1843 que ainda não atingiu o ano de 1789 da Revolução Francesa) 103 que é “um facto poeirento no quarto das arrumações histórico das nações modernas.” 104 Parafraseando Marx, quando ele diz que é preciso declarar guerra à situação da Alemanha de sua época, porque está abaixo do nível da história e de toda a crítica, podemos inferir então que é preciso declarar guerra à situação do capitalismo contemporâneo que pôs a história do homem ao nível mais perverso e vil de sua condição humana. A situação socioeconômica em que o ser humano vive hoje, sob as rédeas da perversa estrutura metabólica do Capital, urge ser negada ou superada por outra situação histórico-social. O capital é o carrasco do homem (do planeta) como frisa Marx. Por outras palavras, Na luta contra esta situação, a crítica [anticapitalista] não é paixão da cabeça, mas a cabeça da paixão. Não é uma lanceta anatómica, mas uma arma. O seu alvo é um inimigo que ela procura, não refutar, mas destruir. É que o espírito de tal situação já foi refutado. [...] A crítica já não necessita de ulterior elucidação do seu objeto, porque já o entendeu. A crítica não é fim em si, mas apenas um meio; a indignação é o seu modo essencial de sentimento, e a denúncia a sua principal tarefa.105 Marx já demonstrava, portanto, que a humanidade precisava se afastar do seu passado, quer dizer, enterrar uma formação antiga para que outra nova possa nascer; é assim que tem que ser feito com os poderes políticos que sustentam uma formação histórica caduca. Não foi à toa que Marx fez a crítica ao presente político alemão. Para ele, no entanto, depois que a crítica se ocupar da moderna realidade social e política, colocando autenticamente os problemas humanos, faz-se necessário apreender o objeto a partir do próprio objeto, ou seja, no caso, apreender a relação da indústria ou do mundo da riqueza em geral com o mundo político é um dos problemas fundamentais dos tempos modernos. Nesse sentido, fazer rupturas com as condições políticas é sujeitar à crítica essas condições existentes, a saber, negar as circunstâncias políticas e jurídicas reais não apenas idealmente como fez a Alemanha no tempo de Marx, mas criar as condições práticas de efetivação desse Aufhebung histórico. Como ele mesmo diz, realizar a filosofia é realizá-la na prática, ou melhor, “Em política, os alemães pensaram o que as outras nações fizeram.”106 Criticando então o status quo do sistema político alemão, como expressão e consumação do antigo regime ou o espinho na carne do Estado moderno, Marx anota que o status quo da ciência política alemã é a expressão da própria imperfeição do Estado moderno 103 Cf. MARX, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 79. MARX, op. cit., p. 79 105 Ibid., p. 80. 106 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 85. 104 73 em si, a degenerescência de sua carne. Daí, podemos extrair das inferências de Marx que a prática política sem uma teoria, como um reflexo real das condições presentes, não tem força material, pois a energia prática da política requer a crítica da arma como força espiritual que se apodere das massas, senão fica impossível derrubar as condições em que o homem surge como ser humilhado, escravizado, abandonado e desprezível, ou seja, como “pobre cão”, como ele cita na Introdução. Fazer a emancipação política não é para Marx fazer a emancipação humana em geral. “Uma revolução radical só pode ser uma revolução de necessidades reais”107, como diz Marx. É preciso pôr em debate as deficiências civilizadas do mundo político moderno que não conseguiu solucionar as deficiências bárbaras do antigo regime. Nesse caso, é denunciar a insensatez dos sistemas políticos que constroem barreiras entre o Estado e a sociedade; e, para Marx, demolir tais barreiras gerais da política atual é conditio sine qua non para realizar o processo de restituição do poder à sociedade. Marx, na verdade, faz uma crítica cáustica à utopia da política moderna que se restringe a fazer uma revolução parcial, meramente política, deixando intactos os pilares do edifício social que sustentam a realidade hostil presente. Para Marx, somente uma classe da sociedade capitalista pode despertar o entusiasmo político nas massas para edificar a verdadeira sociedade da liberdade, o proletariado. No entanto, seus interesses têm que ser a representação de todos os interesses da sociedade. E não basta apenas ter energia e consciência revolucionárias, pois, para que esta classe possa ter essa posição de classe libertadora e de direção política, é necessário que ela concentre em si todos os males sociais e represente o todo da sociedade. Se o proletariado é o representante negativo desta realidade opressora, sua força material para chegar ao poder político é a classe oprimida, mas politicamente organizada. A possibilidade positiva da emancipação total da humanidade para Marx é quando o proletariado se constitui como “classe para si” e anuncia a dissolução da ordem social existente, declarando, assim, o mistério da sua própria existência que é nada mais nada menos uma existência calcada na negação da propriedade privada. A teoria crítica é arma intelectual do proletariado, e o proletariado é arma material da teoria crítica. Como diz Marx, “nenhum tipo de servidão será abolido, se toda servidão não for destruída.” 108 E para Marx, essa realização não se dará jamais apenas com o tipo de emancipação política que se restringe a tentar implementar direitos sociais onde o sistema capitalista é o grande entrave para tal. É somente o movimento revolucionário que possibilitará essa condição humana, destruindo a base social que sustenta a exploração humana. 107 108 Ibid., p. 88. MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 93. 74 Conforme Mészáros109, a concepção de política mais antiga de Marx se articulou a partir de uma tripla negação que coloca em perspectiva as potencialidades e limitações do modo político de ação, isto é, nas circunstâncias da “miséria alemã”. Com efeito, Marx deu ênfase na severidade das limitações que a política desenvolvia a partir do Estado político moderno, ou melhor, dos direitos civis constituídos de jure e não plenamente de fact. Para Mészáros, a definição negativa de política se estendeu como um tema central de sua obra até o final de sua vida. Assim sendo, a negação de Marx se direciona para três objetos: o primeiro objeto de sua crítica foi o subdesenvolvimento alemão e uma ação política vácua sob os limites de um capitalismo feudal. A Alemanha estava com seu calendário político atrasado bem antes de 1789; o segundo objeto concerne à negação da filosofia política de Hegel que elevou ao nível de ciência as ilusões de realizar uma mudança, mas permanecendo nos limites da matriz política anacrônica e, por fim, o terceiro objeto diz respeito às limitações da política francesa, embora mais avançada do que a alemã, mas era inadequada a uma transformação social mais radical que pudesse suprimir o antagonismo social crescente. Foi nesse contexto histórico alemão que Marx fez uma avaliação crítica das limitações políticas locais, quer dizer, levou-as a um questionamento radical da natureza e dos limites da ação política (na modernidade). Por isso, sua tarefa de compreender a “anatomia da sociedade burguesa”, a partir da análise da crítica da economia política, proporcionou-lhe fazer uma contrapartida positiva à sua tripla negação, só que num plano material. Também Marx, apesar de ter criticado Hegel, criticou os políticos radicais e revolucionários que não buscaram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado. Nas Glosas Críticas, Marx já alude ao comportamento do Estado moderno político, afirmando que “O Estado jamais verá no ‘Estado e na organização da sociedade’ a razão das mazelas sociais, [...].”110. Para Marx, Estado e sociedade não são duas coisas diferentes do ponto de vista político. “O Estado é a organização da sociedade.” 111 O Estado considera a existência dos problemas sociais como decorrentes, ou das leis da natureza que independe do 109 Cf. MÉSZÁROS. Os limites da ação política. In: Para além do capital, p. 563. MARX, Karl. Glosas Críticas ao Artigo “‘O rei da Prússia e a reforma social’ de um prussiano”. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 38. 111 Ibid., p. 38. 110 75 controle das forças humanas (catástrofes naturais), ou da vida privada, ou da ineficácia na administração. Daí o Estado querer atribuir a causa dos males sociais como consequências de deficiências acidentais ou intencionais da administração, porque esta é a atividade organizadora dele. Se o Estado é a máquina maior de ação política na sociedade moderna, esta ação se realiza na contradição entre vida pública e privada, isto é, na contradição entre os interesses públicos e particulares. Para sair do ponto de vista político e perceber o Estado a partir do ponto de vista crítico, Marx infere que Quanto mais poderoso for o Estado, ou seja, quanto mais político for um país, tanto menos estará inclinado a buscar no princípio do Estado, ou seja, na atual organização da sociedade, da qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, a razão das mazelas sociais e a compreender seu princípio universal. O entendimento político é entendimento político justamente porque pensa dentro dos limites da política. Quanto mais aguçado, quanto mais ativo ele for, tanto menos capaz será de compreender [as] mazelas sociais. O período clássico do entendimento político é a Revolução Francesa. Longe de vislumbrar no princípio do Estado a fonte das deficiências sociais, os heróis da Revolução Francesa veem, antes, nas deficiências sociais a fonte das irregularidades políticas. Nesta Linha, Robespierre vê a vasta pobreza e a grande riqueza apenas como um empecilho para a democracia pura. Em consequência, ele deseja estabelecer uma frugalidade espartana universal. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, ou seja, quanto mais bem-acabado for o entendimento político, tanto mais ele acredita na onipotência da vontade, tanto mais cego ele é para as limitações naturais e intelectuais da vontade, tornando-se, portanto, tanto menos capaz de desvendar a fonte das mazelas sociais.112 Tal citação mostra como Marx desmascara essa ilusão política que o Estado encarna do entendimento político, ou seja, “política” e “voluntarismo” estão enredados um no outro, e os paliativos políticos baseados no desejo emana do “substitucionismo”, como diz Mészáros, inerente à política (moderna) enquanto tal. Basta substituir o governante ou o partido político no poder de Estado que os males sociais poderão ser resolvidos. Daí surgir, então, o voluntarismo político que traz em si a ilusão de que apenas a boa vontade política é o motor da mudança social. Com efeito, a política (de domínio) como é parcial, não consegue realizar a autêntica universalidade da sociedade, pois ela impõe seus próprios interesses aos indivíduos sociais, apropriando-se para si própria do poder de arbitrar sobre os interesses parciais conflitantes em nome de uma universalidade usurpada. Dessa forma, Marx percebeu a contradição entre o social e o político como algo inconciliável, pois, à medida que a base social é antagônica, isto é, perpetuada por uma estrutura política, o Estado seria irredimível, logo descartável. Nas palavras de Marx, O Estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa vontade da administração, por um lado, e os seus meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a si próprio, pois ele está baseado nessa contradição. Ele está baseado na 112 Ibid., p. 40-41. 76 contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. [...] Sim, frente às consequências decorrentes da natureza associal dessa vida burguesa, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa espoliação recíproca dos diversos círculos burgueses, frente a essas consequências a lei natural da administração é a impotência. Porque, essa dilaceração, essa sordidez, esse escravismo da sociedade burguesa é o fundamento natural sobre o qual está baseado o Estado moderno, assim como a sociedade “burguesa” do escravismo era o fundamento natural sobre o qual estava baseado o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. [...] Se quisesse eliminar a impotência de sua administração, o Estado moderno teria de eliminar a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, teria de eliminar a si mesmo, porque ele existe tão somente como antítese a ela.113 Percebemos então que Marx enfatiza a necessidade de abolir o Estado para resolver as contradições sociais da sociedade civil. Isso está articulado à ideia de que o Estado e a política (liberal burguesa) não são capazes de abolir a si mesmos. Entretanto, essa abolição não pode se realizar a partir de um puro voluntarismo, ou seja, Marx ressalta que a futilidade dos esforços voluntaristas não consegue efetivar a abolição por mero decreto político, sobretudo, porque o Estado é um dos fatores materiais mais poderosos que existe sob o controle da classe burguesa dominante. Nesse sentido, Marx coloca em foco as limitações inevitáveis da política (burguesa) que está escrito nas Glosas: Qual foi a consequência da ordem da Convenção? A consequência foi que passou a haver uma ordem a mais no mundo e que, um ano depois, a Convenção seria sitiada por mulheres famintas. A convenção, contudo, era o Suprassumo da energia política, do poder político e do senso político.114 Mészáros115 indaga que se o Estado é impotente para solucionar os problemas sociais tangíveis, como poderia o Estado abolir a si próprio para dar um fim as contradições que ele mesmo produz? Se esta não é a tarefa do Estado, qual força da sociedade está incumbida de realizar esse objetivo? Para Mészáros, tais questões deveriam ter sido respondidas pelo movimento socialista. E as respostas encontradas são as mais diferentes como também os são as estratégias das pessoas engajadas na luta. Antes, porém, cabe ressaltar que Marx abordou o caráter do Estado na Questão Judaica, em que os judeus alemães lutavam para efetivar sua emancipação política, quer dizer, libertar o Estado alemão da influência da religião cristã, para torná-lo laico e, assim, eles se inserirem na participação política do Estado. Se Bauer quer submeter à crítica apenas o Estado cristão e não o Estado enquanto tal, ele cai em erro, afirma Marx. A emancipação política é a própria emancipação da burguesia e não da sociedade de uma forma geral, pois 113 MARX, Karl. Glosas Críticas ao Artigo “‘O rei da Prússia e a reforma social’ de um prussiano”. In: op.cit., p. 39-40. (Grifo nosso). 114 Ibid., p. 37. 115 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 566. 77 somente a emancipação humana é que contempla a todos, a partir da revolução social e não revolução política apenas. Essa discussão sobre a relação entre emancipação política e emancipação humana perpassa toda essa reflexão marxiana. A tentativa de fazer com que o Estado deixe de ter uma atitude teológica, para se comportar politicamente, é apenas uma crítica ao Estado religioso, logo a crítica em si é somente uma crítica política do Estado. Marx deixa bem claro que, embora o Estado cesse de ser religioso, sua base humana é religiosa, quer dizer, a religião continua a existir na vida privada do indivíduo social. Nesse sentido, a existência da religião não se opõe de maneira nenhuma à perfeição do Estado. O Estado se “liberta” dos constrangimentos religiosos sem necessitar que também o homem se liberte deles. Mas isso não significa, para Marx, que ter um Estado livre é condição sine qua non de se ter um homem livre. O indivíduo “se liberta de um constrangimento através do Estado, politicamente, ao transcender as suas limitações, em contradição consigo mesmo, e de maneira abstracta, estreita e parcial.”116 Essa concepção de Estado como intermediário entre o homem e a liberdade humana é, de certa forma, a priori, uma elevação política do homem; mas, para Marx, é apenas correto do ponto de vista político (burguês), pois do ponto de vista revolucionário, o homem tem que agir de modo “não político” para abolir o estado de coisas em que se encontra a sociedade em geral. O que no máximo o Estado pode fazer é eliminar, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posição social, educação e profissão, quando decreta que são distinções não políticas. Trata-se, portanto, de apresentar tais distinções como elementos que compõem a vida real da nação, isto é, de que não é produto da contradição entre o Estado e a sociedade. Nesse sentido, o Estado enquanto Estado abole politicamente a propriedade privada, quer dizer, o homem decreta, de maneira política, a abolição da propriedade privada. No entanto, diz Marx, tal supressão política da propriedade privada, com o surgimento do Estado, é apenas uma abolição na sua aparência, porque reconhece a universalidade de todos, ou seja, a supressão não abole unicamente a propriedade privada, mas esta pressupõe a existência do Estado. Não podemos desconsiderar que o Estado alcançou, sobremaneira, a universalidade do pensamento, a saber, a universalidade que passa por cima dos elementos particulares. Contudo, “O Estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica (19) do homem em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos da vida egoísta continuam a existir na sociedade civil, fora da esfera política, como propriedade da sociedade civil.” 117 Para Marx, o Estado político, em relação à sociedade civil, está em constante oposição, ou seja, há a 116 117 MARX. A Questão Judaica. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 43. MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 45. 78 contradição entre o Estado político e seus pressupostos (a propriedade privada), entre os elementos espirituais (cultura e religião) e os profanos (direito e economia), entre o interesse geral e o privado, e, por fim, a cisão entre o Estado político e a sociedade civil. É na base dessas contradições que estão as necessidades que asseguram a existência da sociedade civil, garantindo a sua indispensabilidade, quer dizer, a sociedade civil em oposição ao Estado político sabe da sua necessidade, como o Estado político admite a sua existência como indispensável à sociedade civil. Marx salienta em A Questão Judaica que a emancipação política representa, sem dúvida, um grande progresso, mas frisa que ela não é a forma final da emancipação humana dentro da ordem mundana até hoje existente, a saber, uma emancipação real, prática. Nessa perspectiva, Marx afirma que “ninguém deve iludir-se quanto aos limites da emancipação política. A cisão do homem em pessoa pública e pessoa privada, o deslocamento da religião do Estado para a sociedade civil, não é uma fase, mas a consumação da emancipação política.”118 A reflexão marxiana também aborda uma questão relevante sobre os direitos civis ou os direitos universais do homem. Se se parte do pressuposto político de que o homem para ser emancipado politicamente tem que obter direitos civis ou direitos do homem, então se faz necessário a sua efetivação real. Sabemos que a ideia de direitos do homem, segundo Marx, é uma descoberta do século XVIII, nascida da Revolução Francesa; não é uma ideia inata, mas uma conquista na luta contra as tradições históricas em que o homem foi educado até aquele período. Os direitos do homem, na concepção do pensamento burguês, são, em parte, direitos políticos que só podem ser exercidos se ele for membro da comunidade. Assim sendo, direitos civis passam a ser uma categoria da liberdade política, como diz Marx. Porém, esses direitos do homem, do cidadão, na verdade, são, dentro da esfera social burguesa, direitos do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade. Os principais direitos do homem podem ser resumidos na liberdade, igualdade, propriedade privada e segurança, isto é, direitos baseados nos valores da sociedade burguesa. Dentro, pois, dessa forma política da sociedade burguesa moderna, afirma Marx que os direitos do homem não vão além do homem egoísta, do homem enquanto membro da sociedade civil, ou seja, enquanto indivíduo separado da comunidade, confinado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. Para Marx, então, a consagração burguesa dos direitos do homem está distante de realizar o homem como um ser genérico e/ou social, pois a vida do homem, a sociedade, é como algo externo ao indivíduo, como limitador da sua 118 Ibid., p. 47-48. 79 existência social ou independência original. A união humana na sociedade da propriedade privada burguesa é efetivada apenas pela necessidade natural, pela carência e pelo interesse privado, cujo objetivo é a preservação da propriedade privada e das pessoas egoístas. Desse modo, Marx ironiza os liberais, chamando-os de “libertadores políticos”, à medida que estes reduzem a cidadania e a comunidade política a simples meio de preservar os chamados direitos do homem, quer dizer, o cidadão é puramente servo do homem egoísta. Marx ainda denuncia que “a esfera em que o homem age como ser genérico vem degradada para a esfera onde ele actua como ser parcial; e que, por fim, é o homem bourgeois e não o homem como citoyen que é considerado como o homem verdadeiro e autêntico.”119 De certo modo, Marx, ao citar os bons termos da Declaração dos Direitos do Homem como – “O objectivo de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem” (Declaração de 1791) ou “O governo é instituído a fim de garantir ao homem o desfrutar dos teus direitos naturais e imprescritíveis” (Declaração de 1793) –, afirma que a vida política no seu período de entusiasmo juvenil, que atingiu seu clímax pela força das circunstâncias, declara-se como simples meio, cuja finalidade é a vida da sociedade civil; porém, na percepção de Marx, sua prática revolucionária se contradiz com a teoria. Um exemplo é a violação da intimidade das correspondências que acontece, enquanto a segurança é proclamada como um dos direitos fundamentais do homem; e a restrição à liberdade de expressão na imprensa quando esta compromete a liberdade política. Dessa forma, afirma Marx, [...] o direito humano à liberdade deixa de ser um direito a partir do momento em que entra em conflito com a vida política, enquanto, na teoria, a vida política é apenas a garantia dos direitos do homem, dos direitos do homem individual e deve, portanto, suspender-se logo que entra em contradição como o seu objectivo, os direitos do homem.120 Nesse sentido, a prática constitui-se como exceção e a teoria como regra, quer dizer, se alguém quisesse achar a prática revolucionária como correta expressão de tal relação, o problema continuaria o mesmo, ou seja, para “os libertadores políticos” (ironiza Marx), a relação entre meio e fim fica invertida: o meio (a vida política) aparece como o fim e o fim (a vida da sociedade civil) aparece como meio. Isso é, para ele, a ilusão ótica da consciência dos “libertadores políticos”, id est, os que acham que a libertação se dá por pura via da política (liberal burguesa) de consagração dos Direitos do Homem na sociedade. Uma revolução política (no sentido liberal) para Marx muda apenas os sujeitos da classe dominante, a saber, 119 120 MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 58-59. MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 59. 80 muda-se apenas a forma de dominação de uma classe por outra, mas não a estrutura de dominação social que tem como base a propriedade privada dos meios de produção. A revolução política (burguesa) abole o caráter político da sociedade civil, põe em liberdade o espírito político e constitui uma esfera de comunidade, mas deixa separado o Estado da sociedade. Por outras palavras, a emancipação política (burguesa) foi apenas a emancipação da sociedade civil a respeito da política. Com a queda do feudalismo, quando se constitui o Estado político, a sociedade civil se dilui em indivíduos independentes, cujas relações são regulamentadas por leis. Surge então o homem apolítico, produto de uma revolução política que dissolve a sociedade civil em suas componentes, porém sem revolucionar estas componentes e sem submetê-las à crítica. O fato é que, segundo Marx, a revolução política (burguesa) considera a sociedade civil, o mundo das necessidades, o trabalho, os interesses privados e a lei civil como base de sua própria existência. Nessa perspectiva, o homem como membro da sociedade civil é considerado como homem autêntico, cidadão; já o homem político (liberal burguês) é um homem abstrato, artificial, uma pessoa alegórica, moral, logo um homem egoísta. Para completar essa reflexão, Marx faz uma citação de Rousseau que formula a abstração do homem político, senão vejamos: Quem quer que ouse empreender o estabelecimento das instituições de um povo deve sentir-se como se fosse capaz de mudar a própria natureza humana, de transformar cada indivíduo que, no isolamento, é um todo completo mas solitário, em parte de algo que é maior que ele, do qual ele tira de certa maneira a sua vida e o seu ser, de mudar a natureza do homem a fim de a fortificar; de substituir uma existência parcial e moral pela vida física e independente [com a qual todos somos dotados por natureza]. Numa palavra, a sua tarefa consiste em tirar ao homem as suas próprias forças e dar-lhe em troca forças alheias que ele só poderá utilizar com a ajuda de outros homens.121 Para Marx, portanto, toda a emancipação visa restituir o mundo humano e as relações humanas ao próprio homem, ao contrário da emancipação política (burguesa) que reduz o homem a um membro da sociedade civil como indivíduo independente e egoísta, e também a um cidadão, a uma pessoa moral. A plena emancipação humana, na visão de Marx, só se dará quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato, quando ele, enquanto homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas relações pessoais, tiver se tornado um ser genérico e, por fim, quando ele tiver conseguido reconhecer e organizar suas próprias forças como forças sociais para que essas duas forças nunca mais se separem. 122 Na parte 2 de A Questão Judaica – “Bruno Bauer, a capacidade de os atuais judeus e 121 122 MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 62-63, nota 31. Cf. MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 63. 81 cristãos se tornarem livres” –, Marx nos mostra a face mercenária da política, quando alude que os judeus têm o dinheiro como força de influência sobre o poder político. Em outras palavras, para Marx a emancipação do judeu se dá não só pela aquisição do dinheiro, mas, sobretudo, porque o dinheiro se tornou um poder mundial. Citando as palavras de Bauer, Marx diz que “O judeu, que é simplesmente tolerado em Viena, por exemplo, determina a sorte de todo o império pelo seu poder financeiro.”123 E mais adiante, ao reafirmar que o judeu teoricamente se encontra privado dos direitos políticos, na prática, exerce um enorme poder e o usa em grande escala da influência política em assuntos de menor monta. Por isso, ele conclui dizendo que “A contradição que existe entre o poder político prático do judeu e os seus direitos políticos é a contradição entre política e o poder do dinheiro em geral. A política é em princípio superior ao poder do dinheiro, mas na realidade tornou-se seu escravo.”124 Ora, diz Marx, se a necessidade prática, o egoísmo, é o princípio da sociedade civil, esta se revela como produtora do Estado político. Na Introdução de As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, Engels afirma que os conflitos políticos são, sobretudo, consequências de fatos econômicos. Certamente, anota Engels, que uma visão clara do conjunto da história econômica de um determinado período não pode ser obtida no próprio momento vivido, mas só posteriormente, depois de ter selecionado todo o material para análise. Segundo Engels, o método materialista deve se limitar a reduzir os conflitos políticos às luzes dos interesses entre as classes sociais e as frações das classes existentes, determinados pelo desenvolvimento econômico, e demonstrar que os diferentes partidos políticos são apenas a expressão política mais ou menos adequada das referidas classes e frações de classes. A Revolução de Fevereiro de 1848 marcou a revolução social do proletariado em Paris, colorida pelas lembranças da Revolução de 1789. Disso resultaram vários levantes vitoriosos em cidades europeias como Milão, Viena, Berlim até chegar à fronteira russa, deixando abalada a burguesia de todos os países que buscavam se refugiar nos braços da reação monarco-feudal, recém-destituída da história. Mas foi após junho de 1848 que se travou a grande batalha entre o proletariado e a burguesia; contudo, Engels e Marx, depois das derrotas de 1849, não partilhariam mais absolutamente das ilusões da democracia vulgar, agrupada em torno de governos provisórios em país de infiéis. Daí Engels reconhecer os erros de avaliação, a ilusão dos pontos de vista construídos naquele período, ou seja, a história desmentiu tanto Marx quanto Engels sobre as condições de combate do proletariado, pois o modo de luta de 1848 tornou-se obsoleto. Conforme Engels, as revoluções se reduziram até a sua época à derrubada do domínio 123 124 MARX, op. cit., p. 68, nota 7. Ibid., p. 69. 82 de uma determinada classe e a sua substituição por outra. Todas as classes dominantes eram pequenas minorias em relação à massa dominada do povo. Na verdade, tomava-se o poder de uma classe dominante minoritária para que a outra classe minoritária se erguesse hegemonicamente, isto é, esta tomava em suas mãos o poder do Estado, transformando as instituições públicas de acordo com seus interesses de classe. Como conclui Engels, nesta Introdução, “a forma comum de todas estas revoluções era serem revoluções de minorias; mas esta, seja por isso, seja pela atitude passiva e não resistente da maioria, aparentava representar todo o povo.”125 Para Engels, o que caracterizava todas as revoluções dos tempos modernos era: a cisão da minoria vitoriosa, a saber, metade ficava satisfeita com os resultados e a outra metade queria ir adiante, apresentando novas reivindicações (radicais); os vencidos achavamse traídos ou lançavam à má sorte a responsabilidade da derrota; as conquistas da primeira vitória só eram asseguradas pela segunda vitória do partido mais radical; e, por fim, os radicais, ao alcançar o que era necessário, abandonavam a cena e seus epígonos os seguiam. O resultado final dessas lutas políticas na França levou Marx e Engels a perceberem que não havia ainda um amadurecimento do estado de desenvolvimento econômico no continente europeu que pudesse levar o movimento proletário à supressão da produção capitalista. Em outras palavras, a história demonstrou-lhes que este desenvolvimento econômico apoderou-se de todo o continente, concedendo cidadania à grande indústria em vários países de bases capitalistas que ainda tinham grande capacidade de expansão. Para Engels, só havia uma única teoria universalmente reconhecida, a de Marx, que formula com precisão os objetivos finais da luta. Engels afirma, por conseguinte, que só um grande exército de socialistas internacionais organizados, disciplinados, com uma clarividência e certeza da luta proletária, é que poderia alcançar esse objetivo, ou seja, a transformação social. E aí Engels toca na questão da maturidade política do proletariado, porque os fatos de 1848-1850 só demonstraram a imaturidade das aspirações do proletariado. Este necessitaria criar as condições para que essas aspirações possam amadurecer. Quando Engels fala do sufrágio universal como um método de luta do proletariado inteiramente novo, fala com ressalvas, mesmo constando no Manifesto Comunista como sendo uma das mais importantes conquistas democráticas para as tarefas do proletariado militante. O sufrágio universal não pode ser encarado como instrumento de emancipação total da humanidade, pois a burguesia cria leis e/ou instituições que limitam a prática da eleição como forma de “emancipação” dos trabalhadores. Claro que as eleições, segundo Engels, 125 MARX, Karl. As lutas de classe na França de 1848 a 1850. In: Marx e Engels. Obras escolhidas, São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 1, p. 97. 83 criam certo temor na burguesia que está em constante vigilância de sua ordem social vigente. O máximo que o proletariado pode fazer no parlamento é criticar e denunciar a prática política e econômica de seus adversários de classe. O próprio Engels salienta que os operários revolucionários latinos já encaravam o sufrágio universal como uma armadilha, como um instrumento de esbulho. De certa maneira, o lado positivo do sufrágio universal, segundo Engels, é que ele permite à classe proletária contar a si própria a cada “três anos” verificando o aumento do número de votos para sua classe; torna-se, portanto, um meio de propaganda da própria classe, mostrando sua força política aos partidos adversários, a partir da sua atuação política no parlamento e frente às massas; e, por fim, dá autoridade aos representantes do proletariado no parlamento para falar em nome das massas, tendo um contato mais firme com elas também do lado de fora do parlamento. Entretanto, sabemos que o modo de luta parlamentar é apenas tático (meio) face à estratégia (fim) da luta maior (socialismo) que é a supressão da ordem social burguesa. Engels também não descarta a luta civil como condição sine qua non para o desencadeamento do processo de revolução social; apenas ressalta que as condições precisam ser favoráveis, a partir de uma determinada situação histórica dada. Por outro lado, ele assevera que passou o tempo dos golpes de surpresa, das revoluções executadas por pequenas minorias conscientes à frente das massas inconscientes. Para transformar completamente a organização da sociedade, diz Engels, é preciso ter a cooperação das massas e, para isso, elas precisam ter compreendido do que se trata o movimento de luta revolucionário e por que motivo elas dão o seu sangue e sua vida nessa luta. Nesse sentido, é necessário um trabalho longo e perseverante de amadurecimento político das massas. Uma coisa que Engels adverte nesta “Introdução” é que não podemos renunciar de nenhum modo o direito à revolução, como um direito histórico real, em que se repousam todos os Estados modernos até hoje existentes. Sem dúvida, o direito à revolução é algo incontestável e reconhecido pela consciência universal. Mas uma coisa é preciso ser dita: embora a burguesia tenha feito as suas revoluções históricas para chegar ao poder, ela, enquanto classe historicamente dominante, não permite que a classe antagônica à sua as faça, criando ipso facto (para isso) novas leis contra a subversão ou contra a revolução. As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 nos sugere pelo menos fazer duas considerações quanto ao processo da luta de classes no contexto da ordem social capitalista. Primeiro, aprendemos que essa derrota do proletariado não era a derrota da revolução, mas a derrota dos tradicionais apêndices pré-revolucionários, ou seja, resultado de “relações sociais 84 que não se haviam aguçado o bastante para tomar forma violentas contradições de classes.” 126 Segundo, a história nos ensinou que não é pela “onipotência da vontade política” ou do “voluntarismo político” que uma minoria consciente faz algo acontecer para valer; é mister que a classe revolucionária enquanto maioria tenha de fato uma consciência clara dos objetivos a serem alcançados na luta. Mas podemos também extrair desse texto algo que ainda hoje é atual, isto é, os gastos públicos do parlamento monárquico-burguês. Primeiramente, é “impossível submeter a administração do Estado aos interêsses (sic) da produção nacional sem restabelecer o equilíbrio orçamentário, o equilíbrio entre a despesa e a receita do Estado.”127 As classes dominantes se utilizam do Estado para incrementar seus investimentos financeiros, seja através de empréstimos, ou de prestação de serviços; enfim, o Estado seria o caixa financeiro que as classes ou frações de classes burguesas teriam como espoliar. Isso Marx admite nessa luta entre as classes quando afirma que “o déficit do Estado era precisamente o verdadeiro objeto das suas especulações e a fonte principal de seu enriquecimento.”128 Cada novo empréstimo, cada novo déficit, era resultado da espoliação da aristocracia financeira sobre o Estado, assumindo estes compromissos com os banqueiros nas condições mais desfavoráveis. Os cofres públicos eram saqueados a partir de operações financeiras nas Bolsas de Valores com títulos públicos do Estado. A política parlamentar e estatal significa uma política de repartição financeira da riqueza produzida pela sociedade. Mas são os acontecimentos ou as crises econômicas mundiais que podem acelerar a eclosão do descontentamento geral e fazer com que o desassossego se converta em revolta, conforme Marx. No entanto, é preciso que a classe proletária esteja organizada e amadurecida politicamente para levar a cabo sua própria revolução. Já dizia Marx que Desde que uma classe que concentre os interêsses (sic) revolucionários da sociedade se levante, encontra imediatamente em sua própria situação o conteúdo e o material para sua atuação revolucionária: abater os inimigos, tomar as medidas impostas pelas necessidades da luta. As conseqüências dos seus próprios atos empurram para a frente. Não se entrega a nenhuma investigação teórica sôbre sua própria missão. 129 Esse ensinamento, Marx nos lega em As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850, advertindo, porém, que, naquele momento histórico, a classe operária francesa não teria chegado a esse ponto, pois era ainda incapaz de levar a frente a sua própria revolução. Marx anota então que o proletariado de Paris se deixou inebriar pela República Burguesa, pelo sufrágio universal, pela falsa fraternidade entre a burguesia e o proletariado, quando de fato a 126 MARX. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: op. cit., p. 111. Ibid., p. 112. 128 MARX, loc. cit. (Grifo do autor). 129 MARX. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: op. cit., p. 119. 127 85 burguesia consolidava o Estado como eternizador da dominação do capital sobre a escravização do trabalho assalariado. Podemos dizer que a mesma ilusão continua, pois parte do proletariado ainda hoje acredita que a forma social burguesa é um processo natural histórico, eternizando-se como se fosse a última forma econômico-social a ser atingida pela humanidade. Daí surgirem as mistificações ideológicas como o “fim da história” e da “luta de classes”, a “possível conciliação entre capital e trabalho” e a “efetivação dos direitos universais do homem” numa sociabilidade capitalista etc. Algo que não pode deixar de ser salientado em Marx é quando ele aborda os antagonismos e as contradições da sociedade burguesa a partir da sua dominação econômica e política. Afirma, pois, Marx que “o imposto é o seio materno de que se amamenta o govêrno. O govêrno são os instrumentos de repressão, os órgãos da autoridade, é o exército, é a polícia, são os funcionários, os juízes, os ministros, os sacerdotes.”130 Mas o explorador continua a ser o capital. O pior disso tudo é que o povo fica habituado a obter apenas triunfos legais em vez de buscar triunfos revolucionários, pois as revoluções são, para Marx, as locomotivas da história. Na compreensão de Marx, o proletariado tem que se agrupar cada vez mais em torno do socialismo revolucionário, do comunismo, que é, sem dúvida, a declaração permanente da revolução, da ditadura de classe do proletariado como ponto necessário de transição para a abolição das diferenças de classe em geral, isto é, para a supressão de todas as relações de produção onde repousam tais diferenças, para supressão de todas as relações sociais que correspondem a estas relações de produção, enfim, para a subversão de todas as ideias que emanam destas relações sociais. No final do Prefácio de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Engels cita a grande lei da marcha da história descoberta por Marx: [...] a lei segundo a qual todas as lutas históricas, quer se processem no domínio político, religioso, filosófico ou qualquer outro campo ideológico, são na realidade apenas a expressão mais ou menos clara das lutas entre classes sociais, e que a existência e, portanto, também os conflitos entre essas classes são, por seu turno, condicionados pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu modo de produção e pelo seu modo de troca, este determinado pelo precedente.131 Essa lei, segundo Engels, tem para a história a mesma importância que a lei da transformação da energia tem para as ciências naturais, fornecendo, portanto, a chave da compreensão da história da Segunda República Francesa, resistindo brilhantemente depois de trinta e três anos. Fica claro, nesta citação, o valor do componente econômico como 130 Ibid., p. 174. (Grifo do autor). MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: AlfaOmega, [s.d.], v.1, p. 202. 131 86 condicionante e/ou determinante do desenvolvimento das lutas de classe na história humana. O que podemos extrair como princípio de verdade n’O 18 Brumário é uma anotação de Marx sobre os fatos históricos, ao dizer que “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.”132 E na história política é assim: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” 133 Daí Marx dizer que quando os homens desejam revolucionar as coisas e a si próprios, quando querem criar algo que jamais existiu, justamente nos períodos de crise revolucionária, eles buscam auxílio nos espíritos do passado, pegando de empréstimo os nomes, os gritos de guerra, as roupagens, objetivando apresentar a nova cena histórica do mundo como disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada. Na concepção de Marx, a ressurreição dos mortos em tais revoluções, como a francesa, tinha como fim glorificar as novas lutas (e não de parodiar as passadas), engrandecer no imaginário a tarefa a ser cumprida e não fugir de sua solução da realidade, ou, melhor dizendo, encontrar o espírito da revolução e não fazer o seu fantasma caminhar outra vez. Marx ressalta ainda que as revoluções anteriores lançaram mão das recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. Segundo ele, para que a humanidade se liberte das superstições do passado e consiga alcançar o conteúdo revolucionário da sua história, é necessário que os mortos enterrem seus mortos. “Se antes a frase ia além do conteúdo, agora é o conteúdo que vai além da frase”, afirma Marx. Ao recapitular em linhas gerais as fases que a revolução francesa atravessou entre 24 de fevereiro de 1848 a 2 de dezembro de 1851, Marx conclui que houve uma involução no processo das lutas de classes, ou seja, começou com o proletariado insurreto de Paris com a Revolução de Fevereiro, proclamando sua República Social, passando pela República Democrática da pequena burguesia e a República parlamentar da grande burguesia e monarquia, e terminando com a restauração do Império com a vitória de Bonaparte III. Se a primeira Revolução Francesa de 1789 deu-se de forma ascensional, na Revolução de 18481852, aconteceu o inverso: o partido proletário aparece como apêndice do partido pequenoburguês democrático que o trai e o abandona; o partido democrata se apoia no partido republicano burguês no qual este logo se desvencilha do anterior, apoiando-se no partido da 132 133 MARX, Ibidem, p. 203. MARX, loc. cit. 87 ordem; este se livra do partido republicano burguês e se atira nos ombros das forças armadas, quando em seguida é traído pelas forças militares. Isso demonstra que cada partido trai o outro, quer dizer, “Cada partido ataca por trás àquele que procura empurrá-lo para frente e apóia-se pela frente naquele que o empurra para trás. [...] A revolução move-se, assim, em linha descendente.”134 Tais acontecimentos revelam para Marx que o sistema de alianças políticas entre as classes e/ou frações de classe tem vida histórica curta, vulnerável aos interesses políticos e econômicos específicos de cada classe. A derrota do proletariado francês foi por ter confiado na pequena burguesia; a desta de ter acreditado na burguesia; e esta por ter se fiado nas monarquias destituídas. O resultado disso foi a restauração do Império por Luís Bonaparte, que fortaleceu as forças militares, aperfeiçoou a burocracia do Estado e angariou simpatia dos pequenos camponeses. Em outras palavras, as diversas frações de classes da sociedade francesa anularam umas às outras na luta pelo poder legislativo e constitucional, fortalecendo o poder de uma só pessoa, o Imperador. Para Marx, portanto, a República burguesa significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras, ou seja, uma forma política da revolução da sociedade burguesa e não sua forma conservadora de vida. O parlamento como palco das grandes discussões entre as diferentes frações de classe foi insuficiente e inoperante para realizar os interesses de todas as classes, pois as demandas políticas de tais classes encontravam pouco espaço para serem atendidas. Normalmente, o partido da ordem (monarquistas e aristocracia financeira) e o partido da montanha (de extrema esquerda) disputavam o poder de suas realizações com grandes discussões. O que podemos depreender disso tudo é que Marx relata a forma política de poder francês como a política do mais forte, daí ele dizer da vida efêmera da República constitucional ou República Parlamentar nos momentos de grande crise. Nessa perspectiva, a política na forma republicana ou monárquica, seja democrática ou despótica, é a política da classe economicamente hegemônica na sociedade. Percebemos nesses relatos de Marx que se quebrou o aspecto revolucionário das reivindicações sociais do proletariado, dando a elas uma feição democrática. Como resultado, surgiu a social-democracia, a nova Montanha, cujo caráter se resume “no fato de exigir das instituições democrático-republicanas como meio não de acabar com os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transformá-lo em harmonia.”135 A transformação da sociedade se dará por esse conteúdo, quer dizer, pelo processo 134 135 MARX. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: op. cit., p. 221. Ibid., p. 226. 88 democrático, porém dentro dos limites da pequena burguesia. Evita-se assim a luta de classes, infectando o proletariado com os princípios sociais democráticos burgueses. A burguesia sabe que seu regime parlamentar (um regime de desassossego), seu poder político de maneira geral, pode enfrentar seu veredicto condenatório, o socialismo; sobretudo porque, quando seu domínio de classe, já organizado completamente, adquire a sua mais pura expressão política, o antagonismo das outras classes pode se mostrar em sua forma pura. É sabido que o regime parlamentar vive do debate de ideias como expressão dos interesses de instituições sociais, seja partido, seja religião etc. A luta dos oradores na tribuna evoca, por outro lado, a luta dos escribas na imprensa. Isso repercute nos clubes de debates dos salões e das tabernas, como diz Marx. Os representantes parlamentares apelam constantemente para a opinião pública como aval para fundamentar e legitimar suas petições. O regime parlamentar, portanto, deixa à decisão das maiorias, embora as grandes maiorias fora do Parlamento pouco vejam suas decisões serem efetivadas naquele. Disso tudo, podemos inferir que todas as revoluções burguesas visaram a aperfeiçoar a máquina governamental, o poder de Estado, ao invés de destroçá-la e “os partidos que disputavam o poder encaravam a posse dessa imensa estrutura do Estado como principal espólio do vencedor.”136 Marx, já quase no final de O 18 Brumário137, deixa implícito que o governante se depara com a tarefa contraditória de explicar as contradições de seu governo, quer dizer, essa confusa conduta política que, ora procura conquistar, ora procura humilhar, primeiro uma classe, depois outra, constitui um contraste altamente cômico que resulta da prática categórica e imperiosa de decretos e/ou leis, de atos governamentais. Como contraponto a essa forma política de governar, na “Introdução” de A Guerra Civil na França, Engels menciona que a Comuna teve de reconhecer que a classe operaria, ao chegar ao poder, não poderia continuar a governar com a velha máquina do Estado, pois seria necessário, para preservar o seu poder recém-conquistado, abandonar a velha máquina repressiva, sobretudo, porque ela era utilizada contra a sua própria classe. Daí, portanto, transformar o Estado político em Estado revolucionário, como instrumento de transformação da realidade econômico-social. No primeiro “Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores” (AIT) sobre a guerra franco-prussiana, Marx anuncia o prenúncio de uma nova sociedade frente à velha sociedade, com suas misérias econômicas e delírios políticos, ou seja, ele afirma que o princípio da política internacional será a paz, mas cujo governante será o mesmo em todos os países, o trabalho; em outras palavras, o pioneiro 136 137 Ibid., p. 276. Cf. MARX, Ibidem, p. 283. 89 da nova sociedade é a Associação Internacional dos Trabalhadores. Com essas palavras, Marx simplesmente declara que a única condição da supressão de todas as classes seria o proletariado chegar ao poder e se autoabolir como classe, já que ele é a substância (o trabalho) do capitalismo enquanto força social que produz e reproduz este sistema (mais-valia) e suas relações humanas. Se a política da sociedade moderna burguesa se baseava na política de conquistas, da guerra de uma nação contra outra ou no domínio de uma classe sobre a outra, a política de uma futura sociedade comunista teria que se basear na construção de uma obra comum que é a libertação do trabalho da sua condição de trabalho alienado-estranhado, isto é, trabalho abstrato-assalariado. Parafraseando Marx, no segundo “Manifesto do Conselho Geral” da AIT, a missão dos trabalhadores não é repetir o passado, mas construir o futuro; e para tal empreendimento, diz Marx no final que é necessário conclamar a classe trabalhadora à ação: os trabalhadores não podem esquecer seu dever e permanecerem passivos face às lutas cotidianas e às guerras no âmbito da sociedade capitalista, pois é preciso que eles sejam os precursores de novas lutas em cada país, pois a derrota dos trabalhadores dá aos senhores da espada, da terra e do capital maior fôlego de dominação histórica (Marx se refere aqui, claro, à guerra civil na França). A Guerra Civil na França ilustra bem o conflito entre o dever nacional e o interesse de classe. A atuação política realizada antes era, na verdade, uma revolução às avessas, quer dizer, uma involução do avanço para o atraso, ou seja, se anteriormente se iniciou uma Revolução Republicana com a força do proletariado de Paris e da pequena burguesia contra o absolutismo monárquico republicano (orleanistas e legitimistas) entre 1848-1852, agora o proletariado de Paris toma as rédeas, embora por pouco tempo, do processo da luta de classes. O que podemos extrair desse texto, em termos políticos, é a luta de classes na sua versão mais radical que derruba o Estado republicano monárquico para construir a Comuna, uma nova forma de organização de poder da sociedade, id est, mais radical, democrática e participativa. A revolta é consequência da capitulação de Paris, ou melhor, da entrega da França à Prússia. Desse modo, deu-se início a guerra civil. “Paris armada era o único obstáculo sério que se erguia no caminho da conspiração contra-revolucionária”138, afirma Marx. Por conseguinte, Marx nos revela que, no processo de luta revolucionária, os militares podem se rebelar contra seus chefes e ficarem ao lado dos trabalhadores, dos revolucionários, quer dizer, as tropas desencadeiam uma ação militar contrária aos seus hierárquicos, à medida 138 MARX, Karl. A guerra civil na França, In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 2, p. 72. 90 que percebem que o sentido da luta toma caráter libertador humanista e não de atrocidade. Desta feita, a revolução de 18 de março de 1871 fez com que as tropas bonapartistas não atirassem contra a multidão inerme na Praça Pigalle, a saber, em vez de disparar contra crianças, mulheres e seus homens, dispararam contra o general Lecomte. Essa mudança de hábitos inveterados adquirida pelos soldados na escola do inimigo, diz Marx 139, não mudam no mesmo momento para o campo dos trabalhadores. É um processo itinerante a ser realizado na esfera da luta histórica. Para Engels, “A Comuna já não é mais, etimologicamente, Estado” 140; representa, de facto, uma ruptura com a forma de poder social chamada Estado, pois este se caracteriza, sobretudo, como esfera de luta política onde há traições, conspirações, capitulações e fracassos. A Comuna como esfinge que atormenta tanto os espíritos burgueses é, como diz Marx, um novo modo de dirigir os negócios públicos para salvar uma situação histórica marcada pela dominação externa estrangeira, como também pela dominação política interna de uma classe monárquica republicana que excluiu a pequena burguesia e o proletariado das decisões políticas do governo imperial. Os proletários “compreenderam que é seu dever imperioso e seu destino incontestável tornar-se (sic) donos de seus próprios destinos, tomando o Poder.”141 Para Marx, os trabalhadores não podem se limitar a se apossar da máquina do Estado tal como se apresenta para realizar seus fins. Os órgãos onipotentes, como exército, polícia, burocracia, clero e magistratura, são derivados da monarquia absoluta que serviu a incipiente sociedade burguesa como arma na luta contra o feudalismo. Nesse sentido, urge destruir a natureza classista do Estado e torná-lo um instrumento de abolição de todas classes sociais. Não é à toa que, para Marx, À medida que os progressos da moderna indústria desenvolviam, ampliavam e aprofundavam o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi adquirindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de força pública organizativa para a escravização social, de máquina do despotismo de classe. Depois de cada revolução, que assinala um passo adiante na luta de classes, revela-se com traços cada vez mais nítidos o caráter puramente repressivo do poder do Estado.142 Já naquele período, portanto, Marx ressaltava de forma bastante contundente, e que não difere muito dos dias de hoje, que havia uma política imperial que visava contemplar os interesses de todas as classes. O Império napoleônico, nascido do golpe de Estado por certidão, tendo o sufrágio universal por sanção e a espada por cetro, se arvorava de se apoiar 139 Cf. MARX. A guerra civil na França. In: op. cit., p. 74. Cf. OLIVEIRA, Jorge Luís de. Alienação, trabalho e emancipação humana em Marx, p. 202. 141 MARX. A guerra civil na França. In: op. cit., p. 78. 142 Ibid., p. 79. 140 91 nos camponeses, de salvar a classe operária destruindo o parlamento e as classes possuidoras conservando sua supremacia econômica sobre a classe operária, enfim, de fazer a união de todas as classes para a quimera da glória nacional. Isso expressa uma forma de governo possível, já que a burguesia perdia sua capacidade de governar; e, por outro lado, o proletariado ainda não tinha adquirido tal capacidade. Nesse sentido, Marx denuncia que o poder estatal, que aparentemente flutuava acima da sociedade, vivia um grande escândalo e tornava-se o viveiro de todas as suas corrupções. Segundo Marx, a sua podridão foi posta a nu pelas baionetas da Prússia. A Comuna tornava-se, assim, a antítese do Império, quer dizer, a “República Social” (do proletariado) expressava o desejo não apenas de acabar com a forma monárquica da dominação de classe, mas também de abolir a própria dominação de classe. A Comuna, nesse sentido, era a forma positiva dessa República. A Comuna era essencialmente um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, ou seja, a forma final descoberta de levar a cabo a emancipação econômica do trabalho. Para Marx, a Comuna deveria servir de alavanca para solapar os fundamentos econômicos sobre os quais se baseia a existência das classes e, portanto, a dominação de classe. Desse modo, “Uma vez emancipado o trabalho, todo homem se converte em trabalhador, e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe.”143 Podemos então inferir que a Comuna 144 foi uma nova forma de se fazer política, de restituir à sociedade o Poder do Estado, de ela ter o controle de gerir seu próprio destino histórico, quer dizer, de poder administrar os bens públicos sociais sem haver uma hierarquização estanque, em que a “revogabilidade” e a “alternância” de poder eram os princípios norteadores de suas ações políticas. A conduta da linha de seu governo era ser um governo do povo e pelo povo. Daí os insurretos começarem a abolir o trabalho noturno para os padeiros e a proibição penal da prática corrente entre os patrões de reduzir salários; como também entregaram todas as oficinas e fábricas fechadas às organizações operárias, abandonadas pelos patrões ou trabalho suspendido por eles. A lição que podemos tirar desse fato é que, quando a ordem burguesa está ameaçada pela força do proletariado, a “civilização” e a “justiça” burguesa aparecem em todo seu esplendor e fervor na forma de atrocidade. Em 143 MARX. A guerra civil na França. In: op. cit., p. 84. Esta citação demonstra claramente que Marx não nega o trabalho como condição onto-histórica do homem, pelo contrário, reafirma a libertação do trabalho da sua condição opressiva no capitalismo. 144 Lênin não via na sua época a experiência da democracia socialista da Comuna de Paris como um modelo a ser imitado pela Revolução Russa, pois ele ressaltava os defeitos e a ingenuidade do comportamento dos communards. Marx e Engels criticaram também os erros políticos da Comuna, mas elogiaram seus aspectos libertários, principalmente no que diz respeito aos conselhos dos trabalhadores. Cf. OLIVEIRA, Jorge Luís de. Op. cit., p. 266-267, nota 167. 92 outras palavras, essa “civilização” e “justiça” mostram sua selvageria e vingança sem lei, caindo, assim, a sua máscara civilizatória. Em suma, para Marx, a política na forma monárquica ou burguesa é a mais pura forma de mistificação dos governos, destinada a retardar a luta de classes; a dominação de classe não pode ser mais disfarçada sob o uniforme de união nacional ou patriotismo; “todos os governos nacionais são um só contra o proletariado!”145 Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx nos sinaliza com algumas questões pertinentes ao processo de transição para o socialismo. Numa carta de Marx a William Bracke (05/05/1875), ele anota que “Cada passo de movimento real vale mais do que uma dúzia de programas.”146 No entanto, ele adverte que se não for possível – e as circunstâncias não permitirem – ir para além do que foi programado, urge então concluir um acordo para ação contra o inimigo comum. Por isso que, para Marx, quando se redige um programa de princípios, é preciso expor para todos os marcos que medem o nível do movimento do proletariado. A política marxiana revolucionária tem como teleologia libertar o trabalho da sua condição de exploração e, para tal, postula a subversão da ordem burguesa. Se o trabalho é a fonte de toda riqueza e de cultura como trabalho social, também ele é o causador de toda pobreza e desamparo ao trabalhador na forma social burguesa, mas o grande propiciador de riqueza e cultura para os compradores da força de trabalho. Aqui se apresenta a contradição fundamental da sociedade burguesa em que a política e a economia se engalfinham para consolidar ou desfazer o tecido social burguês constituído. O governo é então, nesse sentido, o órgão da sociedade para a manutenção da ordem social. Por detrás dele estão as diferentes classes de propriedade privada com suas ocultas, ou não, pretensões. A base da sociedade são as diferentes classes proprietárias, seja as dos meios de produção, seja as da sua própria força de trabalho, mas que têm como ponto em comum a luta pela sua sobrevivência histórica. O que convém assinalar na Crítica ao Programa de Gotha é qual luta o proletariado tem que desenvolver para efetivar seu processo de emancipação total. Primeiramente, fica evidente, e é imperativo, que a classe trabalhadora tem que se organizar enquanto classe em seu país, já que este é o campo imediato de suas lutas cotidianas. Entretanto, a luta tem que tomar dimensão internacional, quer dizer, urge confluir a luta internacional de todos os trabalhadores do mundo inteiro, pois o caráter de exploração do trabalho é comum em todos os países onde o capitalismo atingiu um determinado grau de desenvolvimento. Abolir o 145 MARX. A guerra civil na França. Op. cit., p. 99. (Grifo do autor). MARX. Karl. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: AlfaOmega, [s.d.], v. 2, p. 207. 146 93 sistema de trabalho assalariado é um dos objetivos da luta internacional dos trabalhadores. No entanto, ao se referir à parte democrática da Crítica ao Programa de Gotha, Marx aborda a questão do “Estado Livre”, e diz que a missão do operário não é tornar o Estado livre, mas converter o Estado em órgão subordinado à sociedade. Para que isso aconteça, Marx indaga sobre a transformação do Estado numa sociedade comunista, ou seja, quais seriam as suas funções sociais neste tipo de sociedade. Contudo, ele fala num período de transição entre a sociedade capitalista e a comunista, salientando o papel do Estado nesse processo que ele denomina de “ditadura do proletariado”, como período político de transição imprescindível. Por isso que ele critica o Programa de Gotha que se limita apenas às reivindicações políticas baseadas na ladainha democrática: sufrágio universal, legislação direta, direito popular, milícia do povo etc. Segundo Marx, tais reivindicações não são mais que ideias fantásticas, se não são efetivadas. Criticando, por conseguinte, a República democrática sob Napoleão III, Marx adverte que tal “democratismo” de Estado não passa de um despotismo militar de arcabouço burocrático e blindagem policial, guarnecido por formas parlamentares com misturas de vários ingredientes sociais. A democracia vulgar, diz Marx, vê na República democrática (nesse democratismo sob baionetas) o reino milenar e não tem a menor ideia de que é nesta forma última de Estado da sociedade burguesa onde se poderá travar a batalha definitiva da luta de classes. Nesse sentido, a democracia vulgar está acima dessa “espécie de democratismo que se move dentro dos limites do autorizado pela polícia e vedado pela lógica.”147 Podemos também encontrar no Manifesto do Partido Comunista algumas proposições políticas elaboradas por Marx e Engels sobre a prática revolucionária dos trabalhadores. Nele condensam-se estratégias e/ou os princípios de luta do proletariado face à sua emancipação. No “Prefácio à edição alemã de 1872”, Marx e Engels reafirmam os princípios gerais expostos no Manifesto, mesmo depois de vinte e cinco anos, ressalvando que a aplicação deles dependerá, sempre e em toda parte, das circunstâncias históricas existentes, porém, ressaltando que, no segundo capítulo, não se deve mais dar uma importância demasiada às medidas revolucionárias, pois a Revolução de Fevereiro de 1848 do proletariado de Paris e a derrota da Comuna de 1871 – que permitiu o proletariado tomar posse do poder político por dois meses – fizeram com que o programa ficasse envelhecido. Já no “Prefácio à edição alemã de 1883”, Engels resume o pensamento dominante e essencial em todo Manifesto, afirmando que 147 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: op. cit., v.2, p. 222. 94 [...] a produção econômica e a estrutura social que necessariamente decorre dela, constituem em cada época histórica a base da história política e intelectual dessa época; que, por conseguinte [...], toda a história tem sido uma história de lutas de classe, de lutas entre as classes exploradas e as classes exploradoras, entre as classes dominantes e as classes dominadas, nos diferentes estágios do desenvolvimento social; mas que, atualmente, esta luta atingiu um estado em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) não pode mais libertar-se da classe que a explora e oprime (a burguesia), sem libertar, ao mesmo tempo e para sempre, da exploração, da opressão e das lutas de classes, tôda a sociedade – êste pensamento fundamental pertence única e exclusivamente a Marx.148 Entretanto, no “Prefácio à edição alemã de 1890”, Engels anota que, com a derrota do movimento operário nos anos 1848-1850 e de 1871, o Manifesto desaparece da cena política, sobretudo, com a dissolução da Primeira Internacional em 1872 que durou nove anos. Porém, ele explicita que a classe operária não era a mais de 1864, pois começava a surgir o capitalismo na sua fase imperialista e/ou monopolista onde a concorrência entre capitalistas parecia diminuir, mas, por outro lado, a união proletária começava a ter força e expansão em vários países. Contudo, o que podemos destacar no Manifesto são os princípios que serviram de guia teórico-prático para todo o proletariado internacional na sua luta contra o capital. Conforme Marx e Engels, “cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de progresso político correspondente”149, ou seja, a burguesia conquistou a sua soberania política exclusiva no Estado moderno, transformando esta máquina poderosíssima num comitê para gerir seus negócios comuns. Durante o seu domínio de classe, a burguesia criou forças produtivas mais numerosas e colossais do que as gerações passadas. Dessa forma, o proletariado, percebendo a união da burguesia para atingir seus fins políticos, começa a se unir em torno de uma luta política mais agressiva, obtendo algumas vezes vitórias e outras vezes derrotas. Esses triunfos efêmeros, como resultados de suas lutas específicas, possibilitaram, de certo modo, a união cada vez mais ampla do proletariado. Na verdade, as lutas locais e/ou nacionais tomam o caráter de luta de classes, e toda luta de classes é uma luta política. Mas por outro lado, para Marx e Engels, “A organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais firme, mais poderosa.”150 Se Marx e Engels tocam na questão política da luta proletária, é no Manifesto que esta questão se revela mais candente. Quando Marx e Engels fazem uma diferenciação entre 148 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 1, p. 17. 149 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., v. 1, p. 23. 150 Ibid., p. 29. 95 “comunistas” e “partidos operários”, os dois compreendem que os comunistas formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários, quer dizer, os interesses dos comunistas não são separados dos interesses do proletariado e, portanto, os comunistas não proclamam princípios particulares que possam modular o movimento operário. Assim sendo, a distinção dos comunistas só se dá de duas maneiras: 1) nas diferentes lutas nacionais dos proletários, os comunistas destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da nacionalidade; 2) os comunistas representam sempre os interesses do movimento em seu conjunto nas diferentes fases por que passa a luta entre proletários e burgueses. Portanto, o único objetivo dos comunistas é igual aos dos demais partidos proletários, ou seja, constituir os proletários como classe para derrubar a supremacia burguesa e conquistar o poder político. E o mais fundamental, as concepções teóricas dos comunistas não são baseadas em princípios ou ideias inventados, mas tais concepções são a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve, logo uma luta política, já que para Marx a luta de classes é uma luta política. O que fica claro politicamente no Manifesto é a necessidade de abolir revolucionariamente o estado de coisas em que o proletariado fica condenado a uma condição de vida elementar, cujas necessidades se restringem às necessidades de um animal como comer, beber e procriar. A luta revolucionária como a luta política do proletariado é o único caminho para se construir um caminho de libertação humana para toda a sociedade. O trabalho abstrato na forma de trabalho assalariado precisa urgentemente ser superado historicamente, pois ele é a condição sine qua non da sociedade capitalista burguesa. Num patamar de produção superior ao capitalismo, as ideias, os costumes sociais etc. se transformam, porque a base material sobre a qual essas ideias surgem é revolucionada. A consciência do homem é produto das mudanças das condições de vida, em suas relações sociais, em sua existência social. A revolução comunista, como ato político de ruptura radical com as estruturas sociais capitalistas, também constrói ideias revolucionárias, rompendo com as ideias tradicionais. Como afirmam Marx e Engels, “a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia.” 151 Então o proletariado terá essa supremacia política e a utilizará para expropriar pouco a pouco o capital da burguesia, centralizando os instrumentos de produção nas mãos do Estado e, assim, poder aumentar o total das forças produtivas. Expressando isso politicamente, é a violação despótica do direito de propriedade e da relação de produção burguesa. Entretanto, o objetivo é fazer com que o 151 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., v. 1, p. 37. 96 antagonismo de classes desapareça no curso de um novo desenvolvimento histórico, no qual a produção e o poder público perderão seu caráter político. É aqui que Marx e Engels anotam que O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção, as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, a própria dominação de classe. 152 Fica evidente que o proletariado também desenvolve uma atividade política como uma antipolítica à política burguesa, tanto que Marx e Engels, ao criticarem o socialismo e comunismo utópicos, relatam que tais sistemas, sob Saint-Simon, Fourier, Owen etc., não levam em consideração “o antagonismo das classes, nem percebem no proletariado alguma iniciativa histórica e movimento político que lhe seja próprio.”153 Até aqui tentamos apresentar algumas reflexões de Marx e Engels a respeito da política enquanto prática de transformação da realidade social, realizada pelos homens a partir dos seus interesses de classe, com suas lutas, revoluções etc. Nesse sentido, ficou manifesto que a política dentro dos limites da legalidade burguesa não tem a possibilidade de resolver as contradições sociais produzidas pela estrutura econômica capitalista. Marx deixa bem claro que o limite da política democrática burguesa se dá pela sua incapacidade de abolir os antagonismos de classe e as contradições sociais, ou seja, de o Estado não poder resolver os dramas sociais causados pelo capitalismo. Não é pela pura “vontade política”, entendida também como “onipotência da vontade”, ou pelo “entendimento político”, que se pode solucionar a dicotomia “Estado” e “sociedade”; nem pela efetivação dos Direitos Humanos sob a coordenação do Estado, pois não há esteio real que permita isso acontecer. A política, nesse sentido, não restitui o poder público à sociedade, mas dá “superpoder” ao Estado que expressa o poder de uma classe economica e politicamente hegemônica num período histórico dado. Para concluir essa reflexão, tomemos algumas colocações de Mészáros sobre a questão dos limites da ação política a partir da reflexão marxiana. Diz ele que “política e voluntarismo estão tão entrelaçados um no outro, e a irrealidade de remédios políticos baseados no desejo emana do ‘substitucionismo’ inerente à política enquanto tal.” 154 Para Marx, segundo Mészáros, a contradição entre o social e o político seria inconciliável, dado o caráter antagônico da própria base social, a estrutura econômica capitalista, que é perpetuada pela estrutura política, pelo Estado, como instituição política irredimível, logo precisaria ser 152 Ibid., v. 1, p. 38. Cf. MARX e ENGELS, op. cit., p. 44. 154 Cf. MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 564. 153 97 abolido, já que não pode realizar a autêntica universalidade da sociedade. E aí Mészáros 155 cita os principais traços da teoria política de Marx: 1. o Estado (e a política em geral, como um domínio separado) deve ser transcendido a partir de uma transformação radical da sociedade, mas não pode ser abolido por decreto ou por uma série de medidas políticoadministrativas; 2. a revolução não pode ser uma simples revolução política, mas uma revolução social, evitando ficar aprisionada nos limites do sistema que perpetua a exploração socioeconômica; 3. revoluções sociais têm como objetivo superar a contradição entre parcialidade e universalidade, pois as revoluções políticas do passado reproduziram essa contradição que submete a sociedade à regência da parcialidade política, a partir de interesses das seções dominantes da sociedade civil; 4. o sujeito histórico da revolução, da emancipação, é o proletariado, porque ele é forçado, a partir da maturação das contradições antagônicas do capitalismo, revolucionar a ordem social, e, portanto, impossibilitado de impor uma nova parcialidade sobre a sociedade; 5. lutas políticas e socioeconômicas formam uma unidade dialética e, por conseguinte, a negligência da dimensão socioeconômica priva a política de sua realidade; 6. condições objetivas são fundamentais para a implementação de medidas socialistas, pois, caso contrário, a política dos adversários pode continuar e aí seria apenas uma conquista prematura do poder pelos trabalhadores; 7. revolução social, para ser bem-sucedida, não pode se limitar apenas às revoluções políticas locais ou nacionais, ela tem que ser global/universal. Nessa perspectiva, afirma Mészáros que os elementos dessa teoria formam um todo orgânico, não podendo ser separados, pois sua importância significativa é resultado das suas interconexões recíprocas. A dominação do capital sobre o trabalho é de caráter fundamentalmente econômico, não político. A política apenas fornece “garantias políticas” para continuar a dominação já materialmente estabelecida e enraizada estruturalmente. Para Mészáros, não se pode quebrar a dominação do Capital no âmbito da política (burguesa), mas somente as garantias de sua organização formal. Não é à toa que Marx, segundo Mészáros, compara “a força pública organizada”, o poder de Estado da sociedade burguesa, a uma 155 Cf. Ibid., p. 566-567. 98 máquina política que perpetua, pela força, a escravidão social dos trabalhadores pelos capitalistas. É preciso entender a interligação entre Estado, capital e trabalho para a reprodução sistemática da sociedade capitalista, coisa que os adversários de Marx não conseguem compreender. Mészáros ainda cita Hegel, dizendo que seu sistema demonstrou o papel que joga a política na autorreprodução ampliada do mundo sob o domínio do capital e que também a sociedade civil do sistema do capital molda e reproduz a formação política à sua própria imagem. Para se contrapor a esse processo teimoso de perpetuação, Mészáros explicita o núcleo da concepção política de Marx, afirmando que a política socialista deve se preocupar em restituir à sociedade os poderes usurpados pelo Estado, pela política do substitucionismo burocrático, que impede um processo de transição de sua orientação teórica e estratégica, ou seja, “a política socialista ou segue o caminho aberto por Marx – do substitucionismo à restituição – ou deixa de ser política socialista e, ao invés de ‘abolir a si própria’ no processo, transforma-se em autoperpetuação autoritária.” 156 156 MÉSZÁROS, op. cit., p. 571. 99 CAPÍTULO 2 MARXISMO E MOVIMENTO SINDICAL 100 2.1 A Concepção Marxista de Sindicato: Marx, Engels, Rosa, Lênin e Trotsky Antes de explicitar a concepção marxista de sindicato a partir dos teóricos clássicos, faz-se necessário expor sucintamente como se deu o surgimento das primeiras associações dos trabalhadores até se transformarem em sindicatos de luta sistemática. Nesse caso, entender qual deve ser o papel do sindicato no processo da emancipação humana é importante para definir a sua estratégia de luta específica e também a sua relação com a luta mais universal que é a luta contra o capitalismo a favor do socialismo enquanto condição histórica imprescindível para a evolução humana. Se a luta economicista ou reivindicativa sindical por melhores salários e condições de trabalho (ou pela diminuição da jornada de trabalho) não pode ser desconsiderada como forma de evitar o enfraquecimento material da classe trabalhadora, então a luta política pela supressão das condições aviltantes desse sistema social de trabalho é algo necessário na história para elevar a humanidade à sua condição libertária. A realidade hostil capitalista nos impele a vislumbrar um futuro de justiça social entre os homens enquanto utopia a ser perseguida pela humanidade. Descartar essa utopia enquanto ideologia é paralisar o processo de evolução histórico-social. Nesse sentido, “Movimento Revolucionário”1 em Marx é o princípio de negatividade dialética (Aufhebung) que empurra a existência histórico-social para patamares superiores em contraposição às existências histórico-sociais inferiores. Feitas tais considerações, podemos então dizer que o sindicato surgiu a partir das corporações de ofício na Europa medieval. Mas foi com a Revolução Industrial na Inglaterra no século XVIII, com o advento do vapor e, em seguida, das máquinas, que os trabalhadores das indústrias têxteis, doentes e desempregados, juntaram-se em sociedades de socorro mútuos. Durante a Revolução Francesa, as ideias liberais apareceram com toda força para estimular a aprovação de leis que proibiam a atividade sindical, como a Lei Chapelier (adotada pela Assembleia Constituinte em 1791) e o Código Penal (redigido no período imperial de Napoleão) que consideraram ilegais as associações de trabalhadores e de patrões em nome da liberdade dos direitos do homem, como também consideraram ilegais as greves. É sabido, no entanto, que a legislação inglesa declara ilegais todas as coalizões até por volta de 1800, sendo abolida em 1824. Contudo, isso não evitou que as organizações sindicais se reerguessem clandestinamente no século XIX. Na França e no Reino Unido, por exemplo, os sindicatos e as associações foram legalizados em 1884, mas só depois de várias lutas travadas 1 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 32: “Para nós o comunismo nem é um estado a ser criado, nem um ideal pelo qual a realidade deverá se guiar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado atual de coisas. As condições desse movimento resultam das premissas atualmente existentes.” 101 pelo movimento operário internacional. Conforme Marx, Na Inglaterra, as coalizões são autorizadas por um ato do Parlamento e foi o sistema econômico que forçou o Parlamento a dar a esta autorização uma sanção geral. Em 1825, quando, sob o ministro Huskisson, o Parlamento foi levado a modificar a legislação, para melhor adequá-la a um estado de coisas resultante da livre concorrência, ele teve, necessariamente, que abolir todas as leis que interditavam as coalizões dos operários.2 Na Miséria da Filosofia3, Marx declara que já existia na Inglaterra a Trade Unions como Associação, criada em 1845, para defender melhorias na legislação fabril e nas condições de venda da força de trabalho. A Trade Unions (Uniões Sindicais) existiu até o início dos anos de 1860 por toda a Inglaterra em vários ramos industriais, porém, já não desempenhava um papel tão importante no movimento sindical. Sua principal função era fixar os salários para a categoria, ou melhor dizendo, criava uma escala de salários forçando os capitalistas a sua aceitação. A Trade Unions também auxiliava financeiramente os operários nas greves, através de “Caixas de Resistência” para aumentar a capacidade de luta da classe operária. O socialista utópico inglês Robert Owen foi quem presidiu o Primeiro Congresso em que as Trade Unions de toda Inglaterra se fundiram numa única grande organização sindical: Grande União Consolidada dos Trabalhadores, criada em 1834. 4 Citemos também o Cartismo, enquanto um movimento político, que empolgou os trabalhadores ingleses entre os anos de 1830-1850, tornando-se a posteriori um grande partido político que canalizava as lutas dos trabalhadores. O Cartismo denomina-se, assim, pela sua função de reivindicações básicas contidas na carta do povo5. O movimento cartista na Inglaterra se caracterizava, sobretudo, pela luta dos trabalhadores para diminuir a jornada de trabalho de 16 horas para 10 horas, tendo como seus principais líderes Harvey e O’Connor com quem Marx estabeleceu relações. No entanto, para Badaloni, “a história do movimento operário no curso do século XIX, além de ter sido uma luta por salário, foi também uma luta 2 MARX, Karl. As greves e as coalizões de operários. In:____. Miséria da Filosofia. São Paulo: Global, 1985. p. 153. (Coleção Bases, 46). Sobre a legislação sanguinária contra os expropriados, a partir do século XV para rebaixar salários, ver Karl Marx, Acumulação primitiva. In: O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d], v. II, p. 851 et seq. 3 Cf. MARX, Miséria da Filosofia, p. 157-158. 4 Cf. ANTUNES, Ricardo. O que é sindicalismo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 17-20. (Coleção Primeiros Passos, 3). 5 Cf. ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global Editora, 1986. p. 257: Seis pontos da Carta ao Povo: 1) Sufrágio Universal; 2) Renovação anual do Parlamento; 3) Fixação de uma remuneração parlamentar a fim de que os candidatos sem recursos possam igualmente exercer mandato; 4) Eleições secretas para evitar a corrupção e intimidação burguesa; 5) Circunscrições eleitorais iguais a fim de assegurar representações equitativas; e 6) Abolição da disposição que reserva a elegibilidade apenas aos proprietários de terras no valor de pelo menos 300 libras esterlinas, de modo que qualquer eleitor seja a partir de então elegível. 102 pela redução do tempo de trabalho.”6 Engels, num escrito em 4 de junho de 1881 (The Labour Standard), afirma que “estas organizações poderosas [os sindicatos], até agora, limitaram-se quase estritamente a sua função de partilha na regulação dos salários e horas de trabalho e de impor a revogação de leis abertamente hostil aos trabalhadores.” 7 Assim, Engels considera que as funções dos sindicatos são para regulamentar a taxa de salários e garantir ao trabalhador alguns meios de resistência em sua luta contra o capital. Desde seu nascimento, os sindicatos mostraram-se fundamentais para o avanço das lutas dos trabalhadores contra a exploração dos patrões ou, como diz Engels, “estas associações alimentam o ódio e a exasperação dos operários contra a classe possuidora” 8. Entretanto, sua evolução não se limitou à nação inglesa, pois na França, Alemanha, Estados Unidos, como em outros países, com o desenvolvimento das atividades industriais na metade do século XIX, surgiu também um proletariado cada vez mais forte quantitativa e qualitativamente, ou seja, o movimento sindical se expandiu na Europa e nos Estados Unidos onde surgiram as grandes greves. O movimento sindical, nesse sentido, também se transformou num movimento político, porque se, no início, tinha o objetivo de organizar os trabalhadores para lutar contra os ataques do capital, passou a posteriori a lutar pela sua emancipação radical, a saber, a lutar para abolir o sistema capitalista, sua existência de trabalhador assalariado pelo capital. Daí surgirem vários movimentos políticos como o Cartismo na Inglaterra, as Revoluções de 1848 na França e Alemanha e a célebre Comuna de Paris de 1871. Nestes eventos de luta política, a participação da classe operária foi crucial e decisiva.9 Todavia, qual seria o verdadeiro papel do sindicato como instrumento de luta dos trabalhadores, ou seja, qual seria então a concepção e/ou a função do sindicato no contexto histórico do capitalismo na luta pelo socialismo? Responder a esta indagação nos remete a alguns dos principais autores marxistas clássicos que tocaram na questão, seja de forma mais profunda ou mesmo mais pontual, mas de importância não desprezível. Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, Lênin e Trotsky são os autores clássicos do marxismo que abordaram este tema de forma mais sistemática. Extrair de 6 BADALONI, Nicola. Marx e a busca da liberdade comunista. In: HOBSBAWM, Eric J. História do Marxismo I. p. 244. 7 Ver Artigos de Engels no padrão do Trabalho de 1881, The Labor Standard (Sindicatos). Disponível em: < htpp://marxists.org/archive/marx/works/subject/trade-unions/index.htm>. Acesso em: 11 jan. 2011. 8 ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 249. 9 Como não é possível nos limites deste texto abordar toda a história do movimento sindical dos trabalhadores no mundo, já que o objetivo é explicitar qual é o papel político do sindicato no processo de conscientização dos trabalhadores em busca do socialismo, ver então Georgs Lefranc, O sindicalismo no mundo. Portugal: Ed. Europa-América, 1974. 103 seus textos essas reflexões é imprescindível para podermos encontrar o ponto de partida que nos leve a uma conclusão mais plausível para esta indagação sobre a concepção de e/ou o papel do sindicato. Parece claro que os movimentos associativos dos trabalhadores vieram muito antes do que a sua associação política partidária, pelo menos em alguns países importantes como a Inglaterra, ou seja, as associações e os sindicatos foram o primeiro passo dado pelos trabalhadores para criar posteriormente seus partidos políticos revolucionários ou reformistas que pudessem conduzir sua luta sistematica e/ou revolucionariamente, superando a luta meramente reivindicativa ou economicista, percebendo, assim, os limites da luta sindical no marco do capitalismo. Marx e Engels, portanto, foram fundamentais nesse processo de evolução da luta dos trabalhadores, a partir de suas participações na Primeira Internacional, com o lançamento do Manifesto do Partido Comunista em 1864. Porém, bem antes, Marx e Engels já observavam o movimento da luta operária na Inglaterra com o advento do capitalismo industrial. E isso pode ser percebido de forma mais contundente nos escritos A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (Engels) e a Miséria da Filosofia (Marx). No primeiro escrito, Engels mostrou que a forma mais elementar da luta de classe operária marcou uma resistência violenta à introdução de máquinas, ou seja, os primeiros inventores foram perseguidos e suas máquinas destruídas. 10 Esse tipo de revolta era de caráter isolado e cego, porque o inimigo dos operários não era a máquina, mas os donos que a usavam para auferir lucros e diminuir o controle dos trabalhadores sobre o processo de produção; e Marx já fazia essa diferenciação em O Capital, afirmando que “era mister tempo e experiência para o trabalhador aprender a distinguir a maquinaria de sua aplicação capitalista e atacar não os meios materiais de produção, mas a forma social em que são explorados.”11 No segundo escrito, Marx tematiza a questão da elevação dos salários, das greves e das grandes indústrias, além claro das leis que limitavam ou proibiam o direito de associação dos trabalhadores. Tais discussões sobre o papel dos sindicatos no movimento operário deram-se através de vários documentos do Conselho Geral da Primeira Internacional (International Workingmen’s Association) como “Em Sindicatos e a Internacional” (on Trade Unions and the International), “Sindicatos Neutros” (Trade Unions Aloof) etc. Iniciemos primeiramente por Marx. No contexto do século XIX, havia uma 10 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. In: LASKI, Harold J. O Manifesto do Partido de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 101: “[Os trabalhadores] Atacam não os condicionamentos burgueses da produção, mas os próprios meios de produção; destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e procuram reconquistar a posição perdida do artesão da Idade Média.” 11 MARX, O Capital, v. I, p. 490-491. 104 efervescência política forte na Inglaterra e França. As lutas políticas e sindicais dominavam aquele contexto histórico-social. Diz Marx, em a Miséria da Filosofia12, que as coalizões eram mais amplas e melhor organizadas onde existiam indústrias mais desenvolvidas e modernas e que o grau alcançado em um país pela coalizão era determinado nitidamente pelo grau que tal país ocupa numa hierarquia do mercado universal. Portanto, os primeiros ensaios dos trabalhadores para se associarem entre si deram-se sob a forma de coalizões; em outras palavras, embora a concorrência entre os trabalhadores dividisse seus interesses, o que os unia, deveras, era a manutenção dos salários, ou seja, havia um interesse comum contra o patrão que os reunia num mesmo pensamento de resistência, a coalizão. Para Marx, a coalizão tinha um duplo objetivo: “fazer cessar entre elas a concorrência, para poder fazer uma concorrência geral ao capitalista.”13 Dessa maneira, se o primeiro objetivo de resistência é a manutenção do salário, muito mais importante é a manutenção da associação. Tal luta, diz Marx, é uma verdadeira guerra civil onde podem se reunir e se desenvolver todos os elementos necessários a uma batalha futura, que ao chegar a este ponto, a associação adquire um caráter político. É aqui que Marx ressalta a relevância dos trabalhadores se organizarem em associações, pois como ele mesmo afirma, As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política.14 Marx termina o texto, “As greves e as coalizões dos operários” 15 , dizendo que o movimento social não exclui o movimento político, pois todo movimento social é um movimento político. As revoluções políticas só deixarão de existir como evoluções sociais quando não existirem mais classes e antagonismos entre classes. Com outras palavras, Marx e Engels reforçam essa ideia, ao dizerem que O aprimoramento contínuo e o rápido desenvolvimento das máquinas tornam a condição de vida do trabalhador cada vez mais precária; os conflitos individuais entre o trabalhador e o burguês assumem cada vez mais o caráter de conflito entre classes. A partir daí os trabalhadores começam a formar uniões (sindicatos) contra os burgueses; atuam em conjunto na defesa dos salários; fundam associações permanentes que os preparam para esses choques eventuais. Aqui e ali a luta se transforma em motim.16 12 Cf. MARX. As greves e as coalizões de operários. In: Miséria da Filosofia, p.158. MARX. As greves e as coalizões de operários. In: op. cit., p. 158-159. 14 Ibid., p. 159. (Grifo nosso). 15 Cf. MARX, op. cit., p. 160. 16 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., p. 101. 13 105 Para Marx e Engels, há então um triunfo ocasional dos trabalhadores nessa luta sindical; mas o verdadeiro resultado da luta não é o êxito imediato e sim a reunião cada vez mais ampla dos trabalhadores que é facilitada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação criados pela indústria moderna que possibilita o contato dos operários em várias localidades. Esse encurtamento do contato entre trabalhadores facilita a centralização das lutas locais. O que pode abalar a organização do proletariado, dizem Marx e Engels no Manifesto, é a competição entre os próprios trabalhadores. O que deve ser ressaltado, porém, é que a própria burguesia fornece os elementos da politização do proletariado, isto é, as armas contra ela própria. Desse modo, reafirmam Marx e Engels 17 que o progresso da indústria substitui o isolamento dos operários por sua união revolucionária, quer dizer, como consequência da sua associação. Em alguns textos da Associação Internacional dos Trabalhadores como “Os sindicatos. Seu passado, presente e futuro”18 (Trades Unions. Their past, present and future), escrito por Marx em agosto de 1866, há um reforço desta tese marxista de que a desunião dos trabalhadores é criada e perpetuada pela sua inevitável concorrência entre si, pois o único poder social dos trabalhadores é o seu número, quer dizer, a força dos números é quebrada por essa desunião. Se os sindicatos originalmente surgiram das tentativas espontâneas dos trabalhadores de eliminar e/ou controlar a competição entre eles, ou seja, para estabelecer contratos que pudessem tirá-los da condição de meros escravos assalariados e, portanto, criando as condições de salários e jornada de trabalho como uns dos seus objetivos, então a atividade sindical não é apenas legítima, mas é necessária. Daí a importância para Marx de os sindicatos se formarem e se combinarem em todos os países, pois os sindicatos são centros de organização da classe trabalhadora, tais como os municípios medievais e as comunas fizeram para a classe media. Os sindicatos, segundo Marx, são, na verdade, lutas de guerrilhas entre o capital e o trabalho, ou seja, são as mais importantes agências de organização para abolir o sistema de trabalho assalariado (abstrato) e o regime capitalista (seu passado).19 Dessa maneira, os sindicatos se empenham exclusivamente, segundo Marx, nas lutas locais e imediatas contra o capital, mas eles não compreendem totalmente o seu poder de agir contra o sistema de salário escravo, a saber, os sindicatos se mantêm distantes do movimento 17 Cf. MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., p. 104. Disponível em: < htpp:/www.marxists.org/archive/marx/works/subject/trace-unios/index.htm>. Acesso em: 11 jan. 2011. 19 Cf. também LOSOVSKY, A. Marx e os sindicatos. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 1989, p. 7: “Os sindicatos são eixo organizador da classe proletária, tal como as municipalidades e as paróquias medievais eram para a burguesia, ou seja, os sindicatos são indispensáveis às guerrilhas cotidianas entre o capital e o trabalho, não menos importantes os são como meios de organização da classe proletária para abolir o sistema do trabalho assalariado.” 18 106 de luta política e social em geral e parecem não despertar para o sentido da sua grande missão histórica. Na verdade, Marx sempre salienta neste texto da Associação Internacional dos Trabalhadores que os sindicatos precisam agir deliberadamente como centros organizadores da classe operária no interesse de sua completa emancipação e precisam de toda a ajuda do movimento político e social que tende a esse sentido. Assim sendo, os sindicatos precisam mobilizar a sociedade enquanto representantes da classe trabalhadora e que seus esforços não são egoístas, justamente porque tem como objetivo a emancipação de milhões de pessoas. Conforme Nogueira, “é fato que os sindicatos se limitam à representação de interesses particulares e ao arranjo pragmático no plano político, e estão diante do desafio da retomada da atuação social e política, voltada para o mundo do trabalho.” 20 Em Salário, Preço e Lucro, Marx nos adverte, no entanto, que mesmo que haja uma resistência periódica dos trabalhadores de se oporem à redução dos salários e também de lutarem para conseguir um aumento nos salários, não podemos deixar de perceber que são fenômenos inseparáveis do sistema do salariado em que o trabalho é equiparado às mercadorias, logo submetido às leis que regulam o movimento geral dos preços. Na verdade, para Marx, o valor do trabalho é estabelecido pelo limite mínimo, ou seja, determinado pelo valor dos meios de subsistência necessários à sua manutenção e reprodução, valor este, portanto, regulado pela quantidade de trabalho necessário para produzi-los. É por isso que Marx nos alerta que a classe operária não deve exagerar a seus próprios olhos no resultado final dessas lutas diárias. Não deve esquecer de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos; que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo mudar de direção, que aplica paliativos, mas não cura a enfermidade. Não deve, portanto, deixar-se absorver exclusivamente por essas inevitáveis lutas de guerrilhas, provocadas continuamente pelos abusos incessantes do capital ou pelas flutuações do mercado. A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõem, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez do lema conservador de “Um salário justo para uma jornada de trabalho justa!”, deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária “Abolição do sistema de trabalho assalariado!”21 No final dessa discussão, Marx propõe as seguintes resoluções: 1) Uma alta geral da taxa de salários acarretaria uma baixa da taxa geral de lucro, mas não afetaria, em linhas gerais, os preços das mercadorias; 2) A tendência geral da produção capitalista não é para elevar o padrão médio dos salários, mas para reduzi-los; e 3) Os sindicatos trabalham bem como centro de resistências contra as usurpações do capital. Falham em alguns casos, por usar pouco inteligentemente a 20 NOGUEIRA, Arnaldo J. F. Mazzei. A liberdade desfigurada: a trajetória do sindicalismo no setor público brasileiro. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 66. 21 MARX, Karl. Salário, preço e lucro. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 184. (Os Economistas). 107 sua força. Mas são deficientes, de modo geral, por se limitarem a uma luta de guerrilhas contra os efeitos do sistema existente, em lugar de, ao mesmo tempo, se esforçarem para mudá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para abolição definitiva do sistema de trabalho assalariado.22 Percebemos aí no item 3 da citação que Marx aponta a importância da luta sindical, seus limites e suas falhas, quer dizer, os sindicatos são organizações de luta imprescindíveis para que a classe trabalhadora possa resistir às ameaças dos interesses do capital, mas também assinala que eles tornam-se falhos em determinados casos, por não saberem utilizar seu poder de força política de forma mais sistemática, estratégica, quer dizer, os sindicatos lutam pelas causas imediatas, contra os efeitos do capitalismo, mas não conseguem lutar contra as causas que geram tais efeitos, sobretudo porque tais forças não são organizadas para abolir o capital, objetivando a emancipação dos trabalhadores da exploração capitalista. No ínterim dessa discussão marxiana se encontra a questão fundamental do aumento do “capital constante” e a diminuição do “capital variável”. A maquinaria nova ou a ampliação da velha, ao ser realizada, faz com que parte do “capital variável” se transforme em “capital constante”. Em outras palavras, os trabalhadores ficam sem empregos, porque foram expulsos do mercado de trabalho com a introdução da maquinaria. Nesse sentido, diz Marx em O Capital, “A procura de trabalho não se identifica com o crescimento do capital, nem a oferta de trabalho com o crescimento da classe trabalhadora. Não há aí duas forças independentes, uma influindo sôbre (sic) a outra.”23 Daí Marx afirmar que o capital e seu defensor protestam quando os trabalhadores empregados e desempregados se organizam através de sindicatos para destruir e enfraquecer as consequências ruinosas da lei natural da produção capitalista sobre a classe, isto é, a sacrossanta lei da oferta e da procura. 24 Em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, Engels lança os primeiros elementos de reflexão sobre a péssima condição de vida dos trabalhadores neste país, a partir de sua experiência em locus, em 1842, aos 22 anos, ao estagiar na fábrica de fiação de seu pai em Manchester. Engels percebeu as péssimas condições de trabalho dos operários nas fábricas, seu movimento em associações, enfim, ele apropriou-se de uma vivência social dos operários que lhe forneceu os elementos empíricos para teorizar sobre o processo de exploração capitalista, mas, sobretudo, para desenvolver a noção de revolução industrial. Eis aí com certeza a grande manifestação do pensamento político marxista. Não é à toa que Engels afirma ab initio que 22 MARX, Salário, preço e lucro, p. 185. MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d]. v. II, p. 742. 24 Cf. MARX, O Capital, v. II, p. 742. 23 108 [...] os operários ingleses não podem sentir-se felizes numa tal situação; que a situação não é a mais adequada para que um homem, ou uma classe inteira, tenha possibilidade de pensar, sentir e viver humanamente. Os operários devem, portanto, tentar se libertar desta situação que os coloca ao nível dos animais, para criarem para si próprios uma existência melhor, mais humana, e só o podem fazer entrando em luta contra os interesses da burguesia enquanto tal, interesses que residem precisamente na exploração dos operários. 25 E Engels denuncia assim a situação operária na Inglaterra, dizendo que o burguês trata o operário como uma coisa, como sua propriedade, e, segundo Engels 26, esta é uma boa razão para que o operário se manifeste como inimigo da burguesia. Nesse sentido, ressalta Engels que o operário só pode valorizar as suas qualidades humanas, opondo-se ao conjunto das suas condições de vida imposta pelo capitalismo industrial. Indaga então Engels: como fazer oposição a essa realidade social capitalista? Como se opor a certa “filantropia” burguesa sob a aparência de uma paz social? A oposição começou, diz Engels, com uma ação violenta dos trabalhadores contra a introdução de máquinas, logo no início do movimento industrial. Essa ação se transformou num grande número de revoltas em várias partes da Inglaterra. Como eram proibidos os trabalhadores de se associarem, havia associações secretas ou ilegais, como a dos mineiros, por exemplo, que organizava a greve geral tal como ocorreu na Escócia em 1812 e 1822. Mas só em 1824 é que o direito à livre associação foi obtido pelos operários, como já tínhamos dito antes. Tais associações se multiplicaram por toda a Inglaterra. Como foi explicitado anteriormente, a Trade Unions representava esse tipo de organização que visava a proteger os trabalhadores contra a exploração dos patrões. Então, seus fins eram fixar salários, negociar em massa, enquanto força, com os patrões, regulamentar os salários em função do benefício do patrão, aumentá-lo no momento adequado e mantê-lo ao mesmo nível de cada ramo de trabalho. Na realidade, tais uniões tinham o propósito de negociar com os capitalistas a instituição de uma escala de salários que seria cumprida em toda a parte, podendo o operário se recusar a trabalhar para o patrão que não obedecesse a essa escala. Fora isso, as uniões tinham também como objetivos: 1) manter sempre ativa a procura de trabalhadores, limitando o contrato de aprendizes para impedir a redução de salários; 2) lutar contra as ardilosas reduções salariais que os industriais se utilizavam como estratagema o uso de novas máquinas; e 3), por fim, ajudar financeiramente os operários por meio de caixa da associação. O perigo das Associações para o industrial, segundo Engels, está no fato de que elas podem desencadear uma greve, caso o patrão queira reduzir os salários a níveis cada vez mais 25 26 ENGELS. Os movimentos operários. In: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 241. Cf. Ibid., p. 242. 109 baixos a fim de aumentar seus lucros. Em outras palavras, isso poderia desencadear uma greve por parte dos operários que traria ao patrão um prejuízo de um capital inativo com máquinas paradas e, consequentemente, enferrujadas. Mas há situações em que a ação das Associações é impotente, pois quando há crises econômicas em que a oferta de trabalho diminui, elas perdem seu poder de força ou de pressão por aumento ou conservação salarial. Nesse caso, ficam elas à mercê das circunstâncias adversas do sistema capitalista, esperando por uma nova fase de prosperidade para poder pleitear melhores condições de salários e trabalho. É por isso que Engels diz que A história destas associações é uma longa série de derrotas dos trabalhadores, interrompida por algumas vitórias esporádicas. É natural que todos esses esforços não consigam mudar as leis da economia, que o salário seja regido pela relação da procura e da oferta no mercado de trabalho. É por isso que as associações não podem contra as grandes causas que agem sobre essa relação.27 Isso nos leva a deduzir que, tal como as Associações do tempo de Engels, os sindicatos de hoje estão no mesmo plano de luta e ação imediatista, quer dizer, repetem as mesmas estratégias das lutas de guerrilhas do cotidiano capitalista. Pois, enquanto os trabalhadores não entenderem como age e se “perpetua” a relação entre salário e lucro, a relação antagônica entre capital e trabalho, a luta sindical fica à deriva das situações históricas do ciclo de Kondratieff com períodos médios de 22,6 anos, ou seja, das fases cíclicas do capitalismo: prosperidade, crise e depressão. Desse modo, esse tipo de ação da luta sindical impede que o trabalhador vise um outro modo de vida social para além do capitalismo. No entanto, Engels ressalta um aspecto positivo das Associações, a saber, elas são o protesto concreto do operário (inglês) contra a cupidez da burguesia, impondo, portanto, limites nessa ganância de classe e denunciando sua onipotência social e política enquanto classe dominante, embora saiba ele que tais Associações não chegam a quebrar o domínio da burguesia. Para Engels, “[...] o que dá a estas associações e às greves que elas organizam a sua verdadeira importância é que elas são a primeira tentativa dos operários para abolir a concorrência.”28 Nesse sentido, o ponto fraco para a burguesia, conforme Engels, é que as Associações atacam a concorrência, ou seja, esse nervo vital da ordem social capitalista que divide os trabalhadores entre si. A supressão da concorrência entre os operários é o objetivo fundamental para que eles possam estar bem resolvidos para não se deixarem explorar mais pelos capitalistas, e, nesse sentido, o reino da propriedade privada burguesa chegará ao seu fim. 27 28 ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 246. Ibid., p. 248 110 Se os trabalhadores não se deixarem ser comprados ou vendidos, se abandonarem a determinação do valor do trabalho imposto pelo capital, e, portanto, se afirmarem como seres humanos, isto é, de que eles não são apenas a sua força de trabalho, mas seres de vontade própria, então será o fim de toda a economia política e as leis que regem os salários, assim nos relata Engels 29. A necessidade então aboliria não somente a concorrência dos trabalhadores entre si, mas também a concorrência em geral. Essa compreensão do capitalismo como um sistema de crises, que apenas afetam sordidamente os trabalhadores, faz com que necessariamente haja uma luta maior que possa abolir o sistema como um todo e não apenas uma típica forma de exploração menos injusta. O que podemos destacar nesse texto de Engels – Os Movimentos Operários – é a necessidade do operário de se organizar politicamente para barrar leis que são empecilhos à possibilidade de ele ter uma condição de vida melhor no mundo do trabalho. O Cartismo e, como corolário, a “Carta do Povo” (People’s Charter) tinham o objetivo de tornar a “Câmara dos Comuns” mais democrática, quer dizer, ter uma base parlamentar mais democrática que pudesse tornar a lei mais universal possível. Isso se deve à percepção negativa que o operariado inglês tinha da lei que lhe funcionava como um chicote preparado pela burguesia. A lei para o burguês era sagrada, porque não permitia que a sociedade tocasse na ordem social e econômica estabelecida por ele. A lei se tornava, então, sacrossanta. Por outro lado, o operariado inglês não poderia ter a consciência plena de sua força política e social fora dos parâmetros da legislação. Esta regulava a ação social dos trabalhadores, inclusive as greves que poderiam ser instrumentos de massa contra a propriedade privada da exploração. O que pode caracterizar o Cartismo é uma palavra de ordem bastante usada: “O nosso meio é o poder político; a nossa felicidade é a felicidade social.”30 Mas infelizmente tanto o Cartismo como o Socialismo inglês31 pregam uma filantropia e um amor universal ainda mais estéril, ou seja, admitem apenas a evolução psicológica, a evolução do homem abstrato, sem qualquer ligação com o passado, mesmo que o mundo e o homem repousem sobre este passado. Para Engels, portanto, os socialistas ingleses e muitos cartistas são demasiado metafísicos, pois pouco fazem. O que também podemos considerar nessa discussão engelsiana sobre a condição da classe trabalhadora na Inglaterra é a forma educacional dos movimentos cartistas e socialistas. 29 Cf. ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 248. ENGELS, op. cit, p. 264. 31 Vale esclarecer que os cartistas eram mais atrasados, menos evoluídos, mas eram os que representavam autentica e fisicamente o proletariado. Os socialistas enxergavam mais longe, queriam medidas mais práticas contra a miséria, mas eram de origem burguesa e, portanto, foram incapazes de se amalgamar com a classe operária. Ver Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 266. 30 111 Eles criaram com seus próprios meios um grande número de escolas e salas de leitura para elevar o nível intelectual do povo. Ou como diz Engels, Todas as instituições socialistas e quase todas as instituições cartistas possuíam um estabelecimento deste gênero, e muitas associações profissionais os possuem igualmente. Dão às crianças uma educação verdadeiramente proletária, isenta de todas as influências burguesas, e nas salas de leitura encontram-se, exclusivamente ou quase, jornais ou livros proletários. Estes estabelecimentos representam um grave perigo para a burguesia que conseguiu subtrair um certo número de Institutos desse gênero, as Mechanic’s Institutions, à influência do proletariado e transformá-los em instrumentos destinados a espalhar entre os operários conhecimentos úteis à burguesia.32 Na verdade, o que se ensinava aos operários nesses institutos subtraídos eram as ciências da natureza para distraí-los da sua luta contra a burguesia; por outro lado, tal ensinamento sob a influência burguesa dava os meios para os operários fazerem descobertas e/ou invenções que traziam dinheiro para os burgueses. Também se ensinava economia política, cujo ídolo é a livre concorrência, ou seja, ensinava-se ao operário a morrer de fome com uma calma resignação, tendo assim uma educação dócil, servil relativamente à política e à religião reinantes, cujo resultado final seria uma obediência tranquila, uma passividade e uma submissão ao seu destino cruel no capitalismo. Felizmente, a grande massa dos operários não queria nem ouvir falar destes institutos aburguesados, preferindo as salas de leituras proletárias e orientando-se para as discussões sobre as relações sociais. Havia numerosas conferências científicas, estéticas e econômicas patrocinadas nos institutos socialistas que atraiam os operários, demonstrando que eles gostavam de uma “educação séria”, desde que não se misturassem com os interesses burgueses. Neste ponto, nos afirma Engels, o proletariado soube adquirir uma cultura própria, utilizando-se de obras modernas de filosofia, política e poesia para leitura. O proletariado tinha, dessa maneira, os olhos voltados para todo o progresso da humanidade e, ipso facto, estudava com prazer e sucesso. Daí o proletariado constituir uma literatura própria a partir dessas bases humanistas, compondo brochuras, jornais e panfletos, cujo valor intelectual ultrapassava, de certa forma, o da burguesia. Para Engels, essas organizações operárias, proibidas e legalizadas depois, tornaram-se sedes poderosas do Cartismo como meios de divulgar princípios próprios e concepções particulares em face de toda classe possuidora, pois é no proletariado que residem a força e a capacidade de desenvolvimento da nação. 33 32 ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 266-267. Nos bairros de miséria do leste de Londres, houve uma sacudida no desespero paralisante dos trabalhadores, quer dizer, eles voltaram à vida e tornaram-se o berço de um novo unionismo, id est, uma organização de massa dos trabalhadores sem qualificação. A diferença dessa organização para a tradicional era a não consideração do salário como um fato definitivo, estabelecido de uma vez para sempre, pois para as Novas Uniões, a crença na 33 112 Depois desse apanhado reflexivo de Marx e Engels sobre “sindicatos”, suas concepções e funções ou tarefas de luta, culminamos esta discussão com a exposição teórica de Rosa Luxemburgo, Lênin e Trotsky sobre a temática. Eles são, a nosso ver, mais complementares no desenvolvimento desta discussão por terem vivido os momentos de efervescência da Segunda Internacional em que o Partido Social Democrata Alemão e Russo tiveram papéis importantes na organização dos sindicatos operários europeus. Rosa Luxemburgo já anota primeiramente, em Os sindicatos, as cooperativas e a democracia política34, que o socialismo de Bernstein, por exemplo, tinha o objetivo de fazer com que os operários participassem da riqueza social para transformar os pobres em ricos; para isso, diz ela, Bernstein propunha realizar tal socialismo de duas formas: com os sindicatos e as cooperativas, quer dizer, com o auxílio dos sindicatos, pretendia-se suprimir o lucro dos industriais, e com o auxilio das cooperativas, o lucro. Comecemos, então, por Rosa Luxemburgo sobre essa discussão da finalidade dos sindicatos no processo da luta pela emancipação humana. Se tudo se inicia com a postulação do socialismo para derrubar a sociedade capitalista, nada mais natural do que compreender essa dinâmica reflexiva em Rosa Luxemburgo sobre o papel dos sindicatos neste processo. Uma coisa é certa para Rosa Luxemburgo, ou seja, Marx tinha razão, quando viu no modo de distribuição numa época determinada, apenas uma consequência natural da forma de produção dessa mesma época. Portanto, se a social-democracia luta pela socialização de toda economia, ela aspira uma “justa” distribuição de riqueza social, não se limitando a centralizar a sua luta no âmbito da produção capitalista, mas na abolição da produção mercantil capitalista; diferentemente de Bernstein que busca limitar a distribuição da riqueza socialmente produzida no campo da ordem progressiva do capitalismo. Esse quixotequismo bernsteiniano é criticado por Rosa Luxemburgo por ser uma ação moral da reforma do mundo. É no texto Greves de Massas, Partido e Sindicatos que Rosa Luxemburgo fornece, para o movimento operário, em geral, e para social-democracia, em particular, os ensinamentos da Revolução Russa, ou melhor dizendo, estuda o problema da greve política, da greve de massa, vendo em tal greve uma nova arma de luta do proletariado. Citando uma crítica de Engels a Bakunin sobre a greve geral, Rosa Luxemburgo afirma que este anarquista entendia a greve geral como uma alavanca para se fazer a revolução social. Bastaria os perenidade do salário estava abalada. Sobre isso, ver Friedrich Engels, Prefácio à Edição Alemã de 1892. In: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 376-377. 34 Cf. LUXEMBURGO, Rosa. Os sindicatos, as cooperativas e a democracia política. In:_____. Textos Escolhidos. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 90-91. 113 operários de todas as fábricas ou de todos os países pararem por um período de quatro semanas, para que as classes possuidoras capitulassem ou atacassem os operários. Seria um “cavalo de batalha” no qual precisaria a classe operária estar muito bem organizada e seus cofres bastante cheios para financiar esta luta. Para Engels, afirma Rosa Luxemburgo, não seria necessário que essa organização estivesse desenvolvida e/ou tivesse um fundo de reservas, precisaria somente que os acontecimentos políticos e as intervenções das classes dominantes se dessem para se conduzir a essa libertação dos trabalhadores. A greve, nesse sentido, seria apenas um rodeio para se atingir o objetivo da emancipação humana. Ademais, para Rosa Luxemburgo, a teoria anarquista da greve geral como meio de atingir a revolução social, se opondo, portanto, à luta política diária da classe operária, parecia se encaixar perfeitamente no simples dilema, a saber, ou proletariado não possui ainda organizações poderosas e cofres cheios para se suceder bem numa greve geral, ou o proletariado já se encontra poderosamente organizado sem precisar fazer greve geral. Para Marx e Engels, em oposição ao bakuninismo – diz Rosa Luxemburgo –, é a luta política que é o instrumento indispensável para a revolução social. Mas o que parecia impossível, a Revolução Russa submeteu o argumento marxista a uma revisão fundamental, ou seja, pela primeira vez na história das lutas de classes, a ideia da greve geral se realizou grandiosamente, inaugurando uma nova época na evolução do movimento operário. Porém, para Rosa Luxemburgo, isso não anularia o argumento de Marx e Engels sobre a importância maior da luta política, pois os raciocínios e os métodos que estavam na origem da tática (da luta política) serviram como novos fatores e condições totalmente novas da luta de classes. Nesse sentido, diz Rosa Luxemburgo, A Revolução Russa, que constituiu a primeira demonstração histórica da greve geral, foi tanto a reabilitação do anarquismo, como também significou a sua própria liquidação histórica. É preciso salientar que a greve de massas na Rússia não foi realizada como uma forma de saltar rapidamente para a revolução social, no sentido de evitar a luta política, mas uma forma de criar as condições da luta política diária para o parlamentarismo, isto é, tornou-se uma arma eficaz para o proletariado conquistar direitos e condições políticas imprescindíveis na luta pela emancipação, como demonstraram Marx e Engels no seio da Primeira Internacional em oposição ao anarquismo que repudiava a ação política. Daí Rosa Luxemburgo afirmar que a greve de massas, ao contrário do que pensavam os anarquistas, como uma ação “não política”, surgiu naquele período como a mais poderosa arma da luta política pela conquista dos direitos políticos dos trabalhadores russos. Para Rosa Luxemburgo, 114 Uma coisa que a revolução russa nos ensina é, em primeiro lugar, que a greve de massas não é nem “fabricada” artificialmente, nem “decidida” ou “propagada” à toa, no ar, mas constitui um fenómeno histórico que se produz num determinado momento, como consequência das condições sociais, sob o efeito da necessidade histórica [...].35 A greve de massas, por conseguinte, não é uma forma abstrata da luta, tal como a revolução. “Greve de massas” e “Revolução” são conceitos que representam a forma externa da luta de classes, pois não possuem conteúdo ou sentido, senão, numa relação face às situações políticas muito específicas. Embora a greve de massas também tenha sido um fenômeno para alargar o horizonte intelectual do proletariado, reavivando sua consciência de classe para aprofundar suas ideias e aumentar suas energias, ela difere da greve política de massas por ser uma paragem do trabalho proletário industrial que visa apenas à conclusão de um acordo político que beneficia as direções dos partidos e dos sindicatos tal como ocorre na Alemanha, na mais perfeita ordem, baseando-se numa palavra de ordem dada em devido tempo pelas direções. O que mais impressionou Rosa Luxemburgo sobre o fenômeno das greves de massas na Rússia, foi a sua diversidade, isto é, ele refletia todas as fases da luta política e econômica, todos os estágios e momentos da revolução. De outra maneira, também na greve de massas, a sua possibilidade de aplicação e os seus efeitos, bem como as suas causas originais, transformaram-se continuamente, quer dizer, a greve de massas apresentou subitamente à Revolução Russa novas e amplas perspectivas na altura de um impasse e falha em que se podia contar com ela toda segurança. A forma como se espalhou pela Rússia demonstrou que a greve de massas se dividiu numa rede de canais por várias cidades. Greve política e greves econômicas, greve de massas e greves parciais, greves de demonstração e greve de combate, greve num determinado setor e greve numa cidade inteira – batalhas travadas por salários e batalhas nas ruas ou combate de barricadas – tudo isso fica entrelaçado e se funde num único mar de fenômenos eternamente mutável e em movimento. Nestas linhas, Rosa Luxemburgo enfatiza a importância da greve, ao dizer que A greve é a pulsação viva da revolução e, simultaneamente, o seu mais poderoso motor. Numa palavra, a greve de massas é, tal como nos é apresentada pela revolução russa, um engenhoso processo inventado para dar mais eficácia à luta proletária; trata-se da forma tomada pelo movimento da massa proletária, a forma sob a qual a luta proletária se manifesta na revolução.36 No caso específico da Revolução Russa, a greve de massas, segundo Rosa Luxemburgo, não é um ato isolado, uma ação específica, mas uma característica de um 35 36 LUXEMBURGO. Greves de Massas, Partido e Sindicatos. In:____. Textos Escolhidos, p. 114. Ibid., p. 119. (Grifo do autor). 115 período de luta de classes que se deu por vários anos, dezenas de anos, e nesse sentido, é um conceito que se resume a esse período. A greve de combate, essa ação proletária, não separa o elemento econômico do elemento político, pois a realidade repudia aquele esquema teórico que afirma que a greve de massas puramente política derive da greve geral sindical ou de que ela seria o estágio mais perfeito e elevado. Tanto a greve política quanto a greve econômica podem vir primeiro como depois no movimento de luta pela emancipação operária. Quando a luta política se estende, se clarifica e se intensifica, a luta econômica também se expande, se organiza e se intensifica ao mesmo tempo e no mesmo ritmo. Uma reage sobre a outra. Cada vitória política transforma-se num novo e poderoso impulso dado à luta econômica, ou seja, os operários tendem a melhorar e dar mais impulso a sua combatividade. Os militantes ficam em alerta e os trabalhadores em geral se opõem ao capital. Por fim, Rosa Luxemburgo conclu i qua a luta econômica é o elemento que leva incessantemente uma crise política a outra. A luta política fecunda também o solo onde se desenvolve a luta econômica, ou seja, “causa” e “efeito” se permutam constantemente. Luta política e luta econômica constituem a unidade na greve de massas. Em suma, não é a greve de massas que origina a revolução, mas é esta que produz a greve de massas. Nesse relato de Rosa Luxemburgo, há também um destaque que diz respeito ao elemento espontâneo37 que se desempenha nas greves, isto é, não porque o proletário russo não esteja educado, e sim porque as revoluções recusam qualquer tipo de magistério sobre elas. Dessa forma, para Rosa Luxemburgo, o elemento espontâneo desempenha um importante papel em todas as greves de massas na Rússia, seja como algo impulsionador, seja como entrave. Os fatores econômicos, políticos e sociais, gerais e locais, materiais e psicológicos são impossíveis de ser determinados e deduzidos por qualquer tipo de ação especial, tal como um problema de aritmética, pois a revolução não é, como diz Rosa Luxemburgo, um terreno liso no qual podemos nos manobrar como queiramos. Por isso, não podemos desprezar a tática quando ela é consequente e não hesitante, pois a tática decidida, ofensiva e desenvolvida suscita nos trabalhadores sentimentos de segurança, de confiança e de combatividade; já uma tática fraca, assentada numa subestimação do proletariado, exerce nos trabalhadores uma ação inerte, paralisante, semeando confusão e insegurança. No primeiro 37 “Segundo o leninismo, a verdadeira consciência de classe não se deixa atingir espontaneamente, não é alcançável de modo gradual pela própria classe e, por conseguinte, só pode ser trazida ‘de fora’ à classe operária, isto é, pelo partido verdadeiramente conhecedor da história e da sociedade” (BICCA, Luiz. Marxismo e liberdade. São Paulo: Edições Loyola, 1987. p. 213-214). Lukács, sobremaneira, acusa Rosa Luxemburgo de superestimar o elemento orgânico na história e a espontaneidade das massas e de considerar a liberdade um valor em si. A liberdade, nesse sentido, pode ser “contrarrevolucionária”. A liberdade tem que servir a dominação do proletariado, e não o contrário. Cf. BICCA, op. cit., p. 237, nota 54. Ver também Lukács em História e consciência de classe, p. 301. 116 caso, há um estalo que pode levá-los à vitória; no segundo, os apelos para uma greve de massa tornam-se infrutíferos e fadados ao fracasso. E, neste sentido, a Revolução Russa forneceunos elementos bastante eloquentes dessas táticas. Rosa Luxemburgo, portanto, ao analisar as hesitações dos dirigentes sindicais e políticos alemães sociais-democratas, que sempre relutam em querer fazer uma greve de massas na Alemanha, por causa ainda da falta da maturidade política ou do número insuficiente de operários plenamente organizados, fez com que ela mesma criticasse essa posição. Em outras palavras, não é possível, para Rosa Luxemburgo, que quinze anos depois, com a força do sindicato quadruplicada, se coloque ainda em dúvida essa possibilidade da greve de massa na Alemanha, porque não dá para ter 100 por cento da classe trabalhadora organizada para desencadear uma luta política de massas, ou melhor expressando, [...] não é só a organização que fornece tropas de choque; é a própria luta que, numa dimensão muito maior, fornece recrutas para a organização do Partido. Isto se aplica evidentemente com mais forte razão à acção política directa do que a luta parlamentar. [...] Toda autêntica luta de classes deve basear-se no apoio e na colaboração das mais amplas massas; uma estratégia da luta de classes que não conte com esta colaboração, calculada unicamente em função da fracção do proletariado já recrutada, facilmente manobrada, estaria de antemão condenada a um impiedoso fiasco. 38 O importante a ressaltar nessa reflexão luxemburguiana é que a greve de massas não é um produto específico da Rússia, originado no marco do absolutismo czarista, mas uma forma geral da luta de classes proletária que resulta do período da evolução do capitalismo e das relações de classes. Uma questão que Rosa Luxemburgo não deixa de responder é: se não há contradição entre socialismo e a necessidade da luta operária por melhoras imediatas nas suas condições de vida e pela conquista das liberdades sindicais para categorias de trabalhadores que não as possuem ainda? Para ela, a história não espera pacientemente que países ou camadas atrasadas alcancem os mais ou as mais avançados/as para se dar a evolução. Ao contrário, as explosões ocorrem tanto nos pontos mais atrasados como nos mais avançados e aceleram a tempestade do período revolucionário que recupera o tempo perdido, corrigindo as desigualdades e fazendo avançar o progresso social. Assim sendo, Rosa Luxemburgo termina este texto desenvolvendo as relações entre sindicatos e Partido na Alemanha, porém, pronunciando-se contra a autonomia e a neutralidade política dos sindicatos, como também contra a subordinação dos sindicatos à direção política do Partido, contudo, enfatizando a importância das greves no desenvolvimento da luta de classes. De outra maneira, em Reforma Social ou Revolução?, Rosa Luxemburgo toma de 38 LUXEMBURGO, Textos escolhidos, p. 126. 117 empréstimo de Bernstein sua reflexão sobre a função do sindicato, escrito na Neue Zeit em 1891. Ou seja, a principal função do sindicato consiste em permitir aos operários a realização da lei capitalista dos salários, quer dizer a venda da força de trabalho ao preço conjuntural do mercado. Os sindicatos servem o proletariado utilizando no seu próprio interesse, a cada instante, essas conjunturas de mercado. Mas as próprias conjunturas, isto é, por um lado a procura da força de trabalho determinada pelo estado da produção e, por outro, a oferta da força de trabalho criada pela proletarização da classe operária, enfim, o grau de produtividade do trabalho, estão situadas fora da esfera de influência dos sindicatos.39 Tais elementos não podem eliminar a lei dos salários, e sim conservar a exploração capitalista dentro dos limites “normais” determinados em cada fase da conjuntura, porém estão distantes de abolir a exploração em si mesma, mesmo que gradativamente. A fragilidade dos sindicatos em querer exercer uma influência reguladora na produção deve-se aos obstáculos de se intervir no domínio técnico do processo ou mesmo de fixar as próprias dimensões da produção. Sabemos que toda transformação técnica se põe contra os interesses dos operários, pois, de facto, agrava a sua situação imediata, deprecia sua força de trabalho, ao torná-la mais intensiva, monótona e penosa. Segundo Rosa Luxemburgo, é um fenômeno recente a tentativa para fixar as dimensões e os preços das mercadorias. Isso vai na contramão da luta pela emancipação, porque tanto os operários como os empresários estão indo contra o consumidor, à proporção que usam medidas contra os empresários concorrentes. Retomando então a questão dos sindicatos, sua atividade está limitada à luta pelo aumento dos salários e pela redução do tempo de trabalho, ou seja, para Rosa Luxemburgo, o sindicato busca unicamente ter uma influência reguladora sobre a exploração capitalista, de acordo com as flutuações do mercado. Conforme Conrad Schmidt – diz Rosa Luxemburgo – o movimento sindical, em determinadas ocasiões, não consegue aumentar a sua expansão, tal como supõe a teoria da adaptação do capitalismo; pelo contrário, o sindicato pode ficar, durante um período de desenvolvimento social, sem nenhuma expansão triunfante, mas com grandes dificuldades crescentes. Acreditam Bernstein e Schmidt que, no futuro, com reformas desenvolvidas até o infinito, o sindicalismo possa se expandir. Rosa Luxemburgo, no entanto, alerta para o fato de que, quando o desenvolvimento da indústria atingir o seu apogeu e o mercado mundial iniciar uma fase de descendência, a luta sindical ficará difícil. Isso com base em dois motivos: 1) a partir do momento em que as conjunturas objetivas do mercado tornamse desfavoráveis à força de trabalho, isto é, quando a busca por essa força de trabalho torna-se lenta e a sua oferta aumenta rapidamente; e 2) a partir do momento em que o capital buscará 39 LUXEMBURGO, Rosa. Reforma social ou revolução? São Paulo: Global Editora, 1986. p. 46. 118 compensar as perdas sofridas no mercado mundial, reduzindo parte do produto pertencente aos operários, a saber, a redução dos salários. Não é à toa que Marx, em O Capital, apresenta uma fase do movimento sindical como aquela que se restringe a simples defesa dos direitos adquiridos e com grandes dificuldades, logo a única contrapartida seria o desenvolvimento da luta de classe política e social. Portanto, para Rosa Luxemburgo, tanto Bernstein quanto Schmidt se iludem com a expansão do sindicalismo a partir do aprofundamento das reformas que se chocam com os limites do interesse do capital. É preciso deixar claro que o exame econômico da luta do salário contra o lucro suscita uma outra reflexão, ou seja, de que essa luta não se realiza no abstrato, no imaterial, mas num determinado quadro de leis de salários, impossível de se destruir no capitalismo, mas somente realizá-la. Para Bernstein, conforme Rosa Luxemburgo, a autêntica intervenção dos sindicatos tem uma missão muito maior que é a luta pela emancipação da classe operária, porque são os sindicatos que travam a luta contra a taxa de lucro industrial para transformar em taxa de salário. Mas ela o critica, dizendo que [...] os sindicatos não têm nenhum poder real para poderem iniciar uma política ofensiva económica contra o lucro porque, na verdade, não passam de uma defesa organizada pela força do trabalho contra os ataques do lucro, expressão da resistência da classe operária contra a tendência opressiva da economia capitalista.40 As razões que levaram Rosa Luxemburgo a pensar assim são de duas ordens: primeiro, porque os sindicatos têm apenas a tarefa de se organizar no mercado da força de trabalho, no entanto, sua organização é ultrapassada pelo processo de proletarização das classes médias, que são a nova força de trabalho para o mercado de trabalho; segundo, porque, mesmo que os sindicatos se proponham a melhorar as condições de vida do trabalhador ou aumentar a parte da riqueza social para ele próprio, isso a posteriori cessa, devido à redução da parte desta riqueza social, quer dizer, o crescimento da produtividade enquanto um fenômeno natural do capitalismo faz com que o número de trabalhadores se reduza no mercado de trabalho e assim aumente o número de miseráveis na sociedade, logo a riqueza social vai para quem tem dinheiro de obtê-la, o que não é o caso com o aumento do exército industrial de reserva. Para finalizar esta reflexão, Rosa Luxemburgo compreende que mesmo que se reduza a proletarização da classe média e que a produtividade deixe de aumentar para reduzir progressivamente a taxa de lucro em função do aumento da taxa de salário, como queria Bernstein, esse modo de repartição capitalista ainda não seria suficiente para realizar a emancipação humana total, já que equivaleria renunciar à luta contra o capitalismo, logo 40 LUXEMBURGO, Reforma social ou revolução?, p. 90. (Grifo do autor). 119 orientar a luta apenas por uma repartição “justa” da produção injusta do capitalismo. O que seria um desatino “teórico-prático-revolucionário”. A lei capitalista não tende a realizar essa proposição, pois seu caminho é o inverso, ou seja, a injusta distribuição da riqueza social. Nesse sentido, conclamamos Lênin para nos orientar nessa reflexão, já que ele, em o Que Fazer?, abrange três questões fundamentais para o processo revolucionário: o caráter e o conteúdo da agitação política, as tarefas de organização e o plano para construção de uma organização de combate para diversos fins. Mas é principalmente com base na obra Sobre os sindicatos que vamos detalhar a sua reflexão sobre o papel dos sindicatos e das greves no movimento operário de emancipação do capital. Primeiramente, em o Que Fazer?, logo no início do texto, Lênin nos chama atenção para o fato de que o bernsteinismo e os marxistas legais removiam e pervertiam a consciência socialista, aviltando o marxismo, ao pregar a teoria da atenuação dos antagonismos sociais, ou seja, “reconduzindo o movimento operário e a luta de classes a um sindicalismo estreito e à luta ‘realista’ por reformas pequenas e graduais.” 41 Para Lênin, isso significaria a negação do direito ao socialismo e, na prática, a de sua realização, transformando o movimento operário num apêndice do movimento liberal. A luta econômica ou sindical e a luta política seriam as bases fundamentais desse processo pré-revolucionário. Entretanto, isso não poderia deixar de estar acompanhado de uma teoria que oriente programaticamente a prática. Não é por menos que Lênin afirma que “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário” 42 Esta preocupação leninista deve-se ao fato de Marx43 nos ter alertado de que não podemos fazer acordos para efetivar objetivos práticos do movimento, na medida em que tais acordos desemboquem na comercialização de princípios e de concessões teóricas; ao contrário, os acordos devem ser feitos, mas desde que não ponham em xeque a importância teórica. Claro que “Cada passo avante, cada progresso real valem mais que uma dúzia de programas” 44. No entanto, a grande difusão do marxismo não pode ser acompanhada por um abaixamento teórico dos operários, nos adverte assim Lênin. O caráter especial que Lênin dá ao papel da teoria no movimento revolucionário é resultado de uma constatação que ele faz, ao citar os operários alemães como herdeiros da filosofia alemã. “Sem o sentido teórico dos operários, estes não teriam jamais assimilado esse socialismo científico, como o fizeram.” 45 Por causa da indiferença dos ingleses a toda teoria – 41 LÊNIN, V. I. Que Fazer? São Paulo: Editora Hucitec, 1986. p. 13. Ibid., p. 18. 43 Segundo Lênin, Marx escrevia aos dirigentes do partido. Cf. Ibid., p. 18. 44 Ibid., p. 18. 45 Ibid., p. 20. 42 120 afirma Lênin –, foi a insuficiência desta a causa do pouco progresso do movimento operário inglês, apesar de sua excelente organização nos diferentes ofícios. Os operários alemães, ao contrário, souberam aproveitar as vantagens de sua situação, conduzindo a sua luta em três direções: a teórica, a política e a econômico-prática (resistência aos capitalistas), ou, melhor dizendo, com método e coesão nos quais reside a força do movimento alemão. Por outro lado, o elemento espontâneo é, antes da teoria, a forma embrionária do consciente, pois os tumultos primitivos e/ou a destruição das máquinas, por exemplo, foram sintomas que já traduziam um despertar da consciência operária, embora fosse mais uma manifestação de desespero e de vingança do que de luta. As greves sistemáticas na Rússia já eram o embrião da luta de classe; e, tomadas em si mesmas, já constituíam uma luta sindical, embora não social-democrata (“revolucionária”), marcando assim o despertar do antagonismo entre operários e patrões. Dessa maneira, os operários perdiam sua crença costumeira na perenidade do regime que os oprimia. A consciência da oposição irredutível e de seus interesses de classe com a ordem política e social existente estava a se fazer como consciência social-democrata. O que Lênin quer salientar nessa reflexão é que na Rússia a doutrina teórica da social-democracia emergiu de forma independente do crescimento espontâneo do movimento operário, pois foi consequência do desenvolvimento intelectual dos revolucionários socialistas. Nesta visão, Lênin demonstra que, na verdade, o movimento operário espontâneo ab initio é uma subordinação à ideologia burguesa, ou seja, é um sindicalismo burguês do mínimo esforço que se refugia sob as asas da burguesia. É preciso então sair da infância do movimento para atingir a sua virilidade, quer dizer, imbuir-se de intolerância face àqueles que, por meio de seu espontaneísmo, retardam o desenvolvimento da luta anticapitalista. Lênin atenta para o modo dócil da luta política face à luta econômica, a saber, não podemos deixar a luta econômica dos operários ficar submissa à luta política burguesa. Como ele mesmo afirma, “se por política se entende política sindical, isto é, a aspiração geral dos operários a obter do Estado as medidas suscetíveis de remediar os males inerentes à sua situação”46, então fica difícil suprimir tal situação que é a submissão do trabalho ao capital. É fundamental para Lênin, portanto, empreender ativamente a educação política da classe operária, ou seja, trabalhar para que ela desenvolva a sua consciência política, pois ela não pode se limitar à luta econômica ou puramente profissional, isto é, à luta pelas reformas econômicas. 46 LÊNIN, V. I. Que Fazer? p. 34. 121 Nesse contexto reflexivo, Lênin atribui importância de se conferir à própria luta econômica um caráter político. Ou como ele mesmo diz, “Conferir ‘à própria luta econômica um caráter político’ significa, portanto, procurar conseguir as mesmas reivindicações profissionais, melhorar as condições de trabalho em cada profissão através de ‘medidas legislativas e administrativas’.” 47 Então podemos inferir que a luta econômica é a luta coletiva dos trabalhadores contra os patrões, ou seja, para vender de forma vantajosa sua força de trabalho por um melhor preço possível e, assim, melhorar suas condições de trabalho e de existência. Essa luta é necessariamente uma luta profissional, justamente porque as condições de trabalho são muito variadas. Todavia, cabe ressaltar o papel dos teóricos e propagandistas, ou do agitador político, que tem em Lênin uma relevância fundamental, a saber: explicar a natureza capitalista das crises, mostrar as necessidades da transformação da sociedade capitalista em uma sociedade socialista e, numa última palavra, fornecer muitas ideias que possam ser assimiladas em conjunto por um número restrito de pessoas. Na realidade, a grande preocupação leninista é que, para elevar a atividade da massa operária, não podemos nos restringir à agitação política no terreno econômico, pois uma das condições essenciais para ampliar a necessária agitação política é organizar as revelações políticas em todos os aspectos. Somente tais revelações é que podem formar a consciência política e suscitar a atividade revolucionária das massas. Daí Lênin pleitear o papel dos intelectuais como interventores na luta política de caráter espontâneo enquanto oriunda da luta econômica. Para Lênin, portanto, “[...] é necessário que os intelectuais nos repitam um pouco menos do que já sabemos*, e que nos dêem um pouco mais do que ainda ignoramos, daquilo que nossa experiência ‘econômica’, na fábrica, jamais nos ensinará: os conhecimentos políticos.”48 Desta feita, a consciência política de classe, diz Lênin, só pode ser trazida ao operário a partir do exterior, ou seja, do exterior da luta econômica, do exterior das esferas das relações entre operários e patrões. Esses conhecimentos políticos só podem ser extraídos do domínio das relações de todas as classes e categorias da população como o Estado e o governo, isto é, das relações de todas as classes entre si. Para levar aos operários os conhecimentos políticos, os intelectuais e/ou a vanguarda operária devem ir a todas as classes da população como se fossem um exército da conscientização. O culto à espontaneidade e o fato de ignorar o trabalho de organização constituem então, para Lênin, uma verdadeira doença do movimento. A revolta espontânea não traz 47 48 LÊNIN, Que Fazer?, p. 49. Ibid., p. 58-59. 122 consequências práticas positivas para os trabalhadores. É aí que Lênin suscita uma luta mais intransigente para defender e legitimar demandas e ações práticas mais consistentes. Daí ele criticar a forma de trabalho artesanal que é resultado da falta de preparação prática e da habilidade no trabalho de organização. Os métodos artesanais são, na verdade, ações que se dão a partir de uma visão estreita de conjunto do trabalho revolucionário, e impedem a constituição de uma boa organização de revolucionários que se livrem do “economismo” em geral. Mutatis mutandis, criar uma organização de revolucionários é imperativo para assegurar à luta política energia, firmeza e continuidade. Sem organizações políticas locais, fortes e bem treinadas, sem educar pessoas para formar tais organizações políticas fortes, fadamos ao fracasso. Por isso, o jornal político é o meio indispensável para se efetivar o trabalho político de formar dirigentes cotidiana e metodicamente em todos os aspectos da vida política, em todas as tentativas de protesto e da luta de diferentes classes por diferentes motivos. Por conseguinte, a faculdade de sonhar do homem adianta o presente e contempla em imaginação o quadro lógico acabado da obra que se esboça em suas mãos. Como bem diz Lênin, o homem acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida e compara suas observações com “os castelos de areia no ar”, ou seja, ele trabalha conscientemente para a realização do seu sonho. Em Sobre os sindicatos, Lênin aprofunda um pouco mais essas questões, ou seja, o que é a consciência de classe, o que ensina a luta ao operariado, o significado das greves, as tarefas e o papel dos sindicatos, a fusão da luta econômica com a luta política, a relação entre partido e sindicatos etc. Dessa maneira, Lênin começa a esboçar teoricamente qual seria o papel da organização sindical no processo de construção da emancipação humana no socialismo. Todas as organizações dos trabalhadores têm certamente um dever a desempenhar nesse processo histórico-social de superar o capitalismo. Isso nos faz deduzir que os sindicatos – enquanto locus onde se dá a primeira educação da classe trabalhadora – são instrumentos pedagógicos fundamentais nesse processo de luta social contra o antagonismo de classes. O que podemos então compreender por consciência de classe a partir da reflexão de Lênin? “Consciência de classe dos operários é a compreensão de que o único meio de melhorar a sua situação e de conseguir a sua emancipação consiste na luta contra a classe dos capitalistas e industriais, que foram criados pelas grandes fábricas.” 49 Em outras palavras, devemos entender por consciência de classe a consciência que compreende que há um interesse comum, idêntico, solidário, de todos os trabalhadores de um país que formam uma 49 LENIN. Sobre os sindicatos. São Paulo: Editorial Livramento, 1979. p. 25. 123 mesma classe; o que os diferencia das demais classes da sociedade. E, por fim, tal consciência de classe significa, portanto, que os trabalhadores precisam influenciar os assuntos públicos para atingir seus objetivos. Essa compreensão, segundo Lênin, só se dá quando os operários começam a empreender uma luta contra os patrões, tornando esta luta mais aguda e com o maior número de seguidores. O que ensina então a luta dos operários para o processo dessa conscientização? Pelo menos três coisas importantes: 1) a luta faz com que os trabalhadores aprendam a distinguir e pôr a nu todos os atores sociais e cada um dos processos da exploração capitalista, a estudálos do ponto de vista da lei, de suas condições de vida e dos interesses da classe capitalista; 2) por meio da luta os trabalhadores experimentam e medem suas forças, aprendem a se unir e compreender a necessidade e a importância da união, desenvolvendo o sentimento de unidade e de solidariedade; e 3) a luta faz desenvolver a consciência política dos trabalhadores, pois cada conflito no trabalho leva os trabalhadores a se defrontarem com as leis e com os representantes do poder de Estado, justamente quando eles ouvem pela primeira vez discursos políticos. Tudo isso, claro, requer organização dos trabalhadores, pois a organização é necessária à luta ou à greve para que possa ter êxito. E, com certeza, o mais importante é assinalar para os trabalhadores o verdadeiro objetivo da luta, ou, melhor expressando, explicar para eles em que se assenta e se baseia a exploração do trabalho pelo capital, logo tornar claro por que a miséria das massas trabalhadoras se assenta na propriedade privada da terra e nos instrumentos de trabalho burgueses. Nessa perspectiva, a luta da classe trabalhadora significa que a luta de classes é uma luta política e que a classe trabalhadora não pode lutar por sua emancipação se não conquistar influência nos assuntos públicos, na direção do Estado, na promulgação das leis. Isso leva os trabalhadores inevitavelmente a enfrentar o governo e os patrões. Lênin enfatiza, por conseguinte, a importância da luta econômica do proletariado e da sua necessidade para o processo de aceleração da luta política. Tais lutas já eram reconhecidas pelo marxismo desde o começo, já na década de 1840, sobretudo, na polêmica de Marx e Engels com os socialistas utópicos que negavam a importância da luta. Já na Associação Internacional dos Trabalhadores a importância da luta econômica foi apresentada no Primeiro Congresso de Genebra em 1866, a saber, a resolução do Congresso assinalava claramente a importância da luta econômica, porém, fazendo advertências quanto ao exagero e a subestimação dessa relevância. O que a resolução reconhecia era que os sindicatos operários eram um fenômeno legítimo e indispensável na existência do capitalismo, como também como organismos importantes para a organização dos trabalhadores na sua luta diária contra o 124 capital e para a abolição do trabalho assalariado. Apenas advertia que os sindicatos não deveriam se limitar a sua atenção exclusiva à luta direta contra o capital, nem se distanciar do movimento político e social em geral da classe trabalhadora. Contudo, falar de luta econômica ou política no movimento sindical é falar da luta grevista dos trabalhadores. O que significam as greves nesta luta de classes? No texto Sobre as Greves, Lênin aponta que o preço do trabalho ou o salário se determina por um contrato entre o patrão e o operário, salientando que geralmente é o primeiro que impõe o valor da força de trabalho, ficando o trabalhador impotente nessa barganha. A greve é o meio de pressão para forçar essa barganha, isto é, impede que os patrões baixem o salário e os força a aumentar o soldo dos trabalhadores. Neste sentido, para Lênin, “as greves, por emanarem da própria natureza da sociedade capitalista, significam o começo da luta de classe operária contra esta estrutura da sociedade.”50 Se os operários despojados agem individualmente contra os capitalistas, ficam impotentes face à superioridade dos capitalistas. Mas se os operários se unem contra os patrões, a situação se modifica, porque sua força se demonstra eficaz. Em ambas as situações, Lênin denomina o operário, ou como escravo ou como homem ou pessoa. E por isso, para ele, “cada greve lembra aos capitalistas que os verdadeiros donos não são eles, e sim os operários, que proclamam seus direitos com força crescente. Cada greve lembra aos operários que sua situação não é desesperada e que não estão sós.”51 Por outro lado, a greve pode acarretar aos trabalhadores grandes privações como fome na família, perda salarial, detenções etc., mas, de outra forma, a greve infunde a ideia de socialismo, a ideia da luta de toda classe operária por sua emancipação do jugo do capital. Afirma Lênin então que os socialistas chamam as greves de “escola de guerra”, quer dizer, escola onde os operários aprendem a guerrear contra os seus inimigos de classe, pela emancipação de todo o povo e de todos os trabalhadores do jugo dos funcionários e do capital. Com suas palavras, “As greves são um dos meios de luta da classe operária por sua emancipação, mas não o único, e se os operários não prestam atenção a outros meios de luta, atrasam o desenvolvimento e os êxitos da classe operária.”52 Para obter tal êxito, são necessárias as caixas de resistência para sustentar os operários durante o conflito; como também as greves só saem vitoriosas quando os operários possuem bastante consciência, sabendo o momento exato de desencadeá-las, de mostrar suas reivindicações e manter contato 50 LENIN, Sobre os sindicatos, p. 42. Ibid., p. 43. 52 Ibid., p. 46. 51 125 com dirigentes socialistas para receber folhetos e volantes para incitar os grevistas que acabam convertendo-se em socialistas. Em relação à luta econômica e à luta política, Lênin explicita que se as denúncias econômicas são e continuam sendo um recurso importante da luta econômica, produzindo um efeito no comportamento do operário de autodefesa contra o grau de exploração desenvolvido pelos capitalistas, também a educação política é fundamental, não só para propagar a ideia de que a classe operária sofre a exploração capitalista e precisa combater essa espoliação, mas, sobretudo, para explicar como se dá essa opressão política sob determinadas leis do desenvolvimento capitalista. Por isso, a tarefa da luta política da classe trabalhadora é certamente a forma mais desenvolvida, mais ampla e efetiva da luta econômica. Como comenta Lênin, “a luta econômica é o meio mais amplamente aplicável para incorporar as massas à luta política ativa.”53 No entanto, ele alerta que é preciso ir para além dessa frase pomposa, pois é preciso antes de revolucionar os dogmas, revolucionar a vida, senão caímos na luta pelas reformas puramente econômicas. Sair dessa esfera da luta dentro da ordem meramente econômica é imperativo para Lênin, ao criticar a política da social-democracia russa. Fugir dessa órbita reformista é impulsionar a luta para a revolução socialista, para a liberdade revolucionária. Para Lênin, portanto, “As organizações sindicais não só podem ser extraordinariamente úteis para desenvolver e fortalecer a luta econômica, como podem converter-se, também, num auxiliar da maior importância para a agitação política e a organização revolucionária.” 54 Entretanto, Lênin ressalta que não podemos confundir a organização sindical operária com a organização de revolucionários, embora a primeira possa se transformar na segunda, pois “a organização dos revolucionários deve englobar antes e acima de tudo pessoas cuja profissão seja a atividade revolucionária” 55 É tão extensa a discussão que Lênin faz sobre a luta operária, seja econômica (profissional) ou política, que se faz mister concluir esta reflexão. Para Lênin, os intelectuais burgueses têm clara noção de que é impossível abolir o movimento operário, e, portanto, buscam intervir nele o mínimo possível, fazendo concessões como a liberdade de greve e de associação, mas desde que os operários renunciem o espírito de revolta, o “revolucionarismo estreito” e a luta de classes. É preciso fazer desaparecer nos sindicatos o espírito socialista, ou seja, tornar o sindicalismo uma luta mais estreita, mais miúda que não vá para além do espírito da legalidade burguesa. Nesse sentido, Lênin recorda que 53 LENIN, Sobre os sindicatos, p. 80. Ibid., p. 119. 55 Ibid., p. 115. 54 126 [...] as tarefas dos sindicatos consistem em que eles sejam os artífices de milhões de seres que aprendam por sua própria experiência a não cometer erros e a repelir os velhos preconceitos, que aprendam por sua própria experiência a dirigir o Estado e a produção, é apenas nisto que reside a garantia infalível de que a causa do socialismo vencerá plenamente excluindo toda a possibilidade de retrocesso.56 Daí Lênin declarar que os sindicatos representaram um progresso gigantesco da classe operária nos primórdios do desenvolvimento do capitalismo. No entanto, é preciso forjar uma luta conjunta com o partido operário para a conquista do poder político, cabendo ao partido a tarefa de educar os sindicatos, se possível dirigi-los, transformando-os em “escola de comunismo”, uma escola preparatória dos proletários para a realização de sua ditadura democrática do Estado proletário, compreendida como condição sine qua non de transição para o socialismo. Sendo assim, Lênin compreende que o papel dos sindicatos é abarcar nas fileiras da organização a totalidade dos operários industriais, pois eles são uma organização educadora que atrai e instrui, isto é, é uma escola, uma escola de governo, de administração e de comunismo. Nos sindicatos, diz Lênin, não há mestres e alunos, mas destacamentos revolucionários avançados.57 Tomemos, por fim, Trotsky para coroar esta discussão sobre a concepção marxista de sindicatos. Em Escritos sobre sindicato, Trotsky aborda duas temáticas que dão o tom da sua reflexão: “comunismo e sindicalismo” e “problemas de estratégia e de tática sindical”. Não será possível, nos termos que nos propomos aqui, analisar essas questões nas suas especificidades. O objetivo é extrair dessas reflexões a sua concepção sobre o papel dos sindicatos no processo da luta emancipatória da classe proletária em rumo ao socialismo. Numa polêmica com Louzon sobre a expressão – “os sindicatos representam toda a classe operária” –, Trotsky faz a seguinte crítica: “Não existe nenhum país no qual a organização sindical abarque toda a classe operária, embora em alguns [países] compreenda pelo menos um vasto setor.”58 Para Trotsky, essa questão não pode ser reduzida à polaridade se é o partido ou o sindicato que deve se incorporar ao proletariado, mas sim de ganhar a confiança do proletariado. Para isso, é fundamental ter táticas corretas, provadas pela experiência. Afirma Trotsky então que “as tarefas históricas do proletariado estão determinadas pela sua localização social como classe e pelo seu papel na produção, na sociedade e no estado.”59 Nesse sentido, Trotsky infere que se o proletariado soubesse da sua tarefa histórica, não necessitaria nem de sindicatos, nem do partido (comunista), ou seja, a 56 LENIN, Sobre os sindicatos, p. 278. Cf. LENIN, op. cit., p. 289. Sobre a relação dos sindicatos com o Estado operário, ou de sindicatos com o Partido revolucionário, ver op. cit., p. 271-276, 280-282, 293 e 317. 58 TROTSKI, Leon. Escritos sobre sindicato. São Paulo: Kairós Livraria e Editora, 1978. p. 19. 59 TROTSKI, Escritos sobre sindicato, p. 20. 57 127 revolução teria nascido com o proletariado. Pelo contrário, o processo histórico é compreendido pelo proletariado a partir de uma longa e penosa luta (seja sindical ou partidária) na qual ele apreende as contradições sociais, principalmente com a ajuda (da vanguarda) da classe operária mais consciente e politizada. Quando a discussão se direciona para a questão da relação entre partido (comunista) e sindicatos, Trotsky retoma alguns exemplos da Primeira Internacional. Ele assinala que quando Marx escreveu que o partido operário sairia dos sindicatos, ele estaria se referindo à situação específica da Inglaterra que já possuía várias organizações sindicais; ao contrário da Rússia onde o Partido Comunista criou vários sindicatos e os preparou para a luta massiva de classe. Essa discussão reflete que sua importância consiste em divulgar, seja através do partido operário, seja através dos sindicatos, as ideias socialistas. Trotsky, no entanto, alerta para o fato de não se cair no discurso anarco-sindicalista que despreza a política e o partido como elementos para se abolir o estádio social capitalista. Portanto, para ele, o proletariado só compreende essa sua missão histórica através de lutas prolongadas, de duras provas, de muitas vacilações e de uma ampla experiência. Isto se aplica tanto ao partido (comunista) como aos sindicatos. Dessa forma, Trotsky enfoca que o problema dos sindicatos é um dos mais importantes para o movimento operário, como também para os oponentes capitalistas. A luta entre comunistas e capitalistas para influenciar a classe operária é árdua e constante. Os primeiros, buscando denunciar a ilusão do capitalismo como sistema que pode humanizar a todos; o segundo, reforçando valores individualistas que fomentam a emancipação egoísta. Nesse sentido, Trotsky elaborou vinte e seis considerações sobre a questão sindical, porém citemos apenas algumas que vão de encontro com os nossos objetivos: 1) O Partido Comunista é instrumento indispensável para a ação revolucionária e para a organização de combate de vanguarda que deve erigir-se em direção da classe operária em todos os campos de sua luta, inclusive, no campo sindical; 2) quem contrapõe autonomia sindical à direção do Partido Comunista se contrapõe ao setor proletário atrasado com a vanguarda, à luta por conquistas imediatas com a luta pela emancipação proletária, ao reformismo com o comunismo, ao oportunismo com o marxismo revolucionário; 3) não podemos fazer da autonomia das organizações um fetiche, pois é preciso compreender e elogiar o papel do dirigente da minoria revolucionária em relação às organizações de massa (que refletem geralmente contradições, atraso e debilidades); 4) não há sindicatos autossuficientes para cumprir sua missão, quer dizer, não há em lugar nenhum, sindicatos politicamente “independentes”, pois os aparelhos sindicais estão direta ou indiretamente ligados aos 128 partidos; e, por fim, 5) não podemos cair no fetiche da unidade das organizações sindicais, pois a ruptura sempre pode acontecer, e também a unificação se dá não em torno de aparelhos sindicais, mas sim a partir da maioria da classe operária ao redor de bandeiras e métodos de luta revolucionários. Para Trotsky, portanto, o verdadeiro caminho para a unidade revolucionária passa tanto pelo desenvolvimento, aperfeiçoamento, crescimento e consolidação revolucionária de uma organização revolucionária, como pelo enfraquecimento de uma organização reformista. É preciso então desarmar posições gremialistas dentro do movimento sindical. Conforme Trotsky, Há épocas em que a tendência revolucionária se vê reduzida a uma pequena minoria dentro do movimento operário. Mas o que essas épocas exigem não é fazer acordos entre pequenos grupos, tapando-os mutuamente os pecados, mas, ao contrário, uma luta duplamente impecável por uma perspectiva correta e uma educação dos quadros no espírito do autêntico marxismo. Somente assim é possível a vitória.60 Trotsky, desse modo, deixa bastante claro que a maioria do proletariado não entende o perigo do Estado burguês, logo fica atrelado à visão de que no capitalismo há possibilidade de melhorias de vida. Neste caso, determinados sindicalistas contribuem para a conciliação passiva dos operários com o Estado capitalista. Por isso, Trotsky enfatiza a importância da educação de dirigentes dentro da doutrina marxista, evitando, assim, qualquer perigo de burocratização da luta. Por outro lado, ele enfatiza que é fundamental os revolucionários participarem de sindicatos reformistas para poder desmascarar os traidores perante as massas, enfim, para desacreditá-los mediante a experiência dessas massas, isolando-os e/ou liquidando a confiança de tais dirigentes. As organizações operárias – sindicatos, cooperativas e sovietes – têm cada uma delas tarefas próprias e métodos de trabalhos específicos, e são independentes dentro de certos limites, afirma Trotsky. Diz ele, entretanto, que, para o Partido Comunista, “[...] essas organizações são, sobretudo, um campo propício para a educação revolucionária de amplos setores operários e para o recrutamento dos operários mais avançados.”61 O que intriga certos revolucionários comunistas com relação aos sindicatos é a sua tarefa de somente melhorar a situação material e cultural do proletariado, tal como era no início do capitalismo. Essa discussão resvala para uma outra questão, a saber: se a burocracia sindical empaca que tais organizações se transformem em organizações revolucionárias, não seria o caso, então, de substituí-las por novas? Para Trotsky, este foi o grande erro do Comintern (Terceira 60 61 TROTSKI, Escritos sobre sindicato, p. 38-39. Ibid., p. 68. 129 Internacional), isto é, de querer libertar as massas da influência da burocracia sindical para ter experiências organizativas; não basta apenas lhes oferecer outro lugar onde as massas possam se dirigir, mas deve-se buscá-las e dirigi-las. Fica evidente para Trotsky que se alguns sindicatos cumprem um papel reacionário e progressista, por outro lado, eles são fundamentais para os operários na luta pelas reivindicações parciais e transitórias. Não é à toa que Trotsky demonstra a ação revolucionária dos bolcheviques nos sindicatos, isto é, quando os bolcheviques lutam pelos interesses materiais e direitos democráticos da classe operária; quando eles tornam-se ativos dentro dos sindicatos para fortalecê-los e, assim, enriquecer o espírito de luta da classe operária; e quando os bolcheviques lutam contra a tentativa de submeter os sindicatos ao Estado burguês ou a intervenções policiais. Para Trotsky, “Os sindicatos não são um fim em si mesmos, são apenas meios que devem ser empregados na marcha em direção à revolução proletária.”62 Desta feita, não é tão fundamental renovar o aparelho sindical, com novos líderes que se dispõem a lutar para ficar no lugar dos funcionários rotineiros e carreiristas; se necessário for, é justo que se criem outras organizações de combate autônomas que respondam melhor aos objetivos do proletariado contra a sociedade burguesa, pois não podem as massas operárias ficar sob o controle de camarilhas burocráticas, reacionárias e conservadoras com disfarces progressistas. Para finalizar a discussão trotskista, podemos concluir que a organização sindical educa até certo limite e que, neste sentido, é preciso que os grupos mais avançados, seja intelectuais ou militantes marxistas, sejam guias teóricos para o processo de sistematização programática da luta emancipatória do proletariado. Sozinho, o proletariado não tem condições de compreender a dinâmica da sua exploração ou da espoliação capitalista e, portanto, necessita sistematizar sua luta contra essa escravidão salarial no capitalismo. Como diz Trotsky, até as manobras educam a classe operária. Um programa correto estimula e consolida as massas e forma direções que coloquem corretamente o problema do desemprego e dos salários. Esclarecer para o proletariado essa contradição imanente no capitalismo entre lucro versus salário é algo urgente para mudar a rota da luta proletária sindical, ou seja, superar a luta economicista sindical. Os sindicatos, nesse sentido, têm duas possibilidades: “Uma é manobrar, retroceder, fechar os olhos e capitular pouco a pouco para que os patrões não se ‘zanguem’ e para não ‘provocar’ a reação. [...] A outra é compreender o caráter inexorável da atual crise social e encabeçar a ofensiva das massas.” 63 Dessa maneira, Trotsky 62 63 TROTSKI, Escritos sobre sindicato, p. 91. Ibid., p. 98. 130 ainda nos alerta que “A única forma de salvar as organizações operárias e, inclusive, de reduzir ao mínimo as perdas é criar a tempo poderosas organizações operárias de autodefesa. Esta é a principal responsabilidade dos sindicatos se não quiserem perecer infamemente.” 64 A tarefa da burguesia é liquidar com os sindicatos. Mas a nossa tarefa é dar uma virada à esquerda nos sindicatos para “agudizar” as contradições e acelerar a luta de classes. 2.2 A Crise entre Marxismo e Movimento Sindical Discutir sobre a crise entre marxismo e movimento sindical nos remete a refletir se o marxismo, enquanto teoria ou doutrina revolucionária, ou crítica dialética do sistema capitalista, está invalidada, ou seja, se o corpo teórico do pensamento de Marx está superado historicamente por causa do fim do “socialismo real” no Leste Europeu e da supremacia do desenvolvimento científico-tecnológico nas sociedades capitalistas face às socialistas. Ora, se, por um lado, houve a derrocada do projeto socialista soviético, como foi originalmente concebido, para se contrapor ao sistema capitalista, por outro lado, a profunda crise estrutural do sistema do capital está muito longe de ser, em si e por si, solucionada pelos agentes do mercado e por seus governos de Estado, para suprir as necessidades básicas da sociedade e combater suas desigualdades. Como afirma Mészáros, A “crise do marxismo”, sobre a qual nas últimas décadas muito se escreveu, na verdade, denotava a crise e a quase completa desintegração dos movimentos políticos que outrora professavam sua lealdade à concepção marxiana de socialismo. O clamoroso fracasso histórico dos dois movimentos principais – a socialdemocracia e a tradição bolchevique metamorfoseada em stalinismo – permitiu uma avalanche de todos os gêneros de propaganda triunfalista para celebrar a morte da idéia socialista como tal. Os efeitos negativos desta propaganda não podem ser enfrentados simplesmente com a identificação dos interesses materiais que escoram as celebrações anti-socialistas, pois o que aconteceu não aconteceu sem causas históricas de peso.65 A presente discussão visa, pois, tentar fazer um esclarecimento do porque houve um distanciamento do movimento sindical de esquerda, e até dos partidos políticos de esquerda – senão um recuo teórico –, das ideias de Marx sobre o sistema capitalista e sua superação para o socialismo como sistema de transição ao comunismo, ao “Reino da Liberdade”. Para Mészáros, se não houver [...] um exame rigoroso das décadas intermediárias do desenvolvimento – orientado para o referencial teórico estratégico de alternativa socialista tanto quanto para suas 64 65 TROTSKI, Escritos sobre sindicato p. 98-99. MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 43. (Grifo nosso). 131 exigências organizacionais radicalmente alteradas – o projeto socialista não pode renovar-se.66 Segundo Mészáros, portanto, não podemos atribuir a uma experiência histórica de socialismo em um canto do mundo, ou, melhor dizendo, imputar à prática de um modelo de marxismo o fim da teoria de Marx, a saber, um corpo de ideias marxistas que trata das contradições e dos antagonismos do sistema capitalista de valorização do valor. Pois, nas palavras de Mészáros, “Os acontecimentos pós-revolucionários, consolidados sob Stalin, seguiram a linha da menor resistência em relação às estruturas socioeconômicas herdadas, permanecendo assim presas dentro dos limites do sistema do capital.” 67 Lênin, em O Estado e a revolução, discorrendo sobre o “aviltamento do marxismo pelos oportunistas”, já dizia que a questão das relações do Estado e da revolução social foi de pouca preocupação para os teóricos da II Internacional (1889-1914), ou seja, da revolução em geral. Ao evitar tal questão, alguns desses teóricos – Kautsky e Bernstein – alimentaram o oportunismo e descaracterizaram o marxismo a ponto de edulcorá-lo completamente. Em outras palavras, enquanto Marx afirmava que era preciso quebrar o Estado burguês, demoli-lo e transformá-lo numa organização proletária, Kautsky e Bernstein diziam que bastava aos proletários chegarem ao poder estatal e controlarem o parlamento, para realizar gradualmente o socialismo. Na verdade, tanto Kautsky quanto Bernstein, segundo Lênin, não compreenderam as lições da Comuna nem a doutrina de Marx, quando o primeiro propõe manter a máquina do Estado burguês, sem destruir sua estrutura de dominação burocrática, e o segundo se esquiva da ideia de “democracia primitiva” 68, quando a chama de “democratismo doutrinário”. Na concepção de Lênin, o que marca o recuo de Kautsky em relação às lições de Marx é justamente a sua defesa das mais variadas formas de empresas (burocráticas, sindicalistas, cooperativas, individualistas etc.) e da organização burocrática sob o controle do operário. Deveras, para Lênin, em nada se distingue uma organização burocrática sobre as estradas de ferro, por exemplo, de uma empresa da grande indústria mecânica ou de uma fábrica capitalista, pois em todas elas prescrevem a disciplina rigorosa e a pontualidade no cumprimento de parte do trabalho. Os delegados, que participarem de uma espécie de Parlamento fiscalizador da administração burocrática, tornar-se-ão não mais que puros 66 MÉSZÁROS, op.cit., p. 43-44. Ibid., p.50. 68 A “democracia primitiva” é fundamental para o regime socialista, pois diz respeito à participação independente da massa, não só nos votos e eleições, mas também na administração cotidiana num regime socialista. Em outras palavras, no regime socialista, toda gente governará e se habituará a que ninguém governe. Cf. LÊNIN. O Estado e a revolução. São Paulo: HUCITEC, 1987. p. 147. 67 132 burocratas burgueses. Há em Kautsky, segundo Lênin, tanto uma veneração supersticiosa pelo Estado como uma crença supersticiosa pela burocracia. Kautsky abandona então – diz Lênin – o marxismo pelo oportunismo, e Bernstein identifica o marxismo com o proudhonismo. Começa a partir daí a crise do marxismo na II Internacional, a crise de interpretação errônea do pensamento de Marx, distorcido tanto por Kautsky quanto por Bernstein; em outras palavras, há uma leitura equivocada do pensamento marxiano com relação à questão do Estado e da revolução. Eis então um primeiro momento da crise do marxismo. No Prefácio de o Conceito marxista de homem, Erich Fromm trata o pensamento de Marx como uma filosofia, mas uma filosofia que “representa o protesto contra a alienação do homem, contra sua perda de si mesmo e contra sua transformação em objeto; é um movimento oposto à sua desumanização e automatização do homem, inerente à evolução do industrialismo ocidental.”69 Por conseguinte, Fromm admite que, para determinados leitores infectados com a atitude contemporânea de resignação, a filosofia de Marx parecerá obsoleta, fora de moda, utópica. No entanto, ele pondera dizendo que não podemos compreender o verdadeiro sentido do pensamento de Marx sem diferenciá-lo do pseudomarxismo russo e chinês70, ou seja, não podemos identificar o marxismo e socialismo com o capitalismo de Estado soviético71 e o totalitarismo chinês. Contudo, Fromm ressalta que se abstém de apresentar desacordos com o pensamento de Marx, pois o importante é resgatar a potencialidade reflexiva do marxismo para criticar e transformar a realidade capitalista. Noutro texto72 bem contundente, Hobsbawm faz um balanço sobre a influência do pensamento de Marx na contemporaneidade do século XX, a saber, seu auge e sua crise depois de 1956, a partir do XX Congresso do PCUS. Para ele, depois de cem anos da morte de Marx, parece este viver nas ideias dos grandes intelectuais de renome em vários países da Europa oriental e ocidental. “As idéias de Marx tornaram-se as doutrinas que inspiraram os movimentos operários e socialistas na Europa.”73 Segundo Hobsbawm, as ideias de Marx se tornaram a quintessência da doutrina internacional da revolução social no século XX, através de Lênin, da Revolução Russa. Nenhum pensador laico como Marx alcançou tal posição de destaque, se comparado aos pensadores religiosos. Hobsbawm deixa claro que as ideias 69 FROMM, Erich. Prefácio. In: Conceito marxista de homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. p. 7. Cf. FROMM, op. cit., p. 10. 71 Ferenc Fehér, Agnes Heller e György Márkus, da Escola de Budapeste, rejeitam a teoria do capitalismo de Estado, à medida que tais interpretações reduzem as sociedades de tipo soviético a formas extremas de capitalismo. Cf. ARNASON, J. P. Perspectivas do marxismo crítico no Leste europeu. In: HOBSBAWM, Eric J. História do Marxismo XI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 243. 72 Cf. HOBSBAWM. O marxismo hoje: um balanço aberto. In:_____. História do Marxismo XI. p.13-66. 73 HOBSBAWM. O marxismo hoje: um balanço aberto. In: op. cit., v. XI, p. 13. 70 133 originais de um pensador estão sempre distantes das doutrinas que as põem em prática, seja de governos ou regimes constituídos em nome de Marx. Por outras palavras, o conjunto de ideias sobrevive a quem o elaborou, logo pode deixar de estar confinado ao âmbito do conteúdo e das intenções originais. Assim como também foi o cristianismo em relação às ideias de Cristo, citadas pelos evangelistas. O que fica claro para Hobsbawm é que a prática política marxista não mais se conforma ao modelo de revolução bolchevique, ou seja, ela não se reduz ao leninismo. Porém, o que autentica as ideias de Marx como forças motrizes revolucionárias é a sua capacidade de mobilizar politicamente as massas. Entretanto, Marx sobreviveu a mais de um século do fogo concêntrico dirigido contra suas ideias, pois o marxismo tem sido constantemente combatido por se identificar com fortes movimentos políticos no mundo que ameaçavam o status quo, sobretudo depois de 1917, com a Revolução Russa. O marxismo, na verdade, foi uma crítica revolucionária do status quo, e, por isso, exerceu uma extraordinária capacidade de atrair intelectuais de alto nível que desejavam desenvolver ou criticar suas teorias. O marxismo ficou, de certo modo, circunscrito ao movimento político partidário soviético, de caráter monolítico e monocêntrico, que impediu o seu desenvolvimento teórico-prático, causando mal-estar nos intelectuais marxistas ocidentais, sobretudo, porque uma forma ortodoxa de se compreender e divulgar as ideias de Marx obstacularizou o marxismo a se confrontar e/ou se relacionar melhor com outros conhecimentos surgidos no século XX. A falta de interação da ortodoxia marxista soviética com outros movimentos de reflexão sobre a realidade impediu um maior desenvolvimento do pensamento de Marx nesses países, a partir do contato com outros conhecimentos. Logo, a Universidade foi o refúgio desses intelectuais, o campo livre para a reflexão fora do âmbito partidário monolítico, sobretudo, nas Universidades europeias ocidentais. Por causa da rigidez ortodoxa do marxismo partidário russo ou chinês, muitos dissidentes dos países socialistas passaram a identificar Marx e o marxismo exclusivamente com tais regimes totalitários. Como consequência, houve certa rejeição a Marx por muitos intelectuais dissidentes que abandonaram a perspectiva comunista como sistema de superação do capitalismo. No entanto, a maioria dos marxistas foi obrigada a voltar à posição que os socialistas tinham antes de 1917, a saber, concebia o socialismo como solução dos problemas criados pelo capitalismo, como esperança para um futuro, mas como algo de pouca efetividade na prática histórica, devido à péssima experiência socialista na União Soviética. Com a quase ruptura contemporânea entre URSS e China desde 1962, cujas tropas soviéticas e chinesas se enfrentaram no rio Usuri (1969), as divisões da esquerda foram ainda mais dramatizadas. A China se considerava como paladino do “terceiro mundo” revolucionário do 134 bloco soviético, pois sua revolução foi realizada por mendigos, ladrões, camponeses e não por um proletariado industrial organizado, como afirmou Mao Tse-Tung. Depois da China (1949), a revolução “socialista” na Ásia se encerrava com as guerras do Vietnã (1962-1975), da Coréia (1950-1953), invasão do Afeganistão pelos russos (1979-1989) e os conflitos na Mongólia (Estados sob direção marxista). Deste outro lado do mundo, movimentos de esquerda na América Latina 74, insurrecionais ou não, terminavam em trágicos fracassos como na América Central: a revolução sandinista na Nicarágua (1979-1990) e os guerrilheiros da FMLN (Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional) em El Salvador (1980-1984), “exceto” a Revolução em Cuba (1959); e na América do Sul: no Chile com o governo socialista de Allende (19701973), na Colômbia com as guerrilhas (FARC/FLN), no Peru com movimentos foquistas (Sendero Luminoso), no Brasil com a Guerrilha do Araguaia (1972) e na Bolívia com o Guevarismo (1968). No entanto, enquanto durou o período “terceiro-mundista”, o pensamento marxista foi por ele poderosamente influenciado, pois os marxistas desta área do mundo dirigiam sua atenção para análise de outras classes como a camponesa, as comunidades indígenas etc. Pois, justamente uma parcela considerável da teoria marxista e não marxista foi dedicada à questão agrária e camponesa no início dos anos 1960, ou melhor, a literatura marxista nesse campo foi muito vasta, devido aos interesses terceiro-mundistas que forneceram uma contribuição forte ao desenvolvimento de uma antropologia social marxista. Todavia, foi o movimento radical do final dos anos 1960 que alcançou o marxismo sob dois ângulos principais: primeiro, multiplicou-se o número de pessoas que produziu, leu e adquiriu os textos de Marx ou marxistas, como aumentou o volume de debates e teorias marxistas; segundo, o movimento foi tão imprevisto e inesperado, pelo menos em alguns países, isto é, tão inédito, que houve a necessidade de rever amplamente muitas coisas que eram consideradas óbvias para a maior parte dos marxistas, como a Revolução de 1848. Essa maré radical começou com um movimento de jovens intelectuais, de estudantes, quer dizer, um movimento dos filhos e das filhas de classe média dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, como França, Alemanha e Itália, tendo, portanto, um caráter internacional, sobretudo, com os movimentos de 1968, na Iugoslávia, Hungria, Polônia e Tchecoslováquia, assim como no Brasil, México e Estados Unidos. Uma nova esquerda surgiu a partir de 1968 que se voltou para além dos confins do marxismo tradicional, pois há o renascimento de 74 Sobre os fracassos das lutas armadas na América Latina com suas várias organizações guerrilheiras, os Golpes Militares e a Revolução Cubana, cf. PORTANTIERO, Juan Carlos. O marxismo latino-americano. In: HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 333-357. 135 tendências anarquistas, maoístas ocidentais, ou travestidas de marxistas, ou, também, tendências de formas apolíticas ou antipolíticas. A menção desses fatos históricos nos leva a compreender como o marxismo, que teve uma efervescência forte nos anos 1960-1970 – mesmo com críticas voltadas para o modelo de socialismo praticado no Leste Europeu em sua versão stalinista e pós-stalinista –, começou a entrar em “crise”, a partir do fracasso do socialismo real, simbolizado pela queda do muro de Berlim em 1989. Sabemos que, com a morte de Stalin em 1953 e com o XX Congresso do PCUS em 1956, Nikita Krushev abalou o mundo, sobretudo, os partidos de comunistas tradicionais, denunciando os crimes de Stalin. Foi realmente um grande escândalo político para os partidos de esquerda no mundo ocidental. Daí, o marxismo começar a ser questionado como “teoria se fazendo prática”, e muitos intelectuais começaram a rever suas posições políticas e/ou teóricas. Como afirma Hobsbawm, [...] entre 1956 e o fim dos anos 60, o descontentamento com a política dos partidos comunistas, às vezes – como na França – concentrado em suas organizações estudantis, tinha levado a expulsões ou cisões periódicas, que forneceram um novo contingente aos potenciais militantes e dirigentes do que viria ser a “nova esquerda.75 Isso repercutiu negativamente em grande parte dos partidos e sindicatos europeus ocidentais ligados ao marxismo. E aí temos dois tipos de comportamento político-ideológico a serem ressaltados nesses dissidentes: 1) o da “nova esquerda”, nos países socialistas, que assumia a forma de um comunismo crítico ou reformista e, assim, corria em paralelo aos desdobramentos internos da “velha esquerda” ocidental; e 2) o daqueles que rejeitavam a análise marxista com base na doutrina oficial, logo rechaçavam também o regime soviético em seu todo e todas as suas realizações, não se predispondo, porém, a serem catalogados numa esquerda de outro tipo. Portanto, se a Revolução Russa de 1917 foi, de fato, o acontecimento histórico que enterrou as teses reformistas da II Internacional, baseadas num socialismo evolucionista, pacífico, desencadeando, assim, a primeira crise do marxismo, pela falta de uma interpretação fidedigna do pensamento de Marx, ou mesmo sua distorção, o advento do stalinismo e do pós-stalinismo (com o khrushevismo) e suas consequências foi outro fato que trouxe certo desencanto para muitos marxistas ocidentais e orientais quanto à realização do socialismo na sua forma genuína. Diferentemente, para neutralizar essa decepção político-ideológica com o “socialismo realmente existente”, o capitalismo também sofria um período de recessão econômica, configurando sua nova fase. Isso despertou em muitos intelectuais a fazerem uma análise 75 HOBSBAWM. O marxismo hoje: um balanço aberto. In: _____. Op. cit., v. XI, p. 33. 136 marxista sobre a economia capitalista efetiva, ou seja, muitos marxistas (Baran, Sweezy e Michel Kidron) e não marxistas (John Kenneth Galbraith) ou ex-marxistas se lançaram rapidamente num exame analítico e sistemático dessa nova fase do capitalismo. Como diz Hobsbawm, [...] as tendências renovadas para analisar o capitalismo do pós-guerra como uma nova fase específica do desenvolvimento capitalista se manifestaram amplamente com base num alargamento do interesse sempre vivo entre os marxistas pelo terceiro mundo, através de uma extensão da análise sobre as “multinacionais”, durante muito tempo consideradas entre os principais fatores de exploração dos países dependentes.76 A crise geral dos anos 1970 e 1980 fizeram com que os marxistas ficassem embaraçados, pois, convivendo com uma economia capitalista ocidental controlada, planificada ou mesmo possuída pelo Estado do bem-estar social, ou seja, numa economia keynesiana do pós-guerra, eles não tinham soluções plausíveis a oferecer, a não ser retomar o interesse pelo problema das “ondas longas” do desenvolvimento capitalista, isto é, pelo ciclo de Kondratieff (prosperidade, crise e depressão). Por outro lado, eles não poderiam se referir às economias socialistas que estavam em dificuldades de realizar conquistas no desenvolvimento econômico, invocando-as como um sinal de superioridade face às economias capitalistas. O período khruscheviano comportava, assim, as contradições internas das economias socialistas, a saber, os defeitos de planejamento e de gestão, os problemas econômicos gerais, a corrupção burocrática, a obsolescência tecnológica etc. Concomitantemente, a derrota da “primavera de Praga” e a emigração forçada de muitos intelectuais judeus da Polônia no final dos anos 1960 desencadearam uma nova discussão crítica sobre as economias de planejamento centralizado por parte dos marxistas ocidentais. Para Hobsbawm, O efeito imediato dessa crise geral, por isso, foi o de encorajar a análise marxista concreta da economia capitalista mundial e reavivar as demonstrações de suas contradições econômicas, embora, ao mesmo tempo, se tenham reforçado as dúvidas e as incertezas dos marxistas acerca das realizações e das perspectivas econômicas daquilo que a doutrina oficial na URSS e nos Estados a ela ligados chamou de “socialismo realmente existente”77 Não podemos deixar de mencionar, no entanto, a importância dos jovens intelectuais e do marxismo acadêmico como protagonizadores do desenvolvimento do pensamento de Marx a partir dos anos 1950, isto é, a mudança na base social do marxismo e as transformações do capitalismo mundial. Na concepção de Hobsbawm, ao contrário do que ocorreu na II e III Internacionais, o desenvolvimento do marxismo, depois de 1950, se deu através de um estrato 76 77 HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 36. Ibid., v. XI, p. 37-38. 137 social cada vez mais importante, a saber, os intelectuais e, sobretudo, jovens. Antes o marxismo tinha raízes sociais nos movimentos e partidos de trabalhadores manuais, formando o militante operário autodidata, através de círculos sociais, de cursos didáticos, das bibliotecas e de institutos ligados ao movimento operário, onde ele recebeu sua formação intelectual. Os trabalhadores organizados nesses movimentos aceitavam, valorizavam e assimilavam a doutrina marxista (a ciência proletária) como parte da sua consciência política, como também a grande maioria dos intelectuais, vinculados a esse movimento, se considerava a serviço da classe operária, de um movimento de emancipação da humanidade. Entretanto, a partir do momento em que a classe operária começou a melhorar de vida, a publicidade comercial manipulou os desejos dos trabalhadores enquanto consumidores e, principalmente, se privatizou a vida da classe operária, houve então o enfraquecimento da coesão das comunidades operárias, tão importante para determinar a força dos partidos e dos movimentos de massa do proletariado. O paradoxo dessa melhoria é que os filhos e filhas da classe operária começaram a ingressar em ocupações não manuais e, ipso facto, ingressaram também nas escolas secundárias e superiores, formando-se em novos potenciais quadros de proletários e dirigentes do movimento operário, capazes de leitura e estudo. Sendo assim, podemos inferir que os novos sujeitos proletários poderiam ser os coveiros do capitalismo, pois o número de trabalhadores não manuais crescia em termos de quantidade, autoconsciência e força. Porém, o desenvolvimento do capitalismo ocidental – e dos movimentos operários em seu interior – parecia tornar essa perspectiva mais difícil de acontecer. Se por um lado, os trabalhadores não tinham mais aquela confiança na história dos movimentos socialistas por causa da crise do regime stalinista, por outro lado, os partidos marxistas – mesmo que acreditassem na possibilidade de realização do socialismo, como orientação para se construir uma estratégia política e revolucionária, – estavam desorientados pela incerteza daquilo que os militantes e dirigentes consideravam como a bússola do curso histórico. Tal desorientação aumentava com as vicissitudes na URSS e em outros países ditos socialistas, após 1956, como dissemos anteriormente. A crise do marxismo, portanto, foi e é resultado de uma crise de confiança na possibilidade histórica de construção do socialismo nos moldes políticos propugnado por Marx e Engels, já que o socialismo real foi o oposto daquilo do que pretendiam realizar seus idealizadores. A iniciativa de se fazer uma revisão radical do marxismo por alguns marxistas críticos do socialismo real, desde a análise estrutural de Marx e de outros clássicos até a estratégia e a tática de curto e longo prazo, significava dentro da tradição central do marxismo, ligada à URSS e ao movimento comunista internacional, o abandono ou mesmo a 138 traição do marxismo. Tal revisão tornou-se a causa da fragmentação da ortodoxia, colocando em conflito os velhos e os novos marxistas. Contudo, como afirma Hobsbawm 78, subitamente surgiu o fenômeno de renovação dentro do marxismo com a maciça radicalização de jovens intelectuais acadêmicos que deram a base social um suporte de teorias marxistas. Assim, nasceram organizações e partidos marxistas, sobretudo, pequenos, cujos militantes eram pessoas diplomadas. O desenvolvimento dos sindicatos comprovou isso, à medida que cresceu o número e o peso de pessoas organizadas entre os empregados do setor público como na saúde, educação e segurança social, quer dizer, em ocupações nas quais homens e mulheres conseguiram ter uma educação superior. Para Hobsbawm, “a radicalização dos jovens intelectuais não produziu somente um notável aumento do público leitor da literatura marxista e uma presença maior de intelectuais marxistas: também forneceu um mecanismo para sua reprodução.” 79 Não foi à toa que muitos estudantes, provenientes do radicalismo estudantil de 1968, começaram a usar elementos marxistas de análise em suas discussões públicas. Isso era endêmico tanto na América Latina como nos países europeus. Muitos se tornaram professores ou operadores de informação, afetando as instituições de ensino com o pensamento marxiano. Desse modo, o marxismo conquistou o posto mais sólido nas instituições ligadas à instrução e ao ensino, sobretudo, nas universidades. Muitos se tornaram professores e/ou escritores, enquanto outros abandonaram suas convicções de juventude, quer dizer, não se submeteram às violentas flutuações do radicalismo estudantil. Como corolário dessas crises e mudanças históricas, nos países desenvolvidos a sociedade moderna enquanto tal, criada pela indústria moderna e tecnologia científica, foi alvo de debate crítico nas universidades por parte dos intelectuais. Assim, muitos intelectuais se converteram ao marxismo, e houve, portanto, uma expansão extraordinária no número de instituições de instrução superior e de estudantes que nelas se inscreviam, nos anos 1960, em todo mundo. Nessas instituições superiores, o pensamento marxista se desenvolveu de forma inesperada, principalmente porque tal produção de novas reflexões e pesquisas marxistas não era produto de uma crise econômica capitalista, pois se vivia o auge dos “milagres econômicos”, mas, ao contrário, foi a insatisfação com a vida social e cultural que fez os estudantes desenvolverem uma crítica radical à sociedade moderna in totum (em geral). Nessas circunstâncias, a sociologia marxista floresceu e era a principal disciplina que atraía os estudantes mais radicais, como também a filosofia que tendeu a penetrar noutras 78 79 Cf. HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 42. HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 42. 139 disciplinas. Os althusserianos consideravam, por exemplo, O Capital como um trabalho de epistemologia, ou melhor dizendo, a investigação e a análise do mundo real cederam lugar à consideração geral de suas estruturas e de seus mecanismos. O último Poulantzas se defendia dos críticos por acusarem-no de não fazer análises concretas, a saber, análise dos fatos concretos, empíricos e históricos, embora ele reconhecesse que seu trabalho sofria de um “certo teoricismo”. 80 No entanto, é preciso deixar claro que a bibliografia de publicações filosóficas marxistas cresceu absurdamente depois de 1960, tendo como consequências debates nacionais e internacionais entre marxistas que atraíram maior atenção de filósofos, sociólogos, intelectuais e estudantes de um modo geral, muito deles ligados a Lukács, à Escola de Frankfurt, aos gramscianos, aos seguidores de Della Volpe, Sartre, Althusser, além de vários discípulos críticos e opositores. O efeito colateral disso tudo é que a “nova esquerda” intelectual tendia às vezes a abandonar os trabalhadores enquanto classe não mais revolucionária, tornando-se até mesmo reacionária, porque se integraram ao capitalismo; abandonavam, portanto, os movimentos e os partidos operários de massas existentes, denominados de socialistas e comunistas, id est, de reformistas traidores das aspirações socialistas. No caso dos estudantes mais politizados, estes não eram tão populares entre as massas e, no mínimo, eram considerados filhos privilegiados da classe média ou como potenciais dirigentes das classes dominantes. Nas palavras de Hobsbawm, “A teoria marxista, no ambiente da ‘nova esquerda’, se desenvolveu por isso num certo isolamento, e seus laços com a prática marxista foram de uma problematicidade incomum.”81 Na visão de Hobsbawm, o interesse pela teoria abstrata, no âmbito da discussão marxista e sob a influência do filósofo Louis Althusser, aumentou bastante, porque atraiu vários intelectuais e estudantes, na perspectiva de investigar questões, como no caso, da teoria econômica; em outras palavras, rever as bases da teoria marxista era essencial para examinar criticamente o trabalho de Marx e do marxismo enquanto corpo de pensamento coerente e homogêneo, principalmente, devido a uma certa distância que havia entre tal teorização e uma análise concreta do mundo. Por este prisma, a teoria de Marx sobre o valor trabalho é atualíssima, na medida em que categorias como “trabalho abstrato”, “trabalho concreto”, “mais valia” (absoluta e relativa), “fetiche da mercadoria” etc. não podem ser desprezadas pela análise crítica do capitalismo atual, ou seja, são ainda categorias imprescindíveis para se desvendar o processo de exploração e acumulação do capital. Numa sociedade do trabalho 80 81 Cf. HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 45. HOBSBAWM, op. cit., v. XI p. 44. 140 complexo, com mais de 50% ou até 80% de automatização nas indústrias, buscar entender como o trabalho vivo não pode ser descartado tão facilmente pelo capital do seu processo produtivo, como realização de sobrevalor, é extrair e compreender a lógica que preside essa fase da exploração capitalista. O capitalismo é, antes de tudo, uma relação social entre capital e trabalho, como afirma Marx em O Capital. E tomar este prisma reflexivo é contrapor-se à ideologia da crise do marxismo como teoria, embora como prática política ainda esteja vivendo uma crise de ceticismo. É por esse caminho de inversão crítica que podemos então afirmar que a crise do marxismo foi tout court (somente) uma crise político-econômica de realização do socialismo no século XX, a partir de um determinado modelo de transição num país industrialmente atrasado. E isso está ligado certamente a vários fatores: econômico, político-ideológico e, principalmente, científico-tecnológico. Desta feita, a crise do marxismo in nuce (em suma) começou num primeiro momento, de fato, com a crise da II Internacional, com a crítica das teses reformistas de Kautsky e Bernstein, dentre outros, pelos teóricos bolcheviques, ou seja, quando a Revolução Russa colocou em xeque as teses do socialismo gradualista, evolucionista, da realização do socialismo por meios pacíficos (conquista do Estado burguês e do Parlamento), como se fosse apenas uma questão de efetivação dos direitos sociais, de colaboração de classes entre a burguesia e o proletariado, ou melhor, de os representantes do proletariado se fazerem maioria no legislativo e controlarem o Estado. A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais desfizeram essa falácia político-ideológica, quando mostraram a competição interimperialista pela repartição geopolítica do planeta, em que determinadas regiões do mundo seriam divididas e controladas pela dominação político-econômica de certos países imperialistas, tais como os países aliados (EUA, França e Inglaterra) e os países de cariz nazi-fascista-imperial (Alemanha, Itália e Japão). O segundo momento da crise do marxismo, a meu ver, se desdobra em dois: a ascensão de Stalin ao poder (após a morte de Lênin em 1924) e sua morte em 1953 com a denúncia a posteriori de seus crimes contra a humanidade por Khruschev, no XX Congresso do PCUS em 1956. Já bem antes, Trotsky e seus séquitos já denunciavam as distorções do socialismo sob a direção de Stalin, pois o regime stalinista fazia uma brutal perseguição política aos dissidentes, com prisões, expurgos, expatriação, exílios em regiões inóspitas (Sibéria), inclusive até assassinatos e desaparecimentos de muitos deles. Mészáros82 acredita 82 Cf. MÉSZÁROS. A sombra da incontrolabilidade. In:____. Para além do capital, p. 73. 141 que não foi só a falha do “socialismo” sob o poder de Stalin a causa mor do fim do socialismo, mas também os débeis esforços de desestalinização (com os governos de Khruschev, Brejnev, Yuri Andropov, Kostantin Tchermenko até Gorbachev) – visando eliminar alguns efeitos das contradições do sistema soviético, mas, ao mesmo tempo, preservando seu conteúdo – que desfizeram o desafio histórico iniciado na Revolução de 1917. Na verdade, a falência do “socialismo real” tem a ver também com causas socioeconômicas e políticas profundamente enraizadas na sociedade soviética. Só os apologistas do capitalismo pensam o contrário. O que fica claro é que as personificações do capital – Estado, Capital e Trabalho – não deixaram de existir no sistema soviético enquanto categorias fundamentais para realização do processo de exploração do trabalho humano, ou, como diz Mészáros, “componentes inseparavelmente entrelaçados do sistema orgânico do capital – em suas variedades capitalista e pós-capitalista.”83 Os erros cometidos são extensos, a saber: a revolução socialista realizada no “elo mais fraco da corrente”, “socialismo num só país”, burocratização e fetichização do Partido, fim dos conselhos sovietes, extração forçada de “trabalho excedente” pelo Estado soviético, NEP (Nova Política Econômica), coletivização forçada da pequena propriedade, stalinização do movimento internacional da classe trabalhadora, partido único sob controle ferrenho de políticos profissionais, fortalecimento e agigantamento do Estado burocrático na versão totalitária etc.84 O terceiro momento da crise do marxismo se dá com o colapso do socialismo na União Soviética e em países satélites da sua órbita de influência econômica, política e militar, entre 1989-1991. Ao mesmo tempo, o capitalismo ocidental também vivia uma crise de acumulação/valorização do capital, tentando adiar sua crise final, ao implantar em vários países o neoliberalismo enquanto política econômica paliativa, objetivando aprimorar os mecanismos de exploração da força de trabalho, a partir de uma nova “reestruturação” produtiva, quer dizer, política, econômico-financeira e até mesmo constitucional. São, portanto, dois movimentos históricos que se redefiniam simultaneamente com o objetivo único de fortalecer o capital e seus mecanismos de reprodução. Para Mészáros85, se o movimento soviético tinha a intenção de criar um novo “sistema orgânico” genuinamente socialista e sustentável, ou melhor, criar uma totalidade social coerente que quebrasse com o círculo vicioso da totalidade orgânica autossustentada do capital, colocando em seu lugar um 83 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 917. Mészáros aborda essa questão de forma mais sistemática e detalhada em Para além do capital, p. 726-786: “Socialismo em um só país”, “O fracasso da desestalinização e o colapso do ‘socialismo realmente existente’” e “A tentativa de passar da extração política à economia do trabalho excedente: glasnost e perestroika sem o povo”. 85 Cf. MÉSZÁROS, op. cit., p. 726. 84 142 desenvolvimento irreversivelmente aberto, então as sociedades pós-capitalistas soviéticas fracassaram na tarefa, pois seguiram a “linha da menor resistência”, na medida em que propuseram o socialismo sem superar radicalmente os pressupostos materiais do sistema capitalista (Capital-Estado-Trabalho). Assim sendo, a última tentativa de destravamento do sistema político e econômico soviético para humanizar o socialismo, sob a direção de Mikhail Gorbachev, foi o ponto final num sistema corroído pela falta de liberdade social, pela corrupção burocrática nos organismos e empresas estatais, enfim, pela animosidade ou apatia que tomava conta de toda a sociedade. Na visão de Mészáros, Gorbachev se pautou por uma visão de “valores humanos universais” como mantra político copiado dos países capitalistas ocidentais; porém ele e seus colaboradores “esqueceram” que os “‘valores humanos universais’ simplesmente não poderiam ser assumidos nas sociedades em que existem antagonismos destrutivos de classe.”86; e continua Mészáros dizendo que a perestroika não passou de uma lista de desejos, embrulhados numa retórica partidária que não traduziam na realidade os objetivos políticos desejados: a restauração da sociedade de mercado. Nesse sentido, o apelo à moralidade substituiu imaginariamente o poder das forças materiais e políticas identificáveis que poderiam garantir a realização dos objetivos desejados. Renovar o socialismo com o mercado capitalista era mesmo enterrar os últimos resíduos que poderia haver de socialismo na sociedade soviética. Não poderíamos também deixar de dizer que a crise do marxismo foi resultado do seu pluralismo e dos novos revisionismos, sobretudo, após 1956, com alguns desdobramentos internos, segundo Hobsbawm87: primeiro, o pluralismo do marxismo foi reconhecido e sancionado a partir do desaparecimento de qualquer ortodoxia internacional dominante ou obrigatória, tal como àquela do Partido Social Democrata Alemão antes de 1914 e a do comunismo soviético, quando exercia sua hegemonia sobre o marxismo mundial. Por conseguinte, tornou-se mais difícil considerar as interpretações heterodoxas como “não marxistas”, como também os que divergiam da ortodoxia romper os laços com Marx. Para Hobsbawm, o pluralismo é politicamente resultado da fragmentação do movimento comunista internacional, das incertezas sobre a estratégia e as perspectivas dos partidos 86 87 MÉSZÁROS, op. cit., p. 766. Cf. HOBSBAWM, História do Marxismo XI, p. 48 et seq. 143 operários socialistas no resto do mundo, da tendência de outros movimentos e partidos que buscavam uma mudança radical para usar o distintivo de Marx em seus lemas ideológicos (adornos) e, por fim, da composição social transformada da população marxista. Mas a consequência fundamental dessa pluralidade do marxismo – com ortodoxias rivais (China e URSS), diferentes interpretações do marxismo pelos partidos marxistas, a combinação do marxismo com outras ideologias (católica, islâmica ou nacionalista) e com a extensão do marxismo para além do terreno político (esfera acadêmica e cultural) – foi o reaparecimento dos teóricos, pois estes não estão estreitamente ligados a uma organização política particular e muito menos ainda a uma linha política ou mesmo desempenham uma função política. Daí o surgimento de várias escolas teóricas (a de Budapeste, a da Práxis, a de Frankfurt, a polonesa, a dos austro-marxistas etc.) com nomes de prestígios nos debates internacionais: Althusser, Marcuse, Lukács, Gramsci, Habermas, MerleauPonty, Sweezy, Sraffa, Colletti etc. Segundo, a linha entre “o que é marxista” e “o que não é marxista” ficou cada vez mais indiferenciada, justamente porque houve um rápido desenvolvimento de um público de intelectuais interessado no marxismo, como também sua penetração no mundo acadêmico. Dessa maneira, o marxismo se tornou um dos componentes de um universo intelectual, no qual se tentou combinar qualquer marxismo com outras teorias como o estruturalismo, o existencialismo, a psicanálise etc. Terceiro, a disponibilidade de o marxismo reconsiderar não só a tradição marxista como a teoria do próprio Marx. Aqui temos o debate interno sobre a teoria economica de Marx. Nos anos de 1960-1970, um maior número de marxistas (revisionistas) retirava do marxismo a teoria do valor trabalho ou da queda da taxa de lucro, e rejeitava a proposição de que “não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas é, ao contrário, o seu ser social que determina sua consciência”, recusando, assim, o ponto de vista da “estrutura” e “super-estrutura”. Para eles, todos os textos anteriores a 1882, não suficientemente marxistas, são mais filosoficamente idealistas do que materialistas. Hobsbawm denomina essas revisões de grosseiras e afirma que Marx certamente reagiria duramente a tais revisões. Para Hobsbawm, “[...] tais desafios às idéias de Marx [...] representam a mais profunda fratura até aqui 144 registrada na continuidade da tradição intelectual marxista.” 88 Por outro lado, ele acredita que os desafios indicam o reconhecimento da necessidade de se atualizar radicalmente o marxismo, permitindo a investigação de possíveis erros e incongruências no pensamento de Marx, como também a teoria de Marx oferece uma orientação essencial para compreender e mudar o mundo. E, por fim, o quarto desdobramento é que, a partir dos anos 1950, os marxistas concentraram seus esforços no campo das ciências humanas e sociais, além das questões ligadas às ações políticas. No entanto, foram poucos os que entraram no campo das ciências naturais e da tecnologia, sob alegação de que o marxismo não pertence a esse ambiente positivista. Aí se apresenta uma nítida restrição do campo de ação do marxismo, embora cultores das ciências naturais e tecnológicas dos falidos Estados socialistas nunca tenham compactuado com esse ponto de vista abertamente. Por isso, a crise dentro do marxismo é outro tema que não podemos deixar de mencionar para compreendermos sua crise de uma forma geral, após o colapso dos países socialistas no Leste Europeu. Se, depois do período sucessivo dos anos 1950, os analistas podiam falar mais uma vez da crise do marxismo, em que as velhas certezas – ou versões em contato com essas certezas – sobre o futuro do capitalismo, das forças sociais e políticas para realizar a transição para o socialismo, a natureza deste socialismo, então tais velhas certezas estavam sob o crivo da crítica. Desse modo, a teoria fundamental do marxismo, ou o próprio pensamento de Marx, ficou submetida a um profundo reexame crítico e a uma série de reformulações polêmicas ente si. Isso reflete, de certa forma, uma crise dentro do marxismo, isto é, o questionamento do marxismo tradicional. Se havia uma identificação dos partidos marxistas vivos ou em desenvolvimentos com a URSS, como primeiro Estado operário, filho da primeira revolução operária, que inspirava os militantes do movimento comunista internacional, então hoje esta identificação ficou abalada, sobretudo, por intelectuais e um público mais amplo. Como consequência, houve e ainda há tentativas tradicionais de invalidar intelectualmente as teorias de Marx, embora as atitudes que tentam liquidar Marx são muito raras. Por outro lado, essa crise interna, pós-1956, foi neutralizada pela necessidade de uma crítica radical da sociedade burguesa e das formas mais iníquas de desigualdade e de injustiça social que ela produz, levando muitos homens e mulheres ao marxismo, como, por exemplo, a penetração do 88 HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 55. 145 marxismo na vida intelectual espanhola nos anos 1960-1970, quando o papel do Partido Comunista Espanhol dentro da oposição antifranquista organizada foi central. Afirma Vittorio Strada que se pode falar do marxismo de vários modos, tornando-o objeto de apologia ou crítica, quer dizer, pode-se analisá-lo, ou com distanciamento pelo estudioso, ou usá-lo com paixão pelo militante.89 Para ele, muitas vezes, se entende o marxismo como um “movimento de ideias”, mas é uma expressão inapropriada, porque já houve outros movimentos de ideias de nosso tempo. O marxismo indica a capacidade do homem de transformar o mundo, na medida em que organicamente se associa com uma força histórica como a classe proletária. Strada, então, declara que na história do marxismo existe uma fratura intrínseca, quer dizer, uma ante e um post: “um antes”, como instrumento de organização das forças sociais dentro de uma sociedade (burguesa), baseada em princípios antitéticos, denunciados pelo próprio marxismo; e “um depois”, a Revolução de 1917, enquanto aplicação prática do marxismo na história, a saber, a data de ruptura do marxismo em seu desenvolvimento. Poder-se-ia considerar então o marxismo como uma “máquina ideológica” ou um “saber científico”? A tese de Sartre, num trecho da Crítica da Razão Dialética, é de que o marxismo é “uma filosofia insuperável de nosso tempo”, ou seja, o marxismo tem um sentido e um valor enquanto investigação política e intelectual de nosso tempo. Para ele, o marxismo como filosofia é insuperável, porque as circunstâncias que o produziram ainda não foram superadas. Um argumento antimarxista, para Sartre, é apenas uma renovação de uma ideia pré-marxista. O marxismo é, na verdade, a tentativa mais radical de iluminar o processo histórico na sua totalidade, isto é, pôr um fim à inconsciência de toda a história anterior. Sartre não afirma aí a onipotência do marxismo, nem também a sua impotência, mas reafirma tanto a sua grandeza como a sua “miséria” efetiva, ou seja, como resultado de uma conjuntura temporária. No caso do marxismo-leninismo, por exemplo, enquanto um sistema de concepções revolucionárias da classe operária, dos trabalhadores, que reflete as leis objetivas do desenvolvimento do mundo e a experiência da luta de classes, ele representa o desenvolvimento de um programa, de uma estratégia e tática de uma luta revolucionária contra o capitalismo. O marxismo se apresenta aí como um todo sistemático de conhecimentos científicos de caráter universal, ligado à ação prática que visa à emancipação geral dos trabalhadores. O caráter essencial do marxismo é, pois, a sua dinâmica teórica, seu 89 Cf. STRADA, Vittorio. Marxismo e pós-marxismo. In: HOBSBAWM, História do Marxismo XI, p. 101. 146 desenvolvimento prático, a partir da experiência da classe proletária organizada. 90 No entanto, a questão que se coloca é se o “marxismo-leninismo” foi o “marxismo real”, ou, melhor dizendo, se o marxismo foi superado pela própria crise do “marxismo real” encarnado no “socialismo real”, contrapondo-se, assim, à tese de Sartre como uma filosofia insuperável de nosso tempo. A intenção teórica de associar o marxismo à experiência histórica de um modelo de transição para o socialismo 91 promoveu, de fato, o terceiro momento da crise do marxismo com o fim do “socialismo real” no Leste Europeu. Daí os partidos comunistas ou socialistas tradicionais e os sindicatos ligados ao movimento operário de esquerda internacional sofrerem um duro golpe histórico na sua ideologia de classe. Mesmo sabendo que havia um “marxismo crítico” ou reformista em alguns países (Polônia, Hungria, Tchecoslováquia e Iugoslávia) em oposição “marxismo soviético” – que “subordina uma versão empobrecida e distorcida da teoria marxista clássica da sociedade à doutrina do ‘materialismo dialético’, apresentada como uma cosmologia sistemática e como um método científico universal”92, – muitos marxistas ocidentais e orientais ainda defendiam o socialismo como sistema da emancipação humana face ao capital. Foram, portanto, vários os dissidentes93 (comunistas críticos, reformistas ou oponentes ao comunismo soviético) que colocaram em discussão e suspeição o caráter socialista das sociedades pós-revolucionárias, mas também fizeram um exame crítico de alguns pressupostos da ortodoxia soviética. Senão vejamos: 1) a tese de Stalin que invocava a razão dialética para neutralizar as dissonâncias entre os restos da tradição revolucionária e as práticas da situação pós-revolucionária, segundo a qual a supressão do Estado só se realizaria com seu reforço incessante; 2) o conhecimento objetivo e a verdade absoluta, ancorados à teoria do reflexo, ou melhor, à redução da consciência como cópia da realidade exterior; 3) a 90 Cf. STRADA, op. cit., p. 110-111. Para César Benjamin, o que vimos no final do século XX não foi o fim da possibilidade do socialismo, mas o esgotamento de um modelo de transição pensado na década de 1920 em uma sociedade atrasada; portanto, para ele é fundamental, a partir da atualidade, reabrir a questão dos fundamentos teóricos das decisões tomadas naquela época. Cf. BENJAMIN, César. A necessária retomada do tema da transição. In: Idem (Org.). Marx e o socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 147. 92 ARNASON, Johann P. Perspectivas e problemas do marxismo crítico no Leste europeu. In: HOBSBAWM, História do marxismo XI, p. 166. 93 Na URSS, desde Bukharin que tentou fazer a reforma do socialismo a partir de um projeto cultural enraizado na sociedade complexa, Beria que quis suprimir os expurgos estalinistas até Khrushev que se propôs a desestalinizar o regime; na Polônia com Leszek Kolakowski que se orienta para a crítica cultural e Wlodzimierz Brus que queria a democratização política e o controle social efetivo sobre o governo; Na Iugoslávia com a Escola da Práxis – Mihailo Markovic ligado à visão marxiana de extinção do Estado; Na Tchecoslováquia com Karel Kosik que combatia a redução da práxis ao trabalho; e na Hungria com o governo Imry Nagy (1953-1955), Escola de Budapeste com András Hegedüs, G. Bence e J. Kis, Agnes Heller com a teoria dos carecimentos que evita a armadilha de se cair numa concepção de homem excessivamente socializante e historicizante, dentre outros. 91 147 definição das forças sociais como massas que precisam de uma direção e comando seria a própria diluição da teoria de classes através da noção vaga de “massas trabalhadoras”; 4) a interpretação do trabalho e a luta de classes como direta ou indiretamente subordinadas às leis das forças produtivas; 5) a noção de autorrealização ilimitada, ligada ao conceito de práxis enquanto atividade social consciente e orientada para um fim, criando uma hierarquia de objetivações que privilegia os aspectos institucionais em detrimento dos aspectos transinstitucionais; 6) a perpetuação da forma antagônica do progresso que não conseguia ir além de uma ruptura superficial com o capitalismo; 7) a dominação burocrática em que Estado e Partido eram um só, apartado da sociedade, ou seja, os burocratas do Partido Comunista eram a nova classe dominante que construía uma forma não capitalista de sociedade moderna, transformando a teoria revolucionária numa ideologia de mascaramento; 8) a regulação consciente da produção social equiparada com a planificação no sentido soviético que promovia a desmotivação para o exercício do trabalho e produção para satisfação das necessidades básicas do homem; 9) o autogoverno substituindo a autogestão operária da produção; 10) a burocracia como expressão da cisão entre ser individual e ser social do homem, ou, melhor dizendo, a expropriação política da classe operária; e 11) a tensão entre o determinismo e voluntarismo como traço permanente do marxismo soviético. Tais pressuposições, na forma de imperativos políticos do Estado-partido, impediram o desenvolvimento da teoria marxista e da sua prática na forma de socialismo (Estadocomuna), na medida em que o sujeito revolucionário não era mais o proletariado, mas um grupo de políticos profissionais partidários, burocratas do Partido Comunista, que se autointitulou “guia” do processo histórico. O Partido era, sem dúvida, o sujeito coletivorevolucionário na visão leninista, mas, de fact, foi a elite do Partido que se transformou nesse demiurgo da história do socialismo, deixando sua base acantonada enquanto ator coadjuvante desse processo histórico. Nas palavras de Maurice Godelier, O marxismo tornou-se, nos países socialistas, uma filosofia de Estado, um modo de pensar obrigatório, não apenas para analisar o real, mas também para ocupar uma posição na sociedade, para fazer carreira. O marxismo, chegando a tal ponto, começou a degenerar; e, de instrumento de análise crítica, capaz de servir a causas revolucionárias, tornou-se um modo conformista de argumentar, que evita cuidadosamente abordar a questão de sua impotência em explicar a realidade. Entre o pensamento de Marx e nós, elevou-se uma barreira criada por um século de desenvolvimentos imprevistos, entre os quais devemos incluir também o nascimento de vários marxismos, como o de Mao Zedong, o de Kim Il Sung ou de Brejnev, que se afastaram cada vez mais de Marx, reinterpretando-o como podem, em função de realidades concretas que devem abordar.94 94 GODELIER, Maurice. O marxismo e as ciências do homem. In: HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 387. 148 No entanto, para Göran Therborn, os anos 1960 representam um momento de ruptura para o pensamento marxista, consumando-se e consolidando-se, a partir da metade dos anos 1970. Na sua compreensão, o desenvolvimento do “marxismo ocidental”, com seus teóricos da “revolução contra o capital”, se deu com o retorno às origens, ou seja, à filosofia, com as obras de Lukács, de Korsch, da Escola de Frankfurt, Sartre, Althusser, Gramsci, Della Volpe; mas, na verdade, o “marxismo ocidental” não foi um recuo aos problemas que o jovem Marx abordava, mas foi um indício da crise da filosofia burguesa na Europa Central e Latina. Portanto, Therborn acredita que O colapso do estalinismo abriu caminho para o progresso do pensamento e da elaboração de idéias, enquanto os movimentos estudantis de massa, que se desenvolveram nas universidades de todo o mundo capitalista, ofereceram um espaço acadêmico e uma infra-estrutura institucional para o novo tipo de marxismo.95 Nessa mesma linha de raciocínio, Perry Anderson96 afirma que o marxismo ocidental se caracteriza, sobretudo, pelas suas preocupações filosóficas e estéticas, porém, despreocupando-se com a prática, à medida que se desvinculou do movimento operário, confinando-se, portanto, na academia. Para ele, o elo entre o marxismo contemporâneo e a velha tradição de Marx e do bolchevismo é o “marxismo ocidental” que geograficamente inclui não só os países latinos europeus – França e Itália –, mas também os países anglosaxões. Dessa maneira, a teoria marxista, depois das preocupações filosóficas – diz Therborn – voltava a ser teoria social, quer dizer, teoria sobre a sociedade contemporânea e sobre a política de nosso tempo. Em outras palavras, a análise marxista passou a ser, antes de mais nada, uma análise sociopolítica, ou melhor, uma ciência social. O novo marxismo surge, então, da sua preocupação mais social e tem como objeto principal de investigação a teoria das classes sociais – um projeto inacabado de Marx na última parte de O Capital. Pelo menos dois problemas o marxismo parece ainda não ter solucionado: o primeiro refere-se à necessidade de se delinear os modelos de relações de classes existentes, identificando os processos que os criam e os mantêm em vida; o segundo concerne ao compromisso político da análise científica marxista para contribuir na luta pela abolição da exploração e do domínio do capital, fornecendo os conhecimentos necessários para essa 95 THERBORN, G. A análise de classe no mundo atual: o marxismo como ciência social. In: HOBSBAWM, História do marxismo XI, p. 390. 96 Cf. COGGIOLA, Oswaldo. A vigência do Marxismo. In: Idem (Org.). Marxismo hoje. 1ª ed. São Paulo: Xamã, 1996. p. 121. 149 luta.97 Esses problemas derivam, com efeito, de três razões: 1) da ambiguidade do conceito de classe tratado por Marx; 2) da complexidade das relações sociais nas sociedades capitalistas; 3) da fragmentação do debate marxista internacional, como resultado do “marxismo ocidental” e das fraturas por ele operadas no marxismo internacional em tantas escolas filosóficas. Entretanto, a contradição fundamental do marxismo, segundo Sergio Couri, consiste, por um lado, na socialização dos meios de produção e, por outro, no controle estatal dos meios de produção. Isso resultou numa total dessintonia entre as propriedades privadas e as aspirações do proletariado e aquelas da burocracia que exerceu a ditadura do proletariado em seu nome, controlando os meios de produção. Nesse sentido, há um divórcio entre doutrina e práxis, ou seja, “[...] os detratores do marxismo procuram fazer valer o fato de este, reconhecendo-se ou não sua cientificidade na análise crítica do capitalismo, ser utópico em relação ao homem e à nova sociedade que projetou.”98 O marxismo tornou-se, assim, um instrumento de poder, perdendo, pois, sua pureza doutrinária, quer dizer, passou a sustentar os interesses de grupos dentro do Estado e o dele próprio em face de outros Estados. Nas sociedades “marxistas”, a falta de liberdade e ação política, de consciência, de imprensa, de circulação de ideias e de alguém se dispor física e intelectualmente de sua própria pessoa eram conditio sine qua non desse tipo de poder autoritário, ou seja, a sociedade soviética, mesmo assumindo o caráter de uma sociedade “nova”, não capitalística e não socialística, como diz Salvadori99, possuía um caráter hierárquico e não igualitário, próprio do capitalismo, pois era uma sociedade, na qual o poder imprimiu um caráter fechado, estático, que visava à conservação e não à inovação. Não é à toa que Althusser afirma que “O marxismo não se desembaraçará das tragédias de sua história condenando-as ou lastimando-as: isso seria apenas moral, e uma renúncia teórica e política.”100 Conforme o autor, é vital para o marxismo reconhecer e assumir essas tragédias, colocando-as na ordem do dia e indo até às suas raízes, quer dizer, será preciso forjar os meios teóricos necessários para compreendê-las. Essa seria a única maneira de resgatar o marxismo das ideologias burguesas que querem invalidar as ideias de 97 Cf. THERBORN, op. cit., p. 416. COURI, Sergio. O marxismo em crise. In:____. Capitalismo Marxismo: ensaios sobre a evolução do capitalismo e do marxismo. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 112-113. 99 Cf. SALVADORI, M. L. Eurocomunismo e socialismo soviético. Turim: Giulio Einaudi Editore s.p.s., 1978, p. 114 apud COURI, op. cit., p. 118. 100 ALTHUSSER, Louis. O Marxismo Hoje. Kriterion – Revista de Filosofia, Belo Horizonte, MG, v. XXIX, n. 78, p. 47-61, jan. a jun. 1987. p. 60. Deve ficar claro que não estamos concordando in totum com as críticas de Althusser ao pensamento marxista, sobretudo, na sua divisão em dois Marx: o jovem e o maduro, como se fossem dois momentos reflexivos separados e não dialeticamente interligados. 98 150 Marx. Para Althusser, portanto, a crise do marxismo não é só de caráter político, quando se fez prática na URSS, mas também de caráter teórico, como, por exemplo, supor que uma teoria marxista “completa” poderia governar a História, isto é, uma teoria ficar submetida à luta de classes. Nas palavras de Althusser, “Ser materialista, hoje, é inicialmente reconhecer que, se nós podemos esboçar um primeiro e frágil balanço do pensamento de Marx, de suas lacunas, de suas contradições e de suas ilusões, é porque a situação nos impõe isso, e o permite;”101 Em contraposição, Claudio Katz assevera que o marxismo – como todas as grandes concepções do mundo – é de caráter inteiramente universal e, portanto, não pode ser avaliado com visões provincialistas, pois Os princípios dialéticos que sustenta, a interpretação materialista da história e a sociedade que propõe, as leis do capitalismo que estuda e os antagonismos de classe que desmascara, não podem ser encaixotados no estreito raio de tal ou qual país ou tradição política.102 Nesse sentido, fica difícil abandonar e/ou ignorar o marxismo como força teórica que se impõe ou se propõe na e para realidade, porque sua base teórica está alicerçada na realidade, pois é “na práxis que o homem precisa provar a verdade”, como mesmo afirma Marx, sobre seu método de análise (de investigação e exposição), na II Tese sobre Feuerbach, diferenciando do idealismo alemão e/ou do empirismo das ciências positivas. O marxismo, como diz Claudio Katz, surgiu com o amadurecimento do capitalismo que internacionalizou as forças produtivas e se desenvolveu com o aparecimento do proletariado. Na visão de Katz, o grande problema foi a ideia de querer nacionalizar o marxismo como “marxismo latinoamericano”, “marxismo polonês”, “marxismo russo”, “marxismo alemão”, “marxismo italiano” etc., consequência da tese staliniana dos anos 1930, ou seja, do “socialismo num país só”. Tanto Marx quanto Lênin sustentam que a ação proletária tem que ser internacional para abolir a exploração capitalista. O desafio é justamente livrar os trabalhadores de cada país de seus laços nacionalistas e elevar seu nível de consciência à compreensão de que seus interesses são comuns em relação com o resto do mundo. Bem, a partir dessa explanação sobre as possíveis causas históricas e/ou teóricas, que levou o marxismo viver suas crises, seja a crise das Internacionais, seja a crise dos regimes socialistas no Leste Europeu, é que podemos perceber o quanto foi sintomática a repercussão disso no movimento sindical. Primeiro, porque os movimentos sindicais de esquerda no mundo eram de origem socialista/comunista (anarquista/marxista) ou mesmo social101 102 ALTHUSSER, op. cit., p. 60. KATZ, Claudio. O pós-marxismo: uma crítica. In: COGGIOLA, op. cit., p. 68. 151 democrata e trabalhista; segundo, porque as lideranças sindicais tinham vínculos, na sua maioria, com os partidos políticos de esquerda, isto é, ou eram filiados ou eram simpatizantes a esses partidos. E essa relação entre partido e sindicato vem de longa história, desde antes mesmo das Internacionais, já com o movimento cartista na Inglaterra. Naquela época, Marx já enunciava uma tese, na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução (1843-1844), segundo a qual “a teoria se torna força material quando se apodera das massas”, e tal processo só é possível, na medida em que tal teoria corresponda às necessidades reais dos homens. Assim como o pensamento tende à ação, a realidade deve tender para o pensamento, já dizia Marx. Com as I e II Internacionais, houve então a grande difusão do marxismo nos partidos políticos europeus, assim como nas associações e nos sindicatos dos trabalhadores. Antes, o movimento dos trabalhadores era influenciado pelas teorias dos socialistas utópicos franceses, pelos comunistas idealistas alemães e pelo movimento cartista na Inglaterra. Como bem diz Franco Andreucci, o marxismo, ao se encontrar com o movimento operário, já tinha passado por vários filtros, ou seja, os aparelhos dos partidos não eram neutros e “refletiam a psicologia coletiva de amplos setores operários e acabavam por buscar o marxismo apenas instrumentos de propaganda diretamente utilizáveis na luta política imediata.”103 Mas, por outro lado, o movimento operário encontrava no marxismo os instrumentos para uma aguda crítica à ordem capitalista, ou, melhor dizendo, achava a prova do porquê no sistema capitalista os trabalhadores serão sempre explorados e que a única alternativa para sua libertação será o socialismo. Dessa maneira, o marxismo mostrava aos operários da indústria a importância de sua classe e a tarefa histórica que lhes cabia no presente e no futuro.104 Pois como dissemos antes, o encontro do marxismo com o movimento operário, quer dizer, a difusão das ideias de Marx e Engels, começou na Primeira Internacional, com o Manifesto do Partido Comunista, na A.I.T. Mas, o marxismo nasceu mesmo nas revistas do partido dirigidas por Kautsky e Bernstein, das trocas de cartas entre Bebel e Engels, da ampliação dos conhecimentos e das traduções dos textos de Marx, das polêmicas contra outras escolas socialistas. Kautsky, Bernstein, Bebel e Liebknecht, com características diversas e de maneiras diferentes, foram decisivos para vulgarização do marxismo, justamente porque eles foram influenciados por Engels. Há nessa relação mais de 1200 correspondências dos anos de formação do marxismo e, talvez, haja mais cartas escritas na forma de conselhos, 103 ANDREUCCI, Franco. A difusão e a vulgarização do marxismo. In: HOBSBAWM, Eric J. (Org.). História do marxismo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 22. 104 Cf. ROSENBERG. Democracia e socialismo apud ANDREUCCI, op. cit., p. 22, nota 10. 152 sugestões, esclarecimentos, com o único objetivo de apresentar uma imagem unitária do marxismo. No entanto, a afirmação e difusão do marxismo estavam, de certo modo, sob o controle de Engels. 105 Assim sendo, nos últimos vintes anos do século XIX, o marxismo se encontrou com as exigências práticas do movimento operário, seja de caráter fatalista, mecanicista, evolucionista, determinista, nos partidos políticos ou associações sindicais. O fato é que nasceu a tríade do marxismo: concepção materialista da história, teoria do valor e luta de classes. No entanto, algumas questões, mutatis mutandis, se colocam hoje: por que os movimentos operários, em geral, abandonaram bruscamente a teoria marxista como guia prático para a sua atuação social contra a exploração do capital? Existe outra teoria revolucionária anticapitalista capaz de responder às questões práticas colocadas pelas contradições do sistema capitalista? Ou as direções sindicais, ou mesmo partidárias, não tinham uma visão profunda, sistemática, das ideias de Marx e Engels, juntamente com seus seguidores, para desenvolver uma reação radical à ofensiva neoliberal capitalista? Oscar Negt responde in nuce (de forma concisa) tais questões, afirmando que Marx e Engels não tinham ilusões quanto à lentidão, aos riscos de ruptura e involução no processo de autoeducação do proletariado como sujeito material da revolução política e social. Eles sabiam das ameaças contra o processo de constituição política do proletariado, tais como a concorrência entre os trabalhadores, a cisão da classe operária em frações (formação de uma aristocracia operária) e, sobretudo, a influência ideológica do inimigo de classe sobre os trabalhadores.106 Para Negt107, a capacidade de ação revolucionária da classe operária está completamente prejudicada por esses fatores, incluindo o aburguesamento da mentalidade do proletariado, exercida pela escola, exército e outras instituições das classes dominantes (meios de comunicação de massa etc.). Com relação à primeira questão, Vito Letízia nos fornece uma reflexão plausível para este distanciamento e/ou abandono dos movimentos operários em relação à teoria marxista, a saber, por causa da derrocada do “socialismo real”. Afirma ele então que Após a queda do muro de Berlim multiplicam-se as teorias que defendem “um novo papel” para os sindicatos: o sindicalismo “moderno” deveria ser mais “construtivo” e propor soluções “viáveis” nas negociações trabalhistas; deveria considerar os patrões sob um ângulo mais “positivo” e aprender a reivindicar pensando também na empresa.108 105 Cf. ANDREUCCI, op. cit., p. 31. Cf. NEGT, Oscar. O marxismo e a teoria da revolução do último Engels. In: HOBSBAWM, Eric J. História do marxismo II, p. 185. 107 Cf. Ibid., p. 134. 108 LETÍZIA, Vito. Marx, os marxistas e a relação sindicato-partido-socialismo: seu passado e seu futuro. In: NÓVOA, Jorge (Org.). Incontornável Marx. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Editora UNESP, 2007. p. 117. 106 153 Para Letízia, portanto, forjou-se um consenso, via mídia burguesa, de que a história provou a falsidade da teoria de Marx sobre o antagonismo de interesses entre empregados e patrões. Noutras palavras, com o fracasso do socialismo soviético, foi propagado pelos neoliberais o grande “equívoco histórico” do marxismo. Nesse sentido, todas as correntes de direita iniciaram um processo de defesa da unidade de interesses entre trabalhadores e patrões, no quadro dos objetivos da “nação”, ou seja, os neoliberais desenvolveram uma teoria de colaboração sistemática e obrigatória entre todos os envolvidos na produção. Do outro lado, os menos radicais, que se declararam contra as ideias direitistas, reconheceram a necessidade de se ter a “complementaridade” de trabalhadores e patrões na função produtiva. Um exemplo dessa posição foi a de Schumpeter que afirmou serem normais as relações de aliança e colaboração entre trabalhadores e empresários, discordando, assim, de Marx.109 É claro que o marxismo não nega uma certa colaboração entre o capital e trabalho, id est, se um trabalhador “concorda” com um salário x e se dispõe a trabalhar por determinado tempo y, por um valor a ser pago, está aí organizada uma relação de “aliança de colaboração” ou “relação de complementaridade”. Mas isso não quer dizer que haja uma relação harmônica e pacífica entre os pactuantes, pelo contrário, há um recalque de conflito (neutralizado) que poderá emergir a posteriori. Como sabemos, o capitalismo se move incessantemente pela necessidade de realizar lucro, e isso requer que o “tempo de trabalho necessário” seja cada vez mais reduzido em favor do “tempo de trabalho excedente”, a saber, o custo do valor do produto realizado no “tempo de trabalho necessário” tem que ser suficiente para realizar o mesmo produto no “tempo de trabalho excedente” sem custo nenhum, produzindo a partir do sobretrabalho, mais produtos excedentes, mais-valia. Retomando então a questão do porquê do afastamento do movimento operário do marxismo, no caso específico, o movimento sindical, podemos inferir que, na verdade, houve uma incompreensão das teorias de Marx tanto por parte de alguns intelectuais quanto dos muitos “não-intelectuais”, ou mesmo nunca houve uma divulgação sistemática do pensamento marxiano para os trabalhadores de forma autêntica, clara e integral, já que a vulgarização do marxismo, no sentido raso, impediu os trabalhadores de entenderem até mesmo as contradições que poderiam ocorrer com o marxismo posto em prática na forma de socialismo, como também as contradições do capitalismo. Como afirma Letízia, [...] é preciso ter cuidado: o essencial do marxismo não é entender que, mais cedo ou mais tarde, os assalariados expropriarão os capitalistas e criarão outro tipo de sociedade. E, principalmente, não é o marxismo achar que os assalariados tenham o 109 Cf. LETÍZIA, op. cit., p. 118. 154 dever de lutar pela expropriação dos capitalistas. O essencial entender que, enquanto perdurar a relação de produção básica do capitalismo (o assalariamento), haverá um processo de transformações constantes nessa relação. Os conflitos entre assalariados e capitalistas constituem a principal força motriz dessas transformações. 110 Conforme Marx, o papel dos sindicatos como instrumentos de educação da classe operária e a sua atividade para estabelecer a ligação entre os movimentos econômicos e políticos são os dois elementos básicos da prática marxista do movimento sindical. Para Letízia111, Marx dava grande ênfase à ligação indissolúvel entre os movimentos sindical e partidário dos assalariados, constituindo-se, portanto, esse princípio um dos elementos mais importantes do sindicalismo revolucionário. Claro que no período da decadência da II Internacional, a partir do aguçamento das contradições internas do movimento operário, essa relação “partido-sindicato” sofreu dificuldades novas. Com o advento da III Internacional, e sua ligação com a ISV (Internacional Sindical Vermelha), mesmo baseada no princípio marxista, a relação “partido-sindicato” também se tornou contraditória, ou seja, não obstante a luta pela unidade do movimento sindical classista, a contradição surgiu justamente com o desenvolvimento gradativo do comportamento autoritário do partido comunista russo em relação aos sindicatos e, também, aos demais partidos da III Internacional. Por conseguinte, o acúmulo de experiências históricas frustrantes, a quebra de autonomia dos sindicatos revolucionários em relação aos partidos comunistas e o malogro do “socialismo real” foram elementos histórico-práticos suficientes para uma fuga de muitos seguidores do marxismo. Para Letízia, a pergunta que se impõe é: “Ainda é válido lutar por um sindicalismo ‘classista’?” 112 Argumenta ele que há uma discussão se a classe operária de que Marx falava ainda existe hoje, ou seja, aquela de operários mecânicos, repetidores de uma única tarefa, os operários manufatureiros ou industriais. É evidente que as formas de organização do trabalho e de produção das mercadorias mudaram. Hoje há um mundo moderno dividido entre proprietários dos meios de produção e ofertantes de mão de obra. No entanto, segundo Letízia, “o marxismo pode até aguçar o conflito entre as classes ao organizar os trabalhadores em defesa de sua vidinha normal. Mas não a partir de uma oposição de idéias para atrapalhar a vidinha normal e com isso criar o conflito.” 113 E, por fim, o que se percebe, na visão de Letízia, é que houve o desmoronamento dos “-ismos” do movimento operário, colocando a luta sindical na defesa das conquistas dos trabalhadores em termos mais práticos. Não há mais ideologias para defender tais conquistas, logo a “desideologização” implicou no 110 LETÍZIA, op. cit., p. 120. Cf. LETÍZIA, op. cit., p. 128. 112 Ibid., p. 151. 113 LETÍZIA, op. cit., p. 152. 111 155 abandono da ideologia ligada ao “socialismo real”, mas também implicou na rejeição da ideologia da modernidade capitalista. E no que diz respeito à América Latina, afirma Marta Harnecker que há uma crise teórica de origem tripla: 1) a incapacidade histórica dos intelectuais de esquerda latinoamericanos de elaborar um pensamento próprio, partindo da realidade do próprio continente ou país, submetidos, então, aos parâmetros europeus; 2) a incapacidade da esquerda de realizar um estudo rigoroso sobre as experiências socialistas, isto é, sobre a causa de seus êxitos e derrotas e; 3) por fim, a falta de um estudo crítico e rigoroso do capitalismo dos fins do século XX, tal como Marx o fez no século XIX sobre o capitalismo da revolução industrial. Na concepção de Harnecker, portanto, A crise do socialismo soviético não significa – como muitos ideólogos burgueses se têm esforçado por apregoar –, que devamos pôr necessariamente em causa as contribuições científicas de Marx. Infelizmente, alguns setores da esquerda têm sido excessivamente permeáveis à propaganda antimarxista do neoliberalismo, que responsabiliza indevidamente a teoria de Marx pelo que aconteceu nos países socialistas soviéticos; no entanto, ninguém deitaria a culpa na receita culinária pelo pudim que se queimou ao ser posto no forno demasiado quente.114 Certamente uma das principais acusações ao pensamento crítico de Marx hoje, feita pelos antimarxistas ou ex-marxistas, é o de “determinismo histórico”, ou seja, como se houvesse leis históricas predeterminadas que se impõem sobre os ombros dos sujeitos sociais. Para Hinkelammert, Marx não é determinista – no sentido clássico em que se emprega esse termo –, mas ele compara as análises de Marx com a “teoria do caos”. Se não podemos explicar as turbulências de uma maneira determinista, também não podemos explicar a história do mesmo modo. Há, sim, pontos de variabilidade das turbulências, como, por exemplo, Marx o faz ao explicar a teoria dos preços. As leis históricas que se impõem nas costas dos trabalhadores são, para Marx, tendências históricas compulsivas, forças compulsivas que se realizam na história a partir de ações intencionais, mesmo que produzindo efeitos “não-intencionais”. Um exemplo clássico que pode corroborar essa argumentação é a intencionalidade de se efetivar o socialismo revolucionário num canto do mundo, mas que resultou em resultados não intencionalmente desejados.115 De qualquer modo, a crise do marxismo ou a derrota do “socialismo” que tanto as 114 HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 321. 115 Para Harnecker, há em Marx um novo tipo de determinismo, diferente do das ciências naturais clássicas como o determinismo mecanicista de Newton ou evolucionista de Darwin, a saber, o determinismo marxista que permitiu compreender como funcionava o regime capitalista da sua época e para onde se encaminhava. Negar, segundo Harnecker, o determinismo marxista é negar toda a estrutura teórica de O Capital. Cf. HARNECKER, op. cit., p. 323-327. 156 classes dominantes não param de divulgar com certo triunfo nos seus meios de comunicação de massa é, na verdade, nas palavras de José Aricó, a crise da ciência histórica inaugurada por Marx, cuja responsabilidade os teóricos deixaram de desenvolver, sobretudo, para responder às novas exigências que a realidade nos coloca. Parece que a esquerda (sindical ou partidária) vive uma crise de identidade ideológica, uma crise programática, uma crise de quadros teóricos. Não consegue conceber um projeto transformador que possa assumir os dados da nova realidade mundial, pois possui um excesso de diagnóstico, mas não tem a terapêutica. O discurso da política como a arte do possível, a realpolitik, passou a dominar setores da esquerda latina americana, do Brasil, ou seja, tais setores consideram a impossibilidade de se mudar as coisas, devido à desfavorável correlação de forças hoje predominante, e, portanto, adaptam-se oportunamente à situação vigente, eximindo-se de construir uma alternativa ao capitalismo realmente existente. E, assim, tomando essa linha de reflexão “resignativa”, o movimento sindical optou por agir com certa “prudência” histórica, ou melhor, escolheu a atuação da linha de menor resistência. Sem dúvida, o poder sindical esmaeceu com o fim do “socialismo real”, sem uma referência utópica e/ou ideológica de luta, como também face ao desenvolvimento neoliberal que, segundo Teixeira116, começou a ser arquitetado em 1984, por um grupo de pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), para desenvolver um trabalho de pesquisa de reestruturação do processo de decisão estratégica da indústria automobilística. O objetivo era tornar a produção americana mais enxuta, com novos métodos e técnicas de produção para aumentar a produtividade e fazer concorrência com os japoneses. O fato é que existe um ceticismo em relação à política e aos políticos, consoante Harnecker. E eu acrescentaria: como também há uma perda de credibilidade em relação às lideranças ou aos representantes do movimento sindical. Parafraseando Harnecker 117, esta crise da atual institucionalidade, seja dos partidos ou sindicatos de esquerda, se dá tanto pela perda das suas capacidades de atrair e mobilizar pessoas, sobretudo o jovens, quanto pela própria disfuncionalidade de suas estruturas, hábitos, tradições e maneiras de se fazer política (sindical). Não há uma renovação na linguagem sindical que chame atenção dos associados face às questões de caráter mais político; reproduz-se sempre a mesma ladainha economicista e jurídica que restringe o processo de compreensão dos trabalhadores às lutas imediatas do cotidiano, não mostrando os limites dessa luta na ordem capitalista, sonegando, assim, uma compreensão maior da totalidade histórica hostil na qual eles estão inseridos. 116 117 Cf. TEIXEIRA, Francisco e FREDERICO, Celso. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008. p. 118-130. Cf. HARNECKER, op. cit., p. 345. 157 Essa situação tem certamente a ver com o processo de “desideologização” ou desmarxianização da luta operária. Como diz Frederico, O fim da experiência do “socialismo real” gerou uma intensa luta ideológica contra o marxismo. Um coro fúnebre cantou a morte das idéias de Marx num tom cético celebrando o relativismo e a impossibilidade de se conhecer racionalmente a realidade. O marxismo foi acusado, em diferentes registros, de ser uma teoria holística especulativa e reducionista, incapacitada para entender a modernidade e o surgimento de novos atores sociais; enfim, um subproduto do evolucionismo determinista (darwinista ou hegeliano).118 Com a derrota do seu inimigo histórico – o socialismo real –, o capitalismo pôde também suprimir muitas concessões que o Estado de bem-estar social já havia feito à classe proletária. Como afirma Frederico, “Liberto do Gesso que impedia seus movimentos, o capital,”119 beneficiando-se da informática, telemática, avança sobre vários países e impõe em tempo real, a partir de uma máquina virtual, a sua lógica impessoal e abstrata. Compreender esse jogo perverso do desenvolvimento do capital é o que a classe trabalhadora, na sua grande maioria, não consegue, justamente porque lhe é sonegada a teoria marxista de compreensão do movimento do capital, isto é, de ter uma formação classista. A lógica do capital não é um fenômeno restrito à economia somente, mas determina um modo de vida individual e egoísta que se dissemina por todos os poros da sociedade. Resumindo então, de acordo com essas abordagens, a influência do pensamento marxiano sobre o proletariado organizado se deu num primeiro momento de euforia, a partir da criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, quando Marx, no Congresso de Bruxelas, atacou as tendências anarquistas, do socialismo utópico etc., inaugurando o socialismo científico. Mas somente com a II Internacional é que o pensamento de Marx – como doutrina política ou método de análise histórico – se difundiu em vários países, até mesmo para além-mar do continente europeu. Bernstein, Kautsky, Engels, Liebknecht, Bebel, Rosa, Lênin, Trotsky, dentre outros, desenvolveram o pensamento de Marx, seja de forma revisionista ou revolucionária. Contudo, com a vitória do socialismo na Rússia, o marxismo se difundiu mais ainda, sobretudo, com as publicações das obras juvenis de Marx como A Ideologia Alemã, Manuscritos de Paris, Grundrisse, de correspondências etc., e adentrou à Academia nos anos 1930, criando escolas teóricas divergentes etc. Infelizmente, com o fim do “socialismo real”, o marxismo sofreu um duro golpe histórico, tanto do ponto de vista ideológico quanto político, cuja consequência maior foi o descrédito na doutrina marxista como guia teórico de ação prática revolucionária dos trabalhadores. 118 119 FREDERICO, O marxismo depois de Marx. In: TEIXEIRA e FREDERICO, op. cit., p. 187. Ibid., p. 188. 158 Desse modo, a crise final do “socialismo real” ampliou mais ainda o distanciamento entre o marxismo e o movimento sindical, pois, se houve uma crise de caráter teórico e/ou metodológico, ou seja, uma crise de compreensão e interpretação das obras de Marx, em que havia divergências e confrontos teóricos no final do século XIX, e durante o século XX, a crise de caráter político-prática foi desastrosa, na medida em que se aplicou o princípio da Identidade “A é igual a A” nas reflexões “marxistas”, antimarxistas e pós-marxistas sobre tal acontecimento, ou seja, o “socialismo real” foi a efetivação real do pensamento de Marx ou “o marxismo se fez realidade” na URSS. À guisa de conclusão desta seção, podemos inferir que houve, na verdade, uma precipitação na avaliação critico-reflexiva desse momento histórico, quer dizer, do fim do socialismo soviético, tanto pela maioria dos partidos políticos de esquerda, sobretudo, europeus, quanto pelo movimento sindical “socialista” de um modo geral, nas figuras de seus dirigentes ou representantes de peso. Isso se refletiu na prática com ponderações nas lutas reivindicativas salariais, e também como um freio teórico na luta pelo socialismo (abandonando, assim, a “radicalidade” do discurso e da luta política), sob o argumento de que a conjuntura do “pós-socialismo” tinha colocado a esquerda mundial no limbo da história ou de mãos atadas e cabeças ceticamente confusas. A propaganda midiática da burguesia internacional, em suas diferentes frações, cantarolou aos quatro cantos do planeta a vitória do capitalismo como o regime social superior e o fim da história da humanidade. Aquilo mesmo que decretou Francis Fukuyama, no seu livro O Fim da História e o Último Homem, ou seja, o fim dos processos históricos caracterizados como processos de mudanças e o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Mas o pior de tudo foi o despreparo teórico de muitos dirigentes políticos e sindicais, para refutar com firmeza crítica essa tese neoliberal (capitalista), sem ter nenhuma capacidade de persuasão contrária, no sentido de desenvolver uma contraofensiva teórico-prática face aos inimigos históricos de classe. Eis, portanto, o novo desafio político a se realizar. 2.3 A Ofensiva (Neo)liberal e o Refluxo do Movimento Sindical A ideologia liberal e/ou neoliberal como pensamento político e econômico se propõe e/ou se impõe como garantia de realização das necessidades materiais e espirituais do homem, isto é, como doutrina político-econômica resgatada para ser o remédio da crise estrutural do capitalismo no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, logo, como paliativo da crise de valorização do valor (do capital) no modelo de produção fordista. O liberalismo e/ou o 159 neoliberalismo como doutrina, que prega a liberdade do homem a partir da individualidade egoísta, “inerente à natureza humana”, tem diversas faces históricas. Por exemplo, no final do século XVII e início do século XVIII surge o liberalismo econômico como doutrina orgânica composta de princípios fundamentais, isto é, Ele parte do pressuposto de que a liberdade econômica é o motor da prosperidade, que a propriedade privada tem existência por lei natural, que o papel do Estado é intitular a posse dos homens, [que] as regulamentações são insensatas porque impedem o proprietário de determinar o destino das posses. 120 No século XVII, segundo Holanda, a França transforma-se no baluarte do pensamento liberal, cujos protagonistas fundantes foram os fisiocratas. Para estes, a causa dos problemas econômicos e sociais era a falta de conhecimento dos dirigentes políticos das leis naturais, ou seja, por não compreenderem essas leis, os dirigentes políticos não podiam organizar a produção e, assim, promoviam a desordem e a insegurança. Os fisiocratas acreditavam que a riqueza da nação era a agricultura, logo os produtores rurais precisavam ser livres para agir de acordo com seus próprios interesses e, decerto, a harmonia social e a prosperidade se realizariam para toda a nação. Nasce então a filosofia do individualismo que se torna a base para o liberalismo clássico.121 No entanto, segundo Merquior, “[...] a luta formativa do liberalismo foi a reivindicação de direitos – religiosos, políticos e econômicos – e a tentativa de controlar o poder político.”122 Tais direitos estão fundamentados na concepção do Direito Natural que fundamenta os pressupostos filosóficos e políticos do liberalismo. Portanto, a concepção do direito natural moderno está relacionada à fundação do Estado moderno. Foram Hobbes (1588-1679) e Locke (1632-1704) que desenvolveram a via de racionalidade política (liberal) inglesa, id est, a contratualista, na qual os indivíduos se acordam entre si para dar legitimidade ao Estado como interlocutor dos vários interesses sociais. É por isso que, na visão dos contratualistas, é preciso negar o estado de natureza e efetivar o Estado civil para que não haja a “guerra de todos contra todos” (Hobbes). De fato, o triunfo do liberalismo clássico ocorre no século XIX, sobretudo, na Inglaterra, firmando-se como uma corrente de pensamento teórica e prática de cunho filosófico, político e econômico: do ponto de vista filosófico, o liberalismo se fundamenta na 120 HOLANDA, Francisco Uribam Xavier de. Do liberalismo ao neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. p. 18. 121 Cf. HUNT, E. K. História do pensamento econômico apud HOLANDA, op. cit., p. 19. 122 MERQUIOR, Guilherme. O Liberalismo antigo e moderno apud HOLANDA, op. cit., p. 21. 160 concepção de liberdade, compreendida como ausência de coerção sobre os indivíduos, não impedindo que as suas satisfações pessoais, seus gostos e a sua livre busca de objetivos sejam realizadas. Essas concepções podem ser encontradas em Hobbes (contra o impedimento das realizações pessoais), Locke (o homem livre das restrições e da violência de terceiros) e Stuart Mill (a ação do homem limitada pela lei). Não convém, aqui, explicitar tais proposições pormenorizadamente. Portanto, a liberdade no pensamento liberal clássico tem suas origens na concepção do homem individualista; do ponto vista político, a instituição do poder político, para o liberalismo clássico, se caracteriza pela passagem do estado de natureza para o Estado civil (ou sociedade civil), ou seja, o liberalismo se caracteriza a partir de uma gama de poderes políticos organizados e pela apologia da pluralidade de opiniões e partidos políticos. Para isso, o liberalismo estabeleceu as regras do jogo (constituição) e da competição pacífica pela conquista do poder, baseado num determinado mecanismo de escolha, que é o sufrágio universal e do ponto vista econômico, o liberalismo tem como base fundante o direito da propriedade privada (individual) sobre os bens de produção e consumo. Para a concepção liberal, o mercado é o conjunto de relações sociais onde se realizam as trocas de mercadorias, ou seja, um sistema econômico em que as mercadorias produzidas e seus preços praticados estão sob a determinação da oferta e da procura, e não a partir de um planejamento. Contudo, o itinerário do liberalismo foi uma tarefa difícil de realizar, pois teve que se defrontar com doutrinas que limitavam seu individualismo em favor de instituições como a Igreja ou o Estado. Por exemplo, Sismondi e Buret ficaram horrorizados com os resultados sociais do laissez-faire, propondo a criação de um Estado estritamente dedicado aos deserdados; como Comte que rejeitou a ideia liberal, defendendo um Estado com função de regular a vida social; ou Coleridge e Disraeli que desenvolveram a ideia de um Estado 161 monetário que pudesse controlar os resultados da desigualdade; além deles, Keynes, que propusera o Estado do bem-estar social. 123 Mas foram os socialistas que se opuseram radicalmente ao liberalismo enquanto ideologia burguesa que mascara as relações de dominação de classe, compreendendo o Estado como um comitê de gerenciamento dos interesses particulares da burguesia, como afirma Marx no Manifesto. Se os séculos XVIII e XIX foram férteis para a prática econômica (e política) do liberalismo clássico com o capitalismo concorrencial, o século XX foi, então, a época da concentração de grandes lucros por parte de monopólios que se associaram ao capital financeiro, gerando a fase imperialista do capitalismo, como afirma Lênin na sua obra Imperialismo, fase superior do capitalismo. Na primeira metade do século XX, ocorreram as duas grandes guerras mundiais, com a crise do capitalismo, isto é, com a disputa imperialista pela divisão das zonas de influência política e econômica no mundo. Período também em que o movimento operário se organizava com maior força política, confrontando-se, desde o último quartel do século XIX, com as forças políticas burguesas, seja de caráter monarquista, social-democrata, fascista ou nazista, tendo com a social-democracia um confronto de menor intensidade e, de certo modo, até um pacto de cooperação. Na verdade, a crise do liberalismo e o triunfo das políticas de intervenção estatal – keynesiana e socialista – não foram motivos suficientes para inibir a produção teórica liberal e nem o desenvolvimento de uma militância política a seu favor. Pelo contrário, nos meios acadêmicos e institutos de pesquisas privados, o pensamento liberal continuou se desenvolvendo, sobretudo, na Escola austríaca 124, fundada por Von Mises (18811973), como porta-voz do pensamento neoliberal, além de seus predecessores como Carl Marger e Eugen Von Böhm-Bawerk. A tese é: “o liberalismo não fracassou, foi apenas abandonado sem que tenha sido posto totalmente em prática”. E sua teoria é a da utilidade marginal do valor subjetivo que liga todos os fenômenos econômicos (simples ou complexos) às ações dos indivíduos, cujas ações executadas são resultados de valores pessoais subjetivos.125 Na visão dos neoliberais, não há igualdade pura na realidade; porém, os liberais do século XVIII, influenciados pelas ideias da lei natural e do iluminismo, reivindicavam para todos a igualdade nos direitos políticos e civis, já que partiam do pressuposto de que todos os 123 Cf. HOLANDA, op. cit., p. 37. Também já existia um grupo de simpatizantes neoliberais na Universidade de Chicago que daria origem a chamada Escola de Chicago de Herry Simmos, Jacob Viener, Aaron e Milton Friedman. Mais aprofundamentos e informações, ver Francisco César Pinto da Fonseca, Imprensa e projeto liberal na transição política dos anos 80, 1994. (Texto apresentado no XVIII Encontro Anual da ANPOCS). Cf. HOLANDA, op. cit., p. 51, nota 14. 125 Cf. HOLANDA, op. cit., p.41, nota 11. 124 162 homens são iguais por natureza. Os neoliberais, ao contrário, acham que isso não tem fundamento, porque não há igualdade de todos os membros da raça humana, visto que cada ser humano é um indivíduo diferente, único e irrepetível. Para Von Mises, o capitalismo presenteou ao mundo o melhor padrão de vida, com tecnologias avançadas e uma produção de mercadorias em massa. Já Hayek acredita que o capitalismo torna efetivo o individualismo liberal, reconhece as preferências e opiniões pessoais e constata que só o esforço espontâneo dos indivíduos, livre das interferências do Estado, pode produzir uma ordem de atividades econômicas como consequência de seu desenvolvimento individual. E para finalizar essa discussão ideológica, a diferença entre o pensamento liberal clássico e o neoliberalismo, conforme Franz Hinkelammert, é que o primeiro se traduz pela defesa da sociedade burguesa contra as sociedades pré-capitalistas (sociedade feudal dos séculos XV e XVII), enquanto o segundo defende a sociedade burguesa contra as formas socialistas existentes, inclusive de governos social-democratas, ou seja, o neoliberalismo se insurge contra toda forma de intervencionismo estatal e “político” na economia. Para Roberto Campos, por exemplo, “a conjunção do liberalismo político com o liberalismo econômico é o que pode se chamar de capitalismo democrático.”126 Feitos tais esclarecimentos de cariz político e ideológico do (neo)liberalismo, podemos fazer agora a relação conflituosa entre neoliberalismo e movimento sindical, quer dizer, a imposição político-ideológica neoliberal como práxis econômica no mundo do trabalho. Na verdade, o neoliberalismo – como uma reformulação mais sofisticada do liberalismo clássico, sempre preservando sua essência ideológica – se impôs nas duas últimas décadas do século XX como tábua de salvação para a crise estrutural do capitalismo que se deu no começo dos anos 1970 com a crise do modelo de produção fordista, causador da baixa taxa de lucratividade no setor produtivo, a partir das conquistas legais pelo mundo do trabalho, ou seja, uma proteção social maior para os trabalhadores na forma de lei. Foram vários fatores – os políticos, econômicos e sociais – que levaram essa inserção neoliberal aos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas não de forma total e/ou absoluta na sua efetivação, sobretudo, em países europeus como a Alemanha e França, onde havia uma legislação forte de proteção dos direitos trabalhistas. Na verdade, o neoliberalismo realizou sua primeira experiência político-econômica no Chile, com o golpe militar de 1973, sob o comando do General Pinochet, estendendo, em seguida, com a eleição de Margaret Thatcher na Inglaterra, em 1979, e de Ronald Reagan nos 126 Cf. CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. Sobre ainda o neoliberalismo, ver também Mészáros. Prefácio à edição brasileira. In: _____. Para além do capital, p. 26. 163 Estados Unidos, em 1980. A crise do modelo de produção taylorista-fordista (com baixo índice de produtividade em relação ao modelo de produção toyotista japonês) e a forte ligação dos sindicatos europeus com os governos social-democratas, trabalhistas e socialistas fizeram com que os capitalistas inovassem os meios tecnológicos de produção e os mecanismos de organização e gestão do trabalho, para se libertar das pressões sindicais e do controle dos trabalhadores sobre a produção. É o que podemos chamar de reestruturação produtiva enquanto movimento “que rege a organização dos sistemas produtivos e as relações entre as classes sociais nele envolvidas, que condicionam, por sua vez, as formas mais amplas de institucionalização societal, de expressão das contradições inerentes à organização da produção”127 Os neoliberais, portanto, desejavam atingir três objetivos políticos para a resolução dos problemas de estagnação da acumulação e expansão capitalista: competitividade internacional, orçamentos de “bem-estar” controlados e flexibilidade do mercado de trabalho. Segundo David Coates, O poder dos sindicatos e os direitos dos trabalhadores estão no centro de seus interesses porque, para muitos políticos conservadores, comentaristas e acadêmicos, a força do movimento dos trabalhadores é um impedimento fundamental para a realização [dos três objetivos]. 128 Na verdade, o que os capitalistas desejavam (e desejam) é introduzir a ortodoxia neoliberal sobre os sindicatos que legitime uma redução qualitativa dos direitos e recompensas do trabalhador, à medida que reduz os salários, faz contratos temporários de trabalho, introduzindo, assim, a desregulamentação e controle gerencial intensificado do processo de trabalho. A ofensiva neoliberal tem como objetivo resgatar o processo de incremento da taxa de lucratividade, diminuída com a crise do modelo de produção fordista que trouxe como consequência uma maior proteção legal nas relações de trabalho com o capital. Não é uma novidade esse processo de reestruturação capitalista, pois é sabido que as duas grandes Guerras Mundiais e a Revolução de Outubro também atualizaram a crise e a necessidade desta reestruturação. O americanismo (taylorismo e fordismo) foi fundamental para quebrar a resistência das organizações sindicais classistas, impondo uma nova subjetividade ao mundo do trabalho. O objetivo era subordinar o trabalho ao controle do 127 PAGOTTO, Maria Amélia Ferracciú. Mito e realidade na automação bancária. Dissertação (Mestrado em Sociologia), IFCH – Unicamp, 1996, p. 20, apud DIAS, Edmundo Fernandes et al. Introdução. In: A ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e luta de classes. Brasília: Sindicato dos Eletricitários de Brasília, 1996. p. 1. 128 COATES, David. Força de trabalho e competitividade Internacional: uma crítica às ortodoxias reinantes. In: ARAÚJO, Ângela (Org.). Do corporativismo ao neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 133. 164 capital com novas experiências de gestão do processo de trabalho, isto é, eliminar os tempos mortos na produção, as famosas porosidades do sistema produtivo e com isso, eliminar a capacidade operária de resistir e de lutar por sua autonomia classista. Isso se deu também na União Soviética com o advento do stalinismo, no qual o novo homem socialista acabou tornando-se um homem de ferro, um “gorila amestrado”. Era o encanto dos dois sistemas (capitalista e socialista) pelo fetiche da técnica e da ciência como forças produtivas fundamentais. Não foi à toa também que os governos nazi-fascistas adotaram a técnica e a ciência como formas de dominação e/ou controle social. Mas tomando os anos 1970-1990, a palavra de ordem da burguesia neoliberal era a de eliminar os direitos sociais trabalhistas e suprimir o saber e a subjetividade do trabalhador, ou seja, tudo isso efetivado pelo fetiche da técnica, a terceira revolução tecnológica. Em outras palavras, as organizações dos trabalhadores – sindicais e políticas – passaram a aceitar o fetiche da tecnologia e a ideia de modernidade capitalista. E aqui a flexibilização capitalista tem como ancoragem fundamental a flexibilização das práticas e dos discursos das classes subalternas, quer dizer, o antagonismo de classes é visto como elemento destruidor da sociedade. O que mais é salientado é o fim da sociedade do trabalho e, portanto, o fim da classe trabalhadora, quer dizer, os defensores do fim da sociedade do trabalho veem na ciência e tecnologia uma possibilidade superior de resolução das contradições sociais. Algumas perspectivas analíticas vão nessa direção ideológica do progresso técnico, isto é, na crença do desenvolvimento das forças produtivas como forma de encerrar as potencialidades últimas de resolução das crises e impasses históricos gerados pelo movimento da estrutura do capital. Temos aí desde a tematização filosófica de Habermas à problematização sociológica em Gorz, Offe, Kurz entre outros. A centralidade do trabalho parece perder sua importância como fator de integração social para os ideólogos da sociedade sem trabalho, logo a teoria da luta de classes perde sua validade analítico-estratégica. Nesse sentido, cai-se num determinismo tecnológico como principal força de produção na realização da valorização do valor, excluindo o trabalho abstrato como elemento principal deste processo valorativo do capital. Em outras palavras, o progresso técnico, nessa perspectiva economicista129, torna-se o motor da história, pois o desenvolvimento autônomo das forças produtivas é entendido como fator de determinação do movimento histórico alheio ao processo da luta de classes. 129 O que caracteriza a análise economicista é que ela fissura o universo social em mundo econômico e mundo jurídico-político, atribuindo ao primeiro a faculdade de determinação histórica, mecânica, prefixada e alheia, em última instância, ao processo das lutas ideológico-político-econômicas das classes na sua realidade contraditória. 165 Ressaltemos aqui, pelo menos, duas dessas perspectivas que parecem seguir tais passos teóricos: “o fatalismo tecnológico de Gorz” e “a crise do trabalho abstrato em Kurz”. Ambos problematizam a abolição do trabalho como resultado da crise da sociedade do trabalho, ou seja, a eliminação tendencial do trabalho humano como fonte última de toda riqueza social. André Gorz parte do pressuposto de que há um impacto do processo acelerado da automatização de serviços e atividades produtivas no mundo do trabalho, causando desemprego em massa, quer dizer, a automatização abole os trabalhadores e, ao mesmo tempo, compradores potenciais. Por conta disso, a Revolução Microeletrônica tanto provoca o decréscimo do valor do capital fixo por unidade de produto, como inaugura o decréscimo da massa total do capital fixo posto em ação para produzir um volume rapidamente crescente de mercadorias. 130 Nesse sentido, para Gorz, há uma subversão do tempo de trabalho como medida de valor de troca, da mesma forma que se subverte o valor de troca como medida do valor de uso, isto é, há a superação do valor, da centralidade do trabalho e da luta de classes; enfim, elimina-se a lógica do capital. Sendo assim, esse processo de generalização das potencialidades da automatização das atividades produtivas e de serviços, sobretudo nos países imperialistas, “‘aboliria’ a mais-valia na razão direta em que impossibilita a valorização do capital (é a hipótese do ‘capitalismo morto-vivo’ de Gorz), remetendo-nos a um só tempo, para além do capitalismo e do socialismo.”131 Daí a sua utopia da “sociedade do tempo livre”, onde haverá a liberação do tempo, com o fim do trabalho, superando o capitalismo sem precisar de uma revolução política. Essa apreciação unidimensional do imperativo tecnológico de Gorz – a partir da aceitação inexorável da divisão capitalista do trabalho – esvazia o poder da esfera do trabalho, suprimindo a apreciação de uma dimensão política da tecnologia, quer dizer, de sua produção e execução. Já Robert Kurz tem uma apreciação mais fatalista da crise da sociedade do trabalho a partir de um ponto de vista totalizante. Para Kurz, o trabalho que está em crise é o trabalho abstrato, isto é, do trabalho que produz valor de troca. Dessa forma, também teríamos como consequência a crise contemporânea enquanto crise da valorização do capital. Para Kurz, há uma tendência para a supressão do trabalho, e não só para o fim do trabalho abstrato que é determinado historicamente pelo modo de produção capitalista. Ele compreende que o trabalho perde sua centralidade nas formações sociais contemporâneas, devido ao 130 Cf. GORZ, André. Les Achemins du Paradiso apud BRAGA, Ruy. Da ideologia do progresso técnico à crise da sociedade do trabalho. In: DIAS, Edmundo Dias et al., op. cit., p. 62. 131 BRAGA, Ruy. In: op. cit., p. 62. 166 desenvolvimento científico-tecnológico que se transformou na força produtiva direta. Em outras palavras, por causa da automatização, o capital supera o uso da força de trabalho e, portanto, perde sua capacidade de explorar, à medida que o progresso técnico-científico expulsa as massas da produção imediata e do mercado, inviabilizando, assim, a integralização do ciclo de acumulação e, portanto, inaugurando a crise ou o colapso histórico da modernidade. A raiz da crise é, para Kurz, a abolição do trabalho; logo está superada a análise classista e, para ele, portanto, é preciso construir uma nova racionalidade que seja capaz de tornar a crítica social mais radical e aguda. E então como ficam os trabalhadores nesse cenário de crise estrutural do capital (Mészáros) em que a perspectiva de melhorias para a classe trabalhadora parece se diluir nas contradições do sistema? Ou seja, que alternativas propõe o movimento sindical para sair desse engodo político-ideológico (histórico) em que se meteu, ao abandonar a perspectiva da luta classista que vislumbra a superação do capitalismo? Por que a classe trabalhadora, depois dos pós-guerras, e durante a guerra fria, acreditou nos dois sistemas – capitalista e socialista – como promotores de uma rica vida material e espiritual para a sociedade? No caso dos trabalhadores das sociedades capitalistas, por que eles não se contrapuseram à ofensiva neoliberal, permanecendo apenas na defensiva dos direitos trabalhistas conquistados e de seus empregos? Estariam os trabalhadores esvaziados da ideologia e utopia classista que poderiam impulsioná-los a uma prática sindical menos economicista e mais política, no sentido de lutar, não contra a exploração do capital, mas pela sua abolição? Em outras palavras, a subjetividade ou consciência dos trabalhadores estava (ou ainda está) permeada pela ideologia de um capitalismo humanizante ou de um socialismo evolucionista da Segunda Internacional para não se contrapor ao neoliberalismo? Como afirma Lukács, para que haja a consciência de classe “para si” (sistematizadapolitizada), é necessária a teoria como guia prático da ação política; ou como diz Lênin, não dá para deixar a classe trabalhadora abandonada ao seu espontaneísmo de luta artesanal, a teoria tem que vir de fora, com ajuda dos intelectuais; ou, como bem disse Marx, é preciso que a luta econômica se transforme numa luta política para realizar a emancipação humana. Podemos inferir então que há uma relação dialética entre o avanço da reestruturação produtiva com seu projeto neoliberal e a crise das estratégias de luta de classe, ou seja, ambas se retroalimentam.132 Segundo Mattoso e Pastore, a crise do sindicalismo decorre dessas transformações (acumulação flexível, reestruturação produtiva, globalização, flexibilização da 132 Cf. MARCELINO, Paula Regina Pereira. A logística da precarização. São Paulo: Expressão Popular, 2002. 167 organização e do mercado de trabalho, redução drástica da força de trabalho industrial e a explosão do trabalho em serviços), afirmando que seus indicadores se apresentam como a queda no número de greves, na taxa de sindicalização ou da densidade sindical (dessindicalização) e na cobertura dos contratos coletivos firmados pelos sindicatos. 133 No caso do Brasil, conforme Boito Jr., o neoliberalismo se assenta em quatro eixos: 1) abertura comercial com a redução das tarifas alfandegárias e remoção de obstáculos legais à importação; 2) privatização da produção de mercadorias e serviços estatais; 3) mercantilização da educação, saúde e previdência social e 4) a desregulamentação do mercado de trabalho (contrato de trabalho por tempo indeterminado, trabalho por tempo parcial, flexibilização do limite legal da jornada de trabalho, demissão temporária e desindexação dos salários)134. Isso quer dizer que o neoliberalismo se efetiva de forma específica nos diferentes países, como nos países social-democratas europeus, onde se preservou certa proteção social. Esse pacote político e econômico neoliberal veio como um tsunami ideológico, engolindo os trabalhadores, no sentido de eliminar todo e qualquer projeto alternativo e de resistência para garantir as condições necessárias de uma nova etapa de acumulação. Na verdade, o objetivo é refazer o novo processo de subordinação dos trabalhadores ao capital e garantir, assim, a reprodução das relações entre as classes em novas bases de exploração. Para isso, os neoliberais se utilizam do Estado (burguês) para veicular sua ideologia de classe e fundamentar sua hegemonia político-econômica. Garante-se, desse modo, a subordinação dos trabalhadores ao capital, seja pela via do transformismo social (domesticação do conflito), seja pela exclusão política e ideológica pura e simples. Há aí uma estratégia de desorganizar os trabalhadores enquanto classe, reinserindo-os numa posição subalterna, desmantelando seus instrumentos de luta e formas de organização. Fenômenos como a “dessindicalização”, domesticação dos partidos de esquerda, a crise de legitimidade do projeto e a ideia de socialismo parecem confirmar essas proposições. Por conseguinte, Giovani Alves afirma que a fragmentação do circuito de valorização do capital causada pela terceirização faz com que o suporte material do trabalhador coletivo das lutas operárias fique fragmentado135, a saber, mundialização financeira e produtiva (transferência de dinheiro para mercados financeiros especulativos e de unidades produtivas 133 Cf. MATTOSO, Jorge Eduardo Levi. A desordem do trabalho. São Paulo: Scritta, 1995; PASTORE, José. Flexibilização dos mercados de trabalho e contratação coletiva. São Paulo: LTR Editora Ltda., 1995. In: NOGUEIRA, Arnaldo J. F. Mazzei. A liberdade desfigurada: a trajetória do sindicalismo no setor público brasileiro. 134 Cf. BOITO JR., Armando. Neoliberalismo e corporativismo de Estado no Brasil. In: ARAÚJO, Ângela (Org.). Op. cit., p. 61. 135 Cf. ALVES, Giovani. O novo e precário mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000. 168 para países periféricos com mão de obra barata). Essa desarticulação favorece a pulverização desse trabalhador coletivo e se coloca como obstáculo à construção da consciência de classe. A fragmentação dos interesses dos trabalhadores tem um campo de fatores maior do que apenas resultado da inserção de novas tecnologias no mundo do trabalho. Para Rodrigues, [...] a fragmentação não vem apenas de mutações tecnológicas, mas de um conjunto de alterações na área produtiva e no mercado de trabalho que aumentam as diferenciações no interior das classes trabalhadoras, dificultam a unificação de suas demandas e, consequentemente, diminuem sua coesão e solidariedade e fazem com que os sindicatos encontrem muita dificuldade para exercer o seu papel tradicional de representação.136 Tais fatores de debilitamento da solidariedade dos trabalhadores podem ser resumidos assim: 1) dispersão da produção, redução da dimensão das unidades de fabricação e o aumento da produção em pequenas empresas; 2) maior mobilidade do capital internacional; 3) tendência em direção a acordos por empresas e locais de fabricação; 4) flexibilização das empresas, das normas e dos regulamentos que regiam tarefas, hierarquias e carreiras dos empregados; 5) maior heterogeneidade da força de trabalho com o aparecimento de novas profissões, da maior presença da mulher e dos imigrantes no mundo do trabalho. Conforme Hyman, quatro processos principais estão vinculados ao conceito de fragmentação: a) o desvio do coletivismo para o individualismo que se reflete nas baixas taxas de sindicalização, na menor receptividade dos empregados por políticas e normas determinadas coletivamente; b) a polarização dentro da classe trabalhadora (sindicalizados e não sindicalizados ou os de dentro e os de fora); c) crescente particularismo das identidades e projetos de empresas, das ocupações e do setor econômico e industrial; d) fragmentação dentro do sindicalismo (conflitos intrassindicais e intersindicais ou debilitamento da autoridade das lideranças nacionais, confederações e centrais). 137 Levi Mattoso considera que a debilidade do movimento sindical está ligada aos efeitos da Terceira Revolução Industrial sobre o mundo do trabalho, ou seja, o capitalismo precisou se reestruturar no plano político, econômico e cultural, fazendo uma verdadeira transformação na ordem econômica mundial, das formas organizadas e das estruturas que sustentaram o capitalismo do pós-guerra. O Estado de bem-estar social se debilitou, ou seja, a capacidade de decisão e solução dos problemas sociais capitalistas pelo Estado provedor ficou enfraquecida, justamente por causa da intensa desregulamentação do capitalismo que criou uma desordem econômica e social, enfraquecendo a sociedade civil a partir da subtração de seus direitos 136 137 RODRIGUES, Leôncio Martins. Destino do sindicalismo. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 177. Cf. RODRIGUES, L. M. Loc. cit. 169 sociais. A ação do Estado burguês capitalista centrou-se, sobretudo, na desregulamentação do mercado de trabalho e na redução dos custos de trabalho, tendo como consequência a internacionalização produtiva e financeira, principalmente, a primeira que causou a fragmentação no mundo do trabalho, quando optou por países onde havia mão de obra de baixo custo, aumentando o desemprego nos países centrais, logo intensificando a fragmentação e a concorrência entre os próprios trabalhadores nestes países, que o sindicalismo tradicional do século XIX tanto combatia, isto é, a concorrência entre os próprios trabalhadores como a principal tarefa das lutas operárias (Marx e Engels). Não só a fragmentação e/ou pulverização dos trabalhadores foram os únicos fatores de enfraquecimento do movimento sindical, mas também o fator da dessindicalização que começa a ocorrer a partir da década de 1970, em vários países europeus, Canadá, Estados Unidos e Japão. Isso foi consequência da crise do modelo de produção fordista que trouxe como resultado a queda na produtividade e na taxa de lucratividade. Leôncio Martins Rodrigues explicitou o processo de dessindicalização em o Destino do Sindicalismo, fazendo algumas observações interessantes e mesmo paradoxais. Senão vejamos: os sindicatos, em vários países, estão numa situação difícil, ou seja, há uma queda do número e da proporção de trabalhadores filiados e um declínio das taxas de greve; portanto, dois fenômenos que apontam para o enfraquecimento do sindicalismo como instituição e do poder sindical como ator político. Nos países desenvolvidos nos anos 1980, o fenômeno da dessindicalização e o futuro incerto da instituição sindical é algo consensual entre a maioria dos pesquisadores. Entre 1980 e 1988, a sindicalização caiu de 35% para 28% no conjunto de determinados países: 138 na Europa a taxa de sindicalização declinou de 44% para 38%; Canadá e EUA, de 26% para 18%; Austrália, Japão e Nova Zelândia, de 35% para 30%. No caso da Grécia, Portugal e Espanha, onde a liberdade de sindicalização chegou tardiamente, devido às ditaduras até começo dos anos 1970, houve, ao contrário, um aumento na sindicalização em 14 milhões de novos filiados nos sindicatos. A proporção de aposentados e desempregados no número total de trabalhadores sindicalizados aumentou bastante, como no caso italiano, em 40%; com exceção do Canadá, em todos os países desenvolvidos o número de 138 Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Irlanda, Itália, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido, Austrália, Japão e Nova Zelândia. Cf. RODRIGUES, L. M., op. cit., p. 23. 170 trabalhadores inativos sindicalizados é superior a 10%, com tendência de crescimento, já que há um crescente desemprego atingindo os trabalhadores em atividade, logo a dessindicalização. Na média, em vários países europeus considerados anteriormente, houve um aumento na proporção de desempregados, aposentados (e estudantes) de 10,4% para 17,3%. No entanto, é preciso advertir que as quedas nas taxas de sindicalização ocorreram em países bastante diferentes, com suas específicas relações de trabalho, legislações, sistemas políticos e organizações sindicais. Por exemplo, nos países nórdicos (Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca) que tinham (e ainda tem) taxas elevadas e estáveis de sindicalização entre 70% e até mais de 80%. O conjunto de mudanças políticas, econômicas, comerciais, tecnológicas e culturais ou a chamada globalização atingiu duramente o sindicalismo, isto é, a sua capacidade de confronto, de barganha e de paralisação, a partir da redução de filiados nos sindicatos, devido, sobretudo, ao desemprego estrutural. Mas vale ressaltar que não há uma correlação absoluta entre o grau de adesão dos trabalhadores ao sindicato e os índices de greve, pois a história do sindicalismo e das interações entre sindicalização, de um lado, e o nível e intensidade de conflito, de outro, mostram muitas vezes que altos índices de sindicalização estão ligados a índices baixos de ocorrência de greves. Podemos citar a Suécia, Alemanha, Noruega e Áustria, cujos governos social-democratas contemplaram demandas dos trabalhadores. Há variáveis que não podemos determinar, de forma absoluta, se há uma correlação entre elas, a saber, taxa de sindicalização, poder sindical, legislação e número de paralisações, ou seja, não é o grande número de filiados que pode determinar o maior número de greves, mas a consciência desses sindicalizados, sua situação legal e política na qual estão inseridos. São vários fatores, portanto, que podem influenciar esse processo de luta e de conflito sindical, isto é, a luta entre capital e trabalho, seja nas figuras do Estado ou do capitalista. Altas taxas de sindicalização não significam o aumento da força do sindicalismo, pois a relação entre “poder sindical” e “taxas de sindicalização” pode nos levar a uma conclusão simplória de que basta ter um aumento no número de sindicalizados que seu poder de barganha se fortalece. Mas isso pode ter efeitos contrários ou contraditórios: burocratização do movimento 171 sindical, lutas puramente internas pela conquista do aparelho sindical, enfraquecimento das lideranças mais vanguardistas e fortalecimento das mais moderadas ou atrasadas, cisões internas no sindicato etc. Assim sendo, “A força do sindicalismo parece estar desvinculada, ou relativamente desvinculada, da proporção e do número de trabalhadores inscritos.”139 Mas, por outro lado, sindicatos fracos em número de filiados não têm poder de mobilização dos trabalhadores e confronto com os patrões. Desse modo, inferese que o poder sindical não é resultado do aumento das taxas de sindicalização, mas do nível de consciência política e econômica que os trabalhadores têm da sua realidade. Para finalizar, podemos citar então duas causas da dessindicalização: as causas estruturais e conjunturais. Na primeira, [...] estariam as mudanças tecnológicas e nos modos de fabricação, as transformações no mercado de trabalho e na estratificação social, custos e facilidades de transportes, alterações na disponibilidade de matérias-primas, facilidades na comunicação, novas tendências de consumo; alterações na estrutura etária dos consumidores etc.140 E na segunda, estariam modificações no campo do jogo político-partidário, das leis trabalhistas, dos modelos das relações de trabalho, das estruturas sindicais, das modalidades de negociação e das relações entre sindicatos, empresas e governos.141 Mas, para Leôncio Martins Rodrigues, tal classificação estrutural e conjuntural se complica, se levarmos em conta a questão do desemprego que é uma classificação mais socioeconômica, como também as novas tecnologias e a reorganização da produção. Contudo, segundo Leôncio Martins Rodrigues 142, alguns autores apresentam diferentes fatores da dessindicalização com pelo menos três explicações: a conjuntural, a estrutural e a política: 1) Kane e Marsden trabalham com hipóteses ambientais (mudanças estruturais e econômicas, globalização, heterogeneidade da mão de obra, novas tecnologias, mudanças legais e políticas) e institucionais (estratégias empresariais que implicam em mudanças de atividades, de produtos, de localização e de política de venda e na capacidade de influenciar sindicatos; como também novas políticas de relações humanas para os empregados, 139 RODRIGUES, L. M., Destino do sindicalismo, p. 123. Ibid., p. 164. 141 Cf. RODRIGUES, L. M., op. cit., p. 164. 142 Ver Leôncio Martins Rodrigues, Os fatores da dessindicalização. In: op. cit., p.162-163. 140 172 objetivando tornar desnecessário o recurso aos sindicatos); 2) Green, ao focalizar os sindicatos britânicos, apresenta como hipóteses: mudanças externas que atuam nos sindicatos, alteração no quadro legal das relações industriais e mudanças na composição do emprego; 3) Metcalf considera fatores macroeconômicos como composição do emprego, legislação governamental, reações dos empregadores face às organizações sindicais e a conduta dos sindicatos; e, por fim, 4) Visser que coloca como fatores do declínio sindical, o desemprego, a mecanização da agricultura, reestruturação produtiva e organizativa do setor industrial, apoio ou hostilidade do governo para com os sindicatos, desenvolvimento do setor público, problemas de desregulamentação do mercado de trabalho e das leis de proteção social etc. Para Leôncio Martins Rodrigues, se as principais causas do declínio do sindicalismo ou da dessindicalização estão relacionadas às alterações feitas na economia, na tecnologia, no mercado de trabalho, na estrutura social, na passagem de uma sociedade industrial para outra de serviços, enfim, relacionadas a fatores sociais e econômicos estruturais, então os prognósticos sobre o futuro do sindicalismo parecem ser negativos, justamente devido à difícil situação por que passa o atual sindicalismo, que tem questões profundas ainda não resolvidas; e, por isso, o movimento sindical parece ficar impotente para reagir à ofensiva neoliberal capitalista com políticas capazes de levá-lo de volta aos anos dourados (1950-1970) de sua forte atuação. No entanto, Leôncio Martins Rodrigues pondera, dizendo que não podemos cair em análises pessimistas que estão calcadas em cima de variáveis estruturais que tendem a colocar o sindicalismo na situação de declínio institucional e não na situação de crise. Sair dessas explicações hipotéticas estruturais e conjunturais evita-se cair numa visão arbitrária. Para ele, seria melhor dividir os fatores que estão minando o sindicalismo em dois grandes blocos: os de natureza socioeconômica (fenômenos estruturais de longa duração e menos sujeitos à reversão) e os de natureza político-institucional (de mais curta duração e mais sujeitos à intervenção dos atores do campo do trabalho: governo, empresários e sindicatos). Um terceiro bloco seria o que inclui mudanças culturais e valorativas, pois, como elas operam na área do sindicalismo, à medida que passam pelo jogo político e afetam as relações de forças e alianças entre grupos de interesse, tal bloco faz parte então do rol dos fatores institucionais e políticos. No rol dos fatores políticos que prejudicaram o sindicalismo de esquerda no mundo, inclui-se o colapso dos regimes comunistas da Europa Oriental na década de 1980. Não é fácil estimar quanto o fim dos regimes socialistas do Leste Europeu teria influído no recuo do sindicalismo de esquerda e, sobretudo, na queda das taxas de sindicalização. Uma hipótese, segundo nos revela Leôncio Martins Rodrigues, é que “a derrocada da URSS e dos regimes da 173 Europa Oriental favoreceu a ascensão ao poder de governos adversários do poder sindical e do sindicalismo em geral, mesmo quando os sindicatos não se identificavam com os regimes comunistas.”143 Assim sendo, um novo contexto político se configurou a partir desses acontecimentos, sobretudo, o contexto da Europa do Norte onde os partidos social-democratas foram prejudicados em benefício dos partidos de direita tradicional ou de novos partidos de centro e liberais, ou de uma nova direita; como também o contexto da Europa do Sul onde os partidos de direita foram fortalecidos e onde houve uma reinversão de forças entre comunistas e socialistas, tendo o primeiro maiores perdas. Na verdade, houve um processo ideológico e propagandístico pesado, por parte da burguesia internacional, de deslegitimação das concepções socialistas e, consequentemente, um deslocamento das preferências eleitorais para o neoliberalismo. Daí o enfraquecimento das concepções holísticas, das mais radicais, como o comunismo, às mais moderadas, como a social-democracia e o trabalhismo. A discussão, portanto, mostra que a ofensiva neoliberal se deu por vários atalhos sociais no campo da estrutura e da superestrutura da sociedade, onde se tecem as relações sociais na forma de acordos políticos, jurídicos, econômicos e, até mesmo, culturais. Sabotar a luta dos trabalhadores com uma propaganda anticomunista e “pró-liberal-capitalista” foi o marco das forças conservadoras capitalistas sob vestes neoliberais. A falta de uma compreensão dialética do processo histórico da derrocada do socialismo real e da crise estrutural do capitalismo, desde 1970, pelos trabalhadores, a ausência de uma consciência marxista do proletariado que ajudasse a compreender essas contradições históricas e a sua incapacidade estratégica de reagir à ofensiva neoliberal foram, quiçá, as causas de refluxo do movimento sindical no mundo. Por outro lado, sabemos que o movimento sindical teve uma forte influência política sobre os governos trabalhistas e social-democratas nos últimos 30 anos do pós-guerra, sobretudo, nos países do norte da Europa. Sua fraca influência política hoje pode estar relacionada ao processo de dessindicalização e à crise do processo de produção fordista ou ao processo de reestruturação do capitalismo, mas, sobretudo, ao processo de “desideologização” e “despolitização” dos trabalhadores, ou seja, a ausência de uma “consciência de classe para si” do proletariado que incorporou o reformismo burguês. Podemos dividir, assim, o sindicalismo em duas faces: como movimento social e como instituição. O sindicalismo como movimento social mobiliza os trabalhadores politicamente, 143 RODRIGUES, L. M. Op. cit., p. 234. Cf. também MÉSZÁROS. Prefácio à edição brasileira. In: Para além do capital, p. 23: Vale ressaltar que Stalin reduziu os sindicatos a correias de transmissão da propaganda oficial e isentava a base da classe operária qualquer possibilidade de controle da forma política pós-capitalista. 174 ou seja, considera-os como uma “classe”, uma totalidade, em que os elementos de coesão superam os de diferenciação. Nesse sentido, o sindicalismo como movimento social é a força básica da transformação social que se desloca para o confronto, quer dizer, mobiliza os trabalhadores para exercer pressão sobre o patronato e a classe política, construindo sua consciência de classe e, assim, ampliando suas possibilidades de luta contra o capital. Já o sindicalismo como instituição se desloca para as estruturas, para o aparelho sindical, isto é, para o melhoramento de seu funcionamento na sociedade e no sistema político. Seria um sindicalismo mais para a negociação do que para o confronto, mesmo que esses dois aspectos não sejam desvinculados. Daí surge a burocracia como forma de controle de funcionários, recursos financeiros, direitos e deveres, causas judiciais etc. Mas ponderando a reflexão, o sindicalismo não subsiste como movimento político puro, pois é preciso ter a dimensão institucional para garantir conquistas cotidianas para os trabalhadores face ao capital. O poder sindical se expressa, de fato, pela força das greves, pois é por meio delas que o sindicalismo garante sua forma como movimento social, e também como instituição que pressiona o outro lado, a partir de ações judiciais. Dois pilares complementares. Depois desta exposição sobre a ideologia e a prática política e econômica do neoliberalismo como antídoto do capitalismo para a sua crise estrutural de acumulação e algumas de suas consequências para o mundo do trabalho, focando os principais países europeus, vejamos então, em linhas gerais, como essa ofensiva liberal ou neoliberal se deu no Brasil a partir dos anos 1990 com os governos de Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, e a reação do movimento sindical face a esse projeto imperialista. Sabemos antes de tudo que, no final dos anos 1970, o Brasil vivia uma grande efervescência política com a crise da Ditadura Militar, sob o comando do general Figueiredo. O governo militar foi forçado pelas circunstâncias a aprovar a lei da Anistia (ampla, geral e irrestrita) em 1979, que trouxe de volta ao Brasil vários políticos exilados, como também anistiou torturadores e assassinos militares ou paramilitares. Já havia eleição bipartidária para o legislativo na câmara federal e no senado com a ARENA e MDB. Em 1982, restabeleceu-se a eleição para governadores na qual o PMDB ganhou importantes estados da federação como maior partido opositor da ditadura militar, e, a partir de 1985, eleições para prefeitos/as das capitais. O sindicalismo do ABC paulista foi um dos principais focos de resistência ao regime de exceção com suas greves de massas nos anos 1978-1979, sob o comando do líder sindical Luís Inácio Lula da Silva. As greves eram de caráter combativo e de classe e tinham como objetivo se contrapor à legislação sindical, às políticas salariais, ao corporativismo sindicalista 175 de Estado, ao peleguismo sindical, ao modelo de desenvolvimento econômico etc. Na verdade, o novo sindicalismo, surgido no final dos anos 1970, se pautava primeiramente pela lógica do confronto, por meio das greves, para depois ir para a lógica da negociação. Era um sindicalismo antipatronal e de oposição ao regime militar, cuja tarefa primordial visava organizar a base dos trabalhadores nas fábricas. Por conseguinte, conforme Boito Jr., o neoliberalismo chegou tardiamente ao Brasil, devido à política desenvolvimentista de caráter estatizante, herdada dos governos populistas de 1930-1964, a saber, da era Vargas até Juscelino e Jango, que ainda tinha uma forte influência sobre a população, por causa dos direitos protetivos legais conquistados nesse período. Na verdade, o modelo político econômico desenvolvimentista partia do pressuposto de que o Estado é o grande fomentador do desenvolvimento econômico do país. Isso se refletia em todos os setores da sociedade, desde as indústrias pesadas estatais, como siderurgias, petroquímicas, empresas de fertilizantes, até setores de serviços públicos, como bancos estatais, telecomunicações, companhias de energia e de água e esgoto, educação e saúde públicas, tudo por conta da responsabilidade do Estado. De outra maneira, Sebastião Cruz – diz Boito Jr. – apresenta três fatores importantes que dificultaram a implantação de uma política neoliberal no Brasil na segunda metade dos anos 1980: 1) uma grande frente de oposição política ao regime militar em sua crise final e a eleição de Tancredo e Sarney para Presidente da República; 2) o insucesso do Plano Cruzado no combate à hiperinflação e a fissura que o plano produziu entre a burguesia industrial e os economistas desenvolvimentistas; e 3) o impacto político e ideológico que a pressão do governo Reagan fez pela abertura do mercado brasileiro aos produtos estrangeiros, contrariando a burguesia industrial brasileira. Boito Jr. ainda acrescenta um quarto fator que foi a polarização da eleição presidencial entre Collor e Lula em 1989, elegendo o primeiro como candidato para implementar o neoliberalismo no Brasil. 144 Contudo, “o maior obstáculo econômico à transição neoliberal no Brasil foi o sucesso que o desenvolvimentismo obtivera na promoção do crescimento e diversificação do parque industrial brasileiro.” 145 Daí Boito Jr. afirmar que o neoliberalismo é “tardio” no Brasil frente aos demais países da América Latina como Argentina, Chile, Bolívia, Uruguai e México. Entretanto, o neoliberalismo no Brasil se efetivou na prática, a partir das políticas de 144 Cf. BOITO JR., Armando. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã Editora, 1999. p. 119. Cf. também SANTOS, Anselmo Luis dos; POCHMANN, Marcio. Custo do trabalho, políticas neoliberais e competitividade internacional. In: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Barbosa de; MATOSO, Jorge Eduardo Levi et al. Crise e trabalho no Brasil: modernidade ou volta ao passado? São Paulo: Scritta, 1996. p. 208-209. 145 BOITO JR., op. cit., p. 115. 176 privatização das empresas estatais e/ou públicas, da abertura descontrolada do mercado brasileiro aos produtos estrangeiros e da desregulamentação financeira e do mercado de trabalho, começando no governo Collor de Melo (1990-1992), mais timidamente no governo Itamar (1993-1994) e mais avançadamente no governo de FHC (1995-2002).146 Tais medidas acarretaram a desnacionalização, a desindustrialização e a concentração de renda e da propriedade de terras. A desnacionalização se deu com a venda ou a fusão de empresas brasileiras ao capital e/ou às empresas estrangeiras. Para termos uma ideia, “Em 1997, o Sindipeças estimou que, das 3.200 indústrias de autopeças que existiam em 1991, restavam apenas 930, devido à onda de vendas, fusões e falências no setor.”147 A desnacionalização pôde fundir-se, em certos casos, à desindustrialização, ou seja, a desindustrialização estava também associada ao fechamento das indústrias nacionais, devido à concorrência desleal com produtos estrangeiros mais baratos, por causa do protecionismo nacional e/ou incentivo fiscal de governos de outros países em relação a seus produtos exportadores. No Brasil, as indústrias não tinham se modernizado ou reestruturado suas unidades de produção; porém, a desindustrialização atingiu mais os setores de calçados, têxtil, vestuários, de brinquedos, dentre outros, do que a indústria automobilística (montadoras), indústria de autopeças, a indústria eletroeletrônica e de informática etc.148 Por conseguinte, o que marcou a onda neoliberal no Brasil foram as privatizações das empresas estatais, principalmente durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, cujas empresas estatais mais lucrativas foram vendidas a preço vil, como a Vale do Rio Doce. Para Boito Jr., a política de privatização no Brasil favoreceu apenas ao imperialismo e a uma fração da burguesia brasileira (capital monopolista), e marginalizou o pequeno e médio capital. Nesse sentido, grandes empresas do setor bancário, industrial e da construção civil aumentaram seus patrimônios com a política neoliberal de privatização. Esses grupos arremataram a preço vil empresas lucrativas dos setores siderúrgicos, petroquímicos, de fertilizantes e de mineração; e pior, com moedas podres149 e empréstimos favorecidos pelo 146 SANTOS e POCHMANN, op. cit., p. 210: “Como parte integrante da estratégia da política liberalizante, que visa entre outras coisas, reduzir o custo do trabalho, retirar encargos sociais, flexibilizar e desregulamentar o mercado de trabalho brasileiro, as alternativas apresentadas para a manutenção das linhas gerais do plano, frente aos problemas colocados pela abertura comercial, claramente caminharam para a idéia de redução do Custo Brasil.” Para Pochmann e Santos, a desregulamentação do mercado de trabalho e a retirada do marco legal dos direitos social e trabalhista, contribuiria possivelmente para a diminuição do poder sindical. Cf. Ibidem., p. 211212. Vale ressaltar que Itamar assumiu a Presidência da República em 29 de dezembro de 1992. 147 Ibid., p. 48, nota 44. 148 Sobre essa questão em por menor, ver Armando Boito Jr., Desindustrialização, desnacionalização e concentração. In: BOITO JR., op. cit., p. 41-48. 149 Aqui podemos designar como moedas podres as Obrigações do Fundo Nacional de Desenvolvimento, Títulos 177 BNDES. Segundo Boito Jr., “O preço do patrimônio das empresas privatizadas, segundo números do governo, foi de 4,66 bilhões de dólares durante o governo Collor, 7,21 bilhões no governo Itamar e saltou o montante de 21,15 bilhões nos primeiros dois anos e meio de governo FHC.”150 Vale ressaltar que o capital estrangeiro entrou na privatização das empresas de energia elétrica (Light no Rio), da Rede Ferroviária Federal, da Companhia Vale do Rio Doce, Cosipa, CSN, Açominas, Usiminas, Acesita entre outras. Isso foi uma forma de transformar o capital especulativo em capital produtivo como lastro do primeiro, à medida que determinados setores produtivos, como o automotivo, estavam saturados, justamente porque o número de consumidores no mundo para determinados produtos duráveis estava limitado. A Força Sindical151, criada no início do governo Collor, apoiou decisivamente a política neoliberal de privatização e de desregulamentação do mercado de trabalho como banco de horas, terceirização da mão de obra e de unidades de produção, trabalho em tempo parcial com redução salarial, câmara setorial (inclusive a CUT) etc. No governo neoliberal de FHC, trabalhadores filiados à Força Sindical tiveram o privilégio de participar da compra de empresas estatais, tais como a Açominas em que os funcionários receberam 20% das ações ordinárias e 10% das ações preferenciais sem desembolsar um centavo, ou seja, as ações seriam pagas, na proposta do sindicato ligado a esta Central Sindical, em quatro anos com dividendos auferidos neste período. No caso da Usiminas, uma parte das ações foi doada aos funcionários, além da empresa ter concedido um aumento salarial de até 5% aos funcionários que quisessem adquirir ações ordinárias, cuja amortização do financiamento das ações para ser coberta, teve aval do BNDES e Banco de Desenvolvimento de Minas. Podemos inferir, portanto, que houve, nesse sentido, uma certa cooptação de parte dos trabalhadores para ficar favorável à privatização. A diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, por exemplo, aplicou um questionário para 20 mil operários metalúrgicos de sua base, cujo resultado foi amplamente favorável à privatização e à reforma administrativa: 63% eram a favor da privatização da Petrobras, 64% da Telesp e 68% eram favoráveis à privatização do Banespa; além disso, 65% dos entrevistados apoiavam o fim da estabilidade do funcionalismo púbico.152 da Dívida Externa, as debêntures, e dívidas da Siderbrás entre outras. Altos burocratas das estatais também se tornaram sócios, criando clubes de investimentos com dinheiro dos trabalhadores. 150 BOITO JR., op. cit., p. 52. 151 Segundo Boito Jr., a Força Sindical e o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo receberam milhões de dólares do governo Collor para edificar seu aparelho sindical. Cf. Boito Jr., op. cit., p. 185. 152 Cf. BOITO JR. Folha de São Paulo, 19 de março de 1995. In: op. cit., p. 194, nota 273. 178 Para Boito Jr., a eleição de Collor-Itamar e de FHC refletiram, de certa maneira, a “adesão” de parte do povo brasileiro ao projeto antiestatista, isto é, neoliberal, já que a maioria dos brasileiros sofria com a ineficiência do Estado cartorial, clientelista, sobretudo, nas políticas públicas como saúde, educação, habitação e saneamento. E o slogan da campanha presidencial de Collor de Mello, “o caçador de marajás”, colocava parte da população contra os trabalhadores do serviço público, e, claro, com o apoio da grande mídia. Acreditamos, porém, que parte da população, na verdade, não tinha sequer uma ideia clara do projeto neoliberal. Com efeito, a visão dos brasileiros parecia ser opaca em face dessas questões políticas e ideológicas, pois a maioria da população tinha certamente uma visão política muito superficial, confusa, dos acontecimentos. O fato de Collor ter sido eleito foi muito mais por medo da maioria dos eleitores ao “projeto social” de um governo Lula, propagado pela grande imprensa burguesa, do que uma clara consciência do mesmo, já que o muro de Berlim tinha acabado de cair com a crise do socialismo real. E em relação à eleição de FHC, o povo, na verdade, elegeu foi o Plano Real que estancou o processo crônico inflacionário que o Brasil vivia desde o final do regime militar com o general Figueiredo, deteriorando os salários dos mais pobres. Entretanto, a princípio não foi fácil fazer uma desmistificação do Plano Real para o povo, já que se passava a ideia falsa de que a moeda nova era forte, equivalente ao dólar: uma arquitetura propagandística neoliberal construída em torno da mística do real como moeda forte (sobrevalorização artificial). No entanto, a resistência do movimento sindical e popular à ofensiva neoliberal, mascarada com a fantasia do controle da inflação e de recuperação do poder de compra do trabalhador, foi a da “linha de menor resistência”. No caso do movimento sindical, uma parte dos trabalhadores apoiava a política neoliberal (Força Sindical), outra parte era contra, mas era “um contra” com algumas ponderações. E a CUT aí se inclui, isto é, sua tendência majoritária, a “Articulação Sindical”, ligada ideologicamente à central sindical francesa, CFDT, próxima do Partido Socialista desde 1970, mas de origem católica. Conforme Boito Jr., a CFDT, desde o Congresso de Brest em 1979 e de Metz em 1982, aprovou uma linha de pensamento de que o sindicalismo não poderia apenas denunciar o patronato, mas reconhecer a legitimidade do empresariado e apresentar novas propostas às empresas. Nesse sentido, a CFDT passou a fazer a crítica à noção de “luta de classes”, às ações centralizadas (greves gerais e passeatas de protestos) e ao stalinismo (autoritário jacobino); optou, portanto, por uma concepção propositiva e conciliadora que pudesse valorizar as reivindicações realistas, a 179 negociação fria, a livre contratação na base e o fortalecimento da sociedade civil. 153 Na verdade, para Boito Jr., “[...] as relações políticas, ideológicas e financeiras da corrente Articulação Sindical com a social-democracia européia e com essa igreja [católica] pesaram na guinada para o centro empreendida pelo sindicalismo cutista.” 154 E para confirmar ainda essa guinada da CUT para o centro, saindo de um sindicalismo combativo para um sindicalismo propositivo, mais favorável à política neoliberal, a Central no V Concut de 1994 extinguiu as CUTs Regionais, ou seja, as estruturas horizontais onde correntes de esquerda tinham grande influência e concorriam com a estrutura confederativa da CUT. Antes, no Concut de 1991, com a crise terminal da Federação Sindical Mundial (FSM), internacional sindical ligada ao bloco soviético, foi aprovado o início do processo de filiação à Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL) de linha socialdemocrata. Para a corrente Articulação Sindical, o movimento sindical e os partidos de esquerda socialistas e comunistas estavam numa situação conjuntural difícil, com a crise do socialismo real e do marxismo, pois a ofensiva neoliberal veio com toda força impor seu projeto social – político e econômico – para substituir o projeto estatista do bloco soviético e do Estado do bem-estar social europeu. Em outras palavras, “o movimento socialista e as correntes à esquerda da CUT entraram em crise ideológica e perderam a iniciativa.” 155 Nem o estatismo keynesiano nem o estatismo soviético conseguiram atender mais as necessidades de toda a sociedade que desejava ser mais humanista e civilizada, ou seja, nem o reformismo socialdemocrata nem o “revolucionarismo” stalinista soviético conseguiram atender plenamente as demandas sociais mais básicas. No sindicalismo brasileiro, portanto, havia pelo menos duas posições aparentemente oponentes, a saber, a posição da Força Sindical, favorável ao projeto dos governos neoliberais de Collor, Itamar e FHC, e a posição da CUT, contrária ao neoliberalismo, porém ainda defendendo genericamente um modelo de socialismo brasileiro, mesmo sem um conteúdo teórico-prático claro. Mas ambas centrais parecem ter tido em algumas ocasiões consensos em algumas propostas como a das câmaras setoriais e do contrato coletivo de trabalho (este jamais concretizado), abandonado a posteriori pela CUT. É sabido que as dificuldades do movimento sindical e sua tendência à moderação foram fenômenos de amplitude internacional. Na maioria dos países europeus e latino-americanos, com a virada da década de 1980, o movimento sindical começava a sofrer uma fase de estagnação, a saber, queda nos 153 Cf. BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 215. BOITO JR., op. cit., p. 217. 155 Ibid., p. 218. 154 180 índices de sindicalização, diminuição da atividade grevista e fortalecimento de orientações mais moderadas. 156 Muitas explicações surgiram para responder o porquê do refluxo do movimento sindical de esquerda no Brasil a partir dos anos 1990, especialmente o movimento sindical cutista que nasceu em contraposição ao sindicalismo pelego da CGT do Joaquinzão no final dos anos 1970, com as CONCLATs (1981-1983) e as cisões no espectro da esquerda brasileira. A pergunta que se impõe é: “por que a CUT mudou?”. Duas respostas entraram em voga: a primeira é de enfoque voluntarista, ou seja, a mudança se deu devido à ideologia e às decisões majoritárias da CUT – Articulação Sindical – que optou pela estratégia sindical propositiva; a segunda é de enfoque objetivista, que considerou as condições objetivas para tal mudança na CUT, a saber, reestruturação produtiva, crise do modelo fordista de produção, fim do socialismo etc. Na primeira variante voluntarista, encontram-se os intelectuais ligados às organizações de esquerda do movimento operário e sindical que fazem oposição à Articulação Sindical; na segunda, estão os intelectuais ligados a esta corrente e que são numerosos na esquerda universitária. Se a primeira variante voluntarista acredita que é possível voltar à estratégia sindical dos anos 1980, a segunda, ao contrário, opta pelo sindicalismo propositivo, participativo, como estratégia possível na conjuntura neoliberalcapitalista. Podemos considerar como representante da primeira variante, conforme Boito Jr., o livro CUT ontem e hoje, de Vito Giannotti e Sebastião Neto. Para eles, a CUT optou por essa estratégia propositiva sindical por decorrência da ideologia e da ação da Articulação Sindical, ou seja, influenciada pela social-democracia europeia, esta corrente fez de tudo para se tornar hegemônica na CUT, inclusive mudando o estatuto a seu favor e fraudando o credenciamento dos delegados e a apuração dos votos no Concut de 1991. São esses aspectos valorizados nas suas análises, isto é, uma mudança por dentro da CUT para uma posição mais à direita. No entanto, segundo Boito Jr., não podemos limitar essa questão apenas à vida própria interna da Central, sem perceber outros enfoques externos que são as mudanças estruturais por que passou e passa o mundo do trabalho e a conjuntura internacional. Os dois autores, na verdade, na visão de Boito Jr., desejam restaurar a concepção de estratégia sindical dos anos de 1980, porém, esquecem que a luta da CUT dos anos 1980 era mais uma luta contra a política de desenvolvimento do que contra o próprio capitalismo.157 156 Ver René Mouriaux, Lê syndicalisme dans le monde. Paris: PUF, 1993. Boito Jr. analisa essa questão de forma mais detalhada, a saber: o comprometimento da esquerda brasileira (incluída aí a esquerda comunista) com diversos aspectos antipopulares da política desenvolvimentista, a 157 181 Já o livro Sindicalismo e política, a trajetória da CUT, de Iram Jácome Rodrigues, representa a variante objetivista. Para ele, a CUT evoluiu positivamente, justamente porque as condições objetivas obrigaram-na a ter uma postura mais pragmática do que ideológica. E sua explicação baseia-se em várias mudanças: a democratização do regime político brasileiro, a institucionalização da Central (que, para ele, é o caminho natural das organizações dos trabalhadores em sociedades democráticas), o desemprego e o aguçamento da concorrência entre as empresas. Estes seriam os fatores, para Iram Jácome Rodrigues, que levaram a CUT a um sindicalismo propositivo e menos combativo e classista. Se para ele o novo sindicalismo dos anos 1980 era uma luta dos trabalhadores pela democracia, logo nada mais natural do que a CUT, como fruto dessa luta, ter tomado o caminho mais moderado nos anos 1990, embora no começo o novo sindicalismo tenha relutado em assumir palavras de ordem democráticas. Outros teóricos que apontaram as causas da moderação, ou melhor, da fragmentação do proletariado na era neoliberal foram Alain Bihr em Da grande noite à alternativa – o movimento operário europeu em crise, e Ricardo Antunes em Adeus ao trabalho e Os sentidos do trabalho em que, no primeiro livro, Antunes difundiu as teses de Alain Bihr e no segundo, as teses da crise estrutural do capital de István Mészáros. Alan Bihr em seu livro faz uma defesa militante do anarco-sindicalismo, apresenta o processo de fragmentação do proletariado (dividido em trabalhadores estáveis e precários) e descreve os novos métodos de trabalho nas empresas, concluindo que o enfraquecimento do proletariado, por causa de sua fragmentação, provocou o enfraquecimento do sentimento de pertencimento de classe no conjunto dos proletários. Já Ricardo Antunes levanta as questões de Mészáros sobre a impossibilidade de controle social do sistema metabólico do capital que subordina o trabalho, a natureza, ou melhor, a sociedade como um todo, ao seu processo de reprodução e expansão de valorização do valor de troca (capital) em detrimento do valor de uso. Segundo Antunes, [...] a crítica de Mészáros aos instrumentos políticos de mediação existentes é também enfática: os sindicatos e partidos, tanto nas suas experiências de tipo socialdemocrático, quanto na variante dos partidos comunistas tradicionais, de feição stalinista ou neo-stalinista, fracassaram no intento de controlar e de superar o capital. [...] Os indivíduos sociais, como produtores associados, somente poderão superar o capital e seu sistema de sociometabolismo desafiando radicalmente a divisão estrutural e hierárquica do trabalho e sua dependência ao capital em todas as suas determinações.158 Segundo Bihr, a crise do capitalismo dos anos 1970-1980 acabou estabelecendo, por mudança da estratégia sindical da CUT, a não adesão da CUT ao neoliberalismo e à sua política de privatização, a defensiva do movimento sindical brasileiro etc. Cf. BOITO JR. Neoliberalismo e corporativismo de Estado no Brasil. In: ARAÚJO, Ângela (Org.). Op. cit., p. 59-87. 158 ANTUNES, Ricardo. Apresentação. In: MÉSZÁROS, op.cit., p.19. 182 tabela, a crise do movimento sindical de esquerda. Em outras palavras, para ele, as organizações sindicais e políticas de esquerda – que desempenharam despreocupadamente seu papel de força supletiva do capital durante o período taylorista-fordista dos anos dourados do capitalismo – conseguiram arrancar dos capitalistas e de seus governos algumas importantes benesses sociais para os trabalhadores; porém, tais organizações hoje se encontram um tanto enfraquecidas e experimentam uma grave crise de representatividade, marcada pela diminuição do interesse da classe trabalhadora por elas, pois a queda dos efetivos, a fraqueza do militantismo e a incapacidade de mobilizar os trabalhadores agravaram-se com o decorrer do tempo. Na verdade, [...] essa crise de representatividade das organizações do movimento operário [sindicatos e partidos] depende de um certo número de transformações mais gerais que afetaram a sociedade em seu conjunto sob a influência crescente das relações capitalistas: dissolução de identidades coletivas, ascensão do individualismo, perda generalizada de direção, etc.159 Também se somam a isso a ausência de estratégia revolucionária e o declínio irreversível de todas as referências ideológicas tradicionais do movimento operário, pois todos os modelos sociopolíticos, com os quais o movimento operário se identificou no curso de sua história, foram esquecidos, rejeitados ou caducados pelo reformismo social-democrata. Por essa situação, o movimento operário ficou encurralado pelas transformações do capitalismo, sobretudo, no que respeita ao mundo do trabalho. A crise do poder sindical no mundo está associada, a nosso ver, a uma crise de identidade ideológica, ou melhor dizendo, o processo de “desideologização” e/ou “despolitização” das lutas institucionais ou políticas do movimento dos trabalhadores se consolida cada vez mais, no sentido de abandonar a perspectiva de abolir a sociedade capitalista para se construir a sociedade socialista. Dessa forma, a utopia proletária é tratada como pura fantasia política, puro idealismo de revolucionários fanáticos. Para Maciel e Faria, por exemplo, Uma das facetas da crise de contra-hegemonia que o movimento social atravessa no Brasil é a profunda despolitização e desideologização de seus militantes. A intensificação desses fenômenos tem gerado desacumulação teórico-política e aberto brechas para o avanço de concepções de caráter social-democratizante e até neoliberal, no interior do movimento dos trabalhadores. A perspectiva classista e crítica à ordem burguesa, que vincula a luta dos trabalhadores à transformação social e ao socialismo tem sido violentamente atacada.160 Nesse sentido, parece haver um militantismo alienante, na medida em que prega para 159 BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. São Paulo: Boitempo, 1998. p. 12. 160 MACIEL, David e FARIA, Paulo. Crise do capital, dominação burguesa e alternativas dos trabalhadores. In: DIAS, Edmundo Fernandes et al. Op. cit., p. 112. 183 os trabalhadores de que “não há alternativa para além do capitalismo na história da humanidade”. Desse modo, as direções sindicais não fazem o esclarecimento científico sobre a impossibilidade de se dar aumento salarial “justo” (pseudoequivalência de troca entre capital e trabalho que Marx explicita em O Capital) no quadro histórico da lógica de acumulação capitalista, ou seja, não explicam o antagonismo da relação entre salário e lucro que impedem a troca “igual” entre trabalho e capital, em que a condição sine qua non do incremento de um depende do rebaixamento do outro. Tais direções não o fazem, ou por ignorância, ou por medo das consequências de um conflito inimaginável. Como bem diz Bihr, Sem dúvida, patronatos e governos, em certo sentido, só podem se felicitar pelo enfraquecimento global das organizações sindicais, no curso desses últimos anos, que lhes permitiu proceder às inflexões da relação salarial necessárias ao restabelecimento de condições de valorização do capital mais satisfatórias.161 Mas Bihr ressalta que tal enfraquecimento pode representar uma ameaça potencial para os governos e patrões, pois sindicatos fracos ou a ausência de qualquer dirigente podem promover explosões sociais incontroláveis, já que, do contrário, com sindicatos fortes que enquadram os trabalhadores e com direções controladas pelas benesses capitalistas, governos e patrões evitam um severo conflito de classes e garantem uma certa “paz social”. Não é à toa que “A transnacionalização do capital e suas implicações institucionais representam um [outro] fator suplementar de desestabilização do movimento operário herdado do período fordista.”162 A experiência histórica de governos social-democratas demonstrou que qualquer tipo de política realizada com a conquista e o exercício do poder de Estado, esbarra na impossibilidade de se fazer uma ruptura histórica com o capitalismo de forma gradual (socialismo evolucionista da Segunda Internacional). Os interesses de frações cada vez mais amplas da classe dominante e os interesses nacionais são separados pela transnacionalização do capital. Em outras palavras, o desenvolvimento transnacional do capital torna todas as estratégias de lutas realizadas, dentro do Estado-nação, pelo movimento operário ocidental sob governo social-democrata, inoperantes. Isso é resultado do edifício ideológico das organizações do movimento operário ocidental que está preso a um fetichismo de Estado (mito da onipotência gerencial estatal) e a um nacionalismo (identificação dos interesses do proletariado com os interesses nacionais). Se o movimento sindical se “socialdemocratizou”, isto é resultado do pacto realizado na era fordista entre o capital e o proletariado, pois estava em moda a questão: “reforma ou 161 162 BIHR, op. cit., p. 233 Ibid., p. 117. 184 revolução?”. Com implantação do modelo taylorista-fordista de produção163, baseado na produção em série, em massa, de mercadorias, isto é, produção homogeneizada e verticalizada, realizada em unidades compartimentadas e/ou separadas no mesmo local e sob esteiras, com tempos reduzidos de produção por unidade, ficou mais acessível e barato para os trabalhadores obterem os produtos industrializados. Isso fez com que a taxa de lucratividade e de produtividade aumentassem, tal como aumentou o poder real de compra dos trabalhadores, a partir dos movimentos grevistas reivindicativos, eleições de governos trabalhistas ou socialdemocratas em vários países, e por causa, também, do medo da influência socialista soviética sobre os trabalhadores do ocidente. Essa conjuntura favoreceu o campo da luta proletária para melhorar suas condições de vida com melhores salários. Contudo, estaria o movimento operário, com a crise dos governos social-democratas (o fim do socialismo real), com a crise do modelo de organização fordista do trabalho e da produção e com a crise de representatividade das lideranças, realizando um novo compromisso ou pacto social com o capital? Ou seja, estariam os trabalhadores construindo um modelo neossocial-democrata do movimento sindical? Um novo compromisso entre capital e proletariado pode estar se dando no plano da relação salarial, da manutenção dos empregos etc., pois tudo agora é flexibilização para os capitalistas neoliberais: flexibilização do sistema financeiro, do mercado de capitais, da abertura comercial para produtos importados, do mercado de trabalho com jornadas mais flexíveis (part time, just time), da legislação trabalhista (direitos sociais) etc. Segundo Ramalho e Santana, Toda literatura sociológica reconhece que a “flexibilização da produção” trouxe grandes problemas para os sindicatos. Alguns autores chegam a perguntar se, com a reestruturação produtiva, a evolução dos modelos organizacionais e o questionamento dos modos tradicionais de representação e de delegação, o sindicalismo não teria perdido definitivamente a “sua marca” (Linhardt, 1996) ou estaria condenado ao desaparecimento (Rodrigues, 1999).164 Contudo, os dois autores acreditam que o debate realizado por esse tipo de análise da crise sindical apresenta divergências quanto ao modo de interpretar as mudanças na instituição sindical, ou seja, se para alguns esse processo de transformação sinaliza um declínio inexorável do sindicato, para outros, a crise não é de instituição de representatividade e sim de um tipo de sindicato atingido pelas transformações na produção. Sabemos que os 163 Cf. ANTUNES, Ricardo. Os limites do taylorismo/fordismo e do compromisso social-democrático. In: Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, Editorial, 2005. p. 36-37. 164 SANTANA e RAMALHO. Trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. In: SANTANA, Marco Aurélio e RAMALHO, José Ricardo (Orgs.). Além da fábrica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 24. 185 sindicatos sempre desenvolveram uma estreita relação político-ideológica com movimentos revolucionários, pensados como elementos fundamentais nos processos de transformação social. Entretanto, os sindicatos não deixam de ser formas de representação de assalariados, sobretudo, como organismos de representação de interesses setoriais, frequentemente locais e coletivos. E isso leva, de certa maneira, a uma forma fragmentária da luta, caso não se tenha um horizonte maior de uma luta mais universal ou unificada para os trabalhadores, a luta pela sua emancipação de classe. É por isso que, para Soares, o movimento sindical vive hoje sua maior crise aguda, à medida que perde filiados com a crise do desemprego estrutural, sobretudo, no setor industrial, mas também principalmente [...] porque o velho sindicalismo se burocratizou, se “institucionalizou”, passando de uma postura de conflito aberto com o capital, de enfrentamento e de luta de classes, ao defensivismo de novo tipo, para uma postura marcadamente neocorporativista, colaboracionista, e “concertacionista”.165 Porém, a tese da inevitabilidade da reestruturação produtiva, das inovações tecnológicas e organizacionais e da terceirização, defendida no meio acadêmico e sindical, dá suporte teórico à concepção que defende a política de “concertação social”, isto é, da negociação pura e simples, em detrimento do conflito de classes, da retomada da luta de classes. Por causa dessa concepção – diz Soares –, o sindicalismo combinou uma nova tática que aliava firmeza e flexibilidade. No caso brasileiro, embora os textos produzidos pelas assessorias sindicais, divulgados por entidades de trabalhadores ligadas à CUT, indicassem nenhuma postura conformista ou de submissão em relação às transformações ocorridas na indústria brasileira, sobretudo, no que diz respeito à terceirização, como também nem mesmo uma postura radical que rejeitasse o debate e a negociação, percebe-se que houve toda uma disponibilidade dos dirigentes em querer interferir e influenciar no desenvolvimento da indústria, como também em discutir a respeito da produção, da modernização, das inovações tecnológicas ou das formas de gestão empresarial, como a terceirização. Noutras palavras, os textos reconheceram a necessidade de negociação, e isto se traduz, portanto, numa colaboração entre classes (patrão e empregado), típico do sindicalismo reformista europeu. Como bem coloca José de Lima Soares, Os acordos com as montadoras, envolvendo o processo de reestruturação produtiva, a terceirização, a participação nos lucros das empresas, a flexibilização da jornada de trabalho, a política das Câmaras Setoriais, o “tripartismo”; envolvendo patrões, governo e trabalhadores, os ziguezagues do presidente da Central, Vicente Paulo da 165 SOARES, José de Lima. Para onde vai o mundo do trabalho? Crise e perspectivas do movimento sindical. In: DIAS, Edmundo Fernandes et al. Op. cit., p.152. 186 Silva [...], frente à Reforma da Previdência, são fatos que demonstram, claramente, que o sindicalismo cutista está bastante “desintonizado” com a base. [...] as Câmaras Setoriais, a flexibilização da jornada etc., são a expressão maior de uma política marcada pelo neocorporativismo, que prima pela viabilização de conquistas trabalhistas que beneficiam apenas o setor mais organizado do movimento sindical, melhor remunerado, mais qualificado, em detrimento da maioria dos trabalhadores. Essa não é uma política de unidade dos trabalhadores, mas de segmentação, de fragmentação da classe trabalhadora, inconcebível, para uma central sindical que incorpora em seu “projeto” bandeiras de luta, como a unidade e a solidariedade de todos os trabalhadores no mundo, a luta pelo fim da exploração e por uma sociedade socialista, igualitária, etc.166 De forma parecida foi o que aconteceu na Inglaterra, nos governos de Margaret Thatcher e Tony Blair, com a implementação da sistemática Kaizen na Nissan (ramo automobilístico) e na Ikeda Hoover (fornecedora da Nissan), ou seja, o envolvimento direto dos trabalhadores em grupos (team work ou equipes de trabalho) com o desenvolvimento de projetos da empresa para melhorar diversas etapas do processo de trabalho. Em troca, os trabalhadores tiveram tanto melhorias nas suas experiências de trabalho quanto na mudança do local de serviço de ônibus. Mas, na verdade, o Kaizen permitiu à administração apropriarse dos conhecimentos dos trabalhadores, o tal do savoir faire (saber fazer). Seria, portanto, a colaboração de classe, quer dizer, o típico sindicalismo de empresa mais radical, contrapondose ao shop stewards (representantes sindicais de base que atuavam nas empresas) que foram enfraquecidos, à medida que os próprios trabalhadores (dez no máximo) do chão de fábrica e dos escritórios negociavam diretamente com o Conselho da Empresa. Segundo Antunes, citando a pesquisa de Carol Stephenson, o peso do desemprego e do contexto econômico depressivo no Reino Unido foram os fatores que propiciaram o envolvimento dos trabalhadores com o projeto da empresa, como também o distanciamento deles em relação aos sindicatos. Nesse sentido, realizou-se o consentimento operário e, como consequência, houve o refluxo da atuação sindical. 167 Já no discurso sobre a globalidade, Casanova nos alerta que, num clima ideológico em que se enfraquecem as propostas de soberania nacional e se fortalecem as propostas de globalidade, isto é, os direitos dos povos ficam obscurecidos face aos direitos dos indivíduos, as “lutas de libertação” e as “lutas de classes” aparecem como fenômenos terminados, como conceitos obsoletos. “Em vez de ‘libertação’ propõe-se a ‘inserção’ ou a ‘integração’, e, em 166 SOARES, Para onde vai o mundo do trabalho? Crise e perspectivas do movimento sindical. In: DIAS, Edmundo Fernandes et al. Op. cit., p. 156-157. 167 Cf. ANTUNES, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho, p. 82. 187 vez da luta social, a ‘solidariedade’ humanitária ou empresarial.” 168 Numa direção semelhante vai Immanuel Wallerstein, ao dizer que o programa liberal fez algumas concessões aos trabalhadores para evitar conflitos que ferissem a ordem burguesa: primeiro, concedeu o sufrágio progressivamente no mundo, cuja lógica era o voto como satisfação do desejo de participação, quer dizer, criando nos pobres um senso de pertencimento à sociedade; segundo, tentou aumentar a renda real das classes trabalhadoras por meio do bem-estar estatal, cujo objetivo era fazer com que os pobres ficassem contentes por terem saído da indigência, pois seria menos custoso fazer transferências de mais-valia para as classes baixas do que arcar com o custo de insurreições, desde que esses custos do bem-estar dos países desenvolvidos fossem pagos pelo Terceiro Mundo, via endividamento financeiro de seus governos; e, terceiro, criou uma identidade transnacional branco-europeia, visando substituir as lutas de classes pelas lutas nacionais e globais sociais, fazendo com que as “classes perigosas” (potencialmente revolucionárias) ficassem ao lado das elites. Para Wallerstein, portanto, “Com a estagnação mundial, a derrota dos guevarismos e o recuo dos intelectuais latino-americanos, os poderosos não mais precisavam das ditaduras militares, não muito mais em todo caso, para frear os entusiasmos esquerdistas.” 169 Pois, esse mecanismo da força militar foi substituído pelo mecanismo de convencimento ideológico. Para alimentar essa discussão complexa e ainda inconclusa, uma pergunta se coloca aos pesquisadores: para onde estão indo o mundo do trabalho e, conjuntamente, o movimento sindical, ou melhor, a sociedade em geral? Certamente, esta questão não tem uma resposta pronta, absoluta e final. Precisamos, primeiramente, recuperar o pensamento crítico de Marx sobre a sociedade capitalista, abandonado por grande parte dos movimentos de esquerda no mundo, para compreender as contradições deste sistema de reprodução sociometabólico do capital, ou, como bem diz Mészáros, saber como o movimento anticapitalista – socialista, comunista e até mesmo (neo)anarquista – se desenvolveu no decorrer dos dois últimos séculos XIX e XX, detectando seus erros e acertos para não repeti-los e, por fim, saber que consciência tinham ou têm os trabalhadores a respeito da sua condição histórica de explorados pelo capital ou se tinham ou têm ciência de como o capitalismo vem se reinventando nos seus processos cíclicos de crise de valorização do valor. 168 CASANOVA, Pablo González. Globalidade, neoliberalismo e democracia. In: GENTILI, Pablo (Org.). Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 46. 169 WALLERSTEIN, Immanuel. A reestruturação capitalista e o sistema-mundo. In: GENTILI, Pablo (Org.). Op. cit., p. 227. 188 Entretanto, partindo do pensamento marxiano (em a Miséria da Filosofia) de que “a classe operária deverá substituir a velha sociedade civil por uma associação que há de excluir as classes e seus antagonismos, e o poder político propriamente dito deixará de existir”170 como expressão oficial do antagonismo da sociedade civil, o movimento operário precisa deixar de ser setorial e parcial, sobretudo, de ter uma articulação puramente defensiva, pois o aprofundamento da postura defensiva representou um paradoxo histórico, à medida que o movimento sindical passou a ser o interlocutor do capital, deixando de ser objetivamente seu adversário estrutural. A postura defensiva representou, portanto, ostensiva ou tacitamente, a aceitação da ordem política e econômica do capitalismo como a estrutura necessária e prérequisito das reivindicações.171 Para Mészáros, “As limitações setoriais e defensivas do movimento operário, tal como as conhecemos, não podem ser superadas por meio da centralização política e sindical deste movimento.”172 Tal falha histórica é, para Mészáros, ainda mais acentuada pela globalização transnacional do capital, para a qual o movimento operário não tem resposta, obedecendo, assim, a uma “linha de resistência mínima” e caindo no canto da sereia do (neo)keynesianismo. Daí a impotência do movimento sindical face à legitimação política do capital, ou seja, o seu acomodamento ao neoliberalismo. A nosso ver, reconfigurar analiticamente a história da produção social capitalista, a partir de uma análise histórica, ontológica e dialética das condições sociais que resultam deste modo de se (re)produzir socialmente, é algo imprescindível para nos recolocarmos melhor no campo da luta anticapitalista. O capital tem um poder econômico-político-ideológico (tecnológico) gigantesco de se impor como último sistema social que a humanidade construiu, impedindo que o olhar humano vá para além da sua circunscrição histórica. Em outras palavras, por meio de suas instituições sociais, como o Estado, a escola, as instituições políticas, econômicas, jurídicas e policiais etc., o capitalismo se consolida enquanto sistema hegemônico e antagônico ao trabalho, como sujeito social absoluto. Por mais que se tente construir uma relação pacífica com os trabalhadores e desempregados, ao criar mecanismo de atenuação da miséria e pobreza social, o capitalismo se choca com suas contradições sistêmicas (desemprego), quer dizer, com os conflitos sociais e/ou os antagonismos de classe produzidos por ele mesmo. Na verdade, o capitalismo não consegue abolir a pobreza e curar suas feridas sociais e naturais pela via institucional do Estado ou mercado, por causa da sua incontrolável voracidade de aumentar lucro e intensificar mais ainda a superexploração do trabalho. 170 MARX. Miséria da Filosofia apud MÉSZÁROS, Prefácio à edição brasileira. In: Para além do capital, p. 22. MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 24. 172 Ibid., p. 26-27. 171 189 Para complementar esta reflexão, vale salientar uma discussão polêmica entre Lukács e Habermas, colocada por alguns autores, sobre “a centralidade do trabalho” que se dá no campo da teoria. Se para Lukács, o trabalho é a protoforma (forma originária) da práxis social, como fundamento ontológico das relações sociais, na medida em que se desenvolve uma relação metabólica entre o homem, a tecnologia e a natureza, para Habermas, é na esfera comunicacional ou da intersubjetividade, quer dizer, da linguagem e da cultura (o mundo da vida) que se dá o fundamento da práxis social. Na verdade, se para Lukács, o trabalho constitui-se na categoria central e fundante, protoforma do ser social, que possibilita a síntese entre teleologia e causalidade, dando origem ao ser social, ou seja, “sistema econômico” e “mundo vivido” (cultura, vivências sociais) formam uma totalidade, para Habermas, ao contrário, “mundo vivido” e “sistema” são dissociados, já que o mundo vivido (linguagem e cultura) é pressuposto do sistema econômico-social. A esfera da ação comunicativa habermasiana é o elemento fundante e estruturante do processo de sociabilização do homem. E aí Habermas tenta desconstruir a teoria do valor em Marx, ao descartar o trabalho vivo como a força produtiva mais importante da reprodução social, colocando no seu lugar a ciência e tecnologia (novo fetichismo). Há, portanto, a rejeição de Habermas à teoria da alienação, do valor e da centralidade do trabalho em Marx, este último como elemento fundante do ser social. Pois, para ele, há uma incapacidade marxiana de se compreender o capitalismo tardio, já que o welfare state, o keynesianismo econômico, pacificou os conflitos sociais, pois a razão comunicacional, a autonomização da intersubjetividade, possibilitou a construção de um diálogo social entre classes antagônicas rumo à emancipação, quer dizer, caberá a esfera da linguagem e da razão comunicativa um sentido emancipatório. 173 Ricardo Antunes, porém, desconstrói esta tese habermasiana, afirmando que o welfare state e o keynesianismo começaram a erodir com a crise do modelo de produção tayloristafordista (crise da acumulação produtiva, de valorização do valor), isto é, com o processo de reestruturação do capital nas décadas de 1980-1990. Tais soluções capitalistas de minimização da exploração do capital sobre o trabalho caíram por terra, e a tal pacificação dos conflitos sociais nunca existiu, mesmo depois do pós-guerra 1945. Desde o maior movimento dos trabalhadores e estudantes em maio de 1968, tivemos também, nas décadas de 1970, 1980 e 1990, várias manifestações grevistas e políticas contra as ofensivas capitalistas. Senão vejamos: 1) Na Inglaterra no governo Thatcher, as greves dos mineiros que durou 173 Cf. ANTUNES, Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho, p.160-161 et seq. Nos limites deste trabalho é impossível desdobrar mais essa discussão. Cf. também TEIXEIRA, Francisco. Fim da utopia da sociedade do trabalho. In: TEIXEIRA e FREDERICO, Marx no século XXI, p. 50-66. 190 quase um ano ou a greve dos portuários de Liverpool que durou 2 anos 3 meses e 29 dias, além de paralisações da Vauxhall Motors (subsidiária da General Motors); 2) na França, em novembro-dezembro de 1995, houve a maior greve dos funcionários públicos; 3) na Coreia do Sul, a greve dos metalúrgicos em 1997, com 2 milhões de operários paralisados; 4) nos EUA, a greve dos trabalhadores da United Parcel Service, serviços de correio (1997) e da General Motors (1998), além das rebeliões em Los Angeles (1992); 5) na Alemanha, greves contra cortes nos direitos sociais; 6) na Espanha, várias paralisações nacionais contra medidas de inspiração restritiva do governo Felipe Gonzalez; 7) no Canadá, nos anos 1990, greves dos trabalhadores da General Motors e servidores públicos; 8) por fim, a revolta de Chiapas no México, e no Brasil, as greves parciais de trabalhadores do setor público e privado e a resistência do MST às políticas neoliberais. Esses acontecimentos desfazem a tese da pacificação dos conflitos sociais de Habermas, via diálogo intersubjetivo ou práxis comunicacional, e reafirma com mais força a tese marxiana dos conflitos de classe numa sociedade da exploração do trabalho alheio pelo capital. Contudo, o movimento sindical de esquerda vive um recuo no seu processo de luta cotidiana174 de menor resistência nas duas últimas décadas (1990-2000), isto é, de menor intensidade de confronto com o capital e de uma maior negociação e parceria com o patronato. A euforia neoliberal também sucumbiu com a crise financeira de 2008-2009, a saber, crise do setor imobiliário americano, do crédito, da falta de liquidez e de regulação, espalhando-se para outros países europeus.175 Na verdade, o neoliberalismo começou a dar sinais de fragilidade no começo dos anos 1990 com a crise mexicana (dezembro de 1994 e janeiro de 1995), a partir das consequências da abertura comercial e financeira e, portanto, dos déficits comerciais crescentes, financiados por aportes de capitais voláteis e especulativos que tinham antes, como objetivo, fazer a estabilização econômica com base na âncora cambial (política monetarista). Segundo Gómez, na crise mexicana, 174 “Luta cotidiana”, no sentido do qual fala Marx, na Miséria da Filosofia, é a luta de guerrilha entre o capital e trabalho pela defesa do salário e redução da jornada de trabalho. Cf. Las huelgas y las coaliciones de los obreros. In:____. MARX, Karl. Miseria de la Filosofia. [s.l.]: Editorial Progresso, 1985. p. 140-141. 175 Cf. COSTA, Edmilson. A crise mundial do capitalismo e a perspectiva dos trabalhadores. Disponível em: <http://resistir.info/crise/a_crise_do_capitalismo.htlm:>. Acesso em: 06 mar. 2011. Para este autor, esta crise é uma crise do conjunto do capitalismo, ou seja, o sistema todo está doente e seus fundamentos estão sendo questionados pela crise mundial. Na verdade, é uma crise da superacumulação de capitais e a impossibilidade de valorizá-los na esfera da produção. Os Estados dos países desenvolvidos socializaram esta crise com os trabalhadores, pois injetaram até o momento mais de US$ 7 trilhões na economia para salvar especuladores. Costa, portanto, afirma que o processo de desregulamentação nos EUA transformou seu sistema financeiro e suas finanças internacionais num cassino das operações especulativas jamais vistas na história do capitalismo, dado o tamanho do deslocamento entre a esfera produtiva e a órbita da circulação monetária. Enquanto o PIB mundial está em torno de US$ 55 trilhões, o valor escritural (notional) das operações financeiras especulativas estava em torno de US$ 683,7 trilhões. A magnitude destes números mostra a intensidade da crise e da incapacidade do setor produtivo, que produz mais-valia, de remunerar a especulação. 191 [...] o governo dos Estados Unidos e as instituições monetárias internacionais adiantaram nada menos que 52 bilhões de dólares – o maior empréstimo já concedido na história do capitalismo [na época] – para evitar que a bancarrota do estado mexicano desencadeasse uma crise financeira mundial.176 Para Chenais 177, o caráter imperfeito da crise mexicana foi dado pela fraqueza dos mecanismos vitais para injetar liquidez financeira no sistema internacional, ou seja, incapacidade de transformar títulos da dívida do Estado em dinheiro através dos meios financeiros, mas, sobretudo, pela fraqueza dos mecanismos de socialização dos prejuízos. Richard Farnetti já afirma que o fundo de investimento americano-canadense – o Friedberg Commodity Fund, dirigido por Steve Hanke, – foi, sozinho, responsável por mais de 50% das transações com o peso mexicano, precipitando, portanto, a crise da dívida, com todas as consequências devastadoras que conhecemos como a fuga dos capitais especulativos. Segundo Farnetti, os fundos de pensão e investimentos são os principais responsáveis pela crise cambial no mundo; e o FMI fez uma estimativa de que 55% das transações nos mercados de câmbio são realizadas por investidores norte-americanos e 14,5% por fundos britânicos.178 Nesse sentido, de um modo geral, para Chenais, “o processo de mundialização financeira implicou o enfraquecimento dos sistemas bancários da maioria dos países, em função, tanto das formas que tal mundialização assumiu, quanto da transição para o regime de finanças de mercado.”179 Também a crise financeira na Ásia, no verão de 1997, foi outro sinal de enfraquecimento do neoliberalismo na prática, começando pela Tailândia com o colapso financeiro de Thai Baht, quando o governo tailandês tornou o câmbio flutuante ao desatrelar o baht do dólar, justamente para impedir a fuga de capitais. O baht tailandês teve uma queda de 50% frente ao valor que tinham seis meses antes, assim como a rupia indonésia. Depois, a crise se espalhou pelo sudeste asiático, Hong Kong, Taiwan, Malásia, Filipinas, Coreia do Sul, Cingapura e Japão, afundando cotações monetárias, desvalorizando mercado de ações e precipitando a dívida pública, tornando-se, assim, a primeira crise de mercados globalizados. Conforme Chenais180, o ponto de partida da crise asiática foi a incapacidade desses países de manter suas moedas atreladas ao dólar, por causa da deterioração, cada vez mais séria e veloz, de suas balanças comerciais. Na hipótese de Chenais, a crise, que teve origem com o crash 176 GÓMEZ, José Maria. Globalização da política, mitos, realidades e dilemas. In: GENTILI, op. cit., p. 154. Cf. CHENAIS, François. Mundialização financeira e vulnerabilidade sistêmica. In: CHENAIS, F. (Org.). A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 265. 178 Cf. FARNETTI, Richard. O papel dos fundos de pensão e de investimentos coletivos anglo-saxônicos no desenvolvimento das finanças globalizadas. In: CHENAIS, op. cit., p. 200-202. 179 Cf. CHENAIS, Mundialização financeira e vulnerabilidade sistêmica. In:_____. Op. cit., p. 264. 180 Cf. Ibid., p. 300. 177 192 tailandês, não é nem “asiática”, nem meramente “financeira”, mas possui um potencial de propagação em escala mundial. Do outro lado, tivemos a crise argentina que foi marcada pelo descontrole dos gastos (desequilíbrio fiscal), pela explosão da dívida pública e pela paridade artificial do câmbio entre o peso e o dólar (duas moedas paralelas usadas no seu mercado interno), pelo elevado desemprego, pela crise da Rússia em 1998 e desvalorização da moeda real no Brasil em 1999. De fato, a Argentina passou por uma recessão de quatro anos, com onze planos econômicos consecutivos desde o governo De La Rua. Sua dívida era na época de US$ 147 bilhões sob a responsabilidade do ministro Domingos Cavallo no governo de Carlos Menen (1989-1999), cuja dívida era em 90% atrelada ao dólar. Tudo isso resultou no “corralito” (bloqueio dos depósitos bancários pelo governo), devido aos excessivos saques que estavam ocorrendo nos bancos pelos depositantes, e no pedido de moratória ao FMI etc.181 Todo esse contexto de implantação do neoliberalismo e também suas crises financeiras bancárias fizeram com que o movimento sindical ficasse acuado na sua linha combativa e de classe. Vários autores analisaram esse refluxo e/ou essa cooptação de parte dos movimentos de esquerda, seja sindical ou político. Senão vejamos alguns: Noam Chomsky, num artigo intitulado “Democracia e mercados na nova ordem mundial”, coloca que a crise social e econômica é atribuída a inexoráveis forças dos mercados e atribui a isso diversos fatores, sobretudo, a automação e ao comércio internacional. Para ele, o fator automação tem como objetivo muito mais de ter o poder sobre o controle da produção do que efetivar o lucro ou a eficiência, quer dizer, a automação “foi projetada para desprofissionalizar os trabalhadores e subordiná-los ao management”182, como forma de dominação e controle. Pablo González Casanova afirma que as lutas de libertação e de classes estão sendo substituídas pelas lutas dos direitos individuais, ou melhor, em vez da libertação, propõe-se a “inserção” ou a “integração”. O empobrecimento da população e o enfraquecimento dos trabalhadores, juntamente com o objetivo de dominar o antigo movimento operário e de eliminar as conquistas 181 Sobre a crise e recuperação da economia argentina ver Vinícius Betsur Alvarenga Fernandes. Argentina: Crise e Recuperação. Disponível em: <http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/>. Acesso em: 06 mar. 2011. 182 Cf. CHOMSKY, Noam. Democracia e mercados na nova ordem mundial. In: GENTILI, Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial, p. 28. 193 trabalhistas ou rurais, provocaram a ampliação de políticas repressivas; além disso, o fantasma do desemprego e da exclusão assustava os trabalhadores e parte da classe média para exercer qualquer tipo de combatividade. 183 Immanuel Wallerstein afirma que o Estado liberal conseguiu domar as classes perigosas no centro, ou seja, os proletários urbanos mais organizados, sindicalizados e politizados. As lutas de classes foram substituídas pelas lutas nacionais e globais e, dessa forma, as classes perigosas ficariam ao lado das elites. Muitos esquerdistas de ontem viraram, segundo ele, os arautos do mercado ou procuraram outras trilhas alternativas. Mas o maior êxito da estratégia liberal mundial se deu a partir do momento em que os movimentos da velha esquerda do século XIX chegaram ao poder estatal, ou seja, comunistas na União Soviética, movimentos de libertação nacional na África e na Ásia, social-democracia na Europa Ocidental, populista na América Latina, porém, uma euforia enfraquecedora, à medida que eles ingressaram na máquina do sistema histórico capitalista. Tais movimentos deixaram de ser antissistêmicos e passaram a ser pilares do sistema capitalista sem deixar de gargarejar uma linguagem esquerdista.184 Para Wallerstein, a derrota do leninismo foi uma catástrofe para os poderosos, porque foi a derrota do reformismo, isto é, “o que foi derrubado em 1989 foi exatamente a ideologia liberal.”185 Alain Bihr assinala que o movimento operário está desnorteado com a crise estrutural do capitalismo. Um movimento que, imbuído pela ideologia do fetichismo de Estado e pelo reformismo social-democrata, não consegue encontrar uma saída para sua crise, devido à negativa das classes dominantes de renovar o compromisso social keynesiano, isto é, os benefícios e direitos sociais adquiridos pelo proletariado no período fordista de produção. As centrais – CFDT francesa, a CGIL italiana, a DGB alemã –, sabendo da impossibilidade de renovar os termos do antigo compromisso social sem modificá-los, lutam para obter novos benefícios em termos de redução do tempo de trabalho, de participação democrática na vida da empresa, formação profissional, direitos de supervisão sindical das orientações micro e 183 Cf. CASANOVA, Pablo González. Globalidade, neoliberalismo e democracia. In. GENTILI, op. cit., p. 58. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. A reestruturação capitalista e o sistema-mundo. In: GENTILI, op. cit., p. 232, 236. 185 Cf. Ibid., p. 242. 184 194 macroeconômicas etc. Conforme Bihr, o movimento operário está solapado pelas transformações ocorridas nos processos de produção e consumo que resvalam para o mesmo efeito global: a fragmentação do proletariado (qualificados, semiqualificados e desqualificados) que gera a atomização da luta sindical mais geral. Na verdade, o desenvolvimento do desemprego e da instabilidade dá origem a um sentimento de insegurança entre o proletariado, agravando a concorrência entre si, aquilo que Marx, na Miséria da Filosofia, mais combatia para a unificação do movimento proletário. É o fenômeno da desmassificação e pulverização dos trabalhadores. Para Bihr, as organizações e as práticas sindicais têm uma péssima reputação hoje por parte da burguesia e dos próprios trabalhadores. A crise é de eficácia (na defesa dos próprios interesses imediatos dos trabalhadores), de representatividade (diminuição do poder de influência, incapacidade de mobilizar, queda no número de adeptos) e de legitimidade (cooptação de determinados dirigentes sindicais pelo staff administrativo burguês).186 Para Boito Jr., a classe operária sempre foi fragmentada devido ao seu grau de qualificação, nível salarial, condições de trabalho e tamanho e poder econômico das empresas em que trabalham diferentes setores da classe operária, ao seu próprio corporativismo das lutas; enfim, o mito do operariado homogêneo foi produzido pela pura observação superficial. Além disso, para ele, o fato mais importante para se entender o refluxo e a moderação do movimento sindical é a ofensiva neoliberal, como um fenômeno internacional, vinculado a fatores econômicos e políticos. A diminuição da atividade grevista está diretamente ligada a esse fato, sobretudo, ao desemprego estrutural187, logo a um processo de dessindicalização em massa. O que ainda salvou o movimento sindical foram as paralisações do funcionalismo público contra as reformas do Estado neoliberal, sobretudo, no Brasil e na França. Portanto, a predisposição para a luta e atividade sindical caiu bastante e, nesse sentido, a luta se restringiu a manter os direitos sociais já conquistados. Edmundo Fernandes Dias afirma que sindicatos e partidos de esquerda se 186 Cf. BIHR, op. cit., p. 78, 79, 81, 82, 99, 100, 232 e 233. Cf. Também RAMALHO e SANTANA, Trabalhadores, Sindicatos e a Nova Questão Social. In: Idem (Orgs.). Além da fábrica, p. 26: “O desemprego tornou-se um poderoso fator de desmobilização sindical. Embora os sindicatos venham tentando representar os interesses dos desempregados, o fato de estarem enfraquecidos no relacionamento com as empresas acaba por torná-los completamente voltados para a defesa do interesse daqueles que ainda têm um emprego.” 187 195 associaram (nem todos) ao capitalismo na busca de uma estabilidade para garantir a “parceria antagônica”, abandonando qualquer pretensão revolucionária, para exercer um sindicalismo de resultados. Perdeu-se, portanto, segundo Dias, a dimensão da luta de classes como força e horizonte a ser seguido. O movimento sindical se refluiu para o campo econômicocorporativo, abandonando, por vez, a perspectiva do momento ético-político, id est, revolucionário. Já para David Maciel e Paulo Faria, com a criação das novas condições econômicas, políticas e ideológicas para uma nova etapa de acumulação, uma nova forma de subordinação dos trabalhadores ao capital se efetivou, ou seja, os trabalhadores foram desorganizados enquanto classe e reinseridos numa posição subalterna. Para isso, foi necessário atomizá-los, evitando sua unidade de classe e independência política e ideológica, cooptando-os para o projeto de modernidade proposto pelo capital. Em outras palavras, a despolitização e desideologização das lutas dos trabalhadores foram formas de se domesticar o conflito social. Daí, segundo Maciel e Faria, o pósmodernismo veio funcionar como ideologia da desreferencialização do real (desvinculando a realidade do seu processo de produção) e da dessubstancialização do sujeito (a perda do sujeito como agente social inserido nas relações concretas).188 Por fim, para José Ricardo Ramalho e Marco Aurélio Santana, o sindicato como instituição vive numa “pane”: “Pane de discurso, pane de ideal, pane de teoria, sobretudo.”189 E continua: “Termos como ‘classe operária’, ‘proletariado’, ‘luta de classes’, que faziam sentido há dez anos, não são mais do que uma língua escutada apenas por iniciados e cúmplices que as têm como relíquia.”190 Já para Marco Aurélio Antonio de Oliveira, na segunda metade da década de 1990, um dos fatores desse refluxo sindical está ligado à pulverização das negociações coletivas, reiterada pela própria pulverização da organização sindical, que se traduz na sua disseminação por empresas. Isso resultou no particularismo de interesses dos trabalhadores, pois a desindexação salarial, descentralização da negociação coletiva, aumento brutal do desemprego e desestruturação do parque produtivo nacional puseram em xeque 188 Cf. DIAS, op. cit., p. 7-54, 79-120. RAMALHO e SANTANA (Orgs.). Op. cit., p. 26. 190 RAMALHO e SANTANA (Orgs.). Loc. cit. 189 196 a representatividade, o poder de barganha e as estratégias das entidades sindicais entre os diferentes segmentos de trabalhadores.191 Acreditamos, no entanto, que o movimento sindical como um todo ainda não está falido como instituição de luta a favor da emancipação do trabalho em face do capital, isto é, a favor da emancipação humana. Tomando emprestada a reflexão de alguns destes autores como Huw Beynon, em seu artigo “O sindicalismo tem futuro no século XXI?”, quando ele cita Marx e Engels do Manifesto Comunista – “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos!”, mesmo sabendo que apenas 1/8 dos trabalhadores do mundo está organizado, podemos fazer algumas inferências: é preciso ter um sindicalismo solidário, com um horizonte de luta mais universal, ou seja, buscar a solidariedade como meta, a partir de uma reivindicação mais coletiva das demandas; faz-se necessário, portanto, buscar uma nova lógica, um novo vocabulário de motivos, para haver a solidariedade entre os trabalhadores, a saber, o típico sindicalismo comunitário, mais dinâmico, aberto às novas demandas, de escopo institucional e informado por uma política socialista renovada; efetivar também o sindicalismo democrático, como a melhor maneira de mobilizar os trabalhadores, quer dizer, o sindicalismo militante e político que saiba a hora de recuar ou de enfrentar uma ofensiva capitalista; um sindicalismo que possa agir com certa independência dos partidos, mas em colaboração com eles quando se visa à luta universal; um sindicalismo que se associe a outros movimentos sociais com o objetivo de ampliar sua base de atuação política em defesa dos direitos sociais; um sindicalismo transnacional que faça uso do boicote de poder e consumo, das redes de advocacia transnacional; que exerça poder de pressão pelos direitos humanos; e organize os trabalhadores por locais de trabalho. Sabemos que os sindicatos podem ter outro papel importante de atuação, conforme Adalberto Moreira Cardoso, que é os de serem centros para construir e promover visões de mundo, identidades sociais e ações políticas. Para ele, porém, a despolitização da economia limita o campo da atuação sindical à salvaguarda das posições de mercados de seus representados, quando os trabalhadores têm uma sensação de insegurança socioeconômica, e isso reduz muito o potencial expressivo, identitário ou político de ação dos sindicatos. 192 No entanto, conforme Bihr, é preciso reconstruir os sindicatos e desenvolver uma prática sindical como uma estratégia de contrapoder que permita aos trabalhadores reconquistar um poder sobre suas condições sociais de existência. 191 Cf. OLIVEIRA, Marco Antonio de. Tendências recentes das negociações coletivas no Brasil. In: SANTANA e RAMALHO (Orgs.). Op. cit., p. 290, 294. 192 CARDOSO, Adalberto Moreira. Os sindicatos e a segurança socioeconômica no Brasil. In: SANTANA e RAMALHO (Orgs.). Op. cit., p. 265-266. 197 Nesse sentido, nas palavras de Bihr, é preciso se reconciliar com os princípios do sindicalismo revolucionário, adaptando-os às condições atuais da luta de classes, a saber: buscar a autonomia do sindicalismo em relação ao patronato e também ao Estado, partidos e mediações políticas em geral, mas pondo ênfase na ação direta dos trabalhadores como único modo de luta para garantir sua emancipação com o tempo; efetivar uma relação não dirigista e não burocrática na organização sindical face às massas dos trabalhadores, ou seja, defender o princípio da democracia direta no quadro da estrutura sindical federalista, apostando na grande autonomia das organizações de base; articular ação reivindicativa imediata e a luta revolucionária no seio do próprio sindicalismo sem recorrer às mediações externas; privilegiar as ações e as estruturas interprofissionais e profissionais (corporativas), isto é, superar a divisão dos status das categorias; e estimular a vontade de intervenção tanto dentro como fora do trabalho, objetivando se encarregar das lutas referentes ao conjunto de elementos e aspectos do proletariado. É por isso que Bihr propõe que “as organizações sindicais devem manter uma relação não-dirigista com as massas, trabalhando para o desenvolvimento de suas capacidades de auto-organização e de auto-reflexão.”193 Assim sendo, podemos afirmar que a formação política dada nos sindicatos tem este importante papel teórico-educativo, no sentido de fornecer as ferramentas reflexivas e de análises da conjuntura histórica, desenhada no processo contraditório da crise do capitalismo. Como diz Boito Jr., se, por um lado, as correntes de esquerda sindicais (no Brasil) negam o neoliberalismo como um corpo coerente de política econômica e social, mesmo evitando, na maioria das vezes, sem denunciar radicalmente o capitalismo como sistema destrutivo da humanidade e da natureza, por outro, restringem o universo de análise e da discussão política àquilo que se passa no interior do mundo do trabalho, e pior, no mundo do trabalho dos países desenvolvidos, ou seja, afirmam que é necessária uma estratégia para ultrapassar a ordem do capital, mas não esclarecem o conteúdo prático dessa orientação quando aplicada ao sindicalismo,194 justamente porque a maioria das lideranças não possui, a nosso ver, uma visão teórica clara e, diria, científica, ou a consciência teórica, de que fala Paulo Tumolo, como a consciência mais avançada, para verbalizar e esclarecer as contradições e impedimentos do sistema capitalista, visando a atender as demandas imediatas dos trabalhadores. 193 194 BIHR, op. cit., p, 236. Cf. BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 231-232. 198 CAPÍTULO 3 O MARXISMO NA FORMAÇÃO HUMANA COMO INSTRUMENTO DE REVOLUÇÃO PARA E PELO SOCIALISMO-COMUNISMO 199 3.1 Concepção de Formação Humana em Marx Primeiramente, o conceito de formação humana, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e Moderna, até chegar a Contemporaneidade, passou por várias ressignificações, inclusive com uma nova ressignificação a partir do materialismo histórico-dialético. Senão vejamos: na Grécia Antiga, a formação humana visava engendrar o homem ético-político, espiritualmente desenvolvido para a vida política (Paideia); na Idade Medieval, o objetivo era formar o homem ético-religioso, lapidando e refinando o espírito humano, a partir das Sagradas Escrituras; na Modernidade, a formação era pari passu (ao mesmo tempo) de caráter humanista e científico (Renascimento, Iluminismo e Cientificismo), isto é, de caráter civilizador, ligado à ideia de progresso da ciência e de evolução da humanidade; e, na Contemporaneidade, busca-se uma formação “integral” que visa formar o indivíduo para a vida e o pleno desenvolvimento de sua personalidade.1 Em outras palavras, com o advento do capitalismo, sob a hegemonia da burguesia, o objetivo da formação humana é disciplinar o homem e treinar suas habilidades para o trabalho, ou melhor dizendo, fazer com que o indivíduo enfrente as dificuldades do cotidiano social. Como bem diz Suchodolski, Na luta contra o feudalismo, a burguesia destruiu os laços tradicionais da ordem social feudal e formulou princípios educativos que se apoiavam no direito da natureza e da razão. O programa de ensino baseava-se na formação e educação da consciência. O ensino burguês opunha ao ensino feudal, que adaptava o carácter e o conteúdo dos esforços educativos ao ser social, ao “nível” do aluno, a concepção de que o grau de educação que o indivíduo alcançava podia e devia ser determinado pelo seu próprio progresso social. [...] E a “educação da consciência” começou a referir-se cada vez menos à forma real da existência do homem para se converter em algo “autônomo”, “espiritualizado” e ao mesmo tempo mais infrutuoso para a vida e para a sociedade. Assim, o princípio da “educação da consciência” foi um princípio progressista, revolucionário, como método de transformação da vida na luta da burguesia contra o feudalismo, mas, no posterior desenvolvimento histórico, na época do triunfo da burguesia, converteu-se, de modo cada vez mais acentuado, num princípio utópico e reaccionário.2 Certamente, quando o capitalismo começa a se desenvolver historicamente, os fundamentos de uma concepção radical da formação humana são lançados, ou seja, uma formação para o trabalho que se divide em trabalho manual e trabalho intelectual, pois enquanto uns elaboram as formas de se produzir materialmente os bens necessários para o 1 Cf. OLINDA, Ercília M. B. O conceito de formação integral no projeto formativo moderno – aprendendo com a experiência cearense. In: OLINDA, Ercília Maria Braga (Org.) et al. Formação humana: liberdade e historicidade. Fortaleza: Editora UFC, 2002. p. 118 et seq. (Coleção Diálogos Intempestivos, nº 16). Cf. também TONET, Ivo. Educação e formação humana. In: JIMENEZ, Susana; OLIVEIRA, Jorge Luís de; SANTOS, Deribaldo (Orgs.). Marxismo, educação e luta de classes: teses e conferências do II Encontro Regional Trabalho, Educação e Formação Humana, p. 83 et seq. 2 SUCHODOLSKI, Bogdan. Teoria marxista da educação. Lisboa: Estampa Editorial, 1976. v. III, p. 49. 200 consumo social, outros executam a atividade de produção desses bens à sociedade, muitas vezes supérfluos, artificiais ou mesmo desnecessários. Noutras palavras, enquanto uns definem, elaboram e dirigem o processo de produção, outros executam essa produção, isto é, enquanto uns são planejadores, outros são executores. O pensar e o fazer têm aí sua unidade quebrada no processo da produção capitalista; ou como diz Marx, há uma separação entre trabalho manual e trabalho intelectual nesse processo. Desta feita, segundo Marx, Estabelece [então] uma divisão, igualmente radical, entre os tipos de atividade e os tipos de aprendizagem, prolongando-se em uma divisão social e técnica que interfere no desenvolvimento do indivíduo e constitui o ponto chave dessa trama em que se produz a exploração dos trabalhadores.3 Tal reflexão, portanto, nos leva a ter uma sucinta visão histórica de como o processo educativo humano se desenvolveu para formar o ser humano que somos hoje e, assim, ir para além de uma educação domesticadora, classista, que nos restringe simplesmente a ser um homo faber ou homo labor4, construtor de uma sociedade baseada na reprodução fetichista e ampliada do capital, sem levar em conta a formação do ser humano em todas as suas dimensões humanas e/ou naturais: a formação integral (omnilateral). Dessa maneira, a formação para o trabalho, com o fim de acumular riqueza, foi um salto radical na concepção de formação humana, pois se articularam (e se articulam) espírito e matéria, subjetividade e objetividade, interioridade e exterioridade do ser social. Se na sociedade primitiva era um processo em que todos tinham acesso ao patrimônio material e espiritual da comunidade, na sociedade classista a formação humana tornou-se diferenciada, tanto para as classes dominantes quanto para as classes dominadas, ou seja, uma formação dualista: uma para dirigentes e outra para dirigidos. 5 Como diz Marx, na VI Tese sobre Feuerbach, “o homem é o conjunto das suas relações sociais”, ou seja, o homem é um ser historicamente social; e este é o ponto de partida do materialismo marxista: a sociedade humana. Se quisermos compreender o tipo de formação humana que o marxismo propõe, é preciso apreender em Marx a sua concepção de homem, ou melhor, o tipo de homem que é preciso formar para revolucionar a história com suas estruturas sociais. Feitas tais considerações, passemos então a expor a concepção de formação humana em Marx. Algumas de suas obras, seja as de juventude ou intermediárias, seja as da maturidade, estão entremeadas de comentários sobre a sua concepção de homem e de 3 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: Editora Moraes Ltda., 1992. p. 3. (Grifo nosso). 4 Sobre a diferença entre o conceito de labor e work, cf. CALVET, Thereza. A categoria de trabalho (Labor) em Hannah Arendt. In: Ensaio 14. São Paulo: Editora Ensaio, 1985. p. 131-168. 5 Cf. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. 201 formação humana a partir da educação. Educação aqui não só no sentido escolar formal, mas uma educação realizada na luta do proletariado pela sua emancipação da alienação do capital. Podemos encontrar algumas pistas teóricas, no Manifesto do Partido Comunista, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, em A Ideologia Alemã, em O Capital e também na Crítica ao Programa de Gotha. Toda essa reflexão visa justamente formar o homem para ser instrumento de transformação social, para abolir as estruturas e superestruturas institucionais da sociedade capitalista e construir um modelo de sociedade socialista num período de transição para o comunismo. Daí a complexidade do conceito de formação ou educação humana no pensamento de Marx e do materialismo histórico como um todo. No Manifesto Comunista6, Marx e Engels fazem uma menção sobre educação, dizendo que é preciso substituir a educação doméstica pela educação social, e acrescenta Laski: “a educação burguesa significa subordinação aos fins da classe dominante.” 7 No entanto, Marx e Engels afirmam que a educação do burguês é também social e determinada pelas condições sociais em que educam seus filhos, pela intervenção direta ou indireta da sociedade e por meio da escola. O que eles desejam é transformar este tipo de educação, arrancando-a da influência da classe dominante. Portanto, Marx e Engels consideram repugnantes as declamações burguesas sobre educação e família, devido à ação da indústria moderna, sobretudo, porque esta destrói os laços familiares dos trabalhadores, quando transformam as suas crianças e mulheres em meros artigos de comércio e instrumentos de trabalho. No entanto, Marx e Engels ressaltam algumas medidas – mesmo que pareçam insuficientes do ponto de vista econômico, mas importantes para fazer as novas modificações na ordem capitalista e, assim, transformar radicalmente o modo de produção –, e dentre elas temos o ponto dez do Manifesto, a saber, a Educação gratuita para todas as crianças, em escolas públicas, em combinação com a abolição do trabalho infantil. 8 É mister enfatizar que o Manifesto é um programa de princípios e ações para orientar a luta dos trabalhadores, quer dizer, não deixa de ser um programa de ação prática de formação política da classe trabalhadora. Daí Laski afirmar, entre outras coisas, que o objetivo do Manifesto “é insistir na solidariedade internacional, ser a vanguarda em cada país, com seu profundo conhecimento teórico do movimento da história, cooperando na conquista do poder pelos trabalhadores.”9 Daí o lema de Engels no Prefácio à Edição Alemã de 1890 no 6 Cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, Harold J. O manifesto comunista de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 109. 7 LASKI, O manifesto comunista de Marx e Engels, p. 32. 8 Cf. Ibid., p. 113. 9 LASKI, op. cit., p. 31. 202 Manifesto Comunista: “Proletários de todos os países, uni-vos!”10 Isso denota que o Manifesto é, desde já, um programa de formação ou educação do homem revolucionário, cujo objetivo é [...] tornar a classe trabalhadora consciente da sua grande missão histórica, fazendo-a compreender o caráter profundo da urgência de que os próprios Marx e Engels estavam possuídos. Sua crítica rude pretende desmascarar os fundamentos da ordem vigente, cuja dissimulação é uma das maneiras da civilização capitalista esconder dos trabalhadores seus verdadeiros propósitos, tornando-os seus escravos. 11 Ora, como diz Laski, se a originalidade do Manifesto não reside na doutrina que anuncia, mas na maneira de como ele se fundamenta no grande acervo literário, nem sempre socialista, expressando de modo claro as várias doutrinas que estão no cerne do marxismo clássico, então, sua originalidade está, sobretudo, na maneira pela qual essas doutrinas se combinam num conjunto lógico.12 Portanto, podemos inferir que o Manifesto é um programa formativo da educação revolucionária do proletariado que tem como finalidade preparar teoricamente os trabalhadores para a sua luta emancipatória do domínio dos capitalistas, enquanto classe exploradora da sua força de trabalho e da negação da sua vida humana. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx tem como preocupação a alienação do homem nas suas várias formas: alienação do objeto de seu trabalho, alienação da sua atividade de trabalho, a sua autoalienação (perda de si mesmo) e a sua alienação em relação aos outros homens. Segundo Erich Fromm13, Marx tinha como meta a construção de uma condição histórica revolucionária que pudesse realizar a liberdade, a dignidade e atividade prazerosa (o trabalho) do homem em todas suas dimensões. Marx descobriu que o ser humano é determinado pelo seu modo de vida e que, se ele quer mudar a si mesmo, tem que revolucionar as circunstâncias que mantêm este modo de viver. Para isso, é preciso abolir as estruturas socioeconômicas que promovem a cupidez humana que aliena o homem da sua condição genérica. Se o objetivo é construir historicamente uma comunidade social, onde os homens possam desenvolver suas capacidades e/ou talentos naturais de forma livre e em harmonia com os outros, nada mais ético do que construir a luta social que vise abolir a estrutura econômica do capital. Em várias partes dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx traduz a realidade estranhada e embrutecida do homo faber nas condições sociais de produção capitalista. Na condição de trabalhador estranhado, o homem perde sua condição de ser genérico, perde a si mesmo enquanto humano, ou seja, o capitalista se apropria de maneira sórdida da sua vida 10 MARX e ENGELS, Manifesto do Partido Comunista, in LASKI, op. cit., p. 87. LASKI, op. cit., p. 27. 12 Cf. LASKI, op. cit., p. 28. 13 Cf. FROMM, Erich. Prefácio. In: MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 13. 11 203 humana, do seu tempo de vida, da sua capacidade de trabalho. Uma vida que é reduzida a um valor salarial que nada mais é do que o pagamento do seu sacrifício humano no seu tempo de vida finito para realizar um trabalho escravo, no qual a liberdade se encontra totalmente alienada e a serviço da cobiça capitalista. 14 Neste sentido, o homem formado na sociedade capitalista, além de ter um trabalho extenuante e morte prematura, é o homem completamente dependente do trabalho unilateral, mecânico, ou seja, ele fica reduzido física e espiritualmente à condição de uma máquina, transformando-se de ser humano em simples atividade abstrata. Portanto, o homem fica obrigado “a vender-se a si mesmo e a sua humanidade” 15 para aumentar os lucros do capital. O objetivo da economia de interesses privados é, sem dúvida, criar a miséria social, o sofrimento da maioria infeliz para fazer a máquina capitalista de moer carne humana funcionar. Nas palavras de Marx, “O trabalho é vida e se a vida não for todos os dias permutada por alimento depressa sofre danos e morre. Para que a vida do homem seja uma mercadoria, deve então admitir-se a escravatura.”16 A descrição que Marx faz do homem na sociabilidade capitalista é de denúncia da perversidade na sua forma econômica de produzir riqueza social. O capitalismo forma o homem-mercadoria, mas a mais miserável mercadoria que se pode comprar. Como mesmo ele afirma, O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior for o número de bens que produz. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção directa a desvalorização do mundo dos homens.17 A partir destas proposições é que Marx faz o combate teórico, crítico, ao tipo de formação econômico-social que oprime o homem na sua condição humana, isto é, o homem se esgota a si mesmo, tanto mais objetos ele produz, tornando o mundo das coisas mais poderoso. Se o capitalismo busca formar o homem alienado, estranhado, a luta emancipatória operária socialista tem que desconstruir essa situação de perversão humana, quer dizer, denunciar a natureza do trabalho capitalista sob a forma de alienação-estranhamento, aquilo que a economia política procura esconder: a imediata relação de exploração entre o trabalhador e a produção capitalista. A intenção de Marx é resgatar o homem como ser genérico enquanto ser universal e livre. O que constitui o caráter genérico do homem é a sua atividade vital, livre e consciente, 14 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 104. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 107. 16 Ibid., p. 116. 17 Ibid., p. 159. 15 204 isto é, a vida produtiva como único meio necessário para manter sua existência física. Por isso Marx diferencia o homem do animal quando este produz sob o domínio da necessidade física imediata, enquanto o homem pode produzir verdadeiramente, em outra situação social, na liberdade de tal necessidade. Para isso, é preciso entender a base física na qual a sua vida genérica se dá, isto é, as relações sociais de produção capitalista. Tais relações configuram ou formam o trabalhador alienado, a saber, a relação da propriedade privada com o trabalho alienado, a relação entre as propriedades privadas, a relação entre o trabalhador e a produção etc. e até mesmo a relação entre as forças de trabalho. Se alienação do trabalho para Marx significa servidão humana, então o trabalhador ou o trabalho é servo do salário que nada mais nada menos é o preço da sua reprodução enquanto trabalhador. Mas qual homem Marx vislumbra formar? O homem livre, ativo, criativo, dono de seu tempo de vida, de seu corpo, ou seja, o homem que é senhor de si mesmo em que uma nova modalidade de apropriação da riqueza produzida por ele seja capaz de realizar plenamente todas suas potencialidades humanas, isto é, sua inteligência, sua capacidade física, seu modo de ser humanamente aberto às possibilidades ontológicas. Para Marx, só no comunismo essa realização genérica do homem é possível, porque é uma sociabilidade que permite a igualdade social das pessoas. Lutar para realizar a personalidade do homem, sua individualidade não egoísta, é o objetivo final da construção de uma sociedade comunal evoluída técnica e cientificamente. Como Marx mesmo diz, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, o comunismo é a reintegração ou o retorno do homem a si mesmo 18, ou, melhor dizendo, é a real apropriação da essência humana pelo e para o homem ou retorno do homem a si mesmo como ser social, verdadeiramente humano, pleno e consciente. Então a concepção de formação humana em Marx é a de um homem que se humaniza a partir de seu desenvolvimento físico e intelectual, solucionando o conflito entre essência e existência, objetivação e autoafirmação, liberdade e necessidade, enfim, entre indivíduo e espécie. De acordo com Marx, “Assim, a objectivação da essência humana, tanto do ponto de vista teórico como prático, é necessária para humanizar os sentidos do homem e criar a sensibilidade humana correspondente a toda riqueza do ser humano e natural.”19 Dessa maneira, Marx aponta o caminho a ser percorrido quando afirma que a pobreza do homem, na perspectiva do socialismo, tem um significado humano e, portanto, social. Ou seja, a pobreza leva o homem a sentir como necessidade a maior riqueza que são os outros homens. Diz Marx que “Um ser só é independente quando dono de si mesmo, e só é dono de 18 19 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 192. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 200. 205 si próprio quando a si mesmo deve a existência.”20 Na medida em que o ser humano vive pelo favor de outro, ele é um ser dependente, ao qual lhe deve a manutenção de sua vida. Assim, para Marx, o comunismo, como fase de negação da negação para o subsequente desenvolvimento histórico, é o fator real e necessário da emancipação e reabilitação do homem. Segundo Marx, só um novo modo de produção e um novo objeto da produção é que podem realizar a riqueza das necessidades humanas, isto é, efetivam-se, de fato, os novos poderes e enriquecimento humanos. Ao contrário do socialismo e/ou comunismo, na sociedade da propriedade privada burguesa dos meios de produção, acontece o inverso, a saber, criam-se novas necessidades humanas na forma de sacrifício, de nova dependência, levando a um falso prazer ou desprazer que o leva à ruína. O combate crítico ao homem alienado revela nas reflexões de Marx que a sociedade precisa abolir o inumano no homem, porque o sistema da propriedade privada capitalista despreza a humanidade, sentencia vidas humanas a serem sem sentido humano. Por isso, nas palavras de Marx, se os sentimentos e as paixões humanas são características ontológicas do seu ser (natureza) e só se afirmam quando seu objeto se torna um objeto sensível, então os seus diversos modos de afirmação constituem a característica da sua existência, da sua vida. Daí dizer Marx que a propriedade privada, liberta da alienação, produz objetos essenciais para o homem como objetos de prazer e de atividade. 21 Em A Ideologia Alemã, Marx parte do princípio de que o homem é um homem social a partir de suas ideias. Ideias que, construídas socialmente na história humana, se expressam em linguagens e práticas sociais. Se o homem é um ser teórico e prático, então ele é um ser de práxis social. Mas Marx declara que a base dessas ideias que permeiam a subjetividade humana é corolário da realidade econômico-social na qual vive o homem. São, portanto, os modos materiais de produção existencial que produzem os modos de pensar a vida, o mundo. Toda formação de ideias a partir da realidade prática forma o homem. Tais ideias têm ancoragem nas relações concretas. No entanto, a concepção de formação humana nessa reflexão é baseada nas condições materiais de produção. Nessa perspectiva, o trabalho é a categoria ontológica que forma o homem em sociedade. O homem é, de certo modo, a sua atividade laboral, seja ela prazerosa ou não. Senão vejamos as palavras de Marx: A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam 20 21 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 203. Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 229. 206 reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições da sua produção.22 Esta é outra perspectiva da formação humana em Marx, ou seja, o homem é formado a partir da sua produção material de existência e o fator econômico é determinante nessa formação humana que, no caso do capitalismo, é a própria deformação do homem. Marx distingue então o homem dos animais não só por causa da religião, linguagem, consciência etc., mas, principalmente, porque eles produzem seus meios de existência, os instrumentos de trabalho, a partir da sua organização corporal, ou seja, o homem produz teleologicamente, antecipa na mente, o que vai produzir, sendo algo não instintivo como o animal que produz sob o domínio da necessidade corporal e não o da liberdade. Assim sendo, se os indivíduos são determinados pela sua atividade produtiva segundo um determinado modo de relações sociais e políticas determinadas, então o homem se forma humana ou desumanamente a partir dessa estrutura e superestrutura social determinada. Daí a base do comportamento humano, a saber, “A produção das idéias, das representações e da consciência está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real.”23 Para Marx, são os homens que produzem suas representações, suas ideias, a si mesmo, mas os homens reais, atuantes que são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que correspondem a elas. Conforme Marx, não é a consciência que determina a existência, a sua vida, mas sim a existência, a vida, que determina a consciência, formando o seu ser (e estar) aí no mundo. O que forma o homem primeiramente, toda a sua existência, diz Marx em A Ideologia Alemã, é a produção dos meios que lhe permite satisfazer as suas necessidades. O homem é, antes de tudo, um ser de necessidades. São essas necessidades satisfeitas que dão o primeiro passo para o homem se desenvolver humanamente, formar-se humano, ser genérico. Isso é considerado por Marx como primeiro ato histórico. Por isso que para Marx a história tem base materialista. E é na relação social com os outros homens que surge a sua dependência material e uma consciência coletiva da vida. É o que Marx vai denominar de ideologia, uma consciência social unida por determinados valores construídos historicamente. “A consciência é portanto, 22 23 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 11. Ibid., p. 18. 207 de início, um produto social e o será enquanto existirem homens.” 24 Isto revela, sem dúvida, como o homem se forma social e individualmente a partir de um ponto de vista materialista (marxiano). Desta feita, a formação humana em Marx, é resultado da maneira como os homens produzem a sua realidade (sua história) e a si mesmo, ou seja, produção para a realização de suas necessidades primordiais, logo de sua existência humano-social. Por conseguinte, se, para Marx, “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” 25; então a formação humana é também consequência da relação interativa entre o ser social e suas circunstâncias, seja de conservação ou de revolução delas. Porém, Se as circunstâncias em que este indivíduo evoluiu só lhe permitem um desenvolvimento unilateral, de uma qualidade em detrimento das outras, se estas circunstâncias apenas lhe fornecem os elementos materiais e o tempo propícios ao desenvolvimento desta única qualidade, este indivíduo só conseguirá alcançar um desenvolvimento unilateral e mutilado. E não há práticas morais que possam mudar este estado de coisas.26 Daí Marx considerar o homem como motor histórico da evolução, revolução ou da nova evolução social, formador de uma nova situação histórica e de um novo ser social, na qual os potenciais humanos desabrocham em muitas qualidades; como também ele considerar a natureza como formadora do homem, isto é, o homem naturalizado, assim como também o homem transforma a natureza em sua segunda natureza, ou seja, a natureza humanizada. Esse salto ontológico da formação humana se dá numa relação dialética em que o princípio da negatividade enquanto superação é a lei presente em toda a materialidade existente: lei da contradição, lei dos contrários, lei da negação da negação. Toda essa discussão da formação humana vai desembocar na questão da educação revolucionária do trabalhador para mudar o tipo de formação humana presente nas formações sociais classistas desde o fim do comunismo primitivo (das sociedades primitivas). Se a formação ou a educação dada aos indivíduos sociais é de caráter classista, segregacionista, ou mesmo unilateral, é preciso então, segundo Marx, demolir as estruturas sociais que dividem a sociedade em pessoas “bem formadas” e “pessoas mal formadas” ou mesmo “nem formadas”. E, nesse sentido, é preciso averiguar o papel do ensino escolar ou da educação para a divisão social hierárquica e classista do trabalho para dar um passo inicial em rumo à construção da emancipação universal dessa violação desumana. Gramsci e Suchodolski podem nos dar uma contribuição reflexiva de como Marx e 24 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 25. Ibid., p. 36. 26 MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 28. 25 208 Engels pensaram o processo educativo na formação dos trabalhadores, convertendo-os em revolucionários. Destacamos Gramsci, porque foi quem deu ênfase ao papel da formação política na constituição da massa revolucionária, pois como afirmam Oliveira e Felismino, “Pare ele [Gramsci], o trabalho de formação política, além de contribuir para o engajamento consciente e crítico dos militantes, deveria auxiliar a classe operária a superar uma visão meramente econômico-corporativista.”27 Já Suchodolski extraiu dos textos de Marx e Engels as suas concepções sobre ensino e educação, ressaltando que os dois viram o mundo de seu tempo e o papel do homem nesse contexto histórico, como também tiveram uma visão sobre a possibilidade de libertação e, para isso, Marx e Engels analisaram o sistema educativo na sociedade burguesa, a partir dos fundamentos da estrutura capitalista, para depreender que é preciso preparar o trabalhador para as tarefas históricas da revolução comunista. 3.2 A Formação Educativa como Instrumento de Revolução Partíamos anteriormente de como o homem se forma na sociedade a partir de Marx e Engels, ou melhor, como sua consciência e seu comportamento social são moldados a partir da realidade objetiva em que vive cotidianamente. E de acordo com Suchodolski, Marx sublinha que os “produtos da consciência”, em geral, são a “linguagem da vida real”, porque estão determinados pela actividade material e pelas relações materiais do homem [...] O homem não é aquilo que ele próprio julga ser. Também não é como julgam os outros homens. Todas estas imagens da consciência podem ser ilusórias. O homem é principalmente como aparece na sua vida concreta e real, social e produtiva, isto é, na sua vida diária, que decorre sob determinadas relações de produção material. Nos homens existentes e concretos surgem os “produtos da consciência”, a religião, a arte, a filosofia, a moral, a história, as leis, etc., que são a expressão exacta ou desfigurada da sua vida.28 De tal modo que a vida real é resultado do desenvolvimento histórico humano que transforma, produz, enriquece, muda e desenvolve a “essência” da humanidade, ou, melhor dizendo, a existência da humanidade que sempre será fruto vivo da atividade humana na história. E o trabalho, como atividade ontológica e teleológica, faz surgir o novo homem quando transmuta a sua forma de objetivação das coisas, de relação com a natureza e de transformação do mundo. O trabalho objetivado é a expressão do homem na sua essência, ou seja, o homem realiza aquilo que ele antecipa na consciência, como fruto da vontade e/ou da necessidade que ele cria ou surge diante dele. A preocupação de Marx é como o homem vai agir, a partir do 27 OLIVEIRA, Thiago Chagas e FELISMINO, Sandra Cordeiro. Formação política e consciência de classe no jovem Gramsci (1916-1920). In: MENEZES, Ana Maria Dorta; LIMA, Claudia Gonçalves; LIMA, Kátia Regina et al. (Orgs.). Trabalho, educação, estado e a crítica marxista. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p. 62. 28 SUCHODOLSKI, Teoria marxista da educação, v. III, p. 43-44. 209 momento em que ele descobre as determinidades históricas, de caráter político, econômico e social, que o desumanizam no dia a dia da sua existência social. Detectado como se dá o processo de dominação do homem pelo homem, as estruturas que garantem essa forma de servidão ou escravização humana, então que ações insurgentes poderiam ser realizadas para abolir esse estado coisas que perverte a natureza humana? Uma resposta simples é dada: formar o homem, mas formar o homem revolucionário, promotor das grandes transformações radicais na história. Para isso, a educação revolucionária é o ponto de partida, seja ela dada em locus específico ou em situações de movimento, quer dizer, se nos sindicatos, nas associações, nas escolas, nos partidos políticos ou nas manifestações de rua; enfim, como tornar a teoria revolucionária consciente e ativa na história. Como nos alerta Lênin, sem teoria revolucionária não há consciência revolucionária, sem consciência revolucionária não há ação revolucionária e sem ação revolucionária não há revolução (nova evolução social). Certamente esse é o maior desafio da classe revolucionária chamada proletariado, conforme Marx. Sujeito histórico fundamental para a superação da fase capitalista de produção. Mas se há uma formação humana nos moldes da cultura burguesa, como desfazer esse modelo burguês de (de)formação humana e construir um outro que forme o homem livre, ativo, criativo e omnilateral? A partir de Marx e Engels, Gramsci e Suchodolski aprofundam esta questão da formação humana no campo educacional, justamente para formar o sujeito revolucionário, emancipador. Senão vejamos: a) Gramsci começa a discussão da educação e/ou formação intelectual dos trabalhadores, afirmando que todo homem é filósofo, é intelectual, na medida em que pensa sua vida e sua realidade. Entretanto, essa visão gramsciniana de que o homem possui o intelecto e a ação para se objetivar na vida não é suficiente para compreender como essa vida que está aí dada é uma vida infeliz para ele enquanto sujeito explorado no trabalho. Por isso Gramsci pergunta: se “Os intelectuais constituem um grupo social autônomo e independente, ou cada grupo possui sua própria categoria especializada de intelectuais?” 29 Para Gramsci, a questão é complexa devido a muitas maneiras de como as diversas categorias de intelectuais se formaram no processo histórico, a saber, Cada grupo social “essencial”, contudo, surgindo na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma 29 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. p. 3. 210 continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas.30 No entanto, Gramsci faz uma ressalva, afirmando que “Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais.”31 Essa distinção entre intelectuais e não intelectuais significa apenas que, na realidade, cada função social da categoria profissional tem um peso intelectual específico, isto é, se no esforço muscular-nervoso ou se na elaboração intelectual mesma. Em toda atividade humana, diz Gramsci, não se pode excluir a atividade intelectual, ou melhor dizendo, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Noutras palavras, ele diz que todo homem, além da sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual, seja ela filosófica, artística etc., porque todo homem participa de uma concepção de mundo, possui uma conduta moral consciente e, nesse sentido, pode contribuir para manter ou mudar a concepção de mundo, para promover novas maneiras de se pensar. Sabemos com Gramsci que a escola é o locus para formar intelectuais de diversos níveis. Entretanto, há o dualismo escolar: a escola clássico-humanista que visa a desenvolver em cada pessoa a cultura geral diferenciada, a saber, a escola que forma o indivíduo para poder pensar e saber se orientar na vida; e a escola técnico-profissional, destinada às classes instrumentais que servem como mão de obra manual. É a tal divisão do trabalho (em Marx) em trabalho manual e trabalho intelectual na sociedade burguesa. Dessa maneira, há uma divisão social hierárquica do trabalho em que as classes dominantes têm acesso ao ensino científico-humanista e as classes dominadas, ao ensino técnico-profissional. Para Gramsci, a escola torna-se assim uma reprodutora da divisão social de classes e, por isso, é preciso que ela se transforme numa escola unitária, tendo cultura geral, ensino politécnico e exercícios físicos. Fazendo uma pequena digressão, segundo Schlesener 32, Gramsci compreendia claramente que o Estado tinha essa função “educadora”, atuando como movimento para se criar uma nova civilização, um novo tipo de homem e de “cidadão”. Portanto, como efetivador de um projeto político e econômico, o Estado tinha este objetivo educativo de adequar as pessoas às formas de produção social de uma época ou de uma sociedade, ou seja, de formar o homem para um tipo de organização social. Contudo, se o Estado exerce a função de implementar o projeto político e econômico de uma classe hegemônica na sociedade e 30 GRAMSCI, op.cit., p. 5. Ibid., p. 7. 32 Cf. SCHLESENER, Anita Helena. Estado, intelectuais e atividade educativa em alguns escritos de Gramsci. In: MENEZES, Ana Maria Dorta et al. (Orgs.). Op. cit., p. 49. 31 211 possui seus intelectuais para legitimar este projeto de poder, então nada mais natural e legítimo que os trabalhadores formem também seus próprios intelectuais para se contrapor a este tipo de projeto dominante. Por isso, é necessário para os trabalhadores compreender a estrutura do Estado burguês, quer dizer, “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com que a classe dirigente justifica e não só mantém o seu domínio mas consegue obter o consenso ativo dos governados.”33 Assim sendo, o caráter dualista da escola burguesa reserva aos proletários apenas o ensino técnico-profissional, e aos burgueses e auxiliares, uma formação integral, digamos assim, mais intelectual e científica, que lhes possibilite autonomia e liberdade individual, ou melhor, a capacidade de comando do poder social. O que resta aos trabalhadores, portanto, – e não há outra saída – é construir o seu processo de emancipação humana que, em outras palavras, significa criar as condições básicas para que os trabalhadores tornem-se dirigentes ou mesmo controladores de seus dirigentes de classe, quer dizer, controle nas decisões e fiscalizações na implementação delas. Dessa maneira, a escola para os trabalhadores tem que ser unitária, combinar conhecimento humanístico com conhecimento técnico-científico, justamente para que eles possam desenvolver suas várias capacidades humanas, contribuindo para a formação de sua individualidade sui generis, assim como para a sua participação na política. Mas conforme Oliveira e Felismino 34, o conceito de formação política em Gramsci parte do pressuposto de que é preciso dar uma ênfase à subjetividade na elaboração histórica, ou seja, o processo revolucionário não se limita às dimensões econômicas e políticas, mas se entrelaça à realização de trabalhos pedagógicos que possam consolidar a consciência de classe dos trabalhadores. Para Gramsci, os trabalhadores se formam no e pelo trabalho e têm uma necessidade de elaborar uma consciência de classe fortalecida pela preparação cultural. Nesse sentido, Gramsci tem a clareza da imprescindibilidade de desenvolver uma teoria revolucionária capaz de se contrapor aos contrarrevolucionários produzidos pelo capitalismo. Desse modo, o trabalho educativo-cultural, na visão de Gramsci, eleva o nível de consciência crítico-política das massas e tem como consequência, o reconhecimento de seu devir histórico e das suas tarefas a serem realizadas para alcançar os objetivos revolucionários. É na luta contra o capital que se realiza a formação política proletária, mas também se faz necessário ter ações pedagógicas junto às massas para que essa luta torne-se mais consciente e não sujeita a 33 GRAMSCI, Quaderni del Cárcere, Torino: Einaudi, 1978, Q. 15 (II), par. 10, p.1765 apud SCHLESENER, Anita Helena. Op. cit., p. 50. 34 Cf. OLIVEIRA e FELISMINO, op. cit., p. 62. 212 uma mera prática espontaneísta. Na verdade, de acordo com Oliveira e Felismino, A originalidade da reflexão gramsciana reside em mostrar que, ao fazer com que todas as dimensões da vida se tornassem revolucionárias (substituição de pensamentos, hábitos, valores e atitudes), a Revolução não foi apenas um evento econômico-político, mas, também cultural. [...] o conceito de formação política é concebido, basicamente, a partir de dois ângulos inter-relacionados. Tendo como referência histórica a Revolução Francesa e a Revolução Russa, Gramsci mostra que os indivíduos iniciam sua formação política quando, ao lutarem contra as condições de alienação em que estão inseridos, passam a se reconhecer como sujeitos pertencentes a uma das duas forças hegemônicas. Destarte, essa expressão evidencia a filiação de Gramsci ao pensamento marxista original, exposto por Marx e Engels, em O Manifesto Comunista, segundo a qual os trabalhadores se formam politicamente quando lutam contra as condições de alienação em que estão inseridos, bem como quando se reconhecem como membros integrantes de uma mesma classe, isto é, com necessidades, intentos e aspirações comuns.35 Se sabemos que a formação política do proletariado ocorre na e pela prática revolucionária, então, conforme Gramsci, não podemos também descartar as atividades educativo-culturais para esta formação, pois elas também se dão no âmbito do partido revolucionário em mediação com outros organismos de mediação do mundo do trabalho, tais como institutos de cultura proletária, escolas de partidos e de sindicatos, associações, clubes, imprensa operária etc. Por outras palavras, Gramsci salienta que os trabalhos educativoculturais fortalecem a luta revolucionária, elevam a consciência política de classe e afirmam a identidade de classe dos trabalhadores. Desta feita, o conceito de formação política é também definido como uma ação pedagógica dos partidos, sindicatos, conselhos, associações, movimento sociais etc. que tem o objetivo de desenvolver a consciência crítico-revolucionária dos trabalhadores, favorecendo-lhes a compreensão das determinações estruturais do capital que os explora. Por isso, a insistência de Gramsci na formação de intelectuais dentro do proletariado para que possam organizar conjuntamente políticas de ação. Nestes termos, Gramsci recupera a ideia marxiana de que o homem, ao transformar a sua realidade, se transforma, se forma e se educa. Pare ele, o projeto pedagógico de elevação do nível intelectual das massas, vinculado ao projeto revolucionário de abolição da sociedade classista, contempla a análise marxista de que não é a consciência que determina a existência, mas é a existência que determina a consciência. Não é á toa que Gramsci declara que [...] a filosofia da praxis não busca manter os “simplórios” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência de contato entre os intelectuais e os simplórios não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral, que torne 35 OLIVEIRA e FELISMINO, op. cit., p. 65. (Grifo nosso). 213 politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas pequenos grupos intelectuais.36 Assim, podemos depreender que a formação política como processo educativo dos trabalhadores, também dentro do movimento sindical, é imprescindível para formar o intelectual de novo tipo que seja o sujeito mediador entre a teoria revolucionária e o senso comum ou prática revolucionária. Para Gramsci, “trabalhar na criação de elites intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para tornarem-se os seus sustentáculos”37, é algo elementar no processo de construção de um ambiente revolucionário anticapitalista. Ora, se lutamos para mudar o modo de pensar dos indivíduos concretos – que pode oferecer um significado intrínseco às suas ações –, então tal mudança impede que os mesmos sejam suportes de sedimentação da estrutura produtiva capitalista. Desse modo, o grande desafio, nas palavras de Gramsci, é criar uma nova concepção de mundo, uma “filosofia da práxis”, que instrumentalize os indivíduos para sua emancipação política e social. Em seus Escritos Políticos, afirma Gramsci que A cultura é uma coisa bem diversa. É a organização, disciplina do próprio eu interior, é tomada de posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior pela qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função da vida, os próprios direitos e os próprios deveres. 38 Isso significa que não só os elementos político e econômico são os definidores da construção da consciência emancipatória-revolucionária, superior. A importância da cultura, da formação integral educativa dos trabalhadores, dá uma consolidação a essa consciência política revolucionária. E isso constrói a personalidade dos indivíduos que os fazem diferentes uns dos outros, embora as similaridades estejam presentes. Quando Gramsci elabora a questão “o que é o homem?”, ele quer compreender a categoria do indivíduo. E se, para ele, todos nós somos filósofos ou intelectuais, à medida que compartilhamos, produzimos e difundimos, sob determinadas circunstâncias históricas, uma concepção qualquer, então nada mais natural que nossa ação esteja vinculada intrinsecamente a essas concepções de mundo. Nesse sentido, para Gramsci, o homem é um processo histórico, consequência de suas ações. “É neste ponto que o conceito do homem deve ser reformado. Em suma, deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas (um 36 GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 20. Para burlar a censura, Gramsci usava a expressão “filosofia da praxis” no lugar de materialismo histórico ou marxismo. Cf. GRAMSCI. Pequeno Glossário. In: Concepção dialética da história, p. IX. 37 GRAMSCI, Quaderni del Cárcere. Torino: Einaudi, 1980. p. 1392 apud OLIVEIRA e FELISMINO, op. cit., p. 67. 38 GRAMSCI, Escritos políticos. Lisboa: Seara Nova, 1977, v. 1, p. 83 apud RUIZ, Erasmo Miessa. Marxismo, indivíduo e personalidade: Perspectivas em Antonio Gramsci. In: MENEZES, Ana Maria Dorta et al. (Orgs.). Op. cit., p. 79. 214 processo), no qual, se a individualidade tem a máxima importância, não é todavia o único elemento a ser considerado.”39 Nicola Badaloni explicita essa questão da importância da formação intelectual entre os trabalhadores, a partir de Gramsci, afirmando que “A substituição de uma classe por outra no exercício do poder tem, como pressuposto e efeito, uma enorme ampliação das capacidades intelectuais e morais de seus membros.”40 Para Badaloni, a maior preocupação de Gramsci consiste em voltar a dar sua vitalidade originária ao pensamento dos clássicos do marxismo, mas, por outro lado, Badaloni afirma que a questão dos intelectuais se articula com a questão do Estado na visão de Gramsci. Ou seja, se os intelectuais tradicionais são também funcionários do Estado para defender a hegemonia de um grupo dominante no poder, porém, num contexto de revolução, tais intelectuais poderiam sofrer uma transformação para ser suporte de uma nova hegemonia em construção, e não apenas serem conquistados tais como eles os são. Sem dúvida que Gramsci tem a clara compreensão do ponto fundamental do marxismo, a saber, “se os homens assumem consciência da realidade de forma ideológica, o problema consiste em passar de uma consciência limitada do conflito para uma consciência consciente [dele].”41 Portanto, para Badaloni, Gramsci compreende que “a classe operária – com seus intelectuais orgânicos – representa a única solução possível para formar um novo tipo de produtor que mantenha o compromisso [...], de desenvolver conhecimentos e capacidades técnicas.”42 Por conseguinte, Badaloni afirma que Gramsci pensa num período histórico que liberte a classe operária da influência do subjetivismo distributivista do capitalismo, ou seja, um subjetivismo que reserva à classe operária apenas a capacidade reivindicativa e de luta, apontando para a espontaneidade e imediaticidade. 43 Dessa forma, o marxismo renasce em Gramsci como filosofia da práxis. E para Gramsci, a filosofia da práxis é o “historicismo absoluto”44, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto na história. Por isso que, para Gramsci, o movimento da consciência se faz numa dupla linha possível, ou seja, “passagem do saber ao compreender, ao sentir, e vice-versa, do 39 GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 39. Cf. também Ibid., p. 38: “[...] o que o homem pode se tornar, isto é, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode ‘se fazer’, se ele pode criar sua própria vida. Digamos, portanto, que o homem é um processo, precisamente o processo de seus atos.” 40 BADALONI, Nicola. Gramsci: a filosofia da práxis como previsão. In: HOBSBAWM, Eric J. História do marxismo X. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 13. 41 Ibid., p. 59, nota 97. 42 Ibid., p. 66. 43 Cf. Ibid., p. 68. 44 Gramsci define o historicismo como “absoluto” a partir do imanentismo hegeliano, quer dizer, só é historicismo absoluto com a filosofia da práxis. Cf. BADALONI, op. cit., p. 86. Cf. também GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 127; 189. 215 sentir, ao compreender, ao saber.”45 De tal modo que o povo sente, mas nem sempre compreende ou sabe; o intelectual sabe, mas nem sempre compreende e sente. Assim, para que as ideias fiquem fixas, faz-se necessário reconciliar os dois extremos: intelectuais e povonação. O projeto gramsciano, portanto, tem um significado político importante, isto é, fazer com que as massas saiam da passividade, como também ligar o trabalho dos intelectuais à vida mais íntima das próprias massas e da sociedade. Aquilo que Marx diz na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ou seja, “a teoria se torna uma força material assim que se apodera das massas”46, como ressaltamos anteriormente no capítulo segundo. Desta feita, a formação de uma consciência unitária do proletariado, diante da hegemonia capitalista, tem em Gramsci um tratamento especial nas suas reflexões, no sentido de que a formação intelectual do trabalhador pode servir como instrumento de resistência aos imperativos da exploração capitalista. Isso denota o selo do pensamento de Gramsci, quando há uma preocupação dele em querer elevar o nível cultural dos trabalhadores, isto é, educar para formar politica e revolucionariamente o sujeito histórico do movimento socialista. Pois, de acordo com Bezerra, É preponderante enfatizar a idéia de que essa consciência, assim como assinala Gramsci (2004), não acontece sob a égide dos espontaneísmo (sic), como um movimento natural e “evolutivo” da humanidade. Pelo contrário, o processo que desencadeia essa atitude reflexiva, de acordo com Marx (1998), é resultado da aquisição de uma consciência revolucionária, assimilada na prática cotidiana das lutas de classe, diante da qual o indivíduo rompe com a superficial “consciência de si mesmo” e parte para um estádio crítico e comprometido com a transformação da realidade que lhe é imposta.47 Esse contato do trabalhador com uma cultura geral e ampla é fundamental, para que ele possa se capacitar de forma teórica-intelectual enquanto crítico da sociedade capitalista que explora sua força de trabalho. Os trabalhadores precisam reconhecer seus próprios valores num [...] continuado trabalho de crítica, de penetração cultural, de impressão de idéias em agregados de homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos problemas econômicos e políticos sem vínculos de solidariedade com os que se encontravam na mesma situação.48 Se anteriormente afirmamos, conjuntamente com Lênin, Trotsky e Losovsky, que os sindicatos são escolas de socialismo ou comunismo, locus onde se dá a primeira educação de classe, eixo organizador da classe trabalhadora etc., então podemos dizer que a formação 45 BADALONI, op. cit., p. 80, nota 139. Cf. também GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 138-139. Cf. MARX, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução. In: op. cit., p. 86. 47 BEZERRA, Tânia Serra Azul Machado. Cultura e elevação intelectual dos trabalhadores: os gráficos em discussão. In: SILVA E SOUZA, Adriana et al. (Orgs.). Trabalho, filosofia e educação no espectro da modernidade tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 203. 48 GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. I, p. 59. 46 216 política sindical se aproxima muito do que Gramsci denomina “círculos de cultura”, formado por trabalhadores que elaboram questões pertinentes aos seus interesses de classe, cujo objetivo é formar uma consciência crítica e revolucionária de sua situação social. “Círculos de Cultura”, na concepção gramsciana, quer dizer um tipo de trabalho intelectual coletivo, no qual indivíduos, com várias especificidades intelectuais, buscam compartilhar entre si questões, certezas, dúvidas e críticas construtivas, objetivando se tornar um grupo de intelectuais homogêneo. Nesse caso, o sindicato tal como o partido pode ser sim um viveiro de criação de intelectuais (militantes) dispostos a elevar o nível de consciência crítica e revolucionária dos trabalhadores para serem móbeis políticos na luta contra a exploração do capital sobre o trabalho. Política e Cultura Geral são elementos-chave para essa formação educativa revolucionária. Não podemos crer, como afirma Lênin, que a teoria revolucionária venha do espontaneísmo da luta proletária, mas ela tem sim que vir de fora, numa parceria firme com os intelectuais orgânicos, cuja relação entre ensino e aprendizagem se intercambiam, isto é, socializar os conhecimentos e fortalecer a classe proletária numa via de mão dupla em termos culturais. Para finalizar essa discussão, podemos sintetizar que Gramsci contemporiza afirmando que a educação integral tem que levar em consideração a formação do homem omnilateral, uma educação unitária que combine uma formação cultural geral e humanista com uma formação politécnica e profissional. Superar esse dualismo escolar burguês, que divide a sociedade entre dirigentes e dirigidos, dominadores e dominados, é o objetivo a ser alcançado numa educação socialista. Neste sentido, ele propõe uma solução para o desenvolvimento da formação humana omnilateral, ou seja, a [...] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo.49 Assim sendo, concordamos com Pires de que “o legado teórico de Gramsci nada mais é do que um instrumento reflexivo que incentiva a elaborar um projeto revolucionário a partir da educação e cultura”50, pois, para Gramsci, a cultura é um instrumento de emancipação da classe operária que potencializa a sua capacidade intelectual e ação histórica na transformação da realidade social. 49 GRAMSCI, Os intelectuais e a organização da cultura, p. 118. Cf. PIRES, Márcia Gardênia Lustosa. A educação na sociabilidade do capital: (im)possibilidades para a classe trabalhadora. In: SILVA E SOUSA, Adriana et al. (Orgs.). Op. cit., p. 145. 50 217 b) Numa direção semelhante, Suchodolski analisa os problemas fundamentais da educação e seus fundamentos nas obras de Marx e Engels, mesmo que ambos tenham tocado nessas questões de forma bastante fragmentária, sucinta. Como ele mesmo diz, “A actuação e ensino de Marx e Engels estavam, é certo, estreitamente ligados à situação histórica determinada e à luta política concreta para a libertação da classe operária [...]”51 O objetivo de Suchodolski é expor os elementos básicos da teoria da educação materialista e os princípios da crítica das concepções idealistas que travam a luta no interior do sistema capitalista. Para Suchodolski, Marx e Engels têm um conteúdo pedagógico rico, embutido em suas análises sobre a sociedade burguesa e o capital-trabalho como seu fundamento ontológico. Educar o trabalhador para o seu papel histórico de superação do capitalismo para uma sociedade comunista é uma das questões elaboradas por Marx e Engels durante todos os seus percursos reflexivos, ou seja, entender “cientificamente” como se desenvolve uma sociedade a partir das formações econômicas e políticas e/ou das suas relações sociais de produção (material e intelectual) em choque com as forças produtivas, e, a partir daí, formar o indivíduo revolucionário (emancipador) como motor dessa transformação histórica. Colocado nestes termos, vamos pinçar algumas reflexões essenciais de Suchodolski sobre a importância da educação política, filosófica e revolucionária do proletariado a partir da sua compreensão sobre o caráter pedagógico das obras de Marx e Engels. Suchodolski inicia sua reflexão sobre a tarefa de adaptar a geração de jovens às relações sociais vigentes. Tal era o trabalho da educação tradicional, sobretudo no feudalismo, que não preparava o homem para criar novas relações sociais, mas para conservar as que já estavam historicamente determinadas. De igual forma também o é no capitalismo, ou seja, “adaptar a jovem geração às condições de vida vigentes na sociedade capitalista de classes.”52 Contudo, ele desconstrói a ideia de educação como fator de melhoria das relações humanas, a partir de métodos educativos eficazes, isto é, desfaz a crença de que os homens podem criar uma nova ordem social, com melhores condições de vida para todos, por meio da educação dentro da ordem capitalista em conflito com as desumanas relações materiais entre os indivíduos. Daí ele dizer que “Marx ensina como os homens podem criar novas relações materiais entre as pessoas pela sua acção revolucionária, mesmo apesar de serem eles próprios um produto das velhas relações.”53 Mas não é somente a formação educativa que cria o novo homem ou a nova ordem 51 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 12. Ibid., p. 15. 53 Ibid., p. 17. 52 218 social, pois esta também cria uma nova forma educacional. Para Marx, afirma Suchodolski, é preciso se opor à absurda idolatria deste mundo, isto é, à idolatria ao dinheiro, ao capital. Desmascarar o mundo burguês e cooperar com a revolução deste mundo, ou melhor, criar uma nova evolução social do mundo, é a tarefa do pensamento e da ação humana para recuperar a dignidade perdida na alienação social. Uma nova ordem só surge quando se destrói a velha ordem em senilidade. E, de acordo com Marx, não podemos cair no utopismo histórico de que o futuro depende só da vontade humana de alguns. Não. É preciso ter conhecimento do processo histórico objetivo para que essa vontade “em si” se torne vontade coletiva. Essa vontade coletiva tem que se fazer ação política para que as transformações, as leis da dialética histórica, se efetivem na prática. Então, sendo assim, sem teoria política, não há formação política e sem formação política não haverá ação político-revolucionária. Daí a educação como instrumento revolucionário ter um papel fundamental na formação do indivíduo coletivo. Por isso, faz-se mister que as instituições que agregam trabalhadores sejam locus de formação educativo-revolucionária. Não basta ter a consciência moral deste mundo ou ter a consciência em si para transformar a realidade social, só a atividade social, ou melhor dizendo, só a política revolucionária é que pode revolucionar a estrutura e superestrutura da sociedade. O ponto de partida da educação na visão de Marx, segundo Suchodolski, é a relação entre a filosofia e o proletariado que luta pela sua libertação. Nesse caso, a filosofia possui um sentido tão vasto que implica todos os problemas da educação. Se a tarefa da filosofia implica libertar o homem das ilusões, mostrando-lhe as raízes sociais da mesma e incentivando-o a uma ação para transformar o mundo, então, como diz Marx, é preciso unir essa arma espiritual (filosofia) com a arma material (proletariado), quer dizer, a junção de conhecimento e ação, duas armas se potencializando e se fazendo ação. Como afirma Suchodolski, “Partindo deste ponto de vista, a educação está indissoluvelmente ligada à transformação social que se consegue sob a direcção do proletariado.”54 Portanto, é este ponto que orienta a educação para formar o homem que busca lutar pelo progresso social e humanismo socialista. Quando Marx afirma que as raízes da alienação humana devem ser procuradas no mundo material que o homem cria, fica evidente que urge ao homem reverter essa situação de negação (alienação) humana a partir de uma ação prática revolucionária, ou seja, tem-se que formar o homem revolucionário a partir de práticas educativas políticas anticapitalistas, antiburguesas. Não é por acaso que Engels dá ênfase a formação política e a formação pessoal como 54 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 27. 219 armas e fontes de energia para a transformação social, quando captou determinadas leis objetivas do processo histórico, sobretudo, do processo de desenvolvimento das relações econômicas. 55 Na verdade, Engels se deu conta disso em Manchester, quando percebeu que os fatos econômicos do mundo moderno constituem um poder histórico decisivo; como também tais fatos formam a base do surgimento das atuais contradições de classe e estas formam a base dos partidos políticos, das lutas entre partidos, como de toda a história política, quer dizer, em que tais contradições se desenvolveram sob a base das indústrias como na Inglaterra.56 Segundo Suchodolski, as obras juvenis de Engels também são importantes, porque mostram a função da escola e da cultura. Engels, de fato, desmascara os fundamentos classistas do sistema escolar que se bifurca em uma escola para o povo e outra para os filhos da classe dominante, como também mostra a influência dos interesses de classe na educação. Com efeito, os ideais educativos de Engels, ou melhor, os ideais da educação futura, significam a luta contra as relações dominantes e contra a ideologia dominante, difundidas no próprio sistema escolar. São, portanto, questões concretas extraídas da situação social da escola, cujos objetivos e soluções devem mobilizar a juventude para ação. Senão vejamos: Engels destaca que de 2500 filhos de operários em idade escolar, 1200 deixaram de ir à escola porque trabalhavam em dificílimas condições em fábricas que não admitiam pessoas adultas. Sublinha o carácter pietista da Escola. O pietismo serve, no entanto – tal como Engels demonstra –, especialmente para a exploração dos trabalhadores, já que apoia os baixos salários e mostra uma fictícia preocupação pela moralidade do operário. Engels indica, além disso, que a burguesia valoriza tal educação ideológica e desvaloriza em troca o patrimônio da educação; na realidade, não respeita nem a ciência nem a arte. [...] A escola servia como pano de fundo às relações sociais, dissimulando a exploração burguesa com palavras bonitas. Engels desmascarou também a “cultura” das cabeças dominantes, que na realidade mais não é que diálogos vazios sobre dinheiro e carreiras hípicas.57 Fica evidente que a formação humana burguesa na escola tem o objetivo reproduzir a sociedade classista, difundir sua ideologia de classe e formar o homo faber e o homo sapiens para a ampliação do capital. Para Suchodolski, A Sagrada Família tem muita importância para entendermos os fundamentos do materialismo histórico, pois, ao contrário do que diz Bauer, de que as ideias são independentes da realidade, Marx e Engels afirmam que as ideias provêm dos interesses históricos de classes. Por isso, eles fundamentam o papel histórico do proletariado, quando delineiam a questão básica da relação entre a consciência do indivíduo e a situação histórica de classe e suas tarefas. Na realidade, o objetivo e atuação histórica do proletariado estão 55 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 35. Cf. SUCHODOLSKI, loc. cit. 57 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 31-32. Conforme Suchodolski, essa foi uma descrição do sistema de ensino de Barmen e Elberferd a partir das Cartas Wuppertal, publicada em 1839 no Telegraph für Deustchland. 56 220 expressos nas suas próprias condições de vida e na organização da sociedade burguesa, ficando sugerida, então, a noção do papel educativo emancipatório do trabalhador. A teoria materialista ensina que o homem é educado pelo ambiente, quer dizer, se é o homem que forma seus conhecimentos, suas sensações etc., a partir do mundo dos sentidos e da experiência, então trata-se agora de ele apenas organizar esse mundo empírico de tal modo que o homem se experimente a si mesmo enquanto homem. Em outras palavras, “Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente” 58 Tais análises apresentam uma dependência entre o homem e o seu meio e a atividade humana que exige a transformação deste meio. Eis o problema da educação, ou seja, fazer com que os homens não sejam totalmente determinados por circunstâncias biofísiológicas ou pelo meio ambiente, mas conceber o homem como um processo histórico que possui tarefas históricas a fazer e que essas mesmas tarefas desenvolvam o novo homem historicamente. Diz-nos Suchodolski que Marx e Engels desenvolveram em suas obras uma concepção de educação do homem que leva em consideração os elementos sociais e ativos voltados para o futuro. Por exemplo, concepções implícitas em A Sagrada Família (como a análise do processo de transformação histórica das formas de propriedade, o caráter de classe do Estado e do poder, as perspectivas da revolução proletária e a necessidade de uma luta política contra o Estado burguês) levaram-nos à redação de A Ideologia Alemã, na qual é feita, dentre outras coisas, uma crítica radical às concepções ideológicas burguesas e a concepção materialista da história. Também o caráter pedagógico do pensamento de Marx e Engels em A Ideologia Alemã é da maior importância para a formação da consciência política de classe do proletariado, na medida em que revela o caráter da ideologia como um conjunto de concepções que simula a realidade, isto é, uma mescla de concepções, em cuja quimera está a origem de classe histórica, desempenhando, assim, um papel a serviço dos interesses de uma determinada classe. A ideologia para Marx e Engels se reduz a uma concepção tergiversada da história dos homens, pois ela fica reduzida a uma total abstração. O fenômeno da ideologia para Marx e Engels tem sua origem no desenvolvimento histórico, logo é mister desmascarar a ideologia que compreende as ilusões e mistificações de classe numa sociedade classista. Para eles, não se pode educar o novo homem apenas com a transformação da consciência humana, mas principalmente com a transformação das 58 MARX e ENGELS, La Sagrada Família, E. Grijalbo, México, 1962, p. 197 apud SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 44. Cf. também, MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 36: “[...] por conseguinte, as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias.” 221 circunstâncias sociais que formam essa consciência. A moral, a religião, a metafísica e outras ideologias são produtos das relações de produção concretas. Ou como eles mesmos dizem, São os homens que produzem suas representações, suas idéias etc., mas os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as mais amplas formas que estas podem tomar. A consciência nunca pode ser mais que seu ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real.59 Essas reflexões teóricas, concebidas a partir da e na realidade, são, nada mais nada menos, do que extratos pedagógicos marxistas para a educação política dos trabalhadores. Explicitar conceitos como “divisão do trabalho” e “relações sociais de produção” ou “relações de classe”, é, a nosso ver, imprescindível para a formação educativa revolucionária dos trabalhadores. Apropriar-se dessas reflexões, desses princípios teóricos ou políticos, de modo crítico e em confronto com a realidade presente, é dotar a classe proletária de uma consciência crítico-revolucionária e de uma ação programática para mudar a ordem social capitalista. Sem uma compreensão científica profunda do seu momento histórico, do desenvolvimento das suas relações sociais de produção com suas forças produtivas, a classe proletária fica refém da ideologia burguesa de sociedade, da sua visão de mundo. Isso apenas mostra que a educação torna-se um instrumento de fortalecimento do poder de classes na sociedade. Superar a ideologia classista significa superar os princípios da política educativa da sociedade classista e, portanto, tornar a educação como arma contra a opressão, ou, melhor dizendo, como instrumento moral e intelectual da jovem geração da classe oprimida para que ela possa organizar enquanto base um movimento socialista atual para o futuro da nova sociedade. Sem rodeios, tais elementos teóricos ampliam o horizonte de percepção histórica dos trabalhadores enquanto sujeitos potencialmente revolucionários. Por isso Suchodolski reafirma que [...] a educação não pode entender-se como “reforma da consciência” independente. Deve estar ligada à transformação das reais condições de vida que constitui a base de alteração da consciência. Os educadores não estão naturalmente capacitados para efectuar esta obra sozinhos, devem unir-se ao movimento revolucionário da classe que transforma realmente a vida e cria as bases para uma nova consciência. A esta acção da classe revolucionária para a transformação das condições de vida une-se a transformação da consciência. [...] A tarefa do educador consiste em ajudar os indivíduos a superar o velho na sua consciência e construir o novo mundo adequado à ciência e às necessidades das urgentes tarefas sociais. 60 Libertar a classe oprimida trabalhadora da tutela ideológica burguesa é uma necessidade histórica que precisa ser realizada. Com efeito, a libertação da ideologia 59 60 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 19. SUCHODOLSKI, op. cit. v. I, p. 60-61. 222 burguesa, a mudança de pensamento para um modo materialista e revolucionário ligado à prática revolucionária dos trabalhadores, como diz Suchodolski, significa a rejeição das ilusões de uma educação que visa apenas a reformar a consciência com meios puramente espirituais. Nesse sentido, fornecer os elementos teóricos da concepção materialista da história à classe potencialmente revolucionária, isto é, os estudos históricos e econômicos de Marx e Engels, é dar as armas intelectuais que tanto o trabalhador precisa para se acoplar a sua própria condição humana enquanto arma material da revolução. O marxismo e o trabalhador são as armas intelectuais e materiais da revolução socialista. A meta agora é como fundir essas duas armas, ou seja, como fazer essa simbiose política desaguar na revolução socialista em rumo à sociedade anticapitalista, comunista. Conforme Suchodolski61, já houve nos centros do movimento operário, sob a direção de cartistas e socialistas, diversas instituições culturais e educativas, onde se dava uma autêntica educação proletária para as crianças, sem as influências da burguesia, isto é, com salas de leituras e seus respectivos jornais e livros proletários. Mas a burguesia esperta se viu obrigada a fazer concessões dando ensino público gratuito, quer dizer, transformou algumas instituições similares em órgão de difusão da ciência que lhe apoia. Nessas instituições aburguesadas eram ensinadas ciências naturais entre outras coisas, justamente para tirar os filhos dos trabalhadores da influência do ensino proletário. Ora, essas concepções teóricas de Marx e Engels, que mostram ao trabalhador as condições subjetivas e objetivas de se fazer a transição do capitalismo para o socialismo, não deixam de ser uma concepção de educação e de ensino político completamente nova. Porém, Marx e Engels advertem que (como pensam os socialistas utópicos) não basta ter a educação, pois ela precisa estar estreitamente ligada à prática revolucionária, isto é, emancipatória, transformadora. No entanto, para isso, é preciso preparar ideologicamente o trabalhador. Segundo Suchodolski, “Para muitos as tarefas fundamentais da educação consistem em educar o coração e a virtude; para Marx e Engels tem a maior importância o desenvolvimento da consciência e o despertar pela revolução.”62 Na realidade, Marx e Engels rejeitavam as teorias idealistas e utópicas do poder ilimitado da educação, porque sabiam que a educação por si só não faz revolução das estruturas sociais. O que eles enfatizam é que a atividade educativa, sobretudo o ensino operário, é importantíssima para organizar a luta revolucionária e construir o processo evolutivo histórico. Por isso que, para ambos, o materialismo histórico é de fundamental importância para o trabalhador saber que o mundo se desenvolve segundo 61 62 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 66. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 69-70. 223 leis objetivas pela ação das massas populares e, sobretudo, pela ação revolucionária. De acordo com Suchodolski, esta concepção concreta histórica da essência da educação foi realizada por Marx e Engels durante toda a sua atividade prática políticoorganizativa, pois, para eles, a educação ou a formação humana é uma atividade dependente de determinadas etapas do desenvolvimento social, as relações materiais existentes. Uma criança “em si” não se forma sozinha a partir de sua pura essência, mas uma criança se forma a partir de uma determinada classe, ou melhor, se forma a partir de determinadas relações sociais. Marx e Engels acreditam na formação política fundamentada no conhecimento científico da realidade que cria a outra condição para se desembocar na ação revolucionária. Nessa perspectiva, diz Suchodolski, “A educação do proletariado pode servir somente para a preparação das tarefas revolucionárias, ou seja, ser a educação da consciência revolucionária numa determinada situação concreta.”63 Para ele, portanto, a educação adquire assim uma orientação política, quer dizer, deve participar na formação da classe revolucionária. Por conseguinte, Suchodolski nos revela algumas outras questões em Marx e Engels a respeito da educação revolucionária no Manifesto do Partido Comunista. Um programa que não se esqueceu da questão educacional ao ser elaborado pelos dois. Engels propõe a educação total para as crianças, desde os primeiros cuidados maternos, em instituições nacionais à custa da nação e sublinha a necessidade de relacionar educação e trabalho; mas não se esquece de analisar o papel da educação na sociedade capitalista e na futura sociedade socialista, declara Suchodolski. 64 Para Engels, portanto, não há na sociedade de classes antagônicas condições para que o homem desenvolva plenamente suas capacidades físicas e intelectuais, pois a classe que domina politica e economicamente uma sociedade se apropriou das forças produtivas, dos bens materiais de produção. Mas esta senha histórica é que vai possibilitar o desenvolvimento humano total, ou seja, com o desenvolvimento das forças produtivas e a supressão da propriedade privada burguesa dos meios de produção, poder-se-á construir uma sociedade produtiva que satisfaça a todos nas suas necessidades básicas, a sociedade comunal. Isto porque o desenvolvimento das forças produtivas exige sempre homens com formação multifacetada, ao contrário da sociedade capitalista em que a formação sempre parece ser unilateral. Consoante Engels, uma indústria dirigida conjunta e planificadamente por toda sociedade, requer homens completos, com aptidões desenvolvidas que sejam capazes de captar todo o sistema de produção. Esta necessidade fará surgir uma nova educação que 63 64 SUCHODOLSKI, op. cit., v I, p. 76. Ibid., p. 77. 224 formará novos homens na sociedade pós-capitalista. Justamente porque a educação vai permitir aos jovens participarem de todo complexo do sistema produtivo. É isso, na visão de Engels, que poderá assegurar o desenvolvimento pleno das capacidades do homem numa sociedade pós-capitalista. Para Suchodolski, tais pensamentos fazem tanto parte do Manifesto Comunista quanto dos trabalhos de Marx e Engels sobre a educação ou formação humana. A tese do Manifesto no primeiro capítulo é de que a educação até o presente capitalismo constituiu um fenômeno de caráter classista, pois como eles mesmos dizem no programa: “a história de toda a sociedade existente até hoje tem sido a história das lutas de classes” 65. Portanto, na perspectiva do Manifesto a educação surge como uma atividade ligada à luta de classes do trabalhador, pois somente uma educação verdadeira, isto é, integral, na qual o desenvolvimento intelectual esteja vinculado ao desenvolvimento das habilidades manuais, é que pode criar as premissas de um desenvolvimento social completo. O que Suchodolski ressalta é que a educação dos homens é um importante processo de sua autoprodução que se dá no seu trabalho social produtivo, mas isto não ocorre de forma linear; ao contrário, se dá pelas lutas e contradições sociais que surgem no decorrer do movimento histórico. Como diz Marx, as forças produtivas entram em contradição com as relações de produção vigentes, quer dizer, com as relações de propriedade até então. E as formas de desenvolvimento das forças produtivas se transformam em cadeias, isto é, ao se transformar a base econômica, transforma-se também toda a superestrutura, e aí uma época de revolução se impõe às relações conservadoras com a sua ideologia a partir das revoluções das forças produtivas e da classe oprimida. Dentro dessa situação, a educação serve como meio de luta; e nas mãos da classe dominante ela torna-se uma arma poderosíssima para conservar seu domínio e impedir a sua queda histórica, à medida que consegue manter a psique humana livre das influências que surgem com as transformações das forças produtivas; e nas mãos da classe dominada, a educação torna-se um instrumento de libertação da tutela ideológica da burguesia. Dessa maneira, Marx e Engels sempre prestavam atenção às questões do ensino e sempre partiam de questões científicas e políticas, pois para eles os princípios do ensino político e científico são uma arma para a classe operária. 66 Engels, por exemplo, denunciou a forma superficial e tendenciosa do ensino escolar na sociedade burguesa em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, ao dizer que “É possível ver o que fazem a burguesia e o 65 66 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 93. Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 103. 225 Estado para a educação e o ensino da classe trabalhadora”67, quando a burguesia sonega até mesmo o ensino moral aos operários que ela teve em sua própria defesa e interesse; como também Engels fazia crítica à antiquada concepção de natureza ensinada em todas as escolas em sua obra Dialética da Natureza. Para Suchodolski, Marx e Engels tinham plena consciência da necessidade do ensino sob a orientação da classe operária e isso se comprova nas instruções dadas aos delegados do Congresso da I Internacional em Genebra (1866). Eles examinavam, portanto, os princípios da luta para a educação da classe operária, isto é, para a determinação de um programa educativo e o esclarecimento do seu papel social. 68 Um programa de ensino para eles tinha que se apoiar no progresso da ciência, tendo em vista os conhecimentos politécnicos, no qual trabalho produtivo, educação e ginástica fossem combinados para realizar indivíduos plenamente desenvolvidos. Já na Crítica ao Programa de Gotha, Marx afirma que “a combinação do trabalho produtivo com o ensino, desde uma tenra idade, é um dos mais poderosos meios de transformação social.” 69 Nesta obra Marx anota que não deve haver a proibição geral do trabalho infantil, no entanto, teria que haver uma regulamentação severa da jornada de trabalho segundo as diferentes idades, como também aplicar medidas preventivas para a proteção das crianças. De qualquer forma, Marx considera abominável, sob o reino do capital, a tendência da Indústria moderna fazer cooperar crianças e adolescentes de ambos os sexos na grande obra da produção social como um processo legítimo e saudável; logo a sociedade não deve permitir que pais e patrões empreguem crianças e adolescentes no trabalho, a não ser que se combine trabalho produtivo com a educação. 70 Todavia, segundo Suchodolski, A participação das crianças e jovens no trabalho produtivo e o ensino politécnico ligado a este deviam contribuir, segundo esta concepção, conjuntamente com a acção das forças revolucionárias para destruir a sociedade capitalista que degrada os operários à condição de autómatos com a utilização da tecnologia. 71 Ainda na Crítica ao Programa de Gotha, Marx não admite que a Educação popular fique a cargo do Estado (burguês), ou, melhor expressando, todos devem ter uma assistência escolar obrigatória e gratuita, no entanto, designar o Estado como educador do povo é ter uma fé servil na seita lassalliana do Estado ou ter a superstição democrática do Estado (classista) que reproduz a desigualdade social por meio da escola. Isso tudo, segundo Marx, não passa de uma fanfarronice democrática. E ao se referir ao Império Prussiano-Alemão, ele ainda diz que 67 MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 80. Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 103. 69 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX e ENGELS, Obras escolhidas, v.2, p. 224. 70 Cf. MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 59-60. 71 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 106. 68 226 “[...] é o Estado quem necessita de receber do povo uma educação muito severa.” 72 Marx também já dizia no Manifesto Comunista que é preciso tirar a educação da influência da classe dominante, como também transformar o tipo de intervenção da sociedade sobre a educação.73 Como ele mesmo afirma na Crítica ao Programa de Gotha, “[...] o que deve ser feito é subtrair a escola de toda influência por parte do governo e da igreja.” 74 Em outras palavras, o Estado (burguês) não deve ser designado para educar o povo, ao contrário, é preciso instrumentalizar o ensino e a educação, objetivando preparar o trabalhador para a luta contra a burguesia, acompanhando-o também nos momentos da difícil luta, no período da revolução, na tomada do poder pelo povo e, dessa maneira, poder então alcançar as melhores condições para seu desenvolvimento posterior. Para Marx, este é o papel e a responsabilidade política da ciência e do ensino, apresentado nas suas análises sobre o fracasso e a vitória da Comuna de Paris. Portanto, conforme Suchodolski, as exigências educativas de Marx afetam a vida real e a consciência, isto é, a vida real e a consciência que estão sob a base da alienação capitalista como a grande tragédia humana do trabalhador.75 Na Terceira Tese sobre Feuerbach, Marx anota claramente que o ensino humano é imperfeito e que este ensino precisa de educação. Ao perceber que a atividade educativa não pode ser compreendida como fonte independente da realidade social, mas como um trabalho vinculado à totalidade das ações humanas que transformam a vida, Marx afirma: A doutrina materialista que pretende que os homens sejam produtos das circunstâncias e da educação, e que, conseqüentemente, homens transformados sejam produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado.76 Colocado nestes termos então, no que diz respeito à educação da consciência, Suchodolski afirma, por conseguinte, que Marx tinha clareza de que o princípio da consciência foi um princípio progressista e revolucionário como método de transformação da vida na luta da burguesia contra o feudalismo, a saber, o programa de ensino se baseava na formação e educação da consciência e isso implicava que o grau de educação do indivíduo era alcançado pelo seu próprio progresso, sem levar em conta que este desenvolvimento da consciência também estava atrelado às relações concretas da vida do indivíduo. Marx 72 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: op. cit., p. 223. Cf. MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 109. Cf. também SUCHODOLSKI, Teoria marxista da educação, v. I, p. 106-107; e MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 91-92. 74 MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 91. 75 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 207. 76 MARX e ENGELS. Teses sobre Feuerbach. In: A Ideologia Alemã, p. 100. Cf. também MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 27. 73 227 combatia este tipo de intelectualismo que separava consciência da vida real, como se fosse produto de um autodesenvolvimento educacional. Para ele, não se tratava de reformar a consciência para mudar a realidade, mas, ao contrário, de mudar a realidade para transformar a consciência. Desse modo, Marx refuta as teses da autonomia da consciência e de seu papel independente de formar o homem, pensamento comum entre os iluministas e mesmo em Feuerbach. Esta concepção individualista de que a formação da consciência é a formação de todo homem verdadeiro cai por terra, na medida em que Marx transfere a discussão para o plano da atividade social concreta. As fontes da consciência se encontram mesmo no plano da atividade social, cujo conteúdo só muda com o processo histórico desta atividade. Daí Marx demolir toda a pedagogia da consciência, quando diz que o ensino só pode ser verdadeiro se transformar as condições sociais que mantêm o homem ainda num estado de alienação e/ou de servidão. O ensino só é eficaz com a derrubada da ordem, das condições de vida que produzem as ilusões sociais, sejam elas políticas, econômicas e/ou religiosas. Ao criticar a pedagogia da consciência e a pedagogia do ambiente, a saber, os que pensam que o homem é mero resultado de uma consciência construída intelectualmente ou de uma consciência sob a pura influência do ambiente, Marx indica que o homem não se forma exclusivamente por nenhuma delas, nem mesmo pela combinação de ambos os fatores: o intelectual e o ambiental. Porém, de acordo com Suchodolski, O elemento decisivo no processo de formação do homem é actividade socioprodutiva do homem que transforma o seu ambiente. Este processo decorre historicamente e nas diversas etapas de desenvolvimento – em cada uma segundo as relações, as forças produtivas e a estrutura social – adopta diversas formas.77 Tudo isso tem a ver com a formação da personalidade do homem. E para Marx a questão da personalidade não é apenas um problema do futuro, mas um problema atual, porque se encontra estreitamente ligado ao movimento operário revolucionário. Um indivíduo que pertence a uma determinada classe social está vinculado ao cumprimento de determinadas condições que dependem de causalidades, sobretudo, porque tais condições dizem respeito à sua vida pessoal. Mas quando se formam indivíduos revolucionários, rompe-se com essas atuais condições de existência impostas por tais causalidades. Neste sentido, a questão da personalidade encontra-se unida à atividade revolucionária, ou seja, para Marx, podemos fazer com que o ensino deixe de ser apenas uma adequação do homem às influencias determinadas pelas relações sociais alienantes ou apenas prepare o homem para o futuro do 77 SUCHODOLSKI, op. cit., v. III, p. 62. 228 capitalismo, para converter-se na participação da prática ativa, na prática revolucionária. Só na prática revolucionária, na concepção de Marx, é que podem se unir a transformação das relações atuais e a transformação dos homens mediante a educação. Portanto, a prática revolucionária é um ato coletivo que se fundamenta nas necessidades objetivas, cujo aparecimento consciente das leis de desenvolvimento se une à energia e à vontade de participação ativa na configuração de um novo desenvolvimento social, o socialista. Por outras palavras, A educação da individualidade, escreve Marx, não precisa hoje nem da formação de uma boa vontade nem de uma reforma do espírito para compreender que o homem é egoísta, mas requer algo diferente. Requer a integração do indivíduo na sua classe, na qual se prepara para a luta pela nova sociedade; exige que o indivíduo seja capaz de reconhecer as leis que predominam na realidade social e actuar em conformidade com elas.78 Marx e Engels buscam assim superar a educação humanístico-utópica e conceber o problema do homem, da sua educação e consciência, a partir das categorias de uma análise científica do desenvolvimento social e da prática revolucionária. A filosofia de Marx e Engels desmascara os ideais educativos burgueses como interesses da política de classe que, na verdade, encobre um falso humanismo. O que configura o homem mesmo é a sua atividade social e esta, sob a rubrica do capital, o configura como um ser alienado e mutilado humanamente. Para Marx e Engels, estão enganados os que acham que a educação como formação da personalidade se baseia em bens culturais eternos ou aqueles que atribuem à educação o caráter de formação do desenvolvimento natural, espontâneo e autônomo do “Eu” interior ou aqueles que sujeitam a educação do indivíduo às exigências das circunstâncias. Então cabe destacar, conforme Suchodolski, que “a teoria marxista do materialismo histórico e dialético, que se opõe à tradição da concepção idealista do homem, sublinha especialmente o papel da revolução como factor que cria novas relações sociais e os novos homens.”79 Desta forma, se a teoria de Marx mostra que o trabalho educativo sob relações sociais classistas necessita de tarefas completamente novas, então conclui-se que a única saída da alternativa entre o oportunismo e a utopia educativa burguesa é contrair um pacto com a prática revolucionária. 78 79 SUCHODOLSKI, op. cit., v. III, p. 126. Ibid., v. III, p. 175. 229 3.3 Formação Educativa para e pelo Socialismo-Comunismo Se a grande tarefa educativa revolucionária no capitalismo para e pelo socialismo é romper com um tipo de educação dualista e classista que promove a desigualdade e/ou a “exclusão” social e separa o trabalho manual do intelectual, no socialismo ela deverá ter outro norte que é a de “igualar” as condições intelectuais e técnicas de todas as pessoas, visando construir o novo homem social, isto é, o homem omnilateral e comunal. Toda a análise marxista da situação do homem no capitalismo se pauta in nuce (em suma) pela crescente alienação política e econômica que impede o desenvolvimento humano dos trabalhadores, ou melhor, destrói a relação do trabalhador com o próprio trabalho e a sociedade, deformando, dessa maneira, a sua consciência, o seu ser social. Para que esse desenvolvimento pleno do homem ocorra é preciso quebrar as cadeias que prendem o homem ao jogo políticoeconômico perverso do capitalismo. E, nesse sentido, o destino da educação como atividade formativa do homem depende da transformação social que elimine de vez o sistema capitalista da história da humanidade. Dito isto, concordando com Suchodolski, “Nesta base, dar-se-á na sociedade socialista uma aproximação entre as condições e necessidades da vida social e as tarefas e possibilidades da actividade educativa.”80 Entretanto, uma questão se coloca: qual seria o papel da formação educativorevolucionária marxista para e pela construção do socialismo-comunismo? Responder a esta indagação requer antes uma análise sobre o que é o socialismo como fase de transição para o comunismo, para o reino da liberdade. 3.3.1 O socialismo Compreender o conceito marxista de socialismo tem a ver, principalmente, com o fim do trabalho estranhado, da propriedade privada burguesa e do fetiche das relações humanas com as mercadorias (reificação). Marx faz essa análise a partir dos Manuscritos EconômicoFilosóficos, onde analisa a concepção de propriedade privada, trabalho alienado e comunismo. Segundo ele, é a propriedade privada “a fonte de alienação real do homem como um ser perdido de si próprio e para si mesmo, sem uma essência plenamente desenvolvida na sua potencialidade.”81 A relação da propriedade privada com o trabalho é uma relação baseada na exploração, na alienação da força de trabalho, cujo custo se reduz ao preço do trabalho num determinado tempo, apenas para manter a subsistência físico-corporal do 80 81 SUCHODOLSKI, Bogdan. Teoria marxista da educação. Lisboa: Editorial Estampa, 1976, v. II, p. 9. OLIVEIRA, Jorge Luís de. Alienação, Trabalho e Emancipação Humana em Marx, p. 58. 230 trabalhador, denominado então de “salário, que é uma falsa troca de equivalência entre valores: capital variável e trabalho. Como mesmo afirma Marx, [...] a manifestação da força de trabalho, o trabalho mesmo, é a atividade vital própria do operário, sua maneira específica de manifestar a vida. E é essa atividade vital que ele vende a um terceiro para conseguir os necessários meios de subsistência. Quer dizer isto que a atividade vital não é mais do que um meio para poder existir [...] Portanto, o capital pressupõe o trabalho assalariado e o trabalho assalariado, pressupõe o capital. Ambos se condicionam mutuamente.82 A propriedade privada burguesa, para Marx, é uma forma iníqua de apropriação, ou seja, um modo inautêntico de ter e possuir as coisas ou o trabalho de alguém, porque baseada na espoliação do trabalho alheio. Ao contrário, a propriedade genuinamente autêntica 83 se caracteriza pela existência e disponibilidade de todos os objetos para o homem, quer dizer, objetos essenciais tanto para o gozo como para a sua atividade. Nesse sentido, Marx entende que a propriedade como categoria apreendedora do mundo objetivo só é legítima quando houver a relação universal e livre do homem. 84 Na concepção marxiana, isso só pode acontecer, quando for abolido o tipo de propriedade privada burguesa substituída a posteriori pela propriedade comunal. Foi o que Marx fez em A Ideologia Alemã, ao analisar como se deu o processo histórico de desenvolvimento da propriedade privada até chegar a sua forma mais evoluída, ou seja, a forma de Capital. Portanto, “A perspectiva da sociedade rompendo a coisificação rumo à objetivação é a perspectiva da sociedade enquanto sujeito da objetivação.”85 Por outro lado, Marx vê o aspecto positivo da evolução da propriedade privada no capitalismo, ou seja, ela cria as condições antagônicas reais – subjetivas e objetivas – para o seu posterior desaparecimento enquanto propriedade de negação do humano no homem. Marx considera que o desenvolvimento avançado da propriedade privada capitalista acelera o conflito/confronto entre o capital e o trabalho, quer dizer, essa relação antagônica de cooperação forçada se rompe, desdobrando-se numa fase de insurreição até chegar à revolução. O casamento forçado entre o capital e o trabalho é desfeito. Não é à toa que Marx anota que O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada enquanto auto-alienação humana e, deste modo, a real apropriação da essência humana pelo e para o homem. É, portanto, o retorno do homem a si mesmo como ser social, quer dizer, verdadeiramente humano, retorno esse pleno, consciente, que assimila toda a riqueza 82 MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital. São Paulo: Global Editora, 1987. p. 22; 34. Há uma tematização sobre duas formas reais de propriedade privada, i.é., a propriedade alienada e a “autêntica propriedade humana”. Ver a respeito, Herbert Marcuse, Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968. p. 134-135. 84 Cf. OLIVEIRA, Jorge Luís. Op. cit., p.63-64. 85 MARCUSE, Materialismo histórico e existência, p. 137. 83 231 do desenvolvimento anterior. O comunismo enquanto naturalismo integralmente evoluído = humanismo, enquanto humanismo plenamente desenvolvido = naturalismo, constitui a resolução autêntica do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem. É a verdadeira solução do conflito entre a existência e a essência, entre a objectivação e a auto-afirmação, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie. É a decifração do enigma da História e está consciente de ele próprio ser essa solução. 86 Nessa citação podemos perceber a relevância que Marx dá à questão da consciência proletária sobre esse devir histórico, isto é, de que o comunismo é a solução desse antagonismo histórico até hoje constituído, desde a origem da propriedade privada enquanto forma de privação da maioria dos homens da riqueza socialmente produzida. Daí podermos inferir que a formação educativa para e pelo socialismo é algo imprescindível numa determinada fase de pré-realização do socialismo. Se a propriedade privada capitalista é a expressão alienada da vida humana, então – como diz Marx – “A abolição positiva da propriedade privada, tal como apropriação da vida humana, constitui portanto a abolição positiva de toda a alienação, o regresso do homem a partir da religião, da família, do Estado, etc. à sua existência humana, isto é, social.”87 Para Marx, portanto, é fundamental que o proletariado apreenda o movimento da totalidade histórica e tenha consciência da gênese real do comunismo como também da sua consciência pensante. Abolir a propriedade privada para Marx significa a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas. E se o homem é a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade enquanto pensada e sentida, se “pensamento” e “ser”, embora distintos, formam uma unidade e se “todos os sentidos físicos e intelectuais do homem foram substituídos pela simples alienação de todos os sentidos, pelo sentido do ter [...]”88, então a abolição positiva da propriedade significa a apropriação sensível da essência e da vida humana do homem objetivo e das criações humanas, pelo e para o homem, isto é, uma apropriação não apenas no sentido do ter; mas com a eliminação propriedade privada o homem se apropria do seu ser omnilateral de modo omnicompreensivo, como homem total, pois só com a emancipação humana, todos os sentidos e qualidades do homem se tornam humanas. E para isso é necessário uma relação social mais humanizada chamada socialismo. O homem – diz Marx – se afirma no mundo objetivo e no pensamento através de todos os sentidos, e sua riqueza e sensibilidade só se darão, quando a riqueza for objetivamente desenvolvida, pois a partir daí se cultiva e se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana. 86 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 192-193. A citação visa ressaltar o aspecto positivo da propriedade privada burguesa que produz a condição de sua própria negação. 87 Ibid., p. 193. 88 Ibid., p. 197. 232 Os sentidos humanos serão capazes de usufruir a mais bela arte, satisfazendo, portanto, as necessidades espirituais do homem. Erich Fromm, em Conceito marxista de homem, faz uma ligação entre o conceito marxista de socialismo e o conceito marxista de homem, quando diz que a meta do socialismo é o homem, mas o homem rico, plenamente realizado na sua dimensão humana natural. Isso requer que as condições sociais que produzem a existência humana sejam revolucionadas, pois se o homem é resultado das suas relações sociais de produção, são estas que precisam ser modificadas em conjunto com suas forças produtivas. Conforme Fromm, em O Capital, Marx expressou claramente o alvo do socialismo, De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce-se, desenvolvendo-se, o reino do imprescindível [com sua evolução, o reino da necessidade se expande, porque suas precisões crescem]. É que aumentam as necessidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas para satisfazê-las. A liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a natureza humana. Mas, esse esforço situar-se-á sempre no reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho.89 Nesta passagem, encontram-se todos os elementos essenciais do socialismo, segundo Fromm, ou seja: a produção é associativa em substituição à produção competitiva; a produção passa a ser racionalmente planejada e executada, como também sua distribuição controlada, conforme a necessidade de cada produtor; o trabalho deixa de ser alienado, estranhado, pois teremos o homem ativo, criativo e produtivo; e, por fim, o tempo livre do homem será ampliado com o desenvolvimento das forças produtivas que o liberará para o desenvolvimento das suas forças humanas, das suas potencialidades criativas, desenvolvendo, assim, seus talentos naturais. Ao contrário desse objetivo do tempo livre para o desenvolvimento pleno do homem, Castoriadis90 explicita que a redução da jornada de trabalho é consequência do desenvolvimento tecnológico das forças produtivas e de um processo de produção direcionado para satisfazer as necessidades humanas. A tecnologia no capitalismo, segundo ele, visa a 89 MARX, O Capital, v. I, p. 942. Cf. CASTORIADIS, Cornelius. Técnica. In: As encruzilhadas do labirinto 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 261. 90 233 suprimir o papel do trabalhador na produção. O capitalista escolherá, na medida do possível, o procedimento que lhe dê maior independência no processo de produção em relação aos trabalhadores, isto é, ele prefere depender das máquinas do que dos homens. O limite desta tendência é a automatização integral da produção, porém utópico, pois, para atingir esse objetivo é preciso automatizar o processo de consumo; no entanto, a redução da jornada de trabalho promovida pelo avanço tecnológico no capitalismo se restringe então para a minoria “privilegiada” de trabalhadores, que trabalha para consumir, enquanto a maioria é excluída do processo de exploração do capital e, assim, do consumo da produção da riqueza. Por outro lado, Mészáros afirma que A produção ou é conscientemente controlada pelos produtores associados a serviço de suas necessidades, ou os controla impondo a eles seus próprios imperativos estruturais como premissas da prática social das quais não se pode escapar. Portanto, apenas a auto-realização por meio da riqueza de produção (e não pela produção da riqueza alienante e reificada), como a finalidade da atividade-vital dos indivíduos sociais, pode oferecer uma alternativa viável à cega espontaneidade auto-reprodutiva do capital e suas conseqüências destrutivas. Isto significa a produção e a realização de todas as potencialidades criativas humanas, assim como a reprodução continuada das condições intelectuais e materiais de intercâmbio social.91 Assim sendo, a configuração da sociabilidade no socialismo trabalha com a ideia de uma nova humanização a partir da “comunização” dos indivíduos. O homem é produtor de si mesmo, da realidade que o cerca, quer dizer, o homem é movimento na história, mas não movimento mecânico, e sim movimento como impulso, entusiasmo, vitalidade criadora e energia; a paixão humana é a faculdade essencial para homem alcançar o seu fim em si mesmo que é o homem autêntico, livre e sui generis. Desta feita, o socialismo como sistema antagônico ao capitalismo é uma necessidade histórica para que um novo movimento de desenvolvimento de um modo de produção social se dê. Isso favorece ao homem desenvolver suas forças essenciais, à medida que permite mais tempo livre com a redução do tempo de “trabalho necessário” (e a supressão do “trabalho excedente”) à sua sobrevivência material, para poder ter seu ócio criativo. Não foi à toa que Marx disse que [...] na sociedade comunista, em que cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode se aperfeiçoar no ramo que lhe agradar, a sociedade regulamenta a produção geral, o que cria para mim a possibilidade de hoje fazer uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer uma crítica após as refeições, a meu bel prazer, sem nunca me tornar caçador, pescador ou crítico.92 Para isso, é preciso superar a divisão capitalista do trabalho, ou seja, acabar com o 91 92 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 613. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 28-29. 234 trabalho unilateral, no qual os interesses do indivíduo isolado, da família isolada ou o interesse de todos os indivíduos que mantêm relações entre si estão em contradição. Na verdade, cada um tem uma atividade exclusiva e determinada, imposta pelo modo de produção capitalista, em que o indivíduo ou é caçador, ou é pescador ou é crítico não podendo desta forma realizar outras atividades que lhe agradem, pois a força objetiva do capital o impede de exercer atividades diversas que possam contribuir para o seu desenvolvimento humano. O socialismo, como perspectiva de construção da fase comunista, além de ter como tarefa atender as necessidades mais fundamentais do homem, tem como meta efetivar a essência do homem, superando o estágio de alienação econômico-social, quer dizer, abolir a autoalienação do homem numa sociedade reificada por relações estranhas de produção. Se no capitalismo, o homem é um ser carente, deficiente, um existente construído em torno de um “não”, um “não ter”, então é preciso criar as condições subjetivas e objetivas da revolução que são os passos fundamentais para a construção do socialismo. O descontentamento com a vida real, baseado na carência material e espiritual, na falta de algo, na exclusão da maioria do banquete científico e tecnológico e no crescente desemprego crônico, faz com que o impulso de insatisfação torne-se um elemento sensível e propulsor de um movimento que seja a antítese dessa vida real. Segundo Lênin, só se constrói o Estado proletário, socialista, se se destruir o Estado burguês. Este Estado é o grande Leviatã (monstro mitológico grego) que mantém os interesses da classe dominante intactos ou preservados. Baseado nas reflexões de Marx e Engels, Lênin trata logo de desmistificar essa concepção de Estado universal, neutro. O Estado é uma instituição política e jurídica de dominação de uma classe sobre outra, afirma Lênin. E como diz o próprio Engels, Sendo o Estado uma instituição meramente transitória, que é utilizada na luta, na revolução, para submeter os adversários pela violência, é um absurdo falar de Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda necessitar do Estado, não o necessitará no interesse da liberdade, mas para submeter os seus adversários, e tão logo que for possível falar-se de liberdade, o Estado tal com tal deixará de existir. Por isso, nós proporíamos que fosse dita sempre, em vez da palavra Estado, a palavra “comunidade [...]93 O próprio Marx anota que há uma etapa de transição revolucionária entre a sociedade capitalista e a comunista, a saber, um período de transição política com a tomada de poder pela nova classe revolucionária, o trabalhador. Essa fase ele a denomina de “ditadura do 93 ENGELS, Friedrich. Cartas de Engels a Augusto Bebel. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas, v. 2, p. 229-230. (Grifo do autor). 235 proletariado” que significa a hegemonia do proletariado no poder de Estado, como instrumento de coerção à reação contrarrevolucionária da classe destituída. No Manifesto Comunista, Marx e Engels afirmam que “[...] a primeira etapa da revolução operária é erguer o proletariado à posição de classe dominante, à conquista da democracia.” 94 E anotam que o proletariado usará de todo seu poder para tirar aos poucos o capital da burguesia, ou seja, centralizando os meios de produção nas mãos do Estado, pois, como nova classe dominante, o proletariado organizado aumentará o mais rápido possível o total das forças produtivas. 95 Portanto, afirma Marx, “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado.”96 Na concepção de Lênin, portanto, o socialismo seria a primeira fase de realização do comunismo, isto é, a sociedade comunista inferior originada da sociedade capitalista. Nessa primeira fase – o socialismo ou comunismo inferior – os meios de produção capitalista são expropriados e se tornam propriedades coletivas. A partir daí, cada indivíduo da nova fase executará uma parte do trabalho socialmente necessário, produzindo determinados produtos para os “armazéns públicos” e também recebendo um certificado que lhe dará o direito de receber uma determinada quantidade de produtos à satisfação de suas necessidades. Nessa condição, diz Lênin, funda-se o “reino da aparente igualdade”. Por outro lado, nessa primeira fase não se pode abolir totalmente o “direito burguês”, mas só parcialmente, pois este assegura a propriedade privada individual que não tem caráter mais de classe. O “direito burguês”, nesse caso, tem como função regular a distribuição dos produtos e do trabalho entre as pessoas no socialismo, afirma Lênin. Ou como ele mesmo assevera: “‘Quem não trabalha, não come’, esse princípio socialista já está realizado; ‘para uma soma igual de trabalho, soma igual de produtos’, este outro princípio socialista está igualmente realizado. Mas isto ainda não é o comunismo e ainda não abole o ‘direito burguês’”. 97 Em suma, o “direito burguês” ainda prevalecerá para orientar o novo modo de trabalho humano em bases socialistas e, por outro lado, a morte do Estado só dar-se-á quando não houver mais capitalistas, classes sociais antagônicas, quando se sucumbe o processo de dominação de uma classe sobre outra. Assim, o que vai caracterizar particularmente o regime pós-capitalista não é a abolição da propriedade geral, mas a abolição da propriedade burguesa, como diz Marx no Manifesto. 94 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 112. Cf. Ibid., p. 112. 96 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: Obras escolhidas, v. 2, p. 221. (Grifo do autor). 97 LÊNIN, O Estado e a revolução, p.116-117. 95 236 “Muda-se apenas o caráter social da propriedade, que perde sua vinculação de classe.” 98 3.3.2 O comunismo Poderíamos dizer que o comunismo seria a realização da genuína liberdade humana, o mais elevado estágio social que a humanidade alcançaria para desenvolver suas potencialidades humanas, pois teoricamente seria uma sociedade baseada na comunhão dos bens materiais e intelectuais. O trabalho tornar-se-ia então a atividade humana mais sublime dentre todas as atividades, a garantia da realização humana no homem. O trabalho sob o imperativo da plena liberdade seria a mais verdadeira e autêntica atividade de realização da essência do homem. Há, nesse sentido, uma reconciliação entre o homem e a natureza, entre o homem e os outros homens, o homem consigo mesmo, ou melhor, uma recuperação da unidade entre essência e existência, trabalho manual e trabalho intelectual; isso, claro, num novo patamar de produção e distribuição da riqueza social comunalmente realizada. No comunismo, o intercâmbio humano não se limitaria apenas ao mero processo de troca de mercadorias entre produtores e consumidores, mas também a troca entre as atividades individuais, regida pelo princípio universal comunista: De cada um conforme suas capacidades a cada um segundo suas necessidades. Dessa maneira, resgata-se o princípio da qualidade, fundamental para a contabilidade dos produtores associados, ou seja, seria um meio de conferir significado não mais fetichizado à quantidade. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx deixa claro que Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.99 Dessa forma, a produção e a distribuição seriam reguladas a partir das reais necessidades dos indivíduos, e não mais de necessidades artificiais, supérfluas, levando em consideração os limites dos recursos naturais do planeta, do esforço humano e a preservação do meio ambiente. Haveria então um novo esquema de interação em substituição ao esquema objetal de produção, ou seja, uma nova forma antiautoritária de cooperação seria introduzida 98 99 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 107. MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: op. cit., p. 214-215. (Grifo nosso). 237 nas unidades produtivas como uma nova relação entre cooperação técnica e cooperação interativa, substituindo o capitalista por uma autodireção coletiva dos trabalhadores, de tal modo que a organização da produção, na base da divisão do trabalho, seria normalizada pelas condições de possibilidade da autodireção coletiva.100 A concepção de comunismo aparece em várias obras de Marx, seja nos Manuscritos Econômico-Filosóficos,seja na A Ideologia Alemã, seja no Manifesto do Partido Comunista e até mesmo na Crítica ao Programa de Gotha. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx tenta diferenciar o verdadeiro comunismo do comunismo utópico, grosseiro, de natureza democrática e despótica, mas numa linha, digamos, mais antropológica, de resgate do homem perdido na alienação de si mesmo, do produto do seu trabalho, da sua atividade de trabalho e em relação aos outros homens, a saber, alienação no sentido de perda do homem da sua humanidade e de pura servidão ao outro. A concepção comunista que Marx sempre ressalta nesta obra é a do resgate do homem como ser genérico, perdido em si mesmo e para si próprio ou sua autoalienação, ou seja, a recuperação do ser social do homem, da sua essência separada da sua existência. Marx também nos sugere como esse processo de abolição da alienação capitalista pode ocorrer a partir da lei da dialética implícita na formação econômica capitalista, isto é, a contradição do sistema. Paradoxalmente a propriedade privada burguesa cria as condições objetivas e subjetivas de sua própria negação, isto é, o trabalho como antítese à sua condição de ser aí no mundo, e a sua própria lógica de valorização do valor que coloca a propriedade privada, na forma de capital, num labirinto sem saída da sua limitação de ampliação enquanto possibilidade de autovalorização. Marx ressalta também que o comunismo possibilita a reapropriação do homem de sua vida genérica, do seu ser enquanto ser de sentidos humanos que captam outros sentidos e dão sentidos à vida. Por outras palavras, é a única maneira de o homem recuperar todos os sentidos físicos e intelectuais que fazem dele um “ser-ter”, isto é, ser é ter e ter é ser, uma unidade dialética que forma o humano no homem. E, por fim, como ele mesmo enfatiza nesta obra, O comunismo constitui a fase da negação da negação e é, por conseguinte, para o subsequente desenvolvimento histórico, factor real, necessário, da emancipação e reabilitação do homem. O comunismo é a forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não constitui em si mesmo o objectivo da evolução humana – a forma da sociedade humana.101 100 101 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993. p. 283. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 205. (Grifo nosso). 238 Na obra A Ideologia Alemã, marco epistemológico do nascimento do novo materialismo (o materialismo dialético e histórico como superação radical da filosofia de Hegel e da crítica ao materialismo antropológico de Feuerbach), Marx pensa o comunismo em bases materiais da história, quando desenvolve teoricamente categorias como “relações sociais de produção”, “forças produtivas”, “ideologia”, “divisão social do trabalho”, “Estado”, “classe dominante” “proletariado”, “classe social”, “propriedade” etc. Na verdade, toda classe quer realizar sua hegemonia, conquistando o poder do Estado e, assim, apresentar seu interesse particular como interesse de todos. O proletariado enquanto classe que aspira ao poder é uma exceção, porque ele quer abolir todas as formas de dominação e exploração. Esta classe revolucionária quer abolir todas as classes, e até mesmo a si própria enquanto classe proletária, como também libertar a sociedade da tutela do Estado. Esta é a tese da teoria política do marxismo acerca da hegemonia do proletariado, do seu papel de direção da classe oprimida e explorada contra a hegemonia burguesa. 102 O comunismo significa então a abolição do trabalho, mas do trabalho forçado que impõe ao ser humano uma divisão obrigatória do trabalho. Por outro lado, o homem da sociedade comunista será o homem total que poderá transitar ao seu bel-prazer de uma tarefa a outra, conforme sua vontade. Mas para isso, o proletariado tem que existir num plano histórico-mundial, quer dizer, o comunismo só se efetiva realmente no plano históricomundial. Conforme Marx, o comunismo não é um estado a ser implantado ou um ideal em que a realidade lhe seja subordinada, mas um movimento real que objetiva superar o capitalismo com suas contradições e antagonismos sociais. A diferença da revolução comunista em relação às outras revoluções é que Em todas as revoluções anteriores, o modo de atividade permanecia inalterado e se tratava apenas de uma outra distribuição dessa atividade, de uma nova divisão do trabalho entre outras pessoas; a revolução comunista, ao contrário, é dirigida contra o modo de atividade anterior, ela suprime o trabalho e extingue a dominação de todas as classes abolindo as próprias classes, porque ela é efetuada pela classe que não é mais considerada como uma classe na sociedade, que não é mais reconhecida como tal, e que já é a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as nacionalidades, etc. , no quadro da sociedade atual.103 No entanto, isso não acontece a partir de uma vontade puramente subjetiva ou a partir de uma vontade politicamente romântica e ingênua da história humana. Nessa perspectiva, o capitalismo precisa se universalizar mundialmente entre países também de economias 102 Cf. GORENDER, Jacob. Introdução. In: MARX e ENGELS. A Ideologia Alemã, p. XXXIII. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 85-86. Não é à toa que Mészáros afirma que “A consciência comunista foi definida em A Ideologia Alemã como uma consciência da necessidade de uma revolução fundamental.” (MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 1048). 103 239 assimétricas, subdesenvolvidas, justamente para aumentar a expansão das forças produtivas que promovem o intercâmbio do mercado mundial. Este é o critério da universalidade introduzido em A Ideologia Alemã, jamais menosprezado por Marx e Engels. Mas vale ressaltar que o comunismo não se realiza somente pela transformação radical da estrutura e superestrutura social, mas principalmente pela formação de uma consciência comunista (internacional). Como diz Lukács em História e consciência de classe, [...] o portador deste processo de consciência é o proletariado. Na medida em que a sua consciência surge como conseqüência imanente da dialéctica histórica, ele próprio aparece como dialéctico. Por outras palavras, esta consciência é apenas a expressão da necessidade histórica.104 Além do mais, a consciência, oriunda do movimento prático revolucionário proletário, apreende também os fundamentos econômicos que determinam o processo de alienação do trabalho social, logo, do indivíduo singular. Entretanto, quando Marx e Engels pressupõem o comunismo como a forma de propriedade coletiva evoluída, a partir do desenvolvimento das forças produtivas que produzem o excedente para a sociedade não correr o risco da escassez como no comunismo primitivo, eles também analisam as formas anteriores de propriedade privada como pressuposto histórico-dialético para a efetivação daquela. No Mundo Antigo e na Idade Média, a primeira forma de propriedade era a tribal, condicionada entre os romanos pela guerra e os germanos pela pecuária. Dizem Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, que a propriedade tribal aparece como propriedade de Estado, cujo direito a ela pelo indivíduo era apenas de possessio que se limita a uma propriedade fundiária; a propriedade privada mesmo surge entre os povos antigos, como entre os modernos, como propriedade mobiliária. Da posição de propriedade tribal, ela passa a evoluir para diferentes estágios: propriedade fundiária feudal, propriedade mobiliária corporativa, capital manufatureiro até chegar ao capital moderno realizado pela grande indústria e concorrência universal, tornando-se propriedade privada em estado puro, despojada de todo aspecto coletivo e estatal. É a tal da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade. Daí surgir o direito privado 104 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 198. Vale salientar que Lukács, no Posfácio de 1967 deste livro, faz sua autocrítica afirmando que História e consciência de classe se dirige contra os fundamentos da ontologia do marxismo, ou seja, o trabalho e o desenvolvimento do homem no trabalho. Por outro lado, ele admite que a concepção de práxis revolucionária correspondia ao utopismo messiânico do comunismo de esquerda e não a verdadeira doutrina de Marx; logo delimitava a consciência autêntica do proletariado, conferindo-lhe uma objetividade prática incontestável. Assim como super-hegelianiza o sujeito-objeto idêntico na história humana real na categoria proletariado, o partido, isto é, como portador de um imperativo moral. Mas destaca no livro o aspecto positivo, ao dar a categoria da “totalidade” o lugar metodológico central que sempre ocupara na obra de Marx. Cf. LUKÁCS, op. cit., p. 356 et seq. 240 com o fim da comunidade natural. 105 No entanto, se o comunismo é uma nova forma justa e equitativa de apropriação e distribuição das coisas produzidas pelo homem, então o comunismo é deveras trabalho socialmente compartilhado, ou trocas de atividades entre os vários indivíduos sociais sem ser troca na forma dinheiro. Desse modo, afirmam Marx e Engels que “Por isso mesmo, a apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção já é o desenvolvimento de uma totalidade de faculdades nos próprios indivíduos. Essa apropriação é, além disso, condicionada pelos indivíduos que se apropriam.”106 Portanto, a organização do comunismo é mesmo econômica, a saber, a criação de uma nova base material de produção que permite engendrar as condições de existências para associar e unir as pessoas. Desta feita, na visão de Marx e Engels, os conflitos históricos têm sua gênese na contradição entre as forças produtivas e o modo de trocas; e esta contradição provocou várias vezes na história humana o aparecimento de revoluções, só que nunca comprometendo a propriedade privada e a divisão social do trabalho. Conforme Marx e Engels, “os indivíduos de onde partiam as revoluções criavam ilusões sobre a sua própria atividade, segundo o grau de cultura e seu estágio de desenvolvimento histórico.”107 De tal modo que, para Marx e Engels, é na comunidade de indivíduos proletários que torna-se possível eles exercerem o controle das forças materiais e abolirem a divisão hierárquica do trabalho, quer dizer, é só na comunidade que a liberdade individual do ser humano é possível, como também é possível obter meios para desenvolver suas capacidades humanas em todos os sentidos. Marx e Engels acreditam, portanto, que “Na comunidade real os indivíduos adquirem sua liberdade simultaneamente com sua associação, graças a essa associação e nela. 108” Se a associação dos indivíduos até o momento não era uma associação voluntária, mas uma união necessária, fundada em determinadas condições injustas, então no comunismo – com o fim da sociedade classista, da autoalienação humana, da divisão injusta do trabalho e do poder do Estado coercitivo – a associação dos indivíduos promoverá a verdadeira realização da individualidade humana, na qual a igualdade de condições sociais permitirá o desenvolvimento das faculdades humanas, de suas essências e a realização da liberdade plena. No Manifesto Comunista, o termo “comunismo” é uma palavra que já se contrapunha ao “socialismo”, pois naquele ano de 1847 o socialismo tinha uma acepção vinculada aos socialistas utópicos, tais como os fourieristas na França e os owenistas na Inglaterra. “[...] o 105 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 73-75. Ibid., p. 82-83. 107 Ibid., p. 92. 108 Ibid., p. 93. 106 241 socialismo significava um movimento burguês, e o comunismo, um movimento da classe trabalhadora.”109, ou seja, se no continente europeu o socialismo era muito bem considerado, o comunismo, ao contrário, já era menos aceito. O socialismo utópico visava a revoluções de cunho mais político sem destruir totalmente a base das estruturas da sociedade capitalista, enquanto o comunismo objetivava construir radicalmente a nova sociedade de produtores associados sob novas estruturas e superestruturas sociais. O comunismo no Manifesto é, pois, o movimento libertário dos trabalhadores em face de todo tipo de opressão e exploração das estruturas sociais burguesas, a saber, a força dos trabalhadores em movimento que se aglutina e se expande para se confrontar com a força do capital. O que caracteriza o comunismo não é somente a derrubada da dominação burguesa e a conquista do poder político ou a abolição das relações de propriedade, mas a abolição da propriedade burguesa. Se no capitalismo a propriedade privada é constituída a partir da exploração do trabalho excedente, alienado-estranhado, realizando o processo de acumulação de capital, no comunismo o trabalho acumulado torna-se meio de ampliação, enriquecimento e promoção de existência dos trabalhadores. Sendo assim, o comunismo é a sociedade onde o ser humano torna-se independente e exercita sua verdadeira individualidade, embora essa associação comunal se faça numa interdependência laboral dos indivíduos, mas agora sob o imperativo da liberdade e da criatividade, em que “capacidade” e “necessidade” humanas se relacionam de forma justa e equilibrada, realizando o lema comunista de cada um conforme a sua capacidade a cada um segundo a sua necessidade. De acordo com Marx e Engels, Desde o momento em que o trabalho não pode mais ser convertido em capital, em dinheiro, em renda da terra, num poder capaz de ser monopolizado, isto é, desde o momento em que a propriedade individual não pode ser mais transformada em propriedade burguesa, em capital, dizeis que a individualidade [burguesa] está suprimida.110 O comunismo abole, desse modo, o tráfico, as relações capitalistas de produção e de troca e a própria burguesia enquanto classe hegemônica. Para Marx e Engels, o comunismo não impede ninguém de se apropriar dos produtos da sociedade, mas sim de se apropriar do trabalho alheio por meio da mercantilização da força de trabalho. Daí ser o comunismo o total desaparecimento da produção capitalista tal como também o desaparecimento da cultura de classe burguesa, isto é, uma cultura de opressão, de subjugação de uma classe por outra, uma cultura feita sob o adestramento ideológico da classe no poder, enfim, uma cultura também da exploração do trabalho feminino e infanto juvenil. Vale ressaltar que o capitalismo contém o 109 110 ENGELS. Prefácio à Edição Alemã de 1890. In: LASKI, op. cit., p. 87. MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 108. 242 germe da nova sociedade comunista. As contradições imanentes ao sistema, quer dizer, suas crises, seus limites de expansão e acumulação de capital, queda nos lucros, desemprego crônico etc., são fatores antagônicos ao proletariado que pode reagir contra o sistema que ou o explora ou o exclui. O proletário se torna assim uma força demolidora, a partir do momento em que sua insatisfação e revolta se encapsulam de uma consciência revolucionária para ação. Por outras palavras, quando o proletariado se apropria da teoria revolucionária e esta se torna força de costume, é a própria revolução que acontece. Como nos diz Lukács, O que a consciência do proletário “reflete” é, pois, o elemento positivo e novo que brota da contradição dialéctica da evolução capitalista. Não é, portanto, algo que o proletariado invente ou “crie” a partir do nada, pelo contrário, é a conseqüência do processo de evolução na sua totalidade; este elemento novo só deixa porém de ser uma possibilidade abstracta para se tornar uma realidade concreta quando o proletariado eleva a sua consciência e a torna práctica.111 A revolução comunista é, portanto, a ruptura mais radical com as relações capitalistas, acarretando o rompimento mais radical com suas ideias norteadoras de evolução social. Tal ruptura é o concreto clamor social dos oprimidos revoltados em busca de um novo modo de existência social mais humanizado. Dependendo também das condições políticas e econômicas, as medidas para o rompimento de classe com a ordem burguesa podem se dar de formas específicas em cada lugar, ou melhor, em cada país. E para finalizar, o comunismo para Marx “é uma associação [humana] na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos.”112 111 LUKÁCS, História e consciência de classe, p.227. MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 113. Tonet aponta três condições para revolucionar a sociedade: uma teoria revolucionária, um sujeito revolucionário e uma situação revolucionária. São condições que nem sempre estão presentes ao mesmo tempo; mas para que haja revolução é preciso que tais condições se encontrem e se articulem. Cf. TONET, Ivo. Sobre o socialismo, p. 14-16. Disponível em: <http://www.ivotonet.xpg.com.br/arquivos/sobre_o_socialismo.pdf>. Acesso em: 24 maio 2012. 112 243 CAPÍTULO 4 MARXISMO E FORMAÇÃO SINDICAL CUT 244 4.1 Marxismo e Formação Sindical CUT – Introdução Abordar a temática sobre a relação entre formação sindical CUT e marxismo é hoje quase uma impossibilidade analítica de se fazer, pois partimos do pressuposto de que há tempos o movimento sindical cutista abandonou essa perspectiva marxista de compreensão da realidade capitalista (se é que tinha alguma), quando optou por fazer um sindicalismo negociativo, propositivo, corporativo, de colaboração de classes, ou seja, um sindicalismo não mais de confronto entre classes, mas de cooperação com o capital e o Estado burguês em determinados momentos da luta. Essa é certamente a grande crise do movimento sindical contemporâneo, ou seja, uma crise de identidade ideológica ou de “desideologização” da luta, da ausência de uma utopia antagônica (comunismo) ao capitalismo, de abandono da luta de classes, sobretudo, depois da queda do socialismo real no Leste europeu. Em outras palavras, segundo Giovanni Alves, a crise do sindicalismo se apresenta não apenas como um processo da diminuição de trabalhadores sindicalizados causado pelo desemprego crescente, mas principalmente pela incapacidade estratégica do sindicalismo em adotar posturas de confronto diante da ofensiva do capital na produção, pois os sindicatos ficaram presos a uma lógica reativo-reivindicativa da luta, a qual ele chamou de “defensivismo de novo tipo”, de viés neocorporativo1. Com suas palavras: Na verdade, o novo complexo de reestruturação produtiva, com suas determinações estruturais, tais como a integração do país à mundialização do capital pela abertura da economia, atingem, de modo abrupto, a subjetividade da classe, impulsionando mais ainda a crise das estratégias sindicais (e políticas) de cariz classista e contribuindo para o desenvolvimento de uma crise do sindicalismo no Brasil caracterizado, principalmente, pelo predomínio de um defensivismo de novo tipo, de cariz neocorporativo.2 No Brasil, o rumo do movimento sindical foi um tanto diferente em relação aos países europeus ocidentais, como também no Canadá e Estados Unidos, a saber, vivendo um período longo de 21 anos de Ditadura Militar (1964-1985), sob uma difícil situação econômica no final do Regime, com hiperinflação, recessão e redução dos salários, o sindicalismo brasileiro renasce com força no final dos anos 1970 sob a marca da combatividade, da luta de confronto com a classe patronal, das greves de massa em São Bernardo do Campo e Osasco, ou melhor, 1 Cf. ALVES, Giovanni. A nova ofensiva do capital, crise do sindicalismo e as perspectivas do trabalho – O Brasil nos anos 90. In: TEIXEIRA, Francisco José e OLIVEIRA, Manfredo de (Orgs.). Neoliberalismo e reestruturação produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. Fortaleza: Cortez-UECE, 1996. p. 109-161. 2 ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. p. 185. Alves ressalta que algumas análises dão mais ênfase às determinações político-ideológicas em detrimento da análise estrutural do processo de produção capitalista no Brasil, das transformações produtivas no complexo capitalista, de cariz tecnológico-organizacional (Cf. ALVES, 2005, p. 299). 245 no ABC paulista.3 Embora a crise do modo de produção fordista nos países europeus desenvolvidos, Estados Unidos e Canadá tenha se efetivado de forma mais aguda e rápida, no Brasil ela demorou um pouco a se concretizar, pois tínhamos uma economia “fechada” aos mercados internacionais e o neoliberalismo foi adiado a entrar no país num primeiro pósgoverno militar (Nova República/com o presidente Sarney), mesmo já tendo iniciado no Chile, Argentina e Uruguai, pois a conjuntura política interna brasileira obstaculizava a implantação do neoliberalismo, devido aos movimentos sociais ainda em efervescência; além, claro, do forte nacionalismo dos governos militares. Sabemos, entretanto, que a cultura do debate marxista foi muito mais presente e intensa na época da II Internacional (1889-1914), na qual sindicatos anarquistas, socialistas e comunistas travaram discussões calorosas sobre o fim do capitalismo e o devir do socialismo. Toda discussão e embates políticos com suas polêmicas gravitavam na órbita teórica das estratégias e táticas dos partidos comunistas, socialistas e social-democratas, como também na dos sindicatos de caráter anarquista, marxista etc., ou seja, de como preparar a classe proletária para a tomada do poder com a crise final do capitalismo e para a construção do socialismo. Nesse sentido, havia várias perspectivas teóricas e práticas como a do marxismo ortodoxo, heterodoxo, reformista, revolucionário etc., ou seja, de que o socialismo poderia acontecer com o assalto do poder da burguesia imperialista pelo proletariado revolucionário ou apenas por um processo evolutivo (darwinista) por meio de reformas graduais do Estado burguês, das contradições e crises econômicas do sistema capitalista, ou melhor dizendo, da conquista total do Estado e do parlamento burguês pelo proletariado. Analisar a maneira como a classe trabalhadora organizada vem se preparando teorica e praticamente para enfrentar esse desafio histórico é que nos propomos aqui, claro, dentro de certos limites, porque a extensão do assunto é enorme, e numa parte desta pesquisa fica difícil abordar em toda sua profundidade e extensão. Por isso, delimitamos a questão historiando um pouco como eram realizadas as formações políticas dos trabalhadores pelo sindicalismo brasileiro. Um breve relato disso já é um ponto de partida inicial para vermos hoje a diferença da qualidade da formação política realizada pelos sindicatos, no caso aqui, os sindicatos de esquerda no Brasil, tendo como referência a Central Única dos Trabalhadores (CUT) que é atualmente a maior Central Sindical no campo da “esquerda” nas Américas. 4 Na verdade, uma 3 Cf. RODRIGUES, Iram Jácome (Org.). O novo sindicalismo: vinte anos depois. Petrópolis: Vozes, 1999. A CUT é hoje a maior Central Sindical da América Latina e a quinta do mundo, com 3.364 entidades filiadas (registradas em 2012 no Mte) com 7.464.846 sócios, representando 22.034.145 trabalhadores. Disponível em:< http: //www.redebrasilatual.com.br/temas/trabalho/2011/02/cut-chega-a-2-mil-sindicatos-registrados-noministerio-do trabalho-mas-desconfia-de-criterios >. Acesso em: 14 nov. 2011. 4 246 formação política a partir da teoria marxiana nos sindicatos filiados à CUT é quase uma improbabilidade factível de existir, pois seus programas de formação política eram ou são baseados mais em contar a história do movimento sindical, em estratégias e lutas políticas a se definirem, ou melhor, mais ligados à formação de lideranças e de gestores sindicais etc., tendo, no máximo, feito uso da obra marxiana, O Manifesto do Partido Comunista. A nosso ver, a carência de pessoas especializadas em marxismo tenha sido também obstáculo para que a formação política nos sindicatos de esquerda no Brasil se desse a partir das teorias de Marx e Engels e de seus intérpretes. Fazendo uma digressão, Massimo Salvadori, ao analisar o pensamento kautskyano para resgatar a sua importância, diz que, para Kautsky, o marxismo é um “instrumento cognoscitivo da história social e direção do movimento prático no rumo do socialismo.”5 Em outras palavras, o marxismo era concebido por Kautsky, tanto um conhecimento que descobriu as leis de um processo civilizatório que levava à igualdade social, como uma ciência autônoma da sociedade humana e dos seus modos de desenvolvimento. Nesse sentido, a concepção materialista da história, para Kautsky, tem como objetivo apreender as leis que regulam o desenvolvimento histórico, permitindo que o homem organize a maneira mais eficaz de realizar sua práxis, isto é, as leis sociais que só podem ser encontradas a partir do estudo da sociedade. Sendo assim, “O estudo da história é necessário para fornecer ao proletariado uma memória do passado, de seu próprio ponto de vista;” 6 mas, segundo Salvadori, outra meta importantíssima de Kautsky era mostrar como a memória histórica forma a consciência política do proletariado que evita a ação arbitrária no jogo do embate entre classes. Portanto, o objetivo de Kautsky era popularizar o saber, quer dizer, iluminar o operário para que ele pudesse estar de acordo com a ciência, e na Neue Zeit (Revista socialdemocrata) Kautsky já fazia esse papel de divulgar o marxismo como teoria global da sociedade, como afirma Salvadori7. Tomamos então como objeto de análise a CUT, isto é, o seu projeto nacional de formação política para suas instituições filiadas, desde 1984 até o presente. Entender como se deu essa mudança radical de uma Central Sindical que, a princípio, formava politica e ideologicamente seus filiados para uma Central que hoje prioriza a formação profissional de seus associados – financiada por órgãos do Estado em sintonia com a perspectiva educativa neoliberal – é o que nos propomos aqui. Porém, faremos antes um breve histórico da 5 SALVADORI, Massimo L. Kautsky entre ortodoxia e revisionismo. In: HOBSBAWM, Eric J. História do marxismo II, p. 307. 6 Ibid., p. 309. 7 Cf. SALVADORI, op. cit., p. 303. 247 formação político-sindical no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX, a partir da influência dos imigrantes de perfil anarquista, socialista e comunista, ou seja, suas lutas, sua formação educativo-sindical nas escolas criadas pelas próprias associações e sindicatos etc. Em seguida, faremos um resumo histórico de como foi criada a CUT e sua formação político-sindical, a partir da crise do Regime Militar e fim do sindicalismo pelego. Por fim, exporemos esse processo de transição de uma CUT combativa e classista, cuja formação sindical era consequência dessa postura política, para uma CUT colaboracionista e/ou concertacionista com o Estado burguês e o grande capital, refletindo essa posição político-ideológica, a posteriori, em seus cursos de formação sindical. 4.2 A Política de Formação Sindical no Brasil no Início do Século XX Antes de abordar a questão da Política Nacional de Formação da CUT (Pnf), é necessário fazer um breve histórico sobre as primeiras experiências do movimento operário brasileiro no campo da educação profissional no começo do século XX. Segundo Manfredi, entre 1902 e 1920, as propostas educativas dos grupos anarco-sindicalistas proliferavam no interior do movimento sindical brasileiro. O projeto educativo dos libertários, ou dos anarquistas, pautava-se pela perspectiva de uma formação para a emancipação político-ideológica e cultural da classe trabalhadora e, portanto, combinava [...] a educação para a ação sindical (ou seja, formação político-sindical – através da imprensa operária, dos congressos, dos centros de estudo) com a educação escolar destinada à criança (escolas modernas) e aos adultos (universidade popular), num projeto global, classista, autônomo e independente do Estado. Além disso, essas práticas educativas articulavam-se com outras atividades culturais massivas e populares, que eram promovidas pelos libertários nos bairros onde os operários residiam.8 Contudo, no início dos anos 1920, conforme Manfredi, algumas entidades sindicais se preocupavam em oferecer cursos de formação mais sistemática de caráter profissional. Por exemplo, em 1923, a União dos Alfaiates do Rio de Janeiro deu um curso de corte e desenho aos profissionais da área de alfaiataria e, neste mesmo ano, a Associação dos Funcionários de Bancos do Estado de São Paulo promoveu cursos práticos de línguas e contabilidade, realizando a posteriori o primeiro curso de contabilidade brasileiro em 19299; também em São Paulo, a União dos Gráficos indicava no seu estatuto a criação de um Centro Técnico e Instrutivo das Artes Gráficas para a qualificação profissional; já no Rio de Janeiro, em 1930, a 8 MANFREDI apud TUMOLO, Paulo Sérgio. Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista. Campinas-SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 137-138. 9 Cf. MANFREDI, Silvia Maria. Educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002. p. 92. 248 União dos Trabalhadores Gráficos ministrou um curso de novas técnicas que abordava estudos de cálculo sobre as velocidades de impressão das novas máquinas de imprensa. Para Manfredi, essa preocupação das entidades sindicais em requalificar seus associados nas mais diversas categorias profissionais estava relacionada às transformações nas bases técnicas e organizacionais do sistema de produção, havendo assim o envolvimento do movimento sindical com a formação profissional dos trabalhadores. Portanto, de acordo com Manfredi, “[...] a apropriação e a manutenção do saber técnico, constituem uma das ‘bandeiras históricas’ do movimento operário brasileiro, contra a crescente desqualificação e a expropriação do saber a que o capital os têm submetido [...].”10 No caso específico do Ceará, a preocupação com a instrução pública e profissional dos trabalhadores, através das escolas, já se mostrava presente nos grandes jornais sindicais e partidários da época e até mesmo em revistas como o Trabalhador Graphico, o Ceará Socialista, A Centelha, O Cearense, a Revista Phenix, dentre outros. Como afirma Oliveira do Rio, em sua Tese de Doutorado, a questão educacional era um tema bastante candente ao longo da história dos trabalhadores que tomavam para si a tarefa de formar escolarmente os filiados de seus sindicatos ou associações, cujo objetivo era fazer com que eles tivessem acesso ao conhecimento universal, quer dizer, científico, técnico e humanista. Para Oliveira do Rio, na Primeira República já haviam ocorrido várias iniciativas do Movimento Operário Cearense em promover a educação dos trabalhadores, mesmo com diferentes matizes políticoideológicos de diversas instituições de resistência ou beneficentes, sobretudo àquelas ligadas à Igreja Católica.11 Nesse sentido, as práticas formativas realizadas pelo movimento operário cearense não eram homogêneas no que diz respeito ao horizonte político, pois os pontos de vista políticos eram conflitantes. Segundo Oliveira do Rio, havia no período três concepções diferentes em voga sobre a educação para os trabalhadores no Ceará: 1) uma educação voltada para a ascensão social a partir dos valores burgueses (sociedades beneficentes); 2) a educação como instrumento para a abolição das classes sociais, visando o socialismo (práticas formativas socialistas, anarquistas e comunistas); e 3) a educação pactuada entre Estado e Igreja, com seus projetos oficiais, tornando-se a educação um instrumento de controle social (grupos de orientação católica). No entanto, algumas dessas práticas, diz Oliveira do Rio, ou se fundiram 10 MANFREDI, op. cit., p. 244. Cf. OLIVEIRA DO RIO, Cristiane Porfírio de. O movimento operário e a educação dos trabalhadores na Primeira República: a defesa do conhecimento contra as trevas da ignorância. 2009. 273 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009. p. 225-226. 11 249 ou se distanciaram, dependendo das condições objetivas nas quais estavam inseridos os trabalhadores cearenses. 12 São, portanto, vários os movimentos libertários que se preocupavam com a formação político-educativa dos trabalhadores no Ceará. Por exemplo, em 7 de janeiro de 1906 foi fundada a Escola Pinto Machado em homenagem ao presidente da União Operária de Engenho de Dentro no Rio de Janeiro com a qual o Centro Artístico Cearense mantinha relações desde o 1º Congresso Operário Brasileiro (1906); outra é a Escola Elisa Scheid, criada em maio de 1906, que homenageava a presidente do Partido Operário Independente, isto é, uma escola voltada para o público feminino com aulas noturnas. Havia também a Liga Cearense contra o Analfabetismo, cujo lema era “Sem instrução não há liberdade, e sem liberdade não há civilização.”13 Por outro lado, o papel da imprensa libertária no Ceará foi de fundamental importância para o processo de formação política, crítica e libertária dos trabalhadores tais como os jornais sindicais O Regenerador (1908), Voz do Graphico (1920-1922) e O Combate (1891-1892 e 1896-1921). O Regenerador era um jornal sindical de caráter anarquista, nascido do processo de criação do Clube Socialista Máximo Gorki que apontava para a difusão do pensamento socialista, emitindo manifestos, notas, boletins e panfletos e expressando, assim, uma militância social da corrente socialista libertária do Ceará. A Voz do Graphico era um jornal da Associação Graphica do Ceará que propagava panfletos, manifestos, traduções, reproduções de obras seminais, como também estimulava a criação de bibliotecas básicas do pensamento socialista e promovia vendas de livros e periódicos. 14 O Combate era o órgão de divulgação do Partido Operário cearense que fazia oposição ao governo Luiz Antônio Ferraz (1889-1891), cuja circulação, a princípio, foi de mais ou menos um ano (1891-1892), voltando a circular em janeiro de 1896. Para Adelaide Gonçalves, que estudou a imprensa socialista no Ceará, Os jornais O Regenerador (1908), Voz do Graphico (1920-1922) e O Combate (1921) revelam no seu discurso valores e afinidades próximos do anarquismo e da estratégia sindicalista revolucionária que caracterizou a prática anarquista entre o operariado brasileiro até os anos 30 deste século [XX]. São eles os representantes no Ceará de uma imprensa que expressa uma visão de socialismo libertário constituída a partir do pensamento de Proudhon, Bakunin e Kropotkin, como também pelas idéias sindicalistas revolucionárias de Emille Pouget e Fernand Pelloutier.”15 12 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 227. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 230-231. 14 Cf. Ibid., p. 233-235. 15 GONÇALVES, Adelaide. Imprensa dos trabalhadores no Ceará: histórias e memórias. In: SOUZA, Simone (Coord.). História do Ceará. 4. ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2004. p. 285. 13 250 Todavia, conforme Oliveira Rio, as entidades operárias de resistência, contrapondo-se ao assistencialismo das entidades beneficentes e mutualistas como a católica e a maçônica, tinham uma concepção ampliada de educação, principalmente aquelas de perfil anarquista, identificando o sindicato com a escola. O horizonte anarquista em relação à educação é o “de instruir para redimir”, ou seja, buscava convocar a classe trabalhadora à organização e à luta classista, pois acreditava que defender o conhecimento contra as trevas da ignorância era libertar os operários das consciências embrutecidas. Assim pensava, por exemplo, a União dos Ferroviários Cearenses que fundou uma escola noturna para a educação de seus associados e também a de seus filhos, tendo por base a Escola Moderna (racionalista) do educador espanhol Francisco Ferrer. É importante salientar que a necessidade de instrução não era apenas para alfabetizar e promover a ascensão social dos trabalhadores, mas, sobretudo, possibilitá-los a compreender a sociabilidade em que estavam inseridos, objetivando construir projetos de emancipação. Cabe ressaltar também que os movimentos anarquistas e anarcosindicalistas divulgaram as ideias de Francisco Ferrer no Brasil que se materializaram em escolas populares, cujos princípios norteadores eram a liberdade, o livre pensamento, a solidariedade e a coeducação. A educação infantil aí se apoiava numa base científica e racional, eliminando qualquer forma de misticismo ou coisas sobrenaturais. Mas como diz Edgard Carone, “[...] o operário é antes de mais nada um autodidata: ele aprende ouvindo seu companheiro discursar ou escutando-o ler. Daí a importância de publicações operárias como jornais, panfletos e livros, ou do teatro e do sarau.”16 Ghiraldelli Jr., um estudioso das propostas educacionais do movimento operário, assevera que os militantes socialistas já viam obstáculos para o processo de divulgação das ideias de justiça, igualdade e distribuição das riquezas, e relembra que Lênin já fazia esse alerta em 1921, ou seja, “de como fazer política sem o pré-requisito da alfabetização”, que já era um entrave para vender os jornais socialistas, divulgar panfletos e organizar os sindicatos com pessoas alfabetizadas.17 Por isso, haver uma luta constante, na Primeira República, dos socialistas brasileiros pela criação e manutenção de escolas públicas, pois eles se viam obrigados a elaborar uma estratégia para formar as massas de trabalhadores. Por outro lado, os próprios socialistas, seja de partidos ou sindicatos, passaram a fundar suas próprias escolas operárias e 16 CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil (1887-1944). São Paulo: Difel, 1979. p. 12-13. Cf. GHIRALDELLI JR., Paulo. Educação e movimento operário no Brasil. São Paulo: Cortez Editora/ Autores Associados, 1987. p. 88. Vale dizer que este autor rompeu com o marxismo, aderindo ao neopragmatismo, ou melhor, cursou novo mestrado (1995) e novo doutorado (1998) na USP, sob a orientação da professora Olgária Matos, tratando de temas voltados ao pragmatismo. Hoje é membro fundador e atual diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA/Brasil) e coordena um Grupo de Trabalho Pragmatismo (GT Pragmatismo), da Associação Nacional Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 136, nota 99. 17 251 bibliotecas populares, por meio de recursos públicos ou com verbas dos próprios sindicatos. 18 Percebe-se, então, desde a Primeira República, a preocupação do Movimento Operário com a formação política e profissional do trabalhador a partir de três principais reivindicações: a luta pelo ensino gratuito, ensino laico e a necessidade do ensino técnico-profissional. Como conclui Oliveira Rio, os socialistas se dividiam por conceber dois tipos de educação, a saber, os que defendiam a educação formal das escolas públicas com conteúdos científicos tradicionais e os que apostavam na educação informal de caráter politizante dada pelos sindicatos.19 Havia, portanto, no começo da Primeira República (1889-1930) uma preocupação dos sindicatos e partidos operários de construir uma pedagogia socialista para formar politicamente o trabalhador. Tanto que construíram escolas operárias com ensino laico, como também fizeram bibliotecas populares. Isso pode ser comprovado no jornal gaúcho Echo Operário (1897-1899), jornal Ceará Socialista (1919), como também nas resoluções do primeiro Congresso Operário Brasileiro (1906) e documentos da primeira Conferência Operária de São Paulo (1908) em que menciona a criação da Universidade Operária. Por exemplo, no segundo Congresso Operário Brasileiro (1913), já se fazia menção contra a educação ministrada pela burguesia, e aconselhava os sindicatos e as classes trabalhadoras em geral a tomarem como princípios o método racional e científico, opondo-se, assim, ao ensino místico e autoritário. Em outras palavras, este Congresso queria que as entidades trabalhadoras criassem e divulgassem as escolas racionalistas, ateneus, cursos profissionalizantes de educação técnica e artística, revistas e jornais, como também as conferências e preleções, organizando, por conseguinte, certames e excursões de propaganda instrutiva e editando livros e folhetos.20 Assim, também foi ratificada no terceiro Congresso Operário Brasileiro (1920) a questão da formação dos trabalhadores, para abrir escolas capazes de tornar o trabalhador um homem de consciência livre e independente dos preconceitos presentes na educação burguesa capitalista; e para tal realização, defendiam a redução das horas de trabalho para facilitar a instrução e a educação do trabalhador, como se encontra na Moção dos Operários ao Comitê das Forças Revolucionárias, redigido em 1924. 21 Por conseguinte, a grande preocupação dos operários brasileiros, já nos anos 1920, era desenvolver uma intensiva propaganda contra todos os vícios e maus hábitos que prejudicavam moral e civicamente os trabalhadores e, para isso, era imprescindível que eles 18 Cf. GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 166. Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 167. (Grifo nosso). 20 Cf. Ibid., p.171. 21 Cf. Ibid., loc.cit. 19 252 tivessem uma permanente instrução em todos os meios, objetivando elevar o seu nível de conhecimentos intelectuais, profissionais e sociais. O analfabetismo era o grande atraso para os trabalhadores, pois tinha raízes seculares e profundas na formação e desenvolvimento da personalidade dos trabalhadores, inclusive impedindo que eles percebessem as ideologias ou mentiras patronais, eclesiásticas, governamentais e divinas. Isso, para os militantes libertários (anarquistas), representava o quadro de miséria espiritual dos trabalhadores. Daí eles encetarem o movimento de criação de escolas livres que alfabetizassem e despertassem o raciocínio dos alunos.22 Desta feita, o projeto educativo dos libertários anarquistas e/ou anarco-sindicalistas23 não era o de ascensão social dos trabalhadores, mas o de ser instrumento de atuação social para a sua emancipação. O objetivo é, na verdade, bem marxista, ou seja, libertar os trabalhadores das ilusões burguesas, religiosas e governamentais. De tal maneira, tanto os libertários anarquistas quanto os socialistas repudiavam o ensino religioso e só divergiam quanto à questão do ensino como obrigação do Estado, o ensino público e gratuito, porque os libertários anarquistas enxergavam o Estado como aliado da Igreja, ambos sustentáculos da classe burguesa. O fato é que os libertários anarquistas, ao recolherem as velhas bandeiras de defesa da escola pública e gratuita, realizaram várias experiências educacionais como os Centros de Estudos Sociais, a Universidade Popular e as Escolas Modernas. Os Centros se proliferaram em todo o país, sobretudo, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Eram pequenas associações de libertários para discutir ideias anarquistas, ou melhor expressando, os membros do Centro se educavam a partir das teorias libertárias com a obtenção de livros e periódicos de editoras europeias. Tais Centros eram como viveiros de militantes que elaboravam jornais e revistas com editorial vinculado ao Movimento Operário. A Universidade Popular de Ensino Livre, fundada em 1904 no Rio de Janeiro, não era ligada exclusivamente ao Movimento Operário, mas também era vinculada aos literatos e intelectuais anarquistas em sua maioria, claro, com apoio de alguns socialistas. Os objetivos da Universidade Popular eram: fundar um ensino superior metódico para o povo, organizar conferências sobre todos os temas de interesse dos trabalhadores, criar um museu social e uma biblioteca, fazer representações de arte social, saraus, festas libertárias e publicar um boletim 22 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 172. Cf. também GHIRALDELLI JR., op. cit., p.101-103. Conforme Sena, a superação das experiências assistenciais ocorreu com o aparecimento dos sindicatos com ideias anarquistas. Em outras palavras, o proletariado aparece como “classe para si”, isto é, tem sua primeira consciência de classe, a partir do anarco-sindicalismo. O anarco-sindicalismo é uma das principais correntes do anarquismo surgida na história do movimento operário, e no Brasil foi tendência majoritária do movimento sindical centro-sul. Cf. SENA, José Acrísio. Sindicalismo e educação da classe trabalhadora: a disputa política e o debate das idéias na Central Única dos Trabalhadores (CUT). 2004,110 f. Dissertação. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004, p. 26. 23 253 informativo para os trabalhadores. Infelizmente a Universidade durou pouco tempo, fechando seis meses após a sua criação, cuja causa possível, segundo Ghiraldelli Jr., foi a distância entre a erudição dos mestres e a vida cultural do proletariado, sendo muitos doutores da Universidade alheios ao Movimento Operário. 24 Por fim, as mais diversas escolas. A comunidade italiana de Bom Retiro/SP reinaugurava a Escola Libertária Germinal (1907); e a partir daí várias “escolas livres” surgiram como empreendimentos educacionais, resultantes da ação de grêmios e círculos operários libertários. Em Porto Alegre, por exemplo, foi criado o Grêmio Instrutivo Eliseu Réclus que tinha como fim único a educação operária. Entre os anos de 1907 e 1911 os anarquistas investiram na construção de escolas nos bairros industriais da capital gaúcha. Em Campinas/SP foi criado um importante centro operário pela Liga Operária local, a Escola Social, que tinha como finalidade alfabetizar e preparar o aluno para o trabalho, o que não significava prepará-lo para o mercado. Com relação à Escola Moderna, baseada na criação da Escola Moderna de Barcelona pelo espanhol Francisco Ferrer, criou-se uma comissão PróEscola Moderna no Rio de Janeiro, com a finalidade de arrecadar fundos e enviá-los para São Paulo, cujo objetivo era fortalecer o núcleo paulista para que a primeira escola não se dedicasse apenas ao ensino das crianças, mas também formasse professores e editasse livros para o ensino racionalista. Desta feita, o método de ensino nas Escolas Modernas (racionalistas) combinava exercícios em sala de aula com excursões educativas; mas também propunha a liberar as crianças do progressivo ensino baseado no misticismo e na bajulação política da escola religiosa e do governo, quer dizer, o objetivo era desenvolver a inteligência para formar o caráter apoiado numa concepção moral sobre a lei de solidariedade. Assim foram praticados os possíveis germes da pedagogia socialista com os libertários anarquistas e socialistas. No que diz respeito à postura dos comunistas no Brasil face à formação educacional dos trabalhadores nos dois primeiros anos de fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), houve a propagação da renovação pedagógica que se implementava na Rússia desde 1918, isto é, não se considerou as condições da educação brasileira e, portanto, se impôs a divulgação das realizações culturais e pedagógicas da Revolução Bolchevique. Na revista Movimento Comunista já se mencionava o ensino na Rússia sob o governo de Lênin publicando o artigo “Universidade dos Povos do Oriente”, a primeira Universidade Comunista com mais de 700 estudantes de todos os pontos do Oriente, estando lá estudantes 24 Cf. GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 121-122. 254 de 57 línguas diferentes. Mutatis mutandis, os comunistas no Brasil encamparam a bandeira pela expansão do ensino escolar e foram sensíveis às reformas pedagógico-didáticas. Mas as ideias e concepções pedagógico-didáticas eram derivadas do modelo da escola desenvolvido pela Revolução russa e estavam apresentadas nas publicações teóricas do PCB. Vale dizer que o PCB rompeu com uma concepção de formação profissional assistencialista, enquanto uma rede de ensino destinada aos pobres e passou a defender a introdução da “escola única” para que houvesse a formação intelectual e politécnica tal como se apresentava o modelo de ensino soviético. Na verdade, para os comunistas a educação político-partidária era mais importante do que a instrução popular de caráter mais universal; contudo, para seus objetivos políticos, o importante era a educação do militante para torná-lo revolucionário comunista.25 Na revista Movimento Comunista, o militante Rodolfo Coutinho delineou a concepção de educação que acabaria por nortear a ação do PCB. Em poucas palavras: uma educação feita com os próprios recursos dos comunistas, sendo então o ponto central da política revolucionária, ou seja, ou se faz educação ou não se fará revolução; era preciso, portanto, acabar com a mentalidade que os trabalhadores tinham tal qual a de seus pais e avós e, para isso, era necessário abrir em cada bairro operário uma escola para ensinar a ler e escrever, pois sem consciência, dizia ele, não poderia haver dever revolucionário. 26 Já Astrogildo Pereira, em 1922, pleiteava a educação, ou seja, o estudo do marxismo-leninismo como fundamental para a constituição do partido comunista; e Otávio Brandão, um dos militantes do PCB nos anos 1920, publicou um folheto “Educação”, no qual combatia o ensino religioso (católico e protestante), como também o ensino laico que tinha como único objetivo formar o funcionário público que ele considerava uma “nabiça humana”, isto é, “um ser humano pouco desenvolvido”. Para Brandão, a educação teria que começar imediatamente, mas só seria completa após a revolução. No entanto, para Ghiraldelli Jr., “[...] toda essa parafernália de princípios ‘necessários’ à educação do comunista pouco ou nada tinham a ver com o marxismo ou o leninismo” 27, embora haja registros de vários cursos sobre marxismoleninismo, realizados pelo PCB nos anos 1920, mesmo estando na ilegalidade onde o partido distribuiu 25 mil exemplares de distintos materiais políticos, ou melhor,“[...] foi nesse período de intenso trabalho que o Partido organizou um ‘curso de teoria marxista’ com 30 semanas de duração, 240 aulas para 1.440 alunos [...].”28 Para concluir esse período, Ghiraldelli Jr. afirma que socialistas, libertários e 25 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 192. Cf. GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 153. 27 GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 155. 28 Ibid., p. 156. 26 255 comunistas buscaram soluções diferentes entre si para os grandes problemas pedagógicos, claro, diferentemente das orientações das elites dominantes. Os socialistas davam ênfase ao ensino técnico profissional e à instrução primária básica para adultos e crianças, a saber, a educação popular. Os libertários de perfil anarquista davam o mesmo direcionamento, só que enriquecendo com as teorias de Francisco Ferrer, dentre outros. Contudo, fica claro que, na prática, o controle do Movimento Operário pelos libertários significou o arrefecimento da luta pela extensão da escola pública e gratuita. Mas é fato que a concretização desses ideais no Brasil, com experiências pioneiras de determinadas escolas, foram fundamentais para o amadurecimento do Movimento Operário. E, por fim, os comunistas foram frontalmente contra a plataforma política educacional dos liberalistas nesse período; no entanto, o PCB deixou abafadas as discussões das teorias pedagógicas, dando margem, assim, para que as teorias escolanovistas tivessem assento como uma imposição das elites de um novo padrão de modernidade pedagógica. Nos anos 1960-1970, o sindicalismo brasileiro fora muito influenciado pela pedagogia libertária, sobretudo, pelo método de educação de Paulo Freire. A Igreja Católica nos anos de chumbo da Ditadura Militar teve um papel atuante no sindicalismo brasileiro com a pastoral operária29, praticada sobretudo no estado de São Paulo, a partir da influência do Concílio Vaticano II, realizado pelo papa João XXIII, da Teologia da Libertação na América Latina com as Comunidades Eclesiais de Base e também da Segunda e Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americana (CELAM), realizadas em Medellín na Colômbia (1969) e Puebla no México (1979). Daí o Novo Sindicalismo do ABC paulista ter recebido a influência desse movimento teológico libertário que incluía, além do cristianismo libertador, a teoria marxiana da sociedade burguesa. Porém, nos estreitos limites desta tese, fica apenas uma menção en passant sobre essa conjuntura de caráter educativo e libertador do movimento sindical brasileiro. Segundo Tumolo, Até o golpe burguês-militar de 1964 outras instituições buscaram promover experiências de formação dos trabalhadores. É o caso, entre outros, de alguns setores “mais progressistas” da Igreja Católica, como por exemplo, a Juventude Operária Católica (JOC) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), particularmente através de seus Centros de Cultura Popular (CCP).30 29 Sobre essa questão, Manfredi afirma que a CPT, Comissão Pastoral da Terra, CPO, Comissão Pastoral Operária, CIMI, Comissão Indigenista Missionária e CDDH, Comissão de Defesa dos Direitos Humanos são os organismos ligados à Igreja Católica que faziam trabalhos de assessoria e formação aos movimentos sociais do campo e da cidade. Cf. MANFREDI, Sílvia Maria. A Política Nacional de Formação da CUT. In: Avaliação externa da política nacional de formação da CUT. São Paulo: Xamã, 1997. p. 36-37. 30 TUMOLO, Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista, p. 138. Podemos incluir também nesta lista a Federação Nacional dos Trabalhadores (FNT), oriunda em 1960, embora ligada ao setor conservador da Igreja Católica. 256 Com o advento do golpe militar de 1964, houve uma brutal repressão ao sindicalismo brasileiro, com perseguição aos dirigentes sindicais de esquerda, sendo presos ou destituídos de suas direções etc., como também suas outras formas de organizações. Mesmo assim, os trabalhadores conseguiram, aqui e acolá, resistir, até mesmo de forma clandestina, à repressão e preservar algumas daquelas formas de organização e até criar outras. Diz Manfredi que “Neste contexto, as práticas educativas existentes eram constituídas de reuniões, cursos clandestinos, em boa parte, desenvolvidos por centros de educação popular ligados à Igreja Católica.”31 Segundo Tumolo, Emir Sader identifica três agências com distintas matrizes discursivas nesses movimentos da década de 1970: 1) a Igreja Católica com a matriz discursiva da teologia da libertação; 2) os grupos de esquerda com sua matriz marxista; e 3) a estrutura sindical com sua matriz sindicalista. 32 Assim nasceu o novo sindicalismo a partir da constituição dessas matrizes numa espécie de amálgama, formando o embrião sindical da CUT, ou melhor dizendo, matrizes que estavam presentes na formação sindical da CUT. 4.3 O Surgimento e a Trajetória da CUT: um Breve Histórico São vários os autores que pesquisaram, analisaram e expuseram de como se deu a criação da CUT, a partir das greves de massa ocorridas no final dos anos 1970 no estado de São Paulo. O sindicalismo quase não existia como movimento de luta durante o período da ditadura militar, havendo algumas paralisações setorizadas, em algumas fábricas como a da Arno, nos anos de 1968-196933. Segundo Boito Jr., o sindicalismo desempenhou na história do Brasil um papel importantíssimo nesse período, afirmando-se como movimento reivindicativo e político, sobretudo como um movimento contra a ditadura militar e a favor da redemocratização, contribuindo a posteriori para a ampliação dos direitos sociais na Constituinte de 1986-1988;34 em outras palavras, surgiu assim o novo sindicalismo35 31 MANFREDI, A Política Nacional de Formação da CUT, op. cit., p. 36. Ainda sobre esse ponto temático, cf. também PAULA, Francisca Clara de. Educação sindical: uma reflexão a partir da prática educativa da escola Quilombo dos Palmares – EQUIP. 1995. 115 p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de PósGraduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1995, p. 32-33. 32 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 138. Sobre a influência da Igreja (CEBS) no movimento sindical brasileiro, cf. também SENA, Dissertação, p. 39-44. 33 Cf. RODRIGUES, Iram Jácome. Sindicalismo e política: a trajetória da CUT. São Paulo: Scritta, 1997. p. 5053. Cabe ressaltar que em 1969 a lei de Segurança Nacional foi alterada para imputar crimes como o de incitamento de greve no serviço público. Era a reação da Ditadura aos movimentos dos metalúrgicos de Contagem em Minas Gerais e Osasco em São Paulo. Cf. SINDSEP. Formação de Lideranças: práticas em construção no SINDSEP. Quixadá: [s.n.], 2005. p. 63. 34 Cf. BOITO JR., Armando. O sindicalismo brasileiro frente à política neoliberal. In:____. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã Editora, 1999. p. 126-127. 35 A expressão “novo sindicalismo” foi usada pela primeira vez para denominar a fase do movimento operário britânico nas décadas de 1880 e 1890. No Brasil a expressão é utilizada para enfatizar o período do movimento 257 brasileiro, oriundo do ABC paulista, como principal força responsável pela criação do Partido dos Trabalhadores (PT) que se tornou governo federal, estadual e municipal desde 1985 até hoje, assumindo também cargos parlamentares nas três esferas do poder legislativo. Tudo começou com a primeira Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT)36, realizada em 1981 na Praia Grande (SP), cuja reunião já foi precedida de outros Encontros Estaduais de Trabalhadores (ENCLATs) que visavam eleger delegados e apresentar documentos para essa Conferência. Nessa primeira CONCLAT foi decidido formar uma Comissão Nacional Pró-CUT que objetivava dar andamento às resoluções aprovadas na Conferência e preparar a realização de um Congresso Nacional da Classe Trabalhadora em 1982. Havia duas tendências principais que disputavam a hegemonia sindical nesse período: 1) o Bloco Combativo ou de Oposição, mais à esquerda, tendo o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, agregado a ele também as tendências militantes das oposições sindicais (ligado à Igreja Católica) e da esquerda radical de orientação trotskista ou leninista; 2) a outra tendência era mais moderada e se denominava de Bloco da Reforma que reunia pessoas da tendência da Unidade Sindical, principalmente, dos dois partidos comunistas PCB e PC do B e também do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). No entanto, diante das profundas divergências no interior da Direção da Comissão Nacional Pró-CUT, a realização do Congresso que se realizaria em 1982 foi adiada. A divergência mais importante era a questão da deflagração de uma greve geral a fim de forçar o governo militar a atender a uma série de reivindicações a ser apresentada ao Presidente da República. Porém, os sindicalistas do Bloco da Reforma ou da Unidade Sindical eram contra a greve geral e a convocação do CONCLAT para se criar a CUT; acreditavam que não havia condições para se realizar os dois eventos, por temerem os riscos de agravamento das tensões sociais que poderiam obstaculizar a continuidade da abertura política, sobretudo, num ano eleitoral de 1982, em que se começaria a eleger os primeiros governos estaduais pelo povo num regime ainda de exceção. Este Bloco “comunista” queria apenas limitar a ação sindical à luta pela redemocratização do país. Do outro lado, estavam os sindicalistas que desejavam promover mudanças sociais profundas que construíssem o caminho para o socialismo. O Bloco que iria formar a CUT decidiu convocar o I CONCLAT (1º Congresso), em agosto de 1983, e assim decidiu pela criação da Central Única dos Trabalhadores. A CUT, portanto, tinha que ser uma Central independente dos patrões, do governo, dos partidos políticos e dos grevista do ABC paulista em maio de 1978 até o final da década de 1980. Cf. SENA, Dissertação, p. 52, nota 10. 36 Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. CUT: os militantes e a ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 5. A sigla CONCLAT foi usada em diferentes eventos para designar conferência, congresso e coordenação da classe trabalhadora. Cf. SENA, Dissertação, p. 48, nota 9. 258 credos religiosos. O estatuto provisório da nova Central, criado no I CONCLAT, continha três pontos relevantes: a autonomia e liberdade sindical, a organização por ramo de atividade produtiva e a organização por local de trabalho. Tais pontos definiam a demarcação entre Bloco de Oposição e o Reformista, ou seja, não partilhavam conjuntamente das mesmas posições com relação à estrutura sindical. No I CONCUT (1º Congresso Nacional da CUT), em agosto de 1984, aprovou-se definitivamente o estatuto da Central em substituição ao provisório do I CONCLAT (1º Congresso). O plano de lutas aprovado neste I CONCUT era confuso e contraditório, segundo Martins Rodrigues37, pois, para alguns, tal plano estaria para além das reais capacidades de luta da CUT, já que a direção não poderia realizar milagres. O plano consistia em: revogar a Lei de Segurança Nacional, romper com o FMI, suspendendo o pagamento imediato da dívida externa, fim do arrocho salarial, reajuste imediato dos salários para todos os trabalhadores, salário-desemprego, estabilidade no emprego, redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais sem redução de salários, reforma agrária sob controle dos trabalhadores, fim das intervenções nos sindicatos, anistia dos diretores cassados etc. Na verdade, grande parte dessas reivindicações eram mais bandeiras de agitação e propaganda do que realmente um plano de lutas para ser concretizado. Num período de muita efervescência política, o Congresso ressaltou a importância da campanha das “Diretas-já” como um grande protesto democrático e popular jamais visto na história do país, na qual milhões de brasileiros foram às ruas exigir o fim do regime militar e de toda opressão e exploração, mas, conforme Jácome Rodrigues38, alguns participantes criticaram alguns integrantes da direção da Central por não terem compreendido a importância histórica da luta pela democracia e o fim da ditadura militar para poder conquistar certas reivindicações essenciais. Todavia, para Jácome Rodrigues39, os planos de lutas aprovados nos congressos sindicais e particularmente nos CONCUTs ficavam ao sabor da conjuntura política, apontando as mesmas questões já discutidas em eventos anteriores. O que vai caracterizar esse I CONCUT, uma Central ainda em fase de construção, é que a classe média mais intelectualizada se impõe com forte presença para confrontos ideológicos que exigiam muito das suas armas intelectuais. Embora houvesse a presença de lideranças de origem operária, mais pragmática, isto é, voltada para os problemas práticos da administração sindical e reivindicações modestas e convencionais, membros das oposições 37 Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 8. Cf. RODRIGUES, Iram Jácome. Op. cit., p. 104. 39 Cf. Ibid., p. 104-105. 38 259 sindicais e pessoas vindas das organizações políticas clandestinas (estudantes, ex-estudantes e intelectuais) pretendiam fazer da CUT um instrumento de luta pelo socialismo, enquanto os mais pragmáticos viam-na como um organismo de coordenação das lutas sindicais. Para Sena, o plano de lutas deste Congresso era de caráter mais propagandístico, cujas propostas, de cariz democrático e reformista, tinham matiz anticapitalista, além de apontar para a criação de uma nova estrutura sindical em contraposição à velha. 40 Esses dados são importantes, para entendermos hoje o porquê da incapacidade de compreensão de determinadas lideranças sindicais, quando aceitaram facilmente o fim do socialismo como horizonte político a ser vislumbrado pelos trabalhadores com a queda do regime soviético. 41 O II CONCUT, realizado no Rio de Janeiro em 1986, aprovou uma Campanha Nacional de Lutas: 1) questão salarial; 2) questão do emprego; 3) questão da organização sindical; 4) questão agrária e; 5) questão da dívida externa. Enfim, as mesmas bandeiras defendidas no I CONCUT, incluindo algo novo, isto é, o congelamento dos preços e o abastecimento e a aprovação da Convenção 87 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que trata da liberdade e autonomia sindical. Foi também contra qualquer privatização das empresas estatais. Mesmo que tenha sido aprovada uma resolução a favor do socialismo como objetivo final da luta dos trabalhadores, a luta pela conquista do poder político, mas “A palavra ‘socialista’ não fora pronunciada.” 42 Conforme Martins Rodrigues, Levadas a sério as resoluções aprovadas no congresso do Rio, a ação quotidiana da CUT deveria ser pautada pelo objetivo de acirrar o conflito de classes e de preparar os trabalhadores para a luta final contra o capitalismo. Conseqüentemente, as chamadas reivindicações imediatas deveriam ser entendidas instrumentalmente, como formas de mobilização e “conscientização” das classes trabalhadoras. 43 O II CONCUT, portanto, tinha uma orientação mais à esquerda da Central, mesmo tendo a tendência Articulação conseguido vencer os concorrentes ao eleger a Chapa 1 de Jair Meneguelli, com 59,2% dos votos, com direito de indicar nove membros efetivos para a Executiva Nacional. O grupo encabeçado pela Chapa 2, de esquerda (Partido Revolucionário Comunista, Reconstrução do PCB, prestistas, Comando Operário Socialista, Luta Sindical, Movimento dos Trabalhadores Socialistas e Causa Operária) obteve 26,6% dos votos. A Chapa 3 (Movimento Comunista Revolucionário, Convergência Socialista e outros pequenos grupos de esquerda) obteve 10,9%. Isso é o começo para percebermos hoje como se foi 40 Cf. SENA, Dissertação, p. 58-59. Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 11. 42 RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 12. Cf. também SENA, Dissertação, p. 63: No entanto, foi nesse Congresso que as correntes mais à esquerda aprovaram a resolução da luta pelo socialismo como objetivo final da luta dos trabalhadores, com a ressalva de que a Central cumpriria um papel diferente dos partidos políticos. 43 Ibid., p. 13. 41 260 construindo na CUT uma guinada mais à direita, ao reformismo capitalista, com o desenvolvimento da hegemonia da Articulação Sindical em Congressos posteriores. O III CONCUT teve a maior delegação em relação aos dois congressos anteriores, chegando a reunir 6.218 delegados de todas as unidades da Federação. Mas isso não implica afirmar um crescimento proporcional em termos de delegados por base em relação a delegados por diretoria, ou seja, se no primeiro congresso o número de delegados por base era de 65,9% contra 34,1% de delegados diretores e no segundo houve um aumento de 70,4% de delegados de base contra 29,6% de diretores, no terceiro, ao contrário, a proporção entre delegados vindo da base sindical em relação aos delegados da diretoria sindical cai para 50,9% contra 49,1%. Segundo Martins Rodrigues, isso denota uma CUT mais institucionalizada e burocratizada, ou com suas palavras: Desse ângulo, a CUT torna-se mais “institucional” (ou “burocrática”, como talvez preferissem dizer as facções de oposição à tendência Articulação). Por outro lado, a elevação da proporção das entidades de delegados do funcionalismo público e do setor de serviços expressa o progresso da CUT entre as categorias profissionais de assalariados de escritório e de classe média, que constituem precisamente os segmentos onde a sindicalização vem ganhando impulso nos últimos anos [...].44 Esses elementos factuais nos levam a perceber como se deu o processo de institucionalização e burocratização do movimento sindical CUT. O III CONCUT pautou-se, sobretudo, por disputas internas acirradas, com acaloradas discussões entre as facções políticas e ideológicas. Pontos controversos estavam em debate e o pano de fundo era sobre a natureza da CUT, ou seja, se a Central se pautaria por uma ação mais trabalhista ou de natureza mais política do que sindical. Nesse III CONCUT, a Articulação tinha a maioria dos delegados e conseguiu reduzir a influência das oposições mais à esquerda, cujo resultado foi a alteração no estatuto, para diminuir a influência do setor mais à esquerda nos futuros congressos cutistas, quer dizer, somente os delegados da entidades filiadas à Central poderiam participar dos próximos congressos, como também os delegados eleitos deveriam ser proporcionais ao número de votos que conseguiram no último escrutínio das eleições para a diretoria do sindicato. Para Martins Rodrigues, essas mudanças no estatuto da CUT tinham o objetivo mesmo de reduzir a influência das oposições nos Congressos posteriores, sobretudo, de enfraquecer a esquerda e as oposições sindicais, ou melhor, enfraquecer a participação das bases e aumentar o poder das direções dos sindicatos.45 44 RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 19. Cf. também SENA, Dissertação, p 72: onde Sena, ex-diretor da CUT-CE, afirma que “Tais mudanças concentravam mais poderes nas mãos de uma casta burocrática da Executiva Nacional CUT.” 45 Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 21-23. 261 Para a Articulação, o sindicalismo de classe e de massa é um instrumento de luta dos trabalhadores contra a exploração dos patrões, como também um instrumento de luta por melhores salários e condições de trabalho que se desenvolve no sistema capitalista. O objetivo seria mesmo atrair e mobilizar os trabalhadores e dar à organização dos trabalhadores o caráter de organização representativa de toda a classe proletária em oposição à classe burguesa. Nesse sentido, para a Articulação, o sindicalismo não deveria assumir um programa ou uma estratégia para a luta socialista, muito menos adotar uma linha ideológica. Para Jair Meneghelli, a CUT não poderia se caracterizar como socialista, mas embora os seus dirigentes pudessem sê-lo. Já neste período, mesmo que a Articulação rejeitasse a social-democracia e defendesse o socialismo como meta histórica dos trabalhadores, as tendências de oposição dentro da CUT como a “CUT pela base” e a “Convergência Socialista” já previam que a tendência “Articulação” priorizava o campo da ação institucional, debilitando as ações de massa e contribuindo para o esvaziamento da greve geral. Isso tudo acabou por fortalecer o sindicalismo oficial e o corporativismo de Estado. Com a implosão dos regimes dos países socialistas no Leste Europeu e a crise “terminal” das ideologias socialistas, para Martins Rodrigues, ficava mais inviável soluções de tipo socialista e pouco convincentes as palavras de ordem anticapitalistas. 46 Conforme Sena, as mudanças no rumo da CUT estavam em sintonia com a tese de seu setor majoritário – Articulação Sindical – que combatia o sindicalismo reformista e conciliador da CGT (hegemonizada pelo PCB, PC do B e pelegos históricos) e as posições “vanguardistas” da esquerda no interior da CUT e dos sindicatos. No entanto, vejamos a tese da Articulação Sindical para entender a postura político-sindical da CUT hoje que destoa deste princípio antirreformista: Há propostas políticas que subestimam a importância estratégica das lutas reivindicatórias, as conquistas econômicas concretas das lutas sindicais para impulsionar o projeto histórico da classe trabalhadora. O equívoco está em considerar que a CUT, ao negociar com os patrões ou o governo para obter um acordo de trabalho, pratica uma forma disfarçada de reformismo. A luta dos trabalhadores por salários e melhores condições de trabalho se desenvolve hoje no interior do sistema capitalista e faz parte da própria natureza do sindicato. [...] Quando o sindicato perde este objetivo de alcançar reivindicações imediatas, as bases não costumam acompanhar o voluntarismo político, os discursos inflamados de porta de fábrica ou a combatividade dos boletins (Tese nº 10, da Articulação Sindical, 1988: 54) 47 Isso confirma, de certo modo, a tendência social-democrata da corrente Articulação Sindical, quando esta opta por posturas mais negociativas e conciliatórias, rejeitando o sindicalismo de 46 47 Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 27. Cf. Tese da Articulação Sindical, nº 10 apud SENA, Dissertação, p. 71. (Grifo nosso). 262 confronto ou combativo anticapitalista. A luta deveria despertar essa vontade ausente no proletariado de ir para além da luta imediata; e isso só poderia acontecer com a construção da consciência de “classe para si”, a consciência revolucionária, mas esta prática político-sindical não se faz. Sem esta consciência, como diz Lênin, não há ação revolucionária, ou melhor, não há teoria revolucionária que poderia engendrar esta consciência revolucionária e, por consequência, a vontade revolucionária da luta pela emancipação humana. O IV CONCUT, realizado em setembro de 1991, em São Paulo, manteve as palavras de ordem dos anos 1980, como também a maioria das resoluções dos congressos anteriores, mas introduziu algo novo nas suas resoluções, ou seja, apresentou propostas para as políticas de abrangência nacional para disputar a hegemonia na sociedade. Em outras palavras, a CUT elaborou propostas políticas setoriais para a energia, agricultura, habitação, previdência, saúde e educação. Para Jácome Rodrigues, Um dos aspectos mais marcantes deste encontro foi a luta interna pelo controle do poder na Central. Esta luta política ficou mascarada por questões “administrativas”: problemas de estatutos; redução em uns casos e, em outros, aumento do número de delegados ao Congresso; a questão da chamada proporcionalidade “qualificada”. Havia, de um lado, a superestimação de algumas delegações e, de outro, a aplicação de um “redutor” para os estados de Minas e Bahia, onde a oposição era maioria.48 As profundas divergências fizeram o IV CONCUT se dividir em dois blocos fundamentais: de um lado, a tendência Articulação em aliança com a Nova Esquerda, a Vertente Socialista e a Unidade Sindical e, de outro, várias tendências capitaneadas pela CUT pela Base, Corrente Sindical Classista, Convergência Socialista, Força Socialista e outros pequenos grupos que se denominavam de “Antártica” que significava “anti-Articulação”. O IV CONCUT, portanto, ocorreu numa conjuntura extremamente difícil para o sindicalismo brasileiro, sobretudo com a eleição de Fernando Collor de Mello para Presidente da República e a derrota do Lula, além da queda dos blocos socialistas soviéticos entre 19891991, na qual neste último ano, a URSS se desfez e virou somente Rússia. O sindicalismo ficou, assim, numa posição defensiva face à ofensiva neoliberal, logo se tornando um 48 RODRIGUES, Iram Jácome. Sindicalismo e Política: a trajetória da CUT, p. 181-182. E esta situação ainda continua, pois a corrente “Articulação de Esquerda”, em seu texto base para o XI CONCUT em 2012, diz: “Avaliamos criticamente sua condução [da CUT] pelo setor majoritário. Seja pela insistência na falta de democracia interna, que se traduz numa falta de debates público e político nas instâncias, seja pela orientação política ideológica da direção majoritária da CUT que, paulatinamente, vem adotando a concepção clássica da social democracia europeia, que aqui se expressa na defesa do nacional-desenvolvimentismo, que se traduz no compromisso entre as classes sociais tendo como objetivo o crescimento econômico.” (Caderno texto base da Direção Nacional da CUT para o 11º CONCUT: Liberdade e Autonomia Sindical, democratizar as relações de trabalho para garantir e ampliar direitos/CUT. São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2012. p. 62.). Além disso, a corrente menciona a absurda cláusula de barreira dos 20% que impede as forças minoritárias se representarem na direção executiva nacional da CUT, a não ser que participem de chapas mais amplas (Cf. Ibid., p. 64). 263 sindicalismo de caráter propositivo ou negociativo com o governo e empresários. Mas o que demarcou também esse Congresso foram os aspectos de estruturação da CUT e seu processo acelerado de institucionalização que resultou no distanciamento entre direção e base e daí uma profunda crise interna na Central se instaurou. Outro fato foi a baixa participação da base sindical e um aumento da participação das direções sindicais neste Congresso, ou seja, 83% dos delegados congressistas já eram de diretores sindicais e apenas 17% de delegados oriundos da base sindical, quando em 1988, a base possuía uma participação um pouco maior de 50,8% contra 49,2 de diretores sindicais. 49 Contudo, conforme Boito Jr., “A CUT abandonou a luta política e a agitação de idéias contra o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro e não assumiu a luta e a denúncia sistemática contra a política neoliberal no seu conjunto.”50 Na análise de Boito Jr., mesmo que a conjuntura fosse desfavorável ao movimento sindical, ao impor um recuo, isso não obrigava a CUT a deserdar desta matéria, ou seja, a propaganda contra o modelo econômico poderia ter continuado, mesmo num momento de luta meramente defensiva. Para ele, abandonou-se mesmo a perspectiva do confronto com o modelo econômico e com o conjunto da política neoliberal, sobretudo, quando foi firmada a participação cutista ativa na definição da política governamental, participando de fóruns tripartites que reúnem empresários, sindicalistas e representantes do governo em âmbito nacional ou setorial. 51 Para Boito Jr., isso é o típico sindicalismo propositivo que pretende elaborar propostas tanto para os governos neoliberais e empresas quanto para os trabalhadores, um sindicalismo de tipo conciliador. Esta estratégia desestimulou e desvalorizou a mobilização e a luta das massas, ou a luta de classes. Em outras palavras, a luta grevista foi desvalorizada e até mesmo estigmatizada, sendo um instrumento desgastado. Mesmo assim duas greves gerais foram realizadas nos anos de 1991 e 1993 (sendo esta a última), mas com a participação muito menor dos trabalhadores face à última grande greve geral, em março de 1989, em que houve a adesão de mais de 20 milhões de trabalhadores de vários setores produtivos e de serviços, sobretudo de funcionários públicos, 49 Cf. RODRIGUES, Iram Jácome. Op. cit., p. 185. BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 143. 51 Numa entrevista à revista eletrônica BRASIL DE FATO (9/04/2012), Boito Jr. afirma que vê elementos positivos do neodesenvolvimentismo praticados pelos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, embora ressalte os negativos, ao inferiorizá-lo em relação ao desenvolvimentismo do período de 1930-1980. Ele acredita que o apoio de direções sindicais a esse neodesenvolvimentismo é contra o neoliberalismo ortodoxo e não uma cooptação do movimento pelas forças conservadoras ou mesmo o abandono do socialismo. Hoje ele defende esse comportamento de adesão parcial dos movimentos sociais, porque atende de modo marginal e restrito os interesses das classes populares; porém, tal estratégia não abre mão das bandeiras populares. Assim, Boito Jr. defende a participação crítica dos movimentos sociais a esse neodesenvolvimentismo, porque trouxe, de certo forma, algumas melhorias para os trabalhadores e mais pobres, mas que pressione o governo pelas reformas estruturais. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/content/”-economia-capitalista-está-em-crise-econtradições-tendem-se-aguçar”>. Acesso em: 10 abr. 2012. 50 264 professores, metalúrgicos, trabalhadores do transporte coletivo, siderurgia etc. Sena confirma tais inferências anteriores, dizendo que a CUT apontava que o centro dos debates para os anos 1990 era “o enfrentamento da crise econômica com a retomada da política de desenvolvimento” e “a defesa da cidadania em substituição ao referencial socialista”; por conseguinte, ele reafirma o processo de burocratização da Central e a concentração de poder nas mãos de um núcleo minoritário (Articulação Sindical). Para Sena, portanto, “a nova concepção da Central aprovada e presente no seu Estatuto era básica para o estabelecimento de um sindicalismo de ‘negócios’, adaptado ao sistema capitalista, sem ideologia de classe e como um instrumento de mediação dos conflitos entre trabalhadores e patrões.”52 Entretanto, os principais temas do IV CONCUT poderiam ser resumidos em duas teses diferentes: se a CUT se tornaria uma Central de caráter mais negociativo, isto é, apenas de contratação? Ou se a CUT deveria combinar negociação com enfrentamento, de confronto com o projeto global da burguesia? Em outras palavras, a questão era definida assim: como fazer sindicalismo numa conjuntura adversa aos sindicatos com o advento do neoliberalismo no Brasil? Apostar nas reuniões do Entendimento Nacional com o governo e patrões? Apostar na crise da ingovernabilidade (tese defendida pela CUT pela Base)? Ou defender a política de superação da crise com a retomada do crescimento para distribuir renda (tese da Articulação)? Esses foram os principais problemas a serem enfrentados pelo IV CONCUT. Aqui podemos ter bem uma ideia de como a CUT se comportou no decorrer da década de 1990 a partir desse Congresso, ou seja, mais propositiva, embora continuasse crítica ao Projeto Neoliberal e ao Plano Real, mas sempre na lógica de concertação e conciliação com o sistema, quer dizer, uma limitada colaboração e crença no aperfeiçoamento do governo como condição para o melhoramento de vida dos trabalhadores, a saber, a luta dentro da lógica neoliberal do Estado burguês. 52 SENA, Dissertação, p. 75. E Sena ainda afirma que “A CUT trocou de roupa. Despiu-se da esperança de constituir-se numa poderosa ferramenta na luta pelo sepultamento do capitalismo e de todas as misérias em que está jogado o povo brasileiro, para ser a porta-voz e negociadora de uma nova política de desenvolvimento econômico. Nisso é que consiste o sindicalismo de proposição com a adoção de uma política de capitulação e conciliação de classes implementada pela Articulação Sindical, num biombo da propaganda prática das teses da social democracia.” (Ibid., p. 75). Em relação ao quesito capitulação e conciliação de classes, no texto base para o XI CONCUT em 2012, a corrente “CUT Independente e de Luta” faz uma severa crítica aos sindicatos filiados à CUT que endossaram a diminuição de impostos e a desoneração da contribuição da folha para a Previdência dos trabalhadores, fazendo “parcerias” com as entidades patronais como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ), (Cf. Caderno Texto Base do XI CONCUT 2012, p. 65). Assim como também afirma a corrente CUT Socialista e Democrática (CSD) no Caderno que “Não cabe na estratégia da CUT a construção de alianças, mesmo que pontuais, com setores orgânicos do bloco liberal-conservador. Nenhuma das estratégias da CUT necessita de unidade com setores do empresariado nacional.” (Ibid., p. 59). 265 Sem nos alongarmos mais sobre os posteriores Congressos da CUT que perfilaram sua história enquanto Central Sindical de Esquerda, o que podemos resumir é que o dilema da CUT era “confrontar” ou “negociar” numa conjuntura adversa aos trabalhadores. A conjuntura estava toda pautada na expansão do neoliberalismo no mundo, na reestruturação produtiva industrial e até mesmo na de serviços (setor bancário automatizado), nos mercados financeiros globalizados, na abertura dos mercados nacionais (em parte), na desregulamentação das leis trabalhistas, no desemprego estrutural em massa nas indústrias, principalmente, na do setor automobilístico etc. a CUT parece que optou pela primeira, logo de início, com a participação na câmara setorial no setor automotivo, a tal da negociação tripartite, e depois abandonada.53 Para Boito Jr., com a eleição de Collor de Mello, a CUT, através da corrente Articulação Sindical, abandonou o sindicalismo dos anos 1980, ou seja, a postura “de se opor” e “ser do contra” e, portanto, passou a apresentar “alternativas concretas” para todos os problemas da política nacional. Ora, questiona Boito Jr., “[...] se a mudança na conjuntura impunha um recuo do sindicalismo, com a adoção de uma linha de ação defensiva, ela não impunha a adoção de um ‘sindicalismo propositivo’, que a Articulação acabou por implantar.”54 Nesse sentido, segundo Boito Jr., a CUT abandonou mesmo a perspectiva de confronto, firmando-se como uma Central propositiva, isto é, comportou-se como uma entidade de participação ativa na definição da política governamental e, portanto, enveredou por um viés de “participacionsimo ativo”. 55 Mas o que nos interessa é conhecer a proposta educacional da CUT no cenário da crise sindical. Em 1995, a CUT defendeu a estruturação do ensino com a participação entre ensino privado ou confessional com ensino público na formação escolar dos brasileiros. A mesma proposta de educação contida no programa do Partido dos Trabalhadores na eleição de 1994. No documento da CUT, ela estabelece seu diagnóstico e os objetivos de sua campanha nacional em defesa da educação, mas não defende o ensino público e gratuito como solução para a educação brasileira, pois estabelece que a rede privada de ensino deve continuar a 53 Sobre a prática sindical da CUT, baseada numa pesquisa quantitativa realizada no IV CONCUT, no que diz respeito ao número de sindicatos por base (rural ou urbana), número de gestões da linha cutista, alteração dos estatutos sob a nova direção etc. Ver Iram Jácome Rodrigues, A prática sindical da CUT, in Sindicalismo e política: a trajetória da CUT, p. 215-230. 54 BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 142. 55 Para Sena, “Essas mudanças ocorridas no mundo do trabalho foram acompanhadas pela direção nacional da CUT, que, julgando obsoletas bandeiras e princípios que nortearam sua ação, os abandonam. A CUT da ‘baderna’ [...] transformou-se na CUT do diálogo, da proposição, das agendas com o capital. A estratégia da Central tomou rumos diferentes, uma nova agenda política se colocou para a CUT, como a luta pela cidadania e a democratização do Estado.” (SENA. Resumo. In: Dissertação, p. 4). 266 integrar o sistema nacional de educação, em outras palavras, segundo Boito Jr., a CUT aceita os objetivos da política neoliberal para o ensino. De todo modo, Boito Jr. pondera, mas também questiona, a saber, Se é verdade que a correlação de forças não permite, numa conjuntura defensiva, lutar pela estatização das escolas particulares, o sindicalismo não está impedido, por causa disto, de denunciar a rede privada e propor objetivos intermediários na luta pela universalização do ensino público. 56 Todavia, na impossibilidade de analisar todos os CONCUTs nos limites desta tese, vamos mencionar pelo menos os dois seguintes Congressos cutistas que foram o grande divisor de águas entre uma CUT combativa e de classe dos anos 1980 e uma CUT propositiva e negociadora dos anos 1990 até hoje. O V CONCUT em 1994, cuja gestão se iniciou com Vicente Paula da Silva, retratou a fase de aproximação da CUT com o neoliberalismo (embora lutando contra as privatizações das estatais), como também acenou em suas resoluções congressistas fazer programas de formação profissional, infelizmente nos moldes da política educacional oficial, com recursos do FAT e do BNDES 57. Tal proposta se reafirmou nas 7ª e 9ª Plenárias Nacionais (1995-1997), quando a direção nacional da CUT assumiu essa responsabilidade, sendo antes uma atribuição apenas do Estado e das organizações patronais do Sistema “S” (Escolas Técnicas Federais, SESI, SESC, SENAI, SENAC etc.), iniciando então sua primeira ação/estratégia, via Política Nacional de Formação (PNF), em 1998. Já o VI CONCUT em 1997 se posicionava contra a Reforma da Previdência e também contra as privatizações, isto é, numa oscilação diretiva, ora para o centro ora para a esquerda, dependendo das circunstâncias e assim por diante; também decidiu sair de uma “CUT do não (do contra)”, para uma “CUT do sim” (propositiva), na medida em que elaborou propostas de políticas setoriais para energia, agricultura, habitação, previdência, saúde e educação. Desta feita, iremos então analisar o porquê da opção da CUT pelos cursos profissionalizantes em detrimento dos cursos de formação política, sobretudo, cursos que enfatizam a questão dos direitos humanos, da cidadania e da empregabilidade no capitalismo, ou seja, buscar a formação integral do homem, mas a partir de uma prática educativa que visa atender aos interesses neoliberais (do capital em crise). 56 BOITO JR., op. cit., p. 162. Conforme XVII Encontro da Política Nacional de Formação – ENAFOR – CUT (22 a 25 de novembro de 2011), “Na primeira década da PNF, quase que a totalidade dos recursos que bancavam a formação sindical, vinham (sic) da cooperação internacional. Depois, já na segunda metade dos anos 90, passamos a depender dos projetos financiados com recursos do FAT. ”Disponível em:<http://cut.org.br/secretariasnacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr. 2012. 57 267 4.4 A Política Nacional de Formação da CUT: da Formação da Consciência Política à Formação Profissional Cidadã Comecemos então pelo começo da política de formação da CUT. Conforme Tumolo, o sindicalismo cutista pode ser vislumbrado por três fases na sua trajetória. A primeira fase vai de 1978 a 1983, ou até aproximadamente 1988, cuja marca é uma ação sindical combativa e de confronto, pois nesse período houve as grandes greves de massas (1978-1979) e as greves gerais (1983-1986-1987)58, esta última ocorrendo com 10 milhões de paredistas; a segunda fase que vai de 1988 a 1991 pode ser classificada como uma fase de transição, sobretudo, a partir do III CONCUT em que as forças políticas internas da Central se redefinem mais claramente, tendo a tendência Articulação Sindical a hegemonia administrativa e políticoideológica da Central; e por último, o IV CONCUT de 1991 até o presente, no qual a CUT opta por um sindicalismo propositivo e negociador. Portanto, para Tumolo, Trata-se de uma mudança política substancial, de um sindicalismo combativo e de confronto de cunho classista e com uma perspectiva socialista, para uma ação sindical pautada pelo trinômio proposição/negociação/participação dentro da ordem capitalista que, gradativamente, perde o caráter classista em troca do horizonte da “cidadania”.59 Afirma Tumolo que o grande divisor de águas da CUT, sobretudo no que diz respeito à atividade grevista, é o ano de 1989, no qual se realizou a última greve geral de peso dos trabalhadores no Brasil com mais de 20 milhões de paredistas em diferentes ramos da atividade produtiva – como foi dito antes –, período em que a atividade grevista da lógica do confronto se dava antes da lógica da negociação. Dessa maneira, a partir dos anos 1990, o que prevaleceu na Central primeiramente foi a lógica da negociação, da participação e da colaboração entre trabalhadores, governo e patrões em detrimento da lógica do confronto. Esse é o pressuposto que vai nortear todas as ações sindicais a posteriori da CUT, pois não é uma relação causal ou mecânica de mudança de postura, mas um processo eivado de mediações políticas, conjunturais, que configuraram um cenário conservador neocorporativista da atividade sindical cutista. Tumolo, tomando de empréstimo a análise de Vito Giannotti e Sebastião Lopes Neto, afirma que [...] a virada da década de 80 para a de 90 significou também uma virada nos rumos da Central Única dos Trabalhadores e, se é verdade que o terceiro congresso simbolizou o “início” desse processo, segundo os mesmos autores, o IV CONCUT foi a expressão político-institucional da consolidação de tal inflexão.60 58 Na década de 1980 ocorreram 3.915 greves em que pararam as atividades 31 milhões de trabalhadores, com muitas lutas e confrontos com a ordem estabelecida. Cf. SENA. Resumo. In: Dissertação, p. 4. 59 TUMOLO, op. cit., p. 17; 129. 60 Ibid., p. 121. Cf. também GIANNOTTI, Vito e LOPES NETO, Sebastião. CUT ontem e hoje. São Paulo: Vozes, 1991. 268 Noutras palavras, Giannotti e Lopes Neto afirmam que se a CUT nos anos 1980 foi a Central do não e que, com as mudanças no mundo do trabalho e na conjuntura política e histórica internacional, com a queda do bloco soviético, a Central passou a implantar a fase do sim, ou seja, saiu da prática meramente “reativo-reinvindicativa” na qual os trabalhadores “reagiam” sempre atrás do prejuízo, ficando na defensiva, nos anos 1990 ela seguiu, então, o rumo da proposição, com o objetivo de fazer políticas de negociação, participando, por exemplo, das reuniões do Entendimento Nacional com os governos e patrões. Não é à toa que a CUT se filia à Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres (CIOSL) 61 de caráter social-democrata e pró-capitalista. Na verdade, a tendência majoritária da CUT – a Articulação Sindical – consagrou sua estratégia política na Central, apontando a negociação dentro da ordem capitalista, ou seja, numa perspectiva social-democratizante. Para Giannotti e Lopes Neto, isso reflete a incapacidade da CUT de dar respostas antagônicas ao projeto neoliberal, ou de se contrapor ofensivamente ao neoliberalismo, rendendo-se, portanto, à perspectiva social-democratizante das centrais sindicais europeias tais como a CGIL italianas, a CFDT francesa, FNV holandesa e a DGB alemã, ou seja, a CUT passou de um sindicalismo classista de confronto, de perspectiva estratégica socialista, para um sindicalismo de parceria entre o capital e o trabalho, de perspectiva social-democrata. Dizem os dois autores, portanto, que a CUT tornou-se um sindicalismo vislumbrado pela palavra “tripartite”, de “concertação social”, falando a linguagem da CIOSL. 62 Assim sendo, sob a imposição da ofensiva neoliberal, com a modernização tecnológica e das novas formas de gestão e organização do trabalho, quer dizer, com o consequente desemprego estrutural, causado pelas mudanças tecnológicas no modo de produção capitalista (reestruturação produtiva), ou melhor, com a crise estrutural do capital 63, o sindicalismo brasileiro se encurrala e adota uma postura de mero defensivismo no sentido negativo, ou seja, de defesa do emprego a qualquer preço, mesmo com perdas de conquistas históricas, a partir da desregulamentação das leis trabalhistas, da flexibilização da jornada de trabalho como o banco de horas, horas extras e férias coletivas, da terceirização, da redução salarial etc. Todo esse impacto científico-tecnológico e/ou político-ideológico vai repercutir nas ações 61 A CIOSL representa 65 milhões de trabalhadores e não permite a filiação de sindicatos de interesses classistas e defensores o socialismo. Portanto, a CIOSL é uma central sindical nitidamente à direita e colaboradora do projeto neoliberal. Dessa maneira, a CUT reforça sua política sindical propositiva numa perspectiva internacional. Cf. SENA, Dissertação, p. 66, nota 14; 75. 62 Cf. GIANNOTTI e LOPES NETO, CUT, ontem e hoje apud TUMOLO, op. cit., p. 121-122. 63 Cf. MÉSZÁROS. A crise estrutural do sistema do capital. In: Para além do capital, p. 605-980. Diz Mészáros que as três grandes formas de desenvolvimento do século XX não cumpriram suas promessas, a saber, a acumulação e expansão monopolista do capital privado, a “modernização do Terceiro Mundo” e a “economia planejada” do tipo soviético. 269 sindicais da esquerda brasileira e, em especial, nas disputas ideológicas no interior da CUT, tendo como uma das polêmicas a inserção da CUT nos programas de formação profissional e até mesmo escolar, gerando certificação de 1º e 2º graus sem um mínimo de preparação dos recursos humanos para tal empreitada, reproduzindo, de certa forma, a precariedade do ensino escolar público do Estado republicano burguês. Segundo Porfírio do Rio, a CUT abandona o seu percurso de combatividade e o horizonte socialista para empunhar a bandeira mistificadora do pacto social e da sociedade democrática; e diz que a crise da esquerda mundial é refletida por essa guinada à moderação da luta ofensiva sindicalista, porque justamente não há uma consistente formação política e ideológica desveladora da sociedade classista, marcada pela exploração do capital sobre o trabalho.64 Conforme Porfírio do Rio, “parte da esquerda passa a conceber a democracia como ‘um fim em si mesmo’, ou quando muito, como transição conseqüente para o socialismo.” 65 Na verdade, como bem diz Boito Jr., a CUT não tinha por base uma fundamentação marxista da luta sindical, embora tivesse uma visão de classe e compreendesse o movimento sindical como parte de um conflito mais amplo. O discurso sobre o socialismo era muito genérico, de pura simpatia pelos princípios socialistas, pois a CUT não definia o conteúdo desse socialismo nem mesmo a forma de como se chegar a ele. Era preciso, segundo a Central, reinventar o socialismo no Brasil e, de qualquer forma, ainda não estava dada na ordem do dia a transição para o socialismo. De acordo com Boito Jr., “As lutas práticas assumidas pela central naquela década [...] configuravam um programa de transformações democrático-popular, e não um programa socialista.”66 Afirma Oliveira do Rio que o advento tardio do neoliberalismo no Brasil, com o governo Collor no começo da década de 1990, trouxe consequências difíceis para a esquerda. E dois fatos marcaram esta situação: (1) a explosão da crise estrutural do capital com suas políticas nefastas de monetarização da economia e (2) a social-democratização das esquerdas nos anos 1970, cujos militantes marxistas, leninistas e trotskistas faziam a crítica ao socialismo real, como também viveram a difícil experiência na ditadura militar. 67 Isso resultou no abandono de uma teoria e prática anticapitalista, privilegiando a luta democrática 64 Cf. PORFÍRIO DO RIO, Cristiane. O trabalho sob o domínio do capital em crise: que fazer? O sindicalismo sobre o signo da barbárie. In: RABELO, Jackline et al. (Orgs.). Trabalho, educação e a crítica marxista. Fortaleza: Editora UFC, 2006. p. 89. 65 PORFÍRIO DO RIO, op. cit., p. 93-94. 66 BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 138-139. 67 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Cristiane Porfírio de. A política nacional de formação da CUT: análise crítica dos princípios e estratégias da Escola Nordeste, 2003. 130 f. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2003, p. 59. 270 dentro da ordem do capital.68 Com a derrota da esquerda na campanha presidencial de 1989 (Lula), a CUT e seu braço partidário, o PT, abriram uma nova etapa de negociação entre o capital e o trabalho, visando meramente o futuro pleito eleitoral, a saber, ambos mudaram sua forma de relacionar com o mundo institucional. Essa análise prévia é importante para podermos refletir sobre o porquê da mudança na política de formação sindical da CUT, pois a ação institucional da central tem a ver com a conjuntura histórica nacional e internacional, colocada pelas grandes transformações políticas, econômicas e sociais. O fato é que essa mudança de perspectiva de atuação político-sindical cutista vai resvalar numa mudança interna e externa da sua própria prática sindical, incluindo aí, a sua política nacional de formação. Podemos afirmar, conjuntamente com Tumolo, que as profundas transformações econômicas no final do século XX, objetivando estabelecer a nova ordem mundial da acumulação capitalista e o processo de reestruturação produtiva na economia brasileira, foram os elementos políticos (externos) mais importantes nessa mudança de postura político-sindical da CUT. Também podemos acrescentar a estes, outros elementos sui generis como a derrocada dos países socialistas sob direção da URSS, os fracassos das experiências revolucionárias na América Central – El Salvador e Nicarágua – e, sobretudo, a derrota do projeto democrático-popular das esquerdas nas urnas em 1989. Já os elementos internos que mudaram o comportamento da CUT são mais específicos. E aí podemos destacar: o processo de burocratização que sacrifica a democracia interna da Central; a presença ainda de aspectos fundamentais da estrutura sindical oficial de Estado; a política de relação internacional com entidades de perfil social-liberal ou socialdemocrata como a CIOSL, CGIL, CFDT e DGB (que financiou a construção da Escola Sul em Florianópolis); a participação no entendimento nacional, nas câmaras setoriais e hoje nas mesas de negociações entre governo e servidores públicos; e, por fim, as disputas da CUT com outras e novas centrais sindicais pela adesão dos diferentes sindicatos, pois antes havia a disputa com a Força Sindical e CGT, e agora com a Intersindical, Central Sindical Classista e CONLUTAS.69 Para corroborar essas afirmações, vejamos o que diz um ex-diretor da CUT-CE: Paulatinamente, presenciamos o fato de que toda a máquina sindical erguida durante as últimas décadas esbarrava no (sic) seus próprios limites, na despolitização, no corporativismo e na burocratização dos sindicatos e da CUT. Aliado a isso, acentuase, de forma hegemônica na CUT, o desenvolvimento de políticas de colaboração com o capital, como câmaras setoriais, pactos sociais e entendimento nacionais – denominado de “sindicalismo propositivo”. 70 68 Cf. PORFÍRIO DO RIO, op. cit., p. 96. Cf. TUMOLO, op. cit., p. 130-131. 70 SENA, Dissertação, p. 89. 69 271 Tais elementos apresentados podem explicar a mudança na trajetória política da CUT que reformulou suas estratégias e táticas a partir das condições objetivas que foram determinantes nesse processo, como bem afirma Tumolo. Entretanto, cabe inferir que a análise dos fatos, a partir da sua pura fenomenalidade empírica e/ou histórica, é um risco, porque a história é contingente, e que o homem pode inverter a direção dos fatos ou o rumo de suas ações, ou seja, ele como agente ativo do processo histórico é capaz de mudar a direção de seu destino. Se a resposta da CUT à ofensa neoliberal se limitou a solucionar apenas os impasses do presente, sem vislumbrar uma estratégia política de futuro para o socialismo, fica evidente que a Central optou por conviver com o capitalismo, procurando alternativas dentro dele, na crença de que é possível reformá-lo estruturalmente numa perspectiva mais humanista de sua condição. Fica claro, portanto, que, para a CUT, é possível obter benefícios para os trabalhadores por meio das negociações, dos pactos sociais, sem vislumbrar mais o socialismo como melhor sistema para a humanidade se desenvolver verdadeiramente e/ou superar as contradições sociais. Como diz o ex-diretor da CUT-CE, Acrísio Sena, Na esteira dessas mudanças, assiste-se à redução do poder das lutas de enfrentamento dos sindicatos com o capital, o reforço das lutas corporativas e economicistas e a falta de propostas de confronto com o capital. Essa realidade, de certa forma, obstaculiza o desenvolvimento da consciência de classe e reduz o papel que cumprem os sindicatos na atualidade como espaços de coesão de classe e formação política.71 Feitas tais considerações, podemos então analisar, em linhas gerais, o processo de formação política da CUT que, de certa forma, influenciou e repercutiu em seus sindicatos, federações e confederações. Contudo, algumas questões se colocam: essas mudanças objetivas internas e externas na trajetória da CUT atingiram a sua formação sindical radicalmente, ou é apenas uma estratégia conjuntural? Há uma relação entre a nova ordem mundial e a nova formação sindical cutista? Ou melhor, qual é a relação entre a mudança de estratégia da CUT e a limitação da formação sindical à questão meramente profissional, direcional, excluindo, assim, a formação mais ideológica e política? Pois bem, partindo do pressuposto de que a CUT, a maior referência do movimento sindical brasileiro e latino-americano, de caráter combativo, abandona a perspectiva classista da formação político-sindical, substituindo-a pela qualificação profissional, a partir de um horizonte menor de exercício da cidadania burguesa, então podemos inferir que nesse momento se estabelece um sindicalismo dócil aos interesses do grande capital, entrando em sintonia com a estratégia propositiva e negociativa. Num documento intitulado “Desafios e perspectivas para o 71 SENA, Dissertação, p. 80. Acrísio Sena, do Partido dos Trabalhadores (PT), é hoje Presidente da Câmara de Vereadores da cidade de Fortaleza, escolhido pela prefeita Luizianne Lins do mesmo partido. 272 projeto de formação sindical cutista”, podemos perceber essa posição da Central: [...] o enfrentamento efetivo destas questões passa pela formulação de uma estratégia sindical que favoreça uma linha de atuação afirmativa e propositiva, tanto no âmbito das relações capital e trabalho, como no das relações entre Estado e sociedade civil. A afirmação da democracia como valor fundamental e elemento constitutivo da sociedade do futuro, consubstanciada na modernização das relações de trabalho e no reconhecimento explícito, pela via da negociação ou do conflito, das diferenças e contradições presentes na sociedade, deve ser um elemento central dessa estratégia.72 Porém, antes de ocorrer esse social-democratismo cutista, Tumolo nos historia que a formação sindical da CUT se inicia mesmo, no período entre 1984-1986, cujo objetivo era a transformação social. Embora não haja documentos oficiais na sede da CUT em São Paulo sobre a formação sindical do período que vai de 1983 a 1987, mas, na revista oficial da Secretaria Nacional de Formação – Forma & Conteúdo –, há um texto intitulado “Histórico da política nacional de formação da CUT”, no qual faz um breve relato da gestão 1984-1986 que mostra algumas atividades de formação realizadas naquele período. Logo, segundo Tumolo, percebe-se que a formação sindical e política nacional de formação se iniciam em 1984, e não como dizem os documentos oficiais atuais. O que podemos extrair desse relato de Tumolo é que a Secretária Nacional de Formação (SNF), criada em 1984, começa um processo de discussão de uma política de formação, baseada nos princípios do estatuto da CUT, ou seja, uma CUT classista, de luta de massa, anticapitalista, como instrumento na luta pela destruição do capitalismo e criação de uma sociedade socialista, uma CUT democrática, pela base etc. A SNF tinha algumas atribuições no processo de organização da CUT, senão vejamos: desenvolver atividades de formação da CUT como cursos, palestras, seminários e encontros de formação; acompanhar, avaliar, sistematizar e socializar as experiências das CUTs estaduais e regionais; fazer um levantamento das experiências de luta e organização da classe trabalhadora; e elaborar e editar material de formação, publicações, audiovisuais e filmes etc. O objetivo inicial dessa estruturação da SNF/CUT era oferecer aos militantes uma formação básica que discutisse questões mais de fundo, como o modo de produção capitalista, a história do movimento operário e sindical, a luta de classes, a questão do socialismo etc. 72 CUT, 1994 apud TUMOLO, op. cit., p. 184-185. Cf. também, sobre a ideologia da democracia e cidadania, TONET, Ivo. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. p. 79-124. 273 Fazendo uma pequena digressão: ora, se nosso objetivo é fazer uma relação entre marxismo e formação sindical, nada mais natural do que descobrir se as análises marxianas sobre o modo de produção capitalista e o socialismo estavam presentes como temáticas nos cursos de formação política da CUT, nos seus sindicatos filiados. As primeiras pistas nos apontam que não tão profundamente, ou muito superficialmente, pois pessoas especializadas nas teorias de Marx, com certeza, eram bastante escassas, sobretudo dentro da Central. Sabemos que Marx nos oferece elementos teóricos que desfazem todo o ideário ilusório de que o capitalismo é um sistema aperfeiçoável, dominável, do ponto de vista social, tendo o Estado como um mediador do conflito entre o capital e o trabalho. No entanto, antes da SNF/CUT iniciar um curso mais sistemático, houve toda uma preparação, por exemplo, de como fazer um Encontro Nacional (1986) com as CUTs estaduais e regionais, e também com assessores, para discutir uma Política Nacional de Formação (PNF). Em outras palavras, foram traçados os pressupostos e objetivos dos cursos, definidos o caráter do tipo de formação, as condições, o papel das SEFs (Secretarias Estaduais de Formação) e da SNF. Segundo Tumolo, os programas de formação sindical tiveram dois nascedouros: o primeiro se originou na própria prática, quer dizer, a partir das demandas postas pelo movimento sindical cutista, em especial, pelas oposições sindicais; noutras palavras, o objetivo era oferecer as condições necessárias para lutar contra os pelegos sindicais, isto é, conquistar os sindicatos a partir da preparação, organização e formação dos militantes. Nesse sentido, deu-se um curso de “Plano de Ação e Administração Sindical”. Entretanto, a CUT tinha a consciência de que a formação não poderia ficar refém e à mercê das demandas conjunturais do movimento, logo era preciso partir para formar militantes que soubessem discutir questões ideológicas de fundo como o modo de produção capitalista e a questão do socialismo. O segundo nascedouro é a formação na perspectiva classista, anticapitalista e socialista. Desta feita, o primeiro curso tinha como proposta a temática “Do sindicato que temos ao sindicato que queremos” que depois passou a ser denominado de “Questões de sindicalismo”, curso dividido em dois blocos: No primeiro bloco discutiu-se “a sociedade capitalista” (teoria do valor-trabalho, mais-valia, exploração, classes sociais em luta); o segundo concernia à temática sobre “o sindicato como instrumento de organização e luta dos trabalhadores frente às classes dominantes”. Percebemos que, no primeiro bloco, temos a temática da economia política que trata da estrutura do sistema capitalista, ou melhor, das categorias primordiais de ação do sistema etc., logo de caráter marxista. Os outros dois cursos de maior duração foram dados a posteriori, a saber, “História do 274 movimento operário-sindical no Brasil” e “Noções básicas de economia política” como desdobramento do curso “Questões de sindicalismo”. Segundo Tumolo (2002), “Noções básicas de economia política” é um curso que abordou de forma mais profunda e extensa a temática referente à primeira parte de “Questões de sindicalismo”, ou seja, a discussão sobre a sociedade capitalista e as classes sociais em luta; da mesma forma, “História do movimento operário-sindical no Brasil” que tinha como tema “o sindicato como instrumento de organização e luta dos trabalhadores frente às classes dominantes”. E dessa maneira foi-se delineando um programa de formação política com seminários ou cursos relâmpagos, de cariz mais ou menos instrumental, a partir das demandas conjunturais do movimento sindical cutista. Houve também cursos de aprofundamento sobre a questão da “luta de classes”. Afirma, pois, Tumolo que a perspectiva classista e anticapitalista marcava, nesse período, distintivamente todos esses cursos, mesmo os que lidavam com temáticas conjunturais. Em relação ao conteúdo, esses cursos de aprofundamento não precisavam bem os conceitos como “mais-valia”, “luta de classes” etc., ou mesmo não explicitavam dialeticamente a divisão histórica do modo de produção humana no comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo e a possibilidade do socialismo. Era, na verdade, um conteúdo referenciado em manuais e feito na base do diálogo, pois não se utilizava a lousa para meter a matéria na cabeça dos frequentadores. Havia, portanto, uma forma primitiva de buscar estratégias educativas, sobretudo, porque era necessário adequar o conteúdo complexo à linguagem corrente dos formandos. Um fato a se registrar é que consta nos documentos oficiais da CUT, de que a formação sindical e a política nacional só são iniciadas em 1987, quando, na verdade, desde 1984-1986, como foi dito, já havia cursos ou atividades de formação sob o comando de Ana Lúcia da Silva (primeira secretária de formação da CUT à época). De fato, segundo Tumolo, há uma interpretação que quer se impor como verdade factual, afirmando que a formação sindical cutista só começa a partir de 1987, mas o objetivo é fazer esquecer aquele tipo de formação classista e anticapitalista que era dado aos sindicalizados, isto é, uma política nacional de formação que estava de acordo com os princípios estatutários da CUT, ou seja, uma entidade classista, de luta, de massas e anticapitalista. Sem dúvida, a formação nos primórdios da formação sindical cutista tinha essa perspectiva da luta de classes e estava tentando ser implementada. 73 Por conseguinte, a formação sindical cutista toma a posteriori uma nova configuração na gestão de 1986-1994, quando Jorge Lorenzetti assume a SNF por oito anos, ficando até o 73 Cf. TUMOLO, op. cit., p.160-162. 275 V CONCUT. Para este secretário, foi preciso fazer um roteiro pequeno e seminários regionais e estaduais, como também foi necessário perceber quais eram as demandas e expectativas dos sindicatos, das CUTs estaduais com relação à formação. Houve assim um plano de trabalho da SNF para 1987 que definiu metas prioritárias e princípios para uma Política Nacional de Formação, uma estratégia de implantação da PNF-CUT. Com base então na visão de Tumolo, citemos aqui pelo menos dois dos dez princípios elencados no referido plano de 1987: 1) o de número dois que tem como eixo central “a concepção classista da sociedade e a defesa dos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora”; e 2) o de número quatro que traz no seu bojo “a reflexão sobre a história da luta de classes no mundo”. Portanto, conforme o documento Plano de Trabalho da Secretaria Nacional de Formação da CUT 1987, na página 2, “o conhecimento e o estudo do capitalismo e do socialismo devem ser preocupação permanente da formação da CUT.”74 Sendo assim, para viabilizar tais princípios, três eixos foram definidos: economia política básica, sindicalismo e planejamento e administração sindical, sendo o primeiro eixo o principal e mais determinante, do ponto de vista revolucionário marxista. Contudo, afirma Tumolo, o único eixo que foi desenvolvido foi o do sindicalismo, ficando os outros dois postergados por falta de fôlego da SNF-CUT. A partir de 1988, a SNF-CUT abandona estes eixos permanentes e conjunturais e cria cinco eixos prioritários de formação: “1) Concepção e prática sindical da CUT; 2) Planejamento e administração sindical cutista; 3) Economia política básica 75; 4) Apoio ao desenvolvimento das lutas prioritárias da CUT; e 5) Desenvolvimento de uma linha metodológica de formação da CUT.”76 O estranho é que todo o documento visa oferecer propostas de atividades de formação a partir dos cinco eixos prioritários; no entanto, o eixo “Economia política básica” não foi proposto em nenhum curso ou seminário, pois o que se propôs foi constituir um grupo de trabalho, em âmbito nacional, sob a coordenação da SNF, para discutir e preparar um programa nacional de formação para este eixo. E mais: com a preparação para o III CONCUT, a equipe responsável para desenvolver os eixos dois e três não conseguiu fazer, porque o tempo de preparação e organização deste Congresso a impediu, ficando, portanto, tais eixos prejudicados. Afirma Tumolo, O resultado disso é claramente perceptível no ano seguinte. O plano de Trabalho da Secretaria Nacional de Formação da CUT 1989, sem fazer qualquer análise ou 74 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 165. Tal eixo engloba a compreensão e domínio dos elementos fundamentais da sociedade capitalista em que vivemos e as bases do socialismo. Atualmente o programa Organização e Representação Sindical de Base (ORSB) tem como um dos módulos complementares, o “socialismo”. Ver documento em PDF, “Síntese dos principais debates e encaminhamentos do XVII Encontro da PNF-CUT” (2011), p. 12. Disponível em: <http://cut.org.br/secretarias-nacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr 2012. 76 CUT, Plano de Trabalho da Secretaria Nacional de Formação da CUT 1988, p. 2 apud TUMOLO, op. cit., p. 166. 75 276 apresentar alguma justificativa, reduz os cinco eixos prioritários para quatro, retirando justamente o eixo “Economia política básica” e remetendo a discussão sobre noções de economia política para o eixo “Concepção, prática e estrutura sindical da CUT” [CPES] (Cf. CUT, 1989 b, p. 4).77 Para Tumolo, o eixo “Economia política básica”, algo determinante em relação ao conjunto de programas de formação, do ponto de vista político e metodológico, é tirado de cena e, portanto, nunca foi realizado de forma satisfatória. Seu conteúdo é deslocado para o eixo “Concepção prática e estrutura sindical da CUT” (CPES), tornando-se eixo basilar da formação cutista. Este eixo como ampliação da sua denominação anterior – “Concepção e prática sindical” (CPS) – engloba questões como “a história da luta dos trabalhadores no Brasil e no mundo”, “a análise classista da sociedade”, “análise de conjuntura”, “estrutura sindical”, “concepção e práticas sindicais”, “papel do sindicato/Central Sindical na luta de classes” e “Relação entre sindicato e partido”. Para alcançar os objetivos deste eixo, dois cursos foram criados em dois níveis para capacitar lideranças do movimento sindical com os seguintes pontos programáticos: Nível I Classes sociais e método de análise Instrumental de análise de conjuntura História do movimento operário no Brasil História do movimento operário internacional Estrutura sindical Estado e ideologia Relação sindicato e partido Nível II Estrutura de classes no Brasil Estudo de caso para análise de conjuntura Política de alianças Estrutura sindical Concepção e prática do movimento sindical. Em 1990, segundo Tumolo, há uma alteração na situação desses níveis, pois há três documentos diferentes que tratam do mesmo objeto: 1) Plano de Trabalho da Secretaria 77 TUMOLO, op.cit., p. 166-167. 277 Nacional de Formação da CUT-1990; 2) Avaliação das Atividades da SNF para 1989 – Plano de Trabalho da SNF para 1990; e 3) Plano de Trabalho da SNF 1990. Senão vejamos: Nível I Levantamento da prática sindical Discussão sobre as diferentes experiências sindicais da CUT Concepções do movimento sindical Concepção sindical da CUT (3º CONCUT) Estrutura sindical História e mudanças na constituição Estrutura sindical da CUT Desafios para implantação da proposta da CUT Nível II Levantamento das experiências das formas de luta e organização dos trabalhadores brasileiros Instrumental de análise de conjuntura Noções sobre estratégia e tática do movimento sindical Estrutura sindical da CUT Discussão sobre formas de luta e organização na proposta do contrato coletivo de trabalho articulado Desafios da implantação da proposta da CUT.78 Tumolo anota que há uma mudança em relação ao primeiro documento e anos anteriores, ou seja, houve uma modificação no enfoque global do curso, retirando temáticas relevantes para o desenvolvimento da consciência classista, ou seja, aquelas referentes às classes sociais, ao Estado e à ideologia, à história do movimento operário no Brasil e no mundo e, sobretudo, à economia política que trata das categorias inerentes ao sistema do capital. Ficaram assim suprimidos alguns temas que faziam parte do conteúdo do curso de CPES, e principalmente o que havia restado de “economia política básica” que ainda estava presente neste curso. Então, diz Tumolo, desaparece até mesmo o que era mera proposta do conjunto de programas de formação algo sem nunca ter sido realizado nos anos posteriores a 1987. Isso parece denotar tanto uma mudança de rumo no curso de CPES como uma alteração 78 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 167-169. 278 e redefinição dos princípios originais da formação sindical cutista, já que ao se eliminar esses conteúdos revolucionários e classistas, os princípios cutistas de antes não se materializarão na prática.79 Para comprovar essa mudança de rota, o documento “Avaliação 1990 – Plano de Trabalho 1991” afirma que foram feitos seis cursos de CPES-Nível I em 1990 com as seguintes temáticas: 1) O que é concepção sindical; 2) Problemas na concepção e prática cutistas; 3) História das concepções sindicais no Brasil; 4) Concepção, prática e estrutura sindical da CUT (CPES): sindicalismo classista, democrático e de massas; Federação x Departamento; Autonomia x Estrutura oficial; e Unidade x Unicidade; e 5) História de criação da CUT.80 Em 1991, foi sugerido o mesmo curso de Concepção, estrutura e prática sindical – CEPS (modificação da CPES), só que para membros da direção nacional, direções estaduais e regionais, dirigentes e lideranças de sindicatos e oposições reconhecidas. Afirma Tumolo que em 1991 os eixos prioritários se transformam em programas de formação, sendo o programa CEPS, com nova roupagem, o carro-chefe de uma grade maior de outros programas: 1) Concepção, Estrutura e Prática Sindical da CUT; 2) Negociação e Contratação Coletiva; 3) Planejamento e Administração Sindical Cutista; 4) Processo de Trabalho e Organização Sindical de Base; 5) Comunicação e Expressão; 6) Formação para a Direção Nacional da CUT; 7) Formação sobre a Questão Rural; 8) Formação sobre a Questão da Mulher Trabalhadora; 9) Recursos Humanos, Pedagógicos e Metodologia no Trabalho de Formação Cutista; 10) Apoio à Estruturação das Secretarias Estaduais de Formação da CUT e às Escolas; e 11) Cooperação e Intercâmbio Nacional e Internacional. Houve pequenas modificações nos anos posteriores, quando em 1994 chegou-se a um Plano de Trabalho composto por dez programas, tornando-se, portanto, a espinha dorsal que vai constituir toda a formação sindical cutista, com o desafio capital de realizá-los e elaborar currículos mínimos na esfera nacional para cada um deles. Senão vejamos: 1. Concepção, Estrutura e Prática Sindical da CUT (CEPS) 2. Negociação Coletiva (NC) 3. Planejamento e Administração Sindical Cutista (PASC) 4. Processo de Trabalho e Organização no Local de Trabalho (PT/OLT) 5. Formação de Direções (FD) 6. Relações Sociais entre Homens e Mulheres (RSHM) 7. Formação para Trabalhadores Rurais (FTR) 79 80 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 169-170. Cf. Ibid., p. 170. 279 8. Formação de Formadores (FF) 9. Cooperação e Intercâmbio Nacional e Internacional (CINI) 10. Memória e Documentação (MD) Claro que para pôr em prática esses programas 81 foi necessário construir estruturas e fóruns de organização e gestão com as seguintes instâncias: Secretaria Nacional de Formação (SNF); Secretarias Estaduais de Formação (SEFs); Secretarias Regionais de Formação (SRFs); Departamento/Federações e Confederações; Sindicatos; Escolas de Formação. É sabido que os rumos da PNF-CUT eram definidos pelos seus Congressos e Plenárias Nacionais, Direção Nacional e pela Executiva Nacional, em ordem decrescente de importância. No entanto, foram criados fóruns específicos para isso como Encontros Nacionais de Formação (ENAFOR); Coletivo Nacional de Formação (CONAFOR); e Coordenações Nacionais de Programas. Mas é preciso ressaltar que são as escolas de formação orgânicas e conveniadas as instâncias privilegiadas da formação cutista, mesmo que as estruturas e os fóruns sejam os responsáveis pela organização e gestação dessa formação sindical. As escolas conveniadas, apesar de terem sido criadas pelo movimento sindical cutista, tinham certa autonomia administrativa e jurídica em relação à CUT; já as escolas orgânicas foram criadas com total organicidade à CUT (formativa, administrativa, jurídica e financeira). O total de escolas eram sete em 1994, sendo uma ainda em processo de discussão. Se no primeiro período da formação sindical “1984-1986”, a formação era feita no próprio interior da CUT, a partir de 1986-1987 e anos seguintes, toda a formação passou a ser realizada pelas escolas orgânicas e conveniadas. Vejamos então as escolas: Escola Sindical Sul (Florianópolis), Instituto Cajamar (São Paulo), Escola Sindical São Paulo (São Paulo), Escola Sindical 7 de Outubro (Belo Horizonte), Escola Centro Oeste de Formação Sindical (Brasília), Escola Quilombo dos Palmares (Recife), Coletivo Nordeste de Formação (Recife), Escola Sindical do Norte (Belém) e Escola Sindical Norte II (Porto Velho; esta última em discussão). O Instituto 81 Na Rede de Formação da CUT, os programas de formação estão hoje redesenhados em cinco: Organização e Representação Sindical de Base (ORSB), Desenvolvimento de Políticas Públicas e Ação Regional (DPPAR), Negociação e Contratação Coletiva (NCC), Política e Sindicalismo Internacionais (PSI) e Formação de Formadores (FF). O objetivo da PNF “é contribuir para que uma ampla maioria das direções e lideranças sindicais tenham compreensão e consciência sobre a necessidade de mudanças profundas tanto no que toca o debate sobre desenvolvimento econômico e social e seus impactos nas relações de trabalho, quanto sobre a urgência de radicalizarmos na luta em defesa da liberdade e autonomia sindical. Ou seja, fazer com o que os trabalhadores/as que se identificam com o Projeto Sindical da CUT transcendam da ‘classe em si’ à condição de ‘classe para si’ como enfatizou Julio Turra do debate sobre estratégia da CUT.” Disponível em: <http://cut.org.br/secretarias-nacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr. 2012. 280 Cajamar e a Escola Sindical 7 de Outubro eram escolas conveniadas, sendo esta última transformada depois em escola orgânica.82 Bem, apresentadas então a estrutura e os fóruns da formação sindical cutista, retomemos o ponto de discussão que é o significado da mudança na formação sindical cutista, ou seja, a sua guinada para uma formação instrumental, menos “ideologizada” do ponto de vista classista, e mais cidadã, em que os princípios da justiça social, cidadania e da democracia serão os elementos norteadores de seus cursos de formação. Segundo Manfredi, a partir dos documentos consultados, o projeto formativo cutista está subordinado ao projeto político-sindical da Central, quer dizer, a formação é definida como democrática, pluralista e unitária; em outras palavras, a formação deve ser, portanto, um espaço que estimule a reflexão e o debate das mais diferentes correntes 83 no interior da Central. Além disso, a formação cutista tem como objetivo de ser um instrumento de reflexão crítica, de libertação e de construção da integralidade do trabalhador como ser humano, ou seja, contribui para que os trabalhadores tenham uma visão crítica do mundo e das relações sociais. Conforme Manfredi, para CUT, a formação trabalha com a ideia de que, para construir um mundo melhor e para que a liberdade aconteça, o trabalhador tem que ser sujeito da história, capaz de pensar sua realidade criticamente, ou melhor dizendo, ter propostas para a sua transformação e saber agir coletivamente a partir da convicção e da consistência em seus propósitos político-ideológicos.84 Com base nesses princípios, a SNF-CUT tentou construir uma concepção de educação sindical que se aproxima da “pedagogia transformadora buscando uma alternativa à educação dominante, autoritária, elitista, excludente, contribuindo para o desenvolvimento de uma nova prática educacional, gestada e assumida pelos 82 No bojo do processo de reestruturação da formação sindical cutista e por diversos motivos, várias escolas de formação, que mesmo funcionando em condições precárias, deixaram de funcionar como a Escola Norte I e II, a Escola Centro Oeste. A Escola Nordeste continuou funcionando precariamente e a Escola de São Paulo passou por uma crise no final de 1996. A Escola Sete de Outubro e a Escola Sul mantiveram uma estrutura ativa e uma atividade regular. O Instituto Cajamar deixou de existir. Cf. TUMOLO, op. cit., p. 191; 229. Nota 55-56. Todavia, conforme o site da CUT, funcionam hoje a Escola Norte I – Amazônia (Belém), Escola Norte II – Chico Mendes (Porto Velho), Escola Centro-Oeste (Goiânia), Escola Nordeste (Recife), Escola São Paulo (São Paulo), 7 de Outubro (Belo Horizonte), Escola Sul (Florianópolis) e Escola Turismo e Hotelaria – Canto da Ilha (Florianópolis). Disponível em:<http: http://www.cut.org.br/estrutura/58/escolas-sindicais>. Acesso: 5 abr. 2012. 83 Atualmente, a CUT conta com as seguintes correntes internas: ArtSind (Articulação Sindical), CSD (CUT Socialista e Democrática, ligada à Democracia Socialista), AE (Articulação de Esquerda Sindical), CUT Independente e de Luta, EPS (Esquerda Popular Socialista-Sindical), ES (Esquerda Marxista, uma dissidência do OT), TM (Tendência Marxista), OT (O Trabalho), DR (Democracia Radical) e GI (Grupo dos Independentes que gravitam perifericamente). As correntes que deixaram a CUT: CSC (Corrente Sindical Classista, ligada ao PC do B, fundando a Central dos Trabalhadores/as do Brasil, a CTB), CUT pela Base que fundou a CONLUTAS, ligada ao PSTU e alguns militantes do CSD e DS, que saíram do PT e fundaram o PSOL, estão representados pela INTERSINDICAL. 84 Cf. MANFREDI. A política nacional de formação da CUT. In: op. cit., p. 40-41. 281 trabalhadores – ligada às múltiplas dimensões da vida cotidiana” e tendo como meta um projeto de construção de uma sociedade mais igualitária e democrática.85 Para Manfredi, do ponto de vista metodológico, os formadores e as instâncias buscam construir uma proposta coerente que leve em conta as diferentes necessidades e múltiplas dimensões do trabalhador enquanto ser humano, cujo objetivo é fazer com que ele se torne um ser integral. Daí a proposta da formação valorizar a integridade, a solidariedade e a luta pela igualdade de direitos. Para isso, a questão da operacionalização é estratégica, denominada de “metodologia da práxis”, ou seja, partindo do pressuposto de que o trabalhador já possui um conhecimento acumulado, então é preciso fazer com que este conhecimento interaja com o saber sistematizado, não subordinando um ao outro. Portanto, a proposta metodológica da formação é envolver os educandos nas discussões, problematizando a realidade e priorizando a pesquisa e o estudo coletivo em todos os momentos de criação do conhecimento. O importante nisso tudo, segundo a CUT, é o exercício do pensar e a atitude crítica, curiosa e criativa em face do objeto a ser estudado. Manfredi anota que para a CUT, Não se trata, portanto, de entregar ou transmitir aos trabalhadores a explicação mais rigorosa dos fatos como algo acabado e estático. Trata-se de reproduzir, no processo educativo, o espírito inerente à luta dos trabalhadores de que todos os direitos conseguidos são uma conquista e de que o saber também deve ser uma conquista individual e coletiva.86 Na avaliação de Manfredi, se o período entre 1985 e 1987 foi a fase de gestação do projeto formativo e implantação das estruturas e da Política Nacional de Formação da CUT (PNF-CUT), de 1987 a 1993 foi a fase de execução do projeto, em que foram ministrados 160 cursos e 198 seminários temáticos, somando 358 atividades formativas, com a participação de 11.589 pessoas. Na tabela de cursos realizados pela PNF-CUT (1987-1993), podemos perceber que os cursos mais realizados foram: 1º Concepção/Prática Sindical com 43 cursos; 2º Formação de Formadores com 21; 3º Formação de dirigentes-nacionais/estaduais com 20; 4º Formação de Monitores com 18; 5º Planejamento Sindical com 16.87 Sem dúvida, o curso mais interessante para a formação da consciência crítica e classista em relação ao capitalismo é “Economia e Sindicalismo”, com apenas 3 cursos realizados. Percebe-se assim que a CUT estava mais preocupada em formar uma classe burocrática, dirigente e gestora da estrutura sindical de que necessitava, do que formar pessoas com uma consciência revolucionária e anticapitalista que pudessem agir para além dos limites institucionais. 85 MANFREDI, op. cit., p. 41. SGRECCIA, Alex e outros. Escola Sindical 7 de Outubro: Concepção político-pedagógica. In: Forma & Conteúdo. Secretaria Nacional de Formação, nº 3, dezembro de 1990, p. 31 apud MANFREDI, op. cit., p. 42. 87 Ver Sílvia Maria Manfredi, A política nacional de formação da CUT, in: op. cit., p. 45. 86 282 Contudo, os temas priorizados pelos sindicatos cutistas urbanos e rurais, em cada programa de atividades, eram antes bastante específicos. No caso do programa “Formação econômica, social e política geral”, destinado aos dirigentes e militantes de sindicatos urbanos (1) e rurais (2), havia os seguintes temas: (1) Socialismo, conjuntura econômica e política nacional, sistemas econômicos, economia política e privatização/estatização; (2) Avanço do capitalismo no campo, conjuntura nacional, relação entre partidos/sindicatos e socialismo no Cone Sul. Observamos que até 1993, as temáticas do socialismo e da economia política ainda eram relevantes para sindicatos cutistas, embora dadas de forma imprecisa teoricamente. Para Tumolo, a formação sindical cutista vai mudando à medida que também vai se modificando a sua estratégia política, ou seja, vai perdendo paulatinamente sua perspectiva classista e anticapitalista e, portanto, a partir de 1987, já vai adquirindo gradativamente esta formação um caráter instrumental. Em outras palavras, o objetivo era a preparação da militância para atender às demandas da conjuntura e do cotidiano sindical, ou seja, [...] uma formação que lida com os aspectos conjunturais, do que de uma formação de base que propiciasse uma apreensão da realidade social em sua dinamicidade contraditória, tendo como eixo central a luta antagônica entre as classes sociais fundamentais, ou seja, uma formação que tratasse dos elementos estruturais em seu movimento de múltiplas contradições.88 Argumenta Tumolo que, apesar de haver uma preocupação nos primeiros anos do período, ou seja, de que todos os programas de formação fossem pautados por esta formação de base, de acordo com os princípios cutistas, essa expectativa foi se desvanecendo. Para Tumolo, o exemplo mais visível é a não realização do curso de Economia política básica na sua programação para 1987/1988. O seu conteúdo foi transferido para o curso de CEPS, sendo este o principal programa da CUT, quer dizer, o mais consolidado e importante de todos eles. Mas ao mesmo tempo em que esse conteúdo mais classista e anticapitalista fora incorporado, com o tempo também fora suprimido juntamente com os temas de maior relevância, tornandose a CEPS uma feição próxima a uma concepção instrumental. Afirma ainda Tumolo que 88 TUMOLO, Da Contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista, p. 181182. Na pesquisa sobre os cursos de formação da Escola Quilombo dos Palmares (Equip), Paula percebe com base nas tabelas que entre 1988-1993 é dado prioridade apenas à formação de “dirigentes-educadores” e às reflexões do cotidiano sindical, não sobrando nenhum espaço para o debate sobre as categorias do pensamento marxiano no quadro de ofertas. Também conclui que não se faz uma relação entre o saber do educando com o saber teórico, pois o princípio metodológico é a construção coletiva do conhecimento, isto é, a história de vida de cada um. Houve então uma subestimação das categorias marxistas pelos educadores. Logo, a tendência dos cursos de educadores se inscreveu numa linha de reflexão subjetivista, de pensar o ato educativo mais numa via psicológica do que sociológica, sobretudo, porque o ponto de partida são as experiências individuais. A metodologia é, nesse caso, participativa, ou seja, o conteúdo é construído nos grupos de trabalhos a partir de suas vivências imediatas. Na verdade, a Equip identifica o marxismo com teoria, ou melhor, como um conjunto de conceitos dogmáticos; e assim postula um tipo de formação limitada a formar dirigentes, uma formação “sindicalesca” sem a teoria como suporte do conhecimento; aquilo que Vanilda Paiva denomina, segundo Paula, de “populismo pedagógico”. Cf. PAULA, Dissertação, p. 65-109. 283 somente em 1993, depois da realização do III e IV CONCUTs (1988 e 1991), com a consolidação da terceira fase da CUT que se caracteriza por um sindicalismo propositivo e conciliador, o Plano Nacional de Formação de 1993, ao comemorar os dez anos da Central, faz um balanço sobre sua prática sindical e começa a pautar sua estratégia política sindical a partir da ideologia da democracia e cidadania dentro da ordem do capital. É a partir deste momento que o tema da cidadania na democracia liberal burguesa parece serpentear o discurso e a prática sindical cutista como caixa de ressonância da “nova ideologia” do Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo a avaliação cutista, os anos 1980 foram de práticas reativas e reivindicativas do movimento sindical; mas os anos 1990 colocam uma nova tomada de posição para a Central, ou seja, a CUT adota uma linha de atuação afirmativa e propositiva, tanto no campo das relações entre o capital e o trabalho, como no das relações entre Estado e sociedade civil, como já foi dito anteriormente. A democracia passa assim a ser um valor fundamental, isto é, passa a ser um elemento imprescindível da sociedade do futuro.89 Dessa forma, consolida-se um processo de mudanças profundas na formação sindical cutista, balizado pelo trinômio proposição/negociação/participação, perdendo o caráter classista em troca do horizonte da cidadania. 90 A partir de 1994, no final do mandato de Jorge Lorenzetti e durante a gestão de Mônica Valente, é que se começou a questionar a estruturação da formação sindical baseada nos programas de formação. Durante este período de transição que vai do 7º Enafor (1993) até o 9º Enafor (1994)91, os programas de formação passaram a ser denominados de Núcleos Temáticos. Com objetivo de viabilizar a nova estratégia de formação, tais núcleos se propuseram a ser espaços de estudo, pesquisa, reflexão, elaboração e sistematização de conteúdos. Os núcleos se organizam a partir de eixos temático-problemáticos relacionados com o projeto CUT e sua PNF. Na verdade, diz Tumolo, [...] os núcleos temáticos, principais alicerces da nova estratégia de formação, não têm a finalidade de executar atividades de formação. [...] os núcleos temáticos são, fundamentalmente espaços de estudo, elaboração, pesquisa e sistematização do conhecimento e não de execução de atividades formativas.92 Assim os núcleos, a partir da 10ª Reunião do CONAFOR (Coletivo Nacional de 89 Cf. Documento da CUT: Plano Nacional de Formação 1994. In: TUMOLO, op. cit., p.184-185. Sobre essa questão da cidadania e sua crítica marxista, ver Ivo Tonet, Educação, cidadania e emancipação humana, p. 79-124. 91 Enquanto o 7º e 9º Enafor’s foram realizados em dezembro de seus respectivos anos, o 8º Enafor se realizou em agosto de 1994, num encontro extraordinário. 92 CUT, Plano Nacional de Formação 1995. In: TUMOLO, op. cit., p.188. Vale ressaltar que os pilares do projeto sindical CUT são: liberdade e autonomia sindical, luta por melhores condições de vida e trabalho, rumo à transformação da sociedade brasileira em direção à democracia e ao socialismo. Cf. Caderno Texto Base da Direção Nacional para o 11º CONCUT, p. 46. 90 284 Formação), foram criados com os respectivos eixos temáticos: 1) Gestão sindical; 2) Educação do trabalhador; 3) Transformações no mundo do trabalho; 4) Organização sindical cutista e Organização no local de trabalho (Olt); 5) Sistema democrático cutista e negociação coletiva; 6) Integração econômica mundial e Mercosul; 7) Sindicato, Estado e Sociedade; e 8) Relações sociais de gênero. Percebe-se então que as atividades formativas visam responder aos problemas concretos imediatos, ou seja, pondo questões ou desafios suscitados no próprio exercício cotidiano da prática sindical cutista. Eles mesmos afirmam isso em seus documentos do Plano Nacional de Formação de 1996. É impossível, no entanto, elencar aqui todas as grades de atividades que foram programadas a partir dos Planos Nacionais de Formação elaborados a partir de 1995. Por exemplo, as atividades propostas em 1996 para a região Sudeste não consta um curso específico, mais teórico-político, de caráter marxista. A maioria dos cursos tem a ver com a questão da formação de formadores, gestão sindical, educação do trabalhador, emprego, formação profissional, reestruturação produtiva, unificação dos sindicatos, planejamento estratégico, reforma administrativa, sociologia do trabalho e educação, negociação coletiva etc. Todavia, como dissemos anteriormente, a partir da 7ª Plenária Nacional em 1995 a CUT decidiu implementar a política de formação profissional na estrutura da Central. Mas a discussão era de longa data, quando, em 1992, se estruturou uma Comissão de Educação com a participação de várias Entidades Nacionais de Trabalhadores em Educação como a ANDESSN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior), CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), CONTEE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino), FASUBRA (Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores das Universidades Públicas Brasileiras). O objetivo era aprofundar discussões e reflexões sobre o eixo temático “Educação e Trabalho” com ênfase na formação profissional de nível médio. O argumento principal para optar em fazer educação profissional para os trabalhadores referia-se, na época, à questão do desemprego estrutural, decorrente da modernização tecnológica, em que mais de 8 milhões de trabalhadores estavam sem emprego, além de milhões marginalizados no setor informal. A intenção era fazer o trabalhador voltar ao emprego de forma mais digna. Segundo Tumolo93, a CUT vincula a questão do desemprego ao problema da não formação profissional dos trabalhadores, ou melhor, à sua não requalificação profissional, acreditando, nessa ótica, que a solução do desemprego é uma 93 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 195. 285 questão de despreparo técnico do trabalhador para mexer com as novas tecnologias. Por outro lado, a CUT acredita que participar da política de formação profissional é disputar junto com as entidades patronais – SENAI, SESC, SESI, SENAC etc. – os recursos financeiros estatais. Mas foi no 12º Enafor (Encontro Nacional de Formação), em 1997, realizado na Escola Sul da CUT em Florianópolis, que a questão da formação profissional foi o tema mais polêmico e candente nas discussões. Um conjunto de questionamentos foi elencado pelos participantes, gerando controvérsias no interior da CUT, senão vejamos alguns: primeiro, a tese da ligação entre qualificação e requalificação da força de trabalho (por via escolar ou extra-escolar) e emprego que apontava a qualificação e a requalificação como alternativas de geração de emprego e renda. Isto, do ponto de vista marxista, é uma falácia, já que em países desenvolvidos, com alto nível de educação e qualificação profissional, há um crescente desemprego decorrente do alto nível tecnológico da produção que requer menos trabalhadores para manuseio dos instrumentos produtivos, das máquinas. segundo, a CUT do “campo da esquerda” sempre defendeu a escola pública, gratuita e de qualidade. Mas, ao assumir a tarefa da formação profissional, ela esvazia a luta pela escola pública de qualidade no que tange a formação integral (conhecimentos gerais e técnicos), ou seja, reforça o ideário neoliberal que defende um Estado mínimo de políticas públicas, passando a responsabilidade para a sociedade civil. Além, claro, de os próprios sindicatos não terem pessoas qualificadas para realizar o ensino integral com certificação de 1º ou 2º graus. Seria o mesmo que reproduzir o ensino precário das escolas públicas em suas entidades; terceiro, a discussão se voltava para uma nova prática assistencialista, algo que era a marca do sindicalismo oficial de Estado, quer dizer, reproduzindo nos sindicatos cutistas o velho assistencialismo dos sindicatos pelegos; e quarto, a crise financeira nos sindicatos cutistas na segunda metade dos anos 1990 levantou o debate de que a realização da formação profissional, com recursos do governo, seria uma tábua de salvação para muitos sindicatos. Talvez isso explicasse a procura de muitos sindicatos, que até então nunca tinham realizado formação com seus militantes, buscarem realizar a formação. 286 Independentemente de essas discussões terem ocorrido no 12º Enafor, a CUT já havia firmado convênios de projetos de formação profissional com os órgãos governamentais que começariam a se realizar a partir de 1998. No entanto, isso já havia ocorrido na Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM) na primeira metade da década de 1990 com o Projeto Integrar que associa formação profissional com certificação de 1º grau. Com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o objetivo era habilitar mil formadores para formação profissional e 2 mil conselheiros das comissões estaduais e municipais de emprego e trabalho. Portanto, em meados de 1998, a CUT publica uma brochura do projeto Formação Integral, cujo título é “Trabalho e educação num mundo em mudanças”, isto é, um Caderno de apoio às atividades de Formação do Programa Nacional de Formação de Formadores e capacitação de conselheiros, em convênio com MTB (Mistério do Trabalho), SEFOR (Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional) e CODEFAT (Conselho Deliberativo do FAT). O conteúdo do Caderno é de quatro blocos: bloco 1 - As transformações do capitalismo no final do século XX; bloco 2 – Emprego/desemprego e alternativa de geração de renda; bloco 3 – Alternativas de desenvolvimento; e bloco 4 – Educação e trabalho. Em relação ao conteúdo do bloco 1 – As transformações do capitalismo no final do século XX – temos quatro textos com os seguintes temas: “globalização”, “neoliberalismo”, “reestruturação produtiva” etc. Neles – diz Tumolo – Pochmann e Mattoso começam com uma breve retrospectiva dos modelos de desenvolvimentos implementados no Brasil a partir da ditadura militar, apresentando suas principais características, seus limites e problemas. No que diz respeito à “desestruturação neoliberal” e a “modernização conservadora”, os dois autores mostram as mudanças que ocorreram nas condições e na dinâmica adotada pelos trabalhadores e suas organizações sindicais. Para Tumolo, os autores apenas fazem uma análise de conjuntura sem efetivar um estudo mais profundo sobre a realidade contemporânea em sua totalidade social, tal como o escrito de Hebert de Souza – “A grande transformação socioeconômica do capitalismo no final do século XX” –, na qual apenas desenvolve uma análise jornalístico-informativa das principais transformações socioeconômicas que vêm acontecendo no final do século XX. Da mesma maneira é o bloco 2 – Emprego e desemprego e a alternativa de geração de renda –, ou seja, tratado de forma conjuntural sem nenhuma exposição de análise que questione a relação assalariada de produção. Para Tumolo, os textos de Krein, Pochmann e Mattoso, embora analisem a questão do trabalho na conjuntura neoliberal, com suas transformações no mundo da produção e do trabalho, não abordam a questão do emprego no 287 bojo da relação capitalista de produção, mas somente a partir do “fenômeno histórico da subutilização do trabalho”.94 O mais estranho é que o caderno de formação do bloco 2 propõe a reorganização da sociedade a partir de iniciativas localizadas de combate ao desemprego, ou seja, com a criação de redes de produção autônoma, em que a lógica da solidariedade fosse a marca da relação entre produção e troca de mercadorias. Na mesma lógica de pensamento vai o texto de Paul Singer, “A economia solidária na luta contra o desemprego e na competição sistêmica”, em que ele acredita que a economia solidária possa ser uma alternativa ao modo capitalista de produção, a partir da cooperação de unidades produtivas, ligadas por laços de solidariedade, propiciando ao homem escolher e experimentar formas alternativas de organizar sua vida econômica e social. Essas propostas de combate ao desemprego e de construção da economia solidária, para CUT, devem estar associadas a um projeto novo de desenvolvimento para o país. 95 O bloco 3 – Alternativas de desenvolvimento – apresentam três textos, cujas temáticas são: “Estado, globalização e projeto nacional” (M. A. Garcia); “Fundamentos de um projeto novo para o Brasil” (C. Benjamin); e “Propostas da CUT”. Tomando o texto de Garcia, Tumolo afirma que a questão da inexistência de uma reforma social e a concentração de renda são as diretrizes de sua reflexão sobre a elaboração de um novo projeto nacional que implica a inclusão social, o Estado nacional e o caráter democrático deste projeto nacional. Na mesma direção, a CUT apresenta quatro propostas para construir uma sociedade cidadã, ou seja, um modelo alternativo de sociedade baseado na democracia e justiça social: desenvolvimento rural, política de segurança alimentar, política cidadã e reforma do Estado. Por fim, o bloco 4 – Educação e Trabalho – discute a relação entre educação e trabalho com base em dois textos: um de Dermeval Saviani, “O trabalho como princípio educativo frente às novas tecnologias”, e outro de Claudio Salvadori Dedecca, “Educação e trabalho no Brasil”. O texto de Saviani faz um histórico da relação entre educação e trabalho desde a Antiguidade até a sociedade contemporânea; e, ao tratar do Brasil, Saviani alimenta a esperança de que a incorporação de novas tecnologias pelas empresas possibilite a urgência de 94 TUMOLO, op. cit., p. 203. Conforme Colbari, o movimento sindical cutista tem a perspectiva de associar aprendizado técnico e o aprendizado político com os cursos de qualificação e requalificação profissional, ou seja, objetivando influir instrumental e simbolicamente na formação do trabalhador, livrando-o do puro treinamento técnico ou do assistencialismo do modelo do sindicalismo de outrora. Em outras palavras, apropriar-se dos recursos dos trabalhadores (FAT) para dar uma ressignificação política a esses cursos, maximizando a capacidade de raciocínio e compreensão do indivíduo sobre a sociedade para que ele possa tomar decisões e assumir responsabilidades com a elevação do seu nível cultural. Educar, portanto, para a cidadania ativa. Sobre esta polêmica dos cursos de profissionalização, empregabilidade e economia solidária, ver Antonia Colbari, Qualificação profissional e empregabilidade: Novos desafios ao sindicalismo no Espírito Santos. In: RODRIGUES, Iram Jácome (Org.). O novo sindicalismo: vinte anos depois, p. 173 et seq. 95 288 realizar a universalização da escola básica, ou melhor, de construir um sistema educacional unificado, pois, para Saviani, sem esse sistema o parque produtivo nacional não se moderniza. Já o texto de Dedecca trata da relação entre educação e mercado de trabalho, avaliando que esta relação nos países desenvolvidos, mesmo com nível educacional elevado, não garante desemprego menor; no entanto, no Brasil, Dedecca faz uma ressalva, argumentando que o Estado, ao garantir a universalização básica e de boa qualidade da educação, ou seja, ao melhorar o perfil educacional de nossa população, pode favorecer a economia com uma mão de obra qualificada, estimulando a produtividade e a competividade e, assim, podendo resolver os gargalos do desenvolvimento.96 Exposta então essa sucinta explanação dos textos do Caderno de apoio às atividades do Programa Nacional de Formação, segundo Tumolo, os textos que compõem o primeiro bloco mostram e fazem uma crítica apenas aos elementos de manifestação da realidade presente, não discutindo de forma mais aprofundada o capitalismo contemporâneo a partir de uma análise da totalidade social que leve em consideração a dinâmica do atual desenvolvimento capitalista com seus antagonismos de classe e as suas contradições inerentes à sua estrutura. Não é à toa que os textos cutistas são referências bibliográficas que apenas servem de sustentação às suas medidas estratégicas e táticas no que dizem respeito à sua nova tomada de posição político-ideológica face à realidade neoliberal, ou melhor dizendo, da sua escolha política a la socialdemocrata. Desse modo, os textos do bloco 1, escolhidos para o Caderno, não discutem ou criticam o sistema capitalista, mas apenas um determinado modelo de desenvolvimento. Já o terceiro bloco objetivava apresentar um projeto nacional com um Estado soberano, baseado na democracia e no desenvolvimento econômico que propiciasse a criação e a distribuição da riqueza equitativamente, a saber, uma sociedade cidadã baseada na democracia e justiça social. No entanto, essa proposta é carente de uma análise concreta da realidade a partir de um referencial teórico-metodológico materialista-dialético. Seria, a nosso ver, o retorno ao neokeynesianismo em que o Estado é a instância eficaz de solução do antagonismo entre o capital e o trabalho. É o retorno a um pré-capitalismo concorrencial, ao modelo do socialismo utópico, retirando da história seu elemento de “violência” 97 enquanto motor das grandes transformações sociais, no caso, a Revolução Social. Como diz Tumolo, [...] o teor da análise e das propostas, inclusive a de constituição de uma “economia solidária”, nos remete aos projetos e experiências do socialismo utópico. Mesmo 96 97 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 206-207. Sobre a teoria de violência, ver Engels, Anti-Dühring. São Paulo: Paz e Terra, 1990. p. 145-161. 289 reconhecendo a imprescindível contribuição oferecida por esta corrente política, até porque eles próprios foram herdeiros dela.98 Para Tumolo, portanto, há nos textos dos autores utilizados no Caderno, que subsidiam a formação sindical e profissional cutista, como referência teórico-política da CUT, uma superficialidade e inconsistência de leitura da realidade, como também a inviabilidade e ilusão de seus projetos estratégicos, pois tal leitura e tais projetos denotam uma determinada posição teórico-política de caráter mais social-democrata do que socialista. Assim sendo, não é possível detectar uma crítica radical ao sistema capitalista, uma estratégia da luta de classes de caráter internacionalista, nem mesmo a necessidade de se fazer uma ruptura revolucionária para se construir as bases históricas de transição para uma sociedade socialista. Os textos vão mais na direção de criticar o modelo de desenvolvimento econômico capitalista e apresentar um projeto nacional soberano, baseado na democracia e justiça social, do que compreender e desnudar para os trabalhadores a impossibilidade de realização das suas demandas de classe na (des)ordem do capital. De tal modo que tanto a formação sindical quanto a formação profissional se balizam na construção de uma sociedade cidadã, caracterizando-se, assim, numa formação puramente instrumental desde os anos 1990. Enfim, segundo Tumolo, mesmo que os dirigentes e assessores da CUT digam que não querem tomar o lugar do Estado, quando implementam projetos de formação profissional no interior da CUT, na prática eles estão fazendo isso, mesmo que utilizem esse espaço para transmitir ideias progressistas para os alunos. Para Oliveira do Rio, há uma contradição na postura política da CUT, pois, ao mesmo tempo em que, no seu Estatuto, a Central se pauta pelo compromisso e defesa dos interesses imediatos e históricos dos trabalhadores, pela luta por melhores condições de vida e pelo engajamento no processo da transformação da sociedade brasileira em rumo à construção do socialismo, na prática ela se volta fundamentalmente para a formação profissional e construção da cidadania que são contrários a tais princípios estatutários antes recitados. 99 Na verdade, a CUT se rende aos fatos conjunturais históricos da modernização conservadora do capitalismo, baseados na reestruturação produtiva, na nova forma de exploração do trabalho com injustas formas de gestão do trabalho e da produção, na desregulamentação das leis trabalhistas e na globalização financeira dos mercados de ações. Com efeito, a CUT, ao se envolver diretamente com a qualificação profissional, a partir dos termos do documento Projeto Nacional de Qualificação Profissional CUT/Brasil, 98 99 TUMOLO, op. cit., p. 209. Cf. OLIVEIRA DO RIO, Dissertação, p. 68-69. 290 reforça a ideologia dominante da “empregabilidade”, ou melhor, não “percebe” o movimento concreto real do capital, que é a crise do capitalismo em movimento, cujo desemprego estrutural é a sua consequência maior. No entanto, na “Apresentação” do livro Educação integral dos trabalhadores: práticas em construção, o Secretário Nacional de Formação da CUT, Altemir Tortelli, explica que O projeto Nacional de Qualificação Profissional CUT/Brasil, desenvolvido no âmbito do Planfor/MTE e do qual o Programa Integração é parte, procurou fazer com que suas ações refletissem o esforço conjunto das diversas instâncias da CUT no sentido de contribuir na formulação de um projeto pedagógico para a educação profissional que tenha como perspectiva a Educação Integral dos Trabalhadores.100 Nesse sentido, segundo Tortelli, a CUT visa construir uma proposta de educação integral para os trabalhadores que supere a dicotomia entre educação profissional e ensino propedêutico, ou seja, busca combater o tipo de educação que fragmenta o conhecimento que tende a instrumentalizar o homem para atender as demandas do mercado. 101 Por isso que, desde 1996, programas nacionais e regionais de Educação Profissional vêm sendo implementados pela CUT, cujo objetivo é contribuir com metodologias para a Educação Integral dos Trabalhadores, entendendo que, conforme a resolução do 5º CONCUT, A formação profissional é, numa concepção cutista, parte de um projeto educativo global e emancipador. Portanto, deve ser entendida como o exercício de uma concepção radical de cidadania. A CUT recusa a concepção de formação profissional como simples adestramento ou treinamento ou como mera garantia de promoção de competitividade dos sistemas produtivos. 102 Para a CUT, realizar o processo de formação integral, por meio de Programas desenvolvidos no Projeto Nacional de Qualificação Profissional (PNQP) CUT-Brasil, com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), é ampliar sua capacidade de intervir de forma propositiva na formulação, gestão e controle das políticas públicas tais como os Sistemas Públicos de Emprego e de Educação, ou seja, com o objetivo de disputar a hegemonia. Conforme a CUT, a Educação Integral dos trabalhadores está intimamente ligada à PNF/CUT e, portanto, compreende a articulação entre Formação Política e Sindical, Educação Básica e Profissional. A CUT admite em suas resoluções que os Programas de Educação Integral sejam de responsabilidade do poder público, financiado com dinheiro público, mas que tenham gestão democrática com a participação ativa dos trabalhadores nas definições políticas e pedagógicas, assim como na gestão financeira, ou seja, reafirma a 100 BARBARA, Maristela Miranda et al. (Orgs.). Educação integral dos trabalhadores: práticas em construção. São Paulo: CUT, 2003. p. 13. 101 Ibid., p. 14. 102 Cf. 5º Congresso Nacional da CUT. Resoluções, 1995, p. 52 apud BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 19. 291 necessidade de prover a educação para toda a população, mas colocando os trabalhadores como protagonistas na construção de políticas públicas. 103 Por outro lado, fica claro, segundo Oliveira do Rio, que a CUT em seus documentos centra-se numa suposta oposição entre a “sociedade civil” e o “governo” e não mais entre “capitalistas” e os “trabalhadores”. Há aí uma mudança de linguagem, de discurso, que reflete o impacto da ideologia neoliberal no seu interior. Isso se traduz numa ocultação da CUT sobre a existência dos interesses antagônicos de classe na sociedade capitalista. Ou como diz Boito Jr., “Os trabalhadores não têm mais inimigos, e a CUT pode, agora, aspirar e representar a ‘sociedade’. A visão neoliberal da sociedade e da relação desta com o Estado tem dominado, apesar de oscilações e contradições, no discurso da CUT.”104 Na concepção de Oliveira do Rio, há sim uma guinada de estratégia, quer dizer, de aborto do projeto socialista, quando o discurso da CUT entra em sintonia com os novos discursos da pós-modernidade, ou seja, desloca a questão do conflito de classes sociais para a relação de conflito entre governo versus sociedade civil. Há, portanto, uma “luta de classe transformada”, quer dizer, para Oliveira do Rio, o objetivo é o controle dos fundos públicos para implementar políticas públicas para toda a sociedade, logo uma estratégia política vinculada ao tipo de sindicalismo propositivo neoliberal. 105 Entretanto, no seu livro sobre a análise da Formação Profissional e sua relação com a educação básica, a CUT tem como proposta metodológica “a construção do conhecimento a partir da socialização dos diversos saberes e da realização de um trabalho integrado entre educadores, incorporando os acúmulos advindos das diversas experiências formativas trazidas por cada sujeito educador.”106 Na concepção da PNF/CUT, para promover a educação integral é preciso “pensar e construir uma nova relação com o conhecimento, uma nova relação entre educador e educando, um novo sentido ao espaço educativo.” 107 Nesse sentido, a PNF/CUT entende que “[...] o homem é sujeito de sua história, é produtor de conhecimento, de cultura, de riqueza; é transformador da natureza por meio do Trabalho, resgatando assim, o seu sentido ontológico.”108 A CUT, dessa maneira, propõe a centralidade do Trabalho na construção curricular, isto é, compreende a categoria “Trabalho” como “processo de transformação da natureza”, “processo de transformação da espécie humana” e como 103 Cf. BARBARA et al. (Orgs), op. cit., p. 19-20. BOITO JR. Armando. Hegemonia Neoliberal e Sindicalismo no Brasil. In: Crítica Marxista. São Paulo, [s.e], 1996, n. 3, p. 93. 105 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Dissertação, p. 71. 106 BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 23. Ver também Francisca Clara de Paula, nota 88 deste capítulo. 107 Ibid., p. 28. 108 Ibid., p. 29. 104 292 “processo histórico que se reveste de um caráter específico na formação social capitalista”. 109 O que deve ser ressaltado, porém, é que a PNF/CUT leva em consideração os sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem, privilegiando o educando como centro de atuação político-pedagógica. Mas ela enfatiza a necessidade de se ter uma ação pedagógica que dialogue intensamente com os conhecimentos acumulados que os educandos possuem, pois a diversidade está presente em cada sala de aula, e aí é preciso constituir os laços comuns que os unem no projeto formativo. A socialização das experiências nesse projeto de educação profissional/integral CUT tem como objetivo formar o homem omnilateral, completo, pois a educação deve ultrapassar a dimensão do agir unicamente determinado pela necessidade de subsistência, quer dizer, como única referência a produção material. Para isso, a CUT luta “por uma escola única de cultura geral e humanista que possibilite o desenvolvimento da capacidade de compreender a realidade como unidade do mundo e do homem em ação, em permanente transformação.”110 Vejamos então como se apresentam as áreas temáticas, oferecidas pelo Projeto Nacional de Qualificação Profissional CUT-Brasil no âmbito do Planfor/MTE: 1) Sujeito, Natureza & Desenvolvimento; 2) Conhecimento & Tecnologia; 3) Comunicação, Cultura & Sociedade e; 4) Gestão & Alternativas de Trabalho & Renda. (1) A área “Sujeito, Natureza & Desenvolvimento” tem como objetivo estratégico fazer com que os educandos se apropriem do conceito de Sujeito nas suas dimensões individual e coletiva; e discutir o homem como parte da Natureza e o Trabalho como atividade pela qual o homem transforma a natureza e se constrói como sujeito cultural, social e histórico. Em outras palavras, a área tem o objetivo de desencadear reflexões sobre o desdobramento de suas ações na construção de uma nova perspectiva de desenvolvimento.111 Nesta área de conhecimento, o PNQP/CUT-Brasil pactua de uma análise marxiana ao afirmar que a História, aqui, é entendida como processo de produção e reprodução da vida em sociedade, campo de oposições, conflitos e antagonismos entre classes, plano de objetivação, pelo trabalho, das possibilidades de conservação ou transformação das relações sociais, já que o trabalho é indispensável à existência humana, considerando que, em quaisquer que sejam as formas de organização da sociedade, o trabalho é a necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana.112 109 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 29. O interessante é que nessa discussão, a avaliação da PNF/CUT toma como enfoque a questão da mercadologização da força de trabalho, a extração do valor desta, a raiz das formas de alienação e exploração e subordinação do Trabalho ao Capital. 110 BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 47. 111 Cf. Ibid., p. 51. 112 Ibid., p. 51. 293 E continua a afirmar que é possível [...] atuar sobre as condições objetivas com vistas a transformá-las segundo as possibilidades que nelas estão escritas, compreendendo cada fenômeno do cotidiano como movimento de uma realidade em permanente processo de construção, negando, assim, a concepção de uma natureza humana pronta, imutável. 113 De certa forma, o PNQP/CUT-Brasil parte de uma concepção “marxiana” da realidade nesta Área onde o Programa Integração trabalha. No debate sobre a Natureza & Desenvolvimento, há um texto extraído do livro de Marx The People’s Paper, de 1856, que fala sobre as máquinas dotadas de um poder maravilhoso de abreviar e tornar o trabalho menos demorado que poderiam levar o homem a se libertar bastante do tempo de trabalho necessário e ter um período de tempo mais livre para se dedicar a outras atividades. Por outro lado, o texto ressalta que as máquinas nas mãos de proprietários privados fazem os homens se tornarem escravos da sua própria intensificação de produção, embrutecendo suas vidas. Na temática, Sujeito Histórico, o curso cita um texto de Gramsci “Que é o homem?” do livro Concepção dialética da história 114 que trata do homem como controlador do seu próprio destino, como um ser que se cria ou se refaz na própria vida; além de citar a natureza humana como “um conjunto das relações sociais”, extraída, certamente, da Sexta Tese sobre Feuerbach de Marx. O objetivo com este texto seria promover uma reflexão sobre a possibilidade humana de transformar a realidade, em contraposição à ideia fatalista e naturalizadora das relações sociais e das condições objetivas existentes. Percebe-se que há uma dimensão reflexiva de caráter marxista nos textos apresentados e nas reflexões sobre os mesmos. Segundo a reflexão da CUT sobre “a Formação Profissional e sua relação com a educação a partir da ótica dos trabalhadores”, a abordagem dos textos quer mostrar que “a realidade é sempre mais rica de conhecimento do que temos dela” e que “é preciso elaborar sínteses para entender melhor esta realidade”, ou seja, “uma visão de conjunto que permita descobrir a estrutura significativa da realidade”. 115 (2) A área “Conhecimento & Tecnologia” privilegiou as relações entre os temas: “trabalho e técnica”, “sociedade e tecnologia”, “saberes e ciência”, “cultura e tecnologia”, “desenvolvimento social e tecnologia”. O objetivo é promover uma reflexão sobre as consequências desse processo na vida das pessoas, no trabalho e no mundo. O eixo da abordagem nesta área é a noção de movimento, isto é, movimentos cíclicos ou naturais, movimentos históricos e o movimento que constitui o homem como um ser social na sua 113 BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 51-52. Cf. GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 38-44. 115 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 75. 114 294 relação trabalho e natureza. Nesse sentido, o percurso formativo tem como centralidade de abordagem o trabalho. Aqui se percebe um pouco a discussão do trabalho em Marx a partir da sua relação com a natureza e com os próprios homens ou como processo de transformação da realidade e das transformações sociais. 116 Também faz a crítica ao eixo das políticas ditadas pelos organismos internacionais, implementadas pelos governos que defendem a ideia de o mercado ser a razão de todas as coisas. Pelo menos em tese, a CUT é contrária ao modelo de educação que dispensa a formação humanista para se centrar na sua instrumentalização para o mercado de trabalho; logo a CUT defende a educação integral como uma unidade entre escola e vida. Assim, para CUT, “Forma-se para pensar, para estudar, para governar ou controlar quem governa e, também, para trabalhar. Não há separação entre pensar e agir, porque quando o pensar é privado de realidade e o agir de sentido, ambos ficam sem significado.” 117 (3) A área de “Comunicação, Cultura & Sociedade” tem o objetivo de discutir as relações entre Trabalho, Cultura e Sociedade, enfatizando a perspectiva histórica sobre o tema, quer dizer, problematizando as questões contemporâneas como, por exemplo, “a influência dos meios de comunicação na construção e legitimação do pensamento hegemônico”, como também “a materialização desse pensamento no que diz respeito à educação e qualificação profissional a partir do discurso da empregabilidade e das competências”. Essa posição retórica da CUT entra em choque com que Paulo Tumolo analisou a PNF-CUT, mas este autor faz uma ressalva, dizendo que seu estudo foi até o período de 1998; esta percepção cutista já é a do século XXI, depois de 2002. 118 Portanto, nesta área a metodologia buscou fazer uma reflexão sobre a formação ser um processo relacional entre o indivíduo, a natureza e a cultura, isto é, o processo de construção da subjetividade humana. Nessa direção, a área temática retoma a questão das “relações sociais”, uma categoria marxista, para situar o homem dentro da sua própria história, da sua realidade social, a partir de uma análise de Gramsci sobre “o que é o homem”. Segundo Barbara, na perspectiva gramsciana, [...] é das relações sociais que precisamos partir para compreender o quê, como e por que os homens agem e pensam de determinada maneira. Trata-se de compreender a própria origem das relações sociais, de encará-las como processos históricos. Ou seja, em diferentes momentos históricos a produção da existência e, por decorrência, do conhecimento, processou-se de diferentes formas e meios, sempre com base nas condições objetivas de cada contexto.119 116 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 77. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 79. 118 Cf. a página 289 deste capítulo sobre a posição crítica de Tumolo. Cf. também TUMOLO, op. cit., p. 233, nota 84, onde ele faz a ressalva de que encerrou o estudo dele acerca da formação cutista em 1998. 119 Ibid., p. 99. 117 295 Todavia, vale dizer que o PNQP/CUT trabalha metodologicamente com figuras de obras de artes, poemas de vários escritores como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Mário Quintana etc., como também com a linguagem. (4) Por fim, a área de “Gestão & Alternativa de Trabalho e Renda” tem o objetivo de promover uma discussão sobre a distinção entre desenvolvimento social e crescimento econômico. Por isso, a reflexão sobre o papel do Estado nas políticas públicas e na organização do trabalho foi a proposta da área, cujo objetivo era saber se o Estado exerceu o seu papel de agente indutor e regulador do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Além disso, também foi proposta uma análise crítica das formas de empreendimentos solidários existentes, suas possibilidades e limites. Aqui, a CUT percebeu que a alternativa dos pequenos negócios particulares ou de cooperativas se mostrou como iniciativas inviáveis economicamente, justamente porque não há políticas de incentivo por meio do Estado. E, portanto, a CUT faz a ressalva, alegando que isso é consequência da falta de políticas públicas que ofereçam formação, assessorias, apoio jurídico, apoio à comercialização e um tratamento fiscal diferenciado para os pequenos empreendedores. Desse modo, para a CUT, não é o sistema anárquico do Capital que impede os agentes econômicos solidários de “se darem bem”. Fica claro então que a CUT continua com a perspectiva utópica de que, dentro da (des)ordem do capital, os trabalhadores podem “se dar bem”, e coloca a economia solidária como agenda. Parece haver, portanto, uma contradição entre discurso e prática na CUT, porque, se por um lado, o PNQP/CUT trabalha com categorias marxistas como “relações sociais”, “conflitos de classes”, “hegemonia da classe dominante”, “poder do trabalhador”, por outro, ela faz o jogo do capital, ao trabalhar com categorias pós-modernas como “cidadania”, “inclusão social”, “empregabilidade” “desenvolvimento sustentável”, “economia solidária” etc. O problema do capitalismo para a CUT parece ser o de não haver nele a “solidariedade social”, um típico discurso moral do “dever ser” kantiano, ou seja, a CUT não se coloca mais na perspectiva da luta pelo socialismo, mas parece propor uma luta de caráter moral120 de combate ao individualismo capitalista, ao mercado de trabalho competitivo, acreditando que as alternativas coletivas solidárias poderão ser os embriões do nascimento de uma nova relação social de produção. A CUT fala na “importância da organização dos trabalhadores”, porém, apenas no sentido de exercer um poder de influência nas decisões do governo 120 Isto só confirma a tese de Vanilda Paiva do populismo pedagógico, cujo saber emana do povo, e aponta para uma visão moralista da sociedade capitalista que só critica os valores “desumanos” e não a lógica de exploração do capitalismo. Cf. PAULA, Dissertação, p. 103. 296 capitalista para melhorar suas condições de vida, e não de organizar a classe trabalhadora para o combate anticapitalista, através da luta de classes, visando superar a ordem do capital. 121 Nas resoluções do VII CONCUT (2000), a estratégia inovadora da CUT já era de combate ao desemprego e à exclusão social a partir da construção de um projeto de economia solidária tais como cooperativas populares autênticas e de autogestão ou empresas de autogestão, para distribuir renda e geração de novas oportunidades de trabalho, sob princípios da democracia e da autogestão.122 No texto A Intervenção da CUT nas políticas Públicas de Geração de Trabalho, Emprego, Renda e Educação dos Trabalhadores 123, é apresentado o objetivo da educação profissional: “formar tecnicamente e politicamente os trabalhadores”. Para a CUT, a sua proposta político-pedagógica tem um sentido emancipador e libertador, isto é, um sentido de resgate da autoestima e da identidade do trabalhador. Na verdade, a CUT tem claro que a criação de experiências alternativas, por meio de seus programas, não deve substituir o papel do Estado, mas, ao mesmo tempo, ela entende que é preciso construir referências de políticas públicas que fortaleçam o seu papel na condução de um modelo de desenvolvimento fundado nos conceitos de solidariedade e sustentabilidade. De outro modo, sobre essa participação da avaliação externa do PNQP/CUT, a Central declara que Assim, assumindo o caráter de complementaridade das ações públicas estatais e nãoestatais, os programas de educação profissional desenvolvidos pela CUT buscam fortalecer uma nova institucionalização da educação profissional. Nesse sentido, a participação da CUT no Planfor e na educação dos trabalhadores é vista por seus dirigentes na ótica de fortalecer mecanismos sociais de participação, seja na relação direta entre capital e trabalho, seja na definição e controle social das políticas públicas. Vale registrar que essa compreensão alargada do sentido das ações públicas, bem como da viabilidade de estabelecer parcerias com governos de corte conservador, é motivo ainda de algumas polêmicas no interior da CUT.124 Neste sentido, vale a pena elencar os princípios que nortearam a Política Nacional de Formação (PNF) da CUT aprovados em suas instâncias (Congressos, Plenárias etc.), enquanto a orientação mais geral para o conjunto de suas ações de formação: formação classista e de massas; resoluções da Central são a referência; democrática, pluralista e unitária; unificada e descentralizada; 121 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p.137-138. Cf. Resoluções do 7º Concut, 2000, p. 31 apud BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 155. 123 Cf. SAUL, Ana Maria et al. (Orgs.). A intervenção da CUT nas políticas públicas de geração de trabalho, emprego, renda e educação dos trabalhadores: avaliação, resultados e ampliação de perspectivas. São Paulo: CUT: Unitrabalho, 2003. p. 141-142. 124 SAUL et al. (Orgs.), op. cit., p. 143. 122 297 metodologia coerente com o projeto CUT; trabalhar com a integralidade do ser humano; instrumento de reflexão crítica e de libertação; contra as discriminações; dimensões ideológica, política e técnica; formação é processo; permanente, planejada e sistematizada; indelegável; parceria com entidades de apoio.125 Desta maneira, na avaliação externa do PNQP/CUT, a concepção cutista de formação profissional é parte de um projeto educativo global e emancipador, ou melhor, um exercício de uma concepção radical de cidadania, recusando a concepção de formação profissional como simples adestramento ou treinamento do trabalhador ou como mera promoção da competitividade dos sistemas produtivos. A CUT compreende que a formação profissional deve estar diretamente sob o controle do Estado, mas com a intervenção dos trabalhadores nesse processo e sua participação na definição, na gestão, no acompanhamento e na avaliação das políticas e dos programas de formação profissional, isto é, por meio de suas instâncias organizativas.126 Bem, se o objetivo da CUT, a partir de sua Formação Integral, é radicalizar a cidadania do trabalhador no seu processo de autoconstrução socioindividual, para Ivo Tonet, quando se faz a crítica da cidadania, a partir da perspectiva marxiana, não é com o fim de desqualificar e denunciar a cidadania como algo apenas vinculado aos interesses da burguesia ou algo nefasto para a classe trabalhadora, mas para examinar a lógica do processo social, isto é, suas contradições, tendências, aspectos positivos e negativos, possibilidades e limitações que dificultam o processo de autoconstrução humana. Ao fazer toda uma historiação da formação humana desde a Antiguidade com os gregos, passando pela Idade Média até chegar à Modernidade com a formação cidadã, sobretudo a partir da reflexão de Marx, Ivo Tonet infere que, embora a cidadania implique a participação numa comunidade política em que o indivíduo social goza de certos direitos sociais, a esquerda democrática ainda sustenta a continuidade da cidadania para além do capitalismo, porque ela resulta das lutas da classe 125 SAUL et al. (Orgs.), op. cit., p. 143. Cf. CUT-Brasil. 5º CONCUT – Congresso Nacional da Central Única dos Trabalhadores, Resoluções. 19 a 22 de maio, São Paulo, SP, 1994. 126 298 trabalhadora. No entanto, para Tonet, essa visão esquece que a cidadania tem sua origem no ato fundante da sociabilidade capitalista. Foi na passagem do feudalismo para o capitalismo que a cidadania surgiu como direito a ser efetivado a partir da Revolução Burguesa. Para Tonet, é a origem histórico-ontológica da cidadania que interessa, ou seja, “a sua natureza essencial como produto de um determinado solo social.” 127 Nesse sentido, a cidadania se encontra no ato fundante da sociabilidade capitalista que é o ato de mercantilização da força de trabalho como um valor de troca, logo num solo de fundação da negação do ser do homem enquanto homem genérico, em que a sua alienação obstaculiza a sua plena realização humana como ser livre e “total”. Infere Marx, em várias passagens de suas obras, que é impossível o capitalismo realizar a liberdade e igualdade humana, formar o homem pleno, porque os mecanismos capitalistas de exploração impedem essa autoconstrução humana. O indivíduo não é proprietário de sua força de trabalho, do objeto produzido pelo seu trabalho, e por isso, não possui as qualidades de um cidadão, ou seja, uma pessoa livre, autônoma, proprietária e igual. O Estado burguês, mesmo sob controle dos trabalhadores, não tem o poder de anular a desigualdade social capitalista, de fundar uma cidadania plena para todos, só para alguns privilegiados do sistema, pois a esfera pública, pela sua própria natureza classista, é limitada para aperfeiçoar a sociedade matrizada na alienação econômica. Em outras palavras, o Estado político burguês é incapaz de abolir a desigualdade de classes sociais, produto da divisão social do trabalho capitalista. Embora o marxismo admita o caráter progressista da emancipação política em que se encontra o lema da cidadania, ele acredita que seja possível superar este tipo de emancipação a partir de uma forma mais avançada de emancipação que é a emancipação humana. Dessa maneira, Tonet compreende que ser cidadão ou ser membro da comunidade política, como único e melhor espaço da autoconstrução humana, é aceitar as regras do jogo do ordenamento alienante social do capitalismo. Por isso, para Tonet, “[...] é uma brutal ilusão querer colocar a educação a serviço da formação dos cidadãos, especialmente nos países pobres.” 128 A cidadania nos países ricos não acabou com a desigualdade social por mais aperfeiçoada que seja; no entanto, imagine então nos países pobres. Para Tonet, portanto, [...] educar para a cidadania é formar para uma dupla ilusão: primeira, porque é impossível atingir a plenitude da cidadania (visto que o fosso entre ricos e pobres aumenta em vez de diminuir); segunda, porque mesmo que isto fosse possível, não levaria à formação de pessoas efetivamente livres, efetivamente sujeitos da história, dada a natureza própria da cidadania.129 127 TONET, Educação, cidadania e emancipação humana, p.113. Ibid., p. 123. 129 Ibid., loc.cit. 128 299 Desta feita, Tonet compreende que não podemos discutir a cidadania como horizonte maior da humanidade no limite da emancipação política, pois o horizonte maior é formar o homem genérico, pleno e total na amplitude da emancipação humana, como nos afirma Marx nos Manuscritos de 1844. Ressalva Tonet, porém, que a luta pela cidadania tem sua importância para a luta pelas objetivações democráticas-cidadãs, para atenuar o sofrimento da classe trabalhadora na sociabilidade capitalista. O que não pode é esta luta imediatista se tornar o fim último da luta dos trabalhadores, esquecendo-se de uma luta maior que é a luta pela superação do capitalismo e construção do socialismo. Portanto, Tonet deixa claro, a partir da reflexão marxiana (n’A Questão Judaica), que a emancipação política é apenas a emancipação política da burguesia, e que a verdadeira emancipação da classe trabalhadora e da humanidade é a emancipação humana (de todas as formas de alienação) que Max entende como comunismo: uma sociedade livre, igual e fraterna. Ou, como mesmo Tonet afirma, Quando fizemos a crítica da emancipação política, nossa análise se deteve sobre uma dimensão de existência atual, quer dizer, sobre algo que já é resultado – embora em curso – do processo histórico. Quando analisamos a emancipação humana, referimo-nos a um fenômeno que tem raízes na realidade atual, mas cuja existência é apenas uma possibilidade. Nosso objetivo, então, era demarcar claramente a diferença entre ambas e a superioridade da segunda sobre a primeira.130 É isso que a Política Nacional de Formação da CUT está fazendo, ou seja, ela incorpora em sua formação sindical a formação profissional e cidadã, acreditando que seja possível desenvolver uma educação mais ou menos integral do trabalhador em seus cursos de formação e, a partir daí, extrair uma metodologia pedagógica das práticas educativas entre educadores e educando, tendo como princípio a participação. Vejamos o que a CUT diz na sua publicação “Formação Cidadã: uma ação educativa somando iniciativas” 131: [...] as ações formativas da CUT sempre buscaram fortalecer a organização dos trabalhadores com o objetivo de se construir um outro projeto de sociedade, que supere as desigualdades sociais existentes e contribuir para a democratização do Estado, com a participação efetiva dos trabalhadores na garantia de políticas públicas, compatíveis com as necessidades e interesses da classe trabalhadora. E é nessa perspectiva da inclusão social e emancipação dos trabalhadores que a CUT se propôs a desenvolver esse programa a fim de contribuir para o envolvimento dos trabalhadores participantes nos Programas Sociais: Bolsa Trabalho e Começar de Novo, na construção coletiva de alternativas para a superação de sua situação de vulnerabilidade social, buscando junto ao poder público municipal a ampliação das políticas públicas sociais como forma de enfrentar, com a participação ativa da sociedade, os enormes desafios decorrentes do aumento do desemprego, da violência urbana, entre outros.132 130 TONET, op. cit., p. 199. BARBARA, Maristela Miranda e MIYASHIRO, Rosana (Orgs.). Formação cidadã: uma ação educativa somando iniciativas. São Paulo: CUT, 2003. 140 P. 132 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 7-8. 131 300 A CUT parte, assim, do pressuposto de que é possível construir um outro projeto de sociedade, mas não afirma que tipo de sociedade ela quer construir, ou seja, se é a sociedade socialista ou não. Ainda acredita que é possível fazer a inclusão social no capitalismo a partir de uma atividade econômica solidária paralela à atividade econômica capitalista, como precondição de se formar os primeiros embriões de uma sociedade comunitária, cidadã. Assim sendo, a CUT trabalha nesse processo educativo com as questões do cotidiano capitalista eivado de desemprego, violência, preconceitos, drogas etc., objetivando buscar soluções alternativas que aliviem o sofrimento dos excluídos do mercado de trabalho capitalista e dos direitos sociais, a partir da geração de renda e ocupação. Entretanto, vale salientar que a CUT também faz a crítica à educação como forma de educar para a “empregabilidade”, pois no texto “O trabalho na formação do homem”, de Maristela Miranda Barbara, há uma diferença na conceituação entre trabalho e emprego de caráter, digamos, mais marxista, que é do bloco “Questão social e desemprego”, do módulo básico “Formação cidadã”. Ou, como ela mesma diz: [...] qualquer atividade humana, qualquer criação humana, é trabalho. Porém, na sociedade em que vivemos, o trabalho muitas vezes é reduzido ao emprego, ou seja: quem não tem emprego, não trabalha. Procuramos desmistificar esse aspecto, mostrando que todos somos trabalhadores, empregados ou não. 133 No entanto, fica claro que o texto não trabalha a questão do trabalho na perspectiva marxista do “estranhamento” e/ou da “alienação”, ou melhor, do “trabalho abstrato” como categoriachave do processo de exploração capitalista, como forma de deformação do homem. O trabalho é concebido na sua idealidade como “uma questão de escolha livre, quer dizer, o direito de poder escolher onde, como, para quem trabalhar” 134 (esta é uma afirmação de um educando). Sem nos estendermos muito, vamos terminar com o “Bloco Cidadania: direitos e deveres”135, no qual a CUT reafirma o compromisso de reconhecer os direitos e deveres do cidadão. Nele, a CUT reformula o conceito de cidadania como uma relação entre as pessoas no espaço público (de todos), ou melhor dizendo, a cidadania não pode ser entendida apenas como exercício do espaço comunitário, mas também como exercício do espaço público, onde os sujeitos usufruam dos serviços públicos. 136 Para CUT, portanto, não se separa a noção de 133 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 61. Ibid., p. 67. O programa Bolsa trabalho e começar de novo foi realizado pela ADS/CUT em convênio com a prefeitura de São Paulo, com apoio técnico da UNESCO e da FAO, cujo módulo básico “Formação Cidadã” há seis blocos temáticos organizados: 1. Integração; 2. Questão social: Emprego e trabalho; 3. Cidadania: direitos e deveres; 4. Meio ambiente e qualidade de vida; 5. Formas alternativas de geração de renda e ocupação; e 6. Projeto comunitário. A carga horária foi de 160 horas. 136 Cf. BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 70. 134 135 301 cidadania da noção de direito, ou seja, “os cidadãos deixam de ser sujeitos de direito (todo cidadão tem direito ao serviço público de saúde) e passam a ser usuários de serviços públicos (é preciso “correr atrás”).”137 Entretanto, no bloco “Formas alternativas de geração de renda e ocupação”, no texto “Ação e solidariedade”, que trata de um diálogo sobre solidariedade e participação, percebemos que há uma estratégia de discussão, na qual se debate a questão da lógica do mercado, baseado na competição e valores individualistas, colocando em foco a recuperação da luta da classe trabalhadora, a partir dos interesses dos trabalhadores, a saber: Foi fundamental refletirmos sobre as contradições ocultas sob os discursos da solidariedade. Analisou-se, também, a diferença entre o mero assistencialismo e as práticas sociais solidárias, pautadas em uma perspectiva de classe. Assim, a apropriação da realidade, a partir de uma visão crítica, pôde contribuir para o desvelamento das reais forças que determinam os diferentes modos de produção e reprodução da vida. 138 Mas por outro lado, quando o bloco “Formas alternativas de geração de renda e ocupação” coloca como objetivo geral “refletir sobre as formas alternativas e solidárias de enfrentamento da pobreza”139, a partir das várias formas de empreendimentos socioeconômicos solidários, como o cooperativismo e a autogestão, dá-se a impressão de que fica marginal a discussão crítica (dialética) sobre as contradições do capitalismo que é gerador permanente de desemprego e exclusão social, ou seja, parece que o programa fica mais preocupado em encontrar soluções paliativas dentro da ordem do capital para aliviar o sofrimento dos pobres trabalhadores do que fazer a crítica radical ao sistema capitalista e desfazer as ilusões desses paliativos no campo da emancipação política que tem como núcleo a questão dos direitos do cidadão. De fato, tais programas de formação só fazem contribuir para que o capital elimine qualquer indício de crítica e rebeldia contra o sistema. Em vez de lutar para construir uma sociabilidade antagônica ao capitalismo, a luta se desloca para que o Estado capitalista efetive os direitos sociais para todos os “excluídos”. Senão vejamos o resultado da avaliação do programa: Nesse programa, fruto da parceria de diversos sujeitos sociais, a participação dos educandos na solução dos seus próprios problemas gerou uma melhor compreensão a respeito da realidade. Os educandos buscaram a superação dos problemas a partir de uma prática coletiva e participativa. A qualidade da participação foi melhorando à medida que os educandos aprenderam a contornar conflitos, buscando pontos de interesses convergentes. Aprenderam a tolerar divergências e a respeitar a opinião alheia.140 137 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 70. Ibid., p. 95. (Grifo nosso). 139 Cf. BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 89. 140 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 121. Paula considera que há uma apologia da prática pela prática, ao analisar as práticas educativas da CUT/EQUIP, ou seja, tais práticas negam a importância da teoria (sobretudo a 138 302 Isso é que o capitalismo objetiva, ou seja, a tolerância à sua forma de sociabilidade, fazendo com que as próprias vítimas do sistema encontrem soluções para suas vidas marginais, tirando a culpa do sistema pelo vosso sofrimento. Em outras palavras, fica claro que o problema deixa de ser da “crise estrutural” do sistema, como advoga Mészáros, passando a ser uma crise de inadequação da mão de obra proletária aos novos instrumentos de produção revolucionados pela ciência e tecnologia. Vejamos então a conclusão da CUT: As ações estratégicas da CUT têm como objetivo combater a pobreza e a exclusão social. Nesse sentido, a parceria estabelecida entre a Prefeitura Municipal de São Paulo foi de fundamental importância, pois significou desenvolver um programa a partir da implantação de políticas públicas de inclusão e possibilitou a intervenção concreta da CUT junto à população que sempre foi atingida pelo modelo de desenvolvimento historicamente adotado no Brasil. Um modelo que exclui uma parcela considerável da população do acesso aos bens e serviços produzidos pela sociedade. Uma das tarefas históricas da Rede Nacional de Formação da CUT é desenvolver uma metodologia coerente com os princípios que deram origem à Central, capaz de incentivar o desvelamento da realidade. Uma metodologia que gere instrumentos de crítica à atual forma de organização social; que permita desvendar o processo histórico, compreendendo-o como resultado e como condição da prática humana.141 A partir desse discurso, podemos inferir que, para a CUT, o problema não é o capitalismo em si, mas o modelo de desenvolvimento de um determinado modo capitalista de produção e distribuição. Em outras palavras, fica evidente a visão da terceira via, da socialdemocracia, de que é possível contornar as falhas do sistema capitalista e assim possibilitar a inclusão dos marginalizados no seu mercado de trabalho e consumo. Seria um neokeynesianismo, isto é, de que o Estado do bem-estar social pode ser resgatado para controlar a selvageria do capital. Como diz Oliveira do Rio, “A CUT deixa para trás o seu passado de luta e resistência com base numa concepção combativa, passando a uma postura ‘propositiva’, participacionista, apostando na falseadora idéia da sociedade democrática e, por assim dizer, na possibilidade de humanização do capital.” 142 Para Oliveira do Rio, ainda que a CUT critique e questione a sua concepção e estratégia de formação, ela continua a executar a política de formação profissional do Ministério do Trabalho, mesmo que no seu discurso inovador haja a defesa na luta por uma nova política educacional profissional. 143 Nesta mesma perspectiva, ao analisar os diversos textos compilados que a CUT usa no Caderno, Tumolo constata, como mencionamos antes, que os textos marxista) como suporte do processo formativo e o papel do educador nesse processo. Para ela, as reflexões teóricas são fundamentais no processo formativo participativo, pois o conhecimento sistemático não pode advir do conhecimento espontaneísta do educando. Por outro lado, não é possível também cair no outro extremo que faziam os partidos comunistas, a saber, que historicamente concebiam a construção do conhecimento como puramente objetivista e/ou professoral. Cf. PAULA, Dissertação, p. 109. 141 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 125. 142 OLIVEIRA DO RIO, Dissertação, p. 70. 143 Cf. OLIVEIRA DO RIO, op. cit., p. 72. 303 tecem uma crítica apenas aos elementos de manifestação da realidade presente e, dessa forma, não discutem o capitalismo contemporâneo balizados por uma análise da totalidade social, que leve em conta os elementos estruturantes e as contradições que regem a dinâmica de desenvolvimento capitalista, em seu atual estágio de acumulação.144 Não é por mera coincidência, segundo Tumolo, que a CUT se utiliza de referências bibliográficas que não se baseiam num aporte materialista-dialético, pois se trata de uma opção teórico-metodológica a partir de uma escolha política, ou seja, a social-democrata. Não é à toa que autores que defendem a formação cidadã como Paulo Freire, Moacir Gadotti, Gaudêncio Frigotto (prefaciador do livro da CUT Educação Integral dos Trabalhadores: práticas em construção) etc. inspirem a concepção de cidadania da CUT. Retomemos então a reflexão de Tonet, quando ele expõe criticamente as teses de muitos autores, como Marilena Chaui, Carlos Nelson Coutinho, Claude Lefort, José Carlos Libâneo, Paolo Nosella, Cornelius Castoriadis entre outros, que defendem a cidadania e a democracia como algo imprescindível até mesmo no socialismo. Para alguns deles, a ideia de cidadania e democracia não são valores meramente burgueses, particulares de uma época, mas valores universais, pois acreditam que, tanto numa fase de transição quanto no socialismo realizado plenamente, vão ocorrer situações que só a democracia política será capaz de resolver. Em outras palavras, para esses autores da esquerda democrática, a cidadania e a democracia só podem se realizar completamente com a erradicação do capital, e assim a construção da cidadania seria a autêntica liberdade humana. Percebemos nesse discurso que há uma tentativa de incorporar no socialismo esta característica da democracia liberal. Mas Tonet afirma que, para Marx, a cidadania faz parte do que ele chama de emancipação política, porque justamente esse tipo de emancipação é a emancipação da burguesia. Além do mais, Marx tanto no Manifesto Comunista quanto nas Glosas Críticas faz uma crítica negativa da política enquanto uma forma de poder de organização de uma classe para oprimir outra. É preciso salientar que Marx não se refere ao poder político na sua totalidade, mas ao núcleo essencial deste poder, porque o poder não é apenas uma defesa dos interesses das classes dominantes. Com efeito, conforme Tonet, “Um dos pressupostos fundamentais das concepções liberais e da esquerda democrática acerca da cidadania é de que não há uma dependência essencial da dimensão política em relação à economia.” 145 Em contraposição à essa visão, o pressuposto marxiano diz que há sim uma dependência entre a política e a economia, do ponto de vista ontológico. Ou como diz ainda Tonet: “[...] na ótica marxiana, a compreensão da entificação da cidadania moderna é inseparável, não apenas em termos cronológicos, mas em 144 145 TUMOLO, Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista, p. 207. TONET, Educação, cidadania e emancipação humana, p. 96. 304 termos ontológicos, da entificação da sociabilidade capitalista.” 146 Por isso que, para Tonet, uma prática educativa emancipadora deve estar articulada com as lutas desenvolvidas pelas classes subalternas, sobretudo com as lutas daqueles que ocupam postos decisivos na estrutura produtiva. Daí ele afirmar que cabe ao trabalho, e não à educação, o papel fundamental de transformação da sociedade, pois o carro-chefe da transformação revolucionária é a classe trabalhadora. A educação tem o papel de fazer com que o indivíduo se aproprie do conhecimento enquanto patrimônio comum da humanidade, e para isso tem que haver uma luta constante para atingir esse objetivo. Se há, por um lado, a convicção teórica da esquerda moderna de que a sociedade democrático-cidadã está marcada por imperfeições e contradições, devido às desigualdades sociais, ou seja, de que é possível superar essas desigualdades, à medida que há a conquista, ampliação e melhoria dos direitos e das instituições sociais que os implementam, engendrando, assim, a plena liberdade humana, por outro lado, temos uma posição contrária que entende que a articulação entre a cidadania e a educação desconsidera a objetividade ontológica do antagonismo entre o capital e o trabalho e se limita à forma de emancipação política da burguesia, ou melhor expressando, a cidadania foi incorporada pela maioria dos educadores e intelectuais como simples sinônimo de liberdade, mas, de fato, a cidadania se revela como uma categoria essencialmente constitutiva da ordem do capital. Para Marx, quem é livre na ordem capitalista é o próprio capital e não o homem. E nesse sentido, para Tonet, a atividade educativa que deseja formar pessoas críticas e livres deve estar norteada pela concepção marxista de emancipação humana e não pela concepção liberal burguesa de cidadania. Para complementar esta discussão, a 13ª Plenária da CUT, realizada nos dias 30 de junho a 1º de julho de 2011, apresentou um texto base da Direção Nacional, com o tema “Liberdade e Autonomia: por uma nova estrutura sindical”. Podemos reafirmar que é a mesma concepção político-ideológica da CUT de Congressos e Plenárias anteriores com algumas pequenas modificações e adendos. Mostremos então, em linhas gerais, algumas das resoluções tomadas para o próximo Congresso da CUT. Tomemos o Eixo 1 para a reflexão – “Disputar os rumos do país, na sociedade e no movimento sindical” – em que três pontos são definidos: 1) a luta pela liberdade e autonomia sindical; 2) a luta por um Estado democratizado e um novo padrão de desenvolvimento; e 3) mobilização e alianças sociais no Brasil e no mundo. O que podemos perceber nessa reflexão é que a CUT, ainda pautada pelo seu X CONCUT (2009), cobra uma agenda de superação da 146 TONET, Educação, cidadania e emancipação humana, p. 96. 305 crise, ao reivindicar um modelo de desenvolvimento com base na participação popular, nas decisões políticas, com sustentabilidade econômica, social e ambiental, distribuição de renda e valorização do trabalho, ou seja, tudo o que o capitalismo, seja de matiz neoliberal ou neokeynesiano, não pode efetivar. No que diz respeito à crise de 2008, o texto descreve a crise econômica muito jornalisticamente, mas não a denomina como crise do capitalismo, relatando apenas a desigualdade social, desemprego, recessão, dívida pública etc. E ainda adere a campanha mundial da OIT (Organização Internacional do Trabalho) em defesa do “Trabalho Decente”, isto é, a partir do conteúdo de defesa dos direitos trabalhistas, tudo para que o Pacto Global do Emprego, proposto pela OIT, seja implementado. Relata também a estatística do desemprego, das desigualdades sociais, a partir de uma pura descrição analítica dos fatos, sem aprofundar teoricamente as causas reais, ou melhor, o movimento contraditório inerente ao capitalismo. Compreende a questão do aumento salarial como se fosse um ato de vontade política dos governos, sem compreender que a própria sistemática do capitalismo não favorece a troca de um salário justo por um trabalho justo ou a tal “equivalência de troca”, desmistificada por Marx em O Capital. É, portanto, uma mera visão proudhoniana da igualização dos salários ao trabalho numa sociabilidade de capitalistas universais. Senão vejamos uma das colocações: A CUT repudia a campanha de criminalização dos aumentos salariais movida por setores da mídia, do empresariado e do próprio governo, que têm expressado em reiteradas declarações para que o movimento sindical seja mais moderado durante as campanhas salariais do segundo semestre.147 Percebe-se aí a total ausência de uma análise marxiana da crise econômica capitalista internacional, da condição do trabalho capitalista como trabalho inautêntico e deformador da humanidade do homem, enfim, uma reflexão puramente fenomênica ou empirista da crise econômico-social. Para a CUT, por exemplo, basta reduzir as taxas de juros que é possível fazer o país crescer com maiores investimentos em infraestrutura e políticas públicas para reduzir as desigualdades sociais. Nessa perspectiva analítica, a CUT defende um modelo de desenvolvimento sustentável, com a valorização do trabalho e distribuição da renda, ampliando os investimentos nas políticas sociais, na economia solidária, nas micro e pequenas empresas e no desenvolvimento regional e territorial.148 Fica confusa essa postura da CUT, porque, defender “mais e melhores empregos” e apostar na nova proposta da OIT do “Trabalho Decente”, é ignorar todo o legado teórico anticapitalista marxista construído com e para os trabalhadores que desvela 147 OLIVEIRA, Waldemar de. 13ª Plenária da CUT: Liberdade e autonomia por uma nova estrutura sindical (texto base). São Paulo: CUT, 2011. p. 13. 148 Cf. OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 14. 306 essa farsa de um capitalismo “humanizável”. Por outro lado, reafirma o texto básico da 13ª plenária da CUT a resolução de seu 10º Congresso Nacional: Afirmamos no 10º CONCUT (2009) que “a crise atual permite que questionemos com mais intensidade os pilares da dominação capitalista. Sua superação deve resultar da construção de um modelo alternativo, democrático e popular com horizontes transitórios para a sociedade socialista. É nesse sentido que se localizam os projetos de Estado e de desenvolvimento defendido por nós, que são antagônicos aos atuais hegemonizados pelo capital.” 149 Realmente, tal visão, como Marx diz nas Glosas Críticas, é pautar a política no estreito horizonte burguês, ou seja, ter a ilusão de que o entendimento político, sob a onipotência da vontade política, é por si só capaz de modificar as estruturas perversas da sociedade sem uma revolução. O socialismo no texto base da CUT é mais um discurso ornamental, um conceito “genérico”, como diz Boito Jr., para dar cores de um sindicalismo de esquerda, do que ser mesmo um horizonte programático socialista a se efetivar; dessa maneira, a Central tem uma prática sindical mais voltada para a política social-democrata que balize o capitalismo, do que uma prática política voltada para construir um programa de transição para o socialismo. O Eixo 1 reafirma a estratégia aprovada pelo X CONCUT que “garantiu ao sindicalismo cutista a permanência da sua ofensividade, mesmo no período em que a crise econômica mundial atingia o Brasil.” 150 Como também reafirma a defesa dos empregos e dos salários, e paralelamente faz pressão para o financiamento de políticas públicas sociais. Isto – conforme o texto – marcou a ação sindical cutista desde o início da conjuntura da crise econômica de 2008. Ora, até agora o movimento sindical cutista continua sendo pautado por um sindicalismo defensivo, propositivo, de pura negociação, cujo enfrentamento é de um sindicalismo dócil em relação aos patrões e ao governo. Na verdade, o movimento sindical cutista não tem força ideológica, teórica, para enfrentar a ideologia do capitalismo neoliberal, porque a classe trabalhadora, na sua grande maioria, desconhece realmente como funciona a estrutura do movimento do capital e a ideologia que a legitima, justamente porque não há uma leitura marxiana dos fatos, ou melhor, não há formação política marxista dada aos trabalhadores sobre essa questão nuclear do sistema. A reflexão é puramente empirista, fenomênica, jornalística, do cotidiano, ou seja, a CUT não usa categorias marxistas para compreender a crise do capitalismo. A CUT pauta toda sua luta pela ratificação das Convenções da OIT, órgão ligado a ONU que reflete, de certo modo, os interesses dos países capitalistas e/ou imperialistas. No ponto “Luta pela liberdade e autonomia sindical”, a CUT discursa sobre uma 149 150 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 16. (Grifo nosso). OLIVEIRA, loc. cit. 307 agenda complexa que a coloca num papel estratégico de articulação com os movimentos sociais, cujos objetivos, por exemplo, é fortalecer sua identidade com a base sindical nos princípios da liberdade e autonomia sindical, construir uma opinião pública democrática (por meio da mídia e alianças sociais) etc. E finaliza afirmando que Ao longo de nossos 28 anos, jamais abdicamos da bandeira do socialismo. Nossa estratégia acertada de contribuir no processo de “acúmulos de forças” fez do campo democrático popular o maior protagonista na luta por outro modelo de desenvolvimento para o país e consolidou a CUT como a maior Central Sindical da América Latina.151 Entretanto, o discurso cutista fica cada vez mais genérico e o horizonte socialista apenas como uma ideia reguladora, uma utopia distante, pois acumular forças sem um trabalho teórico profundo nas suas categorias de trabalhadores inviabiliza qualquer estratégia para seguir o caminho de construção para o socialismo, a partir do momento em que a CUT advoga um modelo de desenvolvimento nos marcos do capitalismo. Isso denota, sem dúvida, uma confusão teórica de ideias da CUT sobre o que seja o socialismo, já que não compreende bem a questão da centralidade do trabalho neste processo e muito menos a crise estrutural do capital como um caminho sem volta. Quando num outro ponto do Eixo 1 – “O trabalho decente na estratégia da CUT”152 – a Central define e conceitua essa visão do trabalho da OIT, aí é que ela se perde teoricamente, do ponto de vista marxista, pois acredita que “O Trabalho Decente, [...], tem por objetivo a reversão da precarização e deteriorização dos instrumentos de proteção e inclusão social.” 153 Para a CUT, o “Trabalho Decente” é aquele que respeita a aplicação das Convenções fundamentais da OIT. A CUT mesmo diz que o conceito de “Trabalho Decente” foi introduzido na OIT em 1999, por iniciativa do diretor geral da Organização, Juan Somavia, e foi objeto de consenso entre um grupo formado por empregadores/as, trabalhadores/as e governos que fazem parte da OIT. Mas ela ressalva que a verdadeira emancipação dos trabalhadores, ou seja, a existência de um trabalho não explorado e nem opressor, só se dará com o socialismo, logo, para a CUT, a estratégia é avançar e defender direitos sindicais e trabalhistas a partir das Convenções da OIT que os protegem. Percebe-se então dois discursos na linguagem da CUT, quer dizer, um paradoxo entre teoria e prática, uma práxis contraditória no sentido de oposição, isto é, a prática em oposição ao discurso teórico estratégico. Se toda a luta dos trabalhadores agora for pautada pelas convenções da OIT, onde ficará então a luta pautada pelo legado marxista? Marx compreende 151 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT , p. 18. (Grifo nosso). Cf. OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 18. 153 OLIVEIRA, loc. cit. 152 308 que a luta sindical é uma luta imediatista, uma guerrilha cotidiana, como também uma luta que fere a espinha dorsal do capitalismo, quando subtrai parte da mais-valia para aumentar ganhos reais de salário dos trabalhadores. Porém, Marx entende que a luta sindical tem um outro papel, ou seja, a de ser uma luta revolucionária que mostre aos trabalhadores os limites da sua luta cotidiana, salientando que só no socialismo a liberdade humana é plenamente possível. Só que, embora a CUT proponha retorica e genericamente o socialismo como utopia a se realizar num futuro distante, ela não explica teoricamente a possibilidade de efetivação dessa nova forma de desenvolvimento social para a classe trabalhadora, como também tem dificuldade de explicitar o porquê da derrocada daquele “modelo de transição” para o socialismo na antiga URSS, ficando os trabalhadores reféns da versão ideológica imperialista de que o comunismo jamais dará certo, porque fracassou na prática histórica. Em relação ao Plano Nacional de Educação, o texto base da 13ª Plenária da CUT toma como fundamento “A ampliação dos investimentos na educação pública e a implantação de um Sistema Nacional Articulado como condições sine qua non para um processo de desenvolvimento sustentável e de inclusão social fundamental no fortalecimento da cidadania ativa.”154 A CUT ratifica novamente a concepção de educação emancipatória, integral e integradora que valorize todas as áreas de conhecimento e supere visões reducionistas da educação instrumental como mercadoria. Da mesma maneira, a CUT defende o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) que tem o objetivo de expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos técnicos e profissionais de nível médio para estudantes que frequentam o curso regular, como também cursos de formação inicial e continuada para beneficiários dos programas de inclusão produtiva como o “Bolsa Família”, assim como para trabalhadores atendidos pelo Seguro Desemprego. Para a CUT, o Pronatec deve ser um instrumento eficaz de combate à miséria e à pobreza e também de promoção da cidadania ativa.155 Dentro dessa perspectiva, a CUT acredita que é possível fazer a abolição da pobreza e miséria dentro da ordem capitalista, porque todos esses programas visam, de certa forma, a especializar mão de obra de que necessita o mercado capitalista, e também controlar um pouco a demanda por trabalho, ocupando as pessoas com cursos de qualificação e requalificação mais extensos. No tema “Reforma Política”, a CUT ressalta um lema do X CONCUT, a saber, “A transformação social deve ter participação ativa da classe trabalhadora” 156. A Central entende 154 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 23. Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 25. 156 Ibid., p. 27. 155 309 que a Reforma Política tem que fortalecer a participação popular e o controle social sobre o Estado e partidos políticos. Deste modo, a CUT se concebe como sindicalismo combativo para impulsionar o sistema político brasileiro a uma democracia mais participativa, ou seja, a CUT acredita que o capitalismo vai permitir que haja uma radicalização da democracia com controle popular sobre o Capital, quando, na verdade, é o Capital que tem controle sobre a sociedade, determinando o modo social de ser das pessoas. Mas o que nos chama atenção no texto base da 13ª Plenária Nacional, é que a CUT apresenta vários fatores que causam o enfraquecimento sindical, provocado por disputas internas e/ou dentro das próprias correntes políticas existentes na Central, ou seja, disputa pelo aparelho sindical, influência político-partidária ou de gabinetes de parlamentares nas eleições sindicais, falta de renovação nas direções sindicais, falta de compromisso político com aqueles que deram a vida para a organização do sindicato, falta de um diálogo permanente levando a disputas pessoais e não a uma concepção sindical, falta de formação político-ideológica e do entendimento do papel do dirigente sindical, do sindicato, partido político e do governo, falta de compromisso com a ética, a solidariedade e o respeito ao companheiro.157 Para a CUT, tudo isso coloca em risco a sua hegemonia e unidade. No entanto, não fica claro, mas obtuso, quando a Central discorre sobre o Projeto Político da Entidade, definido nas suas instâncias de decisão, por meio das resoluções dos Congressos, das Plenárias, das Reuniões da Direção Nacional e da Executiva Nacional, na medida em que defende um modelo de desenvolvimento sustentável, mas novamente não diz se esse modelo é capitalista ou socialista. Como bem afirma uma das suas correntes internas – a Articulação de Esquerda –, o texto guia da 13ª Plenária, aprovado pela Direção Nacional peca pela ausência de uma perspectiva socialista, pois Não há uma articulação do processo de acúmulo de forças que direitos e conquistam (sic) [conquistas] poderiam promover com uma estratégia de transformação social. A única referência ao socialismo é apontá-lo como “horizonte transitório”. Sabemos que o horizonte é aquilo que quanto mais chegamos perto mais ele se afasta. Os limites estratégicos do texto se limitam ao melhorismo. 158 De igual modo, as outras correntes sindicais também pregam a defesa do socialismo. Por exemplo, “a CUT socialista e Democrática” (CSD) afirma em seu texto de contribuição que é preciso retomar o internacionalismo socialista como alternativa ao capitalismo, mas que precisa ter também base nos países centrais; acredita, por outro lado, que a possibilidade da revolução democrática no Brasil, com a chegada do PT ao governo central, tem como 157 158 Cf. OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 49-50. OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT: Textos de contribuições ao debate, p. 71. (Grifo nosso). 310 horizonte vincular-se com o socialismo por meio da construção da soberania popular com plebiscitos, referendos, orçamento participativo etc. Enfim, o que fica evidente nesse discurso é que o programa de revolução democrática pode levar ao socialismo e não a radicalização da luta de classes como advoga o marxismo; em outras palavras, o passaporte para o socialismo começa com uma radicalização da democracia popular. Já a “CUT independente e de luta” (ligado à corrente O Trabalho, OT) critica o uso das concepções de “Trabalho Decente” e “diálogo social”, pois elas promovem a chamada “governança democrática da globalização”, ou seja, tais concepções atrelam os sindicatos às políticas governamentais e às instâncias multilaterais como o FMI. A corrente OT tem consciência da impossibilidade de se conciliar interesses entre capital e trabalho e cita o artigo 2º do Estatuto da CUT que afirma “o compromisso com a defesa dos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora, a luta por melhores condições de vida e trabalho e o engajamento no processo de transformação da sociedade brasileira em direção à democracia e o (sic) socialismo.”159 E, por fim, a “Tendência Marxista” (TM), com um texto enxuto e pontual, que só menciona a questão do socialismo na sua última frase: “[...] cada dia mais temos que ir às ruas, dando continuidade à luta por uma sociedade mais justa e socialista.”160 Fica difícil de entender, portanto, como a CUT defende as resoluções das Convenções da OIT, sem haver um mínimo de questionamento do ponto de vista marxista, quer dizer, defende a ideia do “Trabalho Decente” num sistema que por si só já promove a indecência do trabalho humano, inclusive desmistificado este trabalho (assalariado/alienado) por Marx em várias de suas obras. Por outro lado, a CUT parece colocar a questão do socialismo como um horizonte apenas a ser contemplado, abdicando-se de criar cursos de formação política que tratem de forma mais aprofundada a questão do socialismo no “pós-socialismo real”. São dúvidas teóricas e históricas que se impõem a quem pensa a realidade do capitalismo dialetica e/ou ontologicamente, a saber, a partir do princípio da totalidade, da contradição. Questões foram colocadas anteriormente, no começo do capítulo, a saber: qual seria o papel da formação educativa revolucionária marxista para e pela construção do socialismo? A classe trabalhadora vem se preparando teorica e praticamente pra enfrentar esse desafio histórico? As mudanças objetivas internas e externas na trajetória da CUT atingiram a sua formação sindical radicalmente no sentido de abandono da perspectiva socialista, ou é só uma estratégia de caráter conjuntural? Há uma relação entre a nova ordem mundial e a nova formação cutista? Qual é a relação entre a mudança de estratégia da CUT e a limitação da 159 160 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT: Textos de contribuições ao debate, p. 77. Ibid., p. 85. 311 formação sindical à questão meramente cidadã-profissional ou de formação de quadros burocratas, excluindo, assim, a formação político-ideológica de caráter mais revolucionário? Algumas respostas já foram, em parte, ensaiadas teoricamente por alguns autores que expusemos aqui. Claro que a história nos impõe limites de ação, porque tudo depende da relação conjuntural entre subjetividade e objetividade na totalidade. Como diz Tonet, Marx não descarta nem a objetividade nem a subjetividade, ou melhor, não cai na unilateralidade da centralidade da objetividade greco-medieval, de que a existência possui uma essência una e imutável, logo uma objetividade a-histórica, nem na centralidade da subjetividade moderna sob o domínio absoluto da razão, da ideia, do sujeito, que entende a realidade como um construto mental. Para Marx, é preciso tomar o mundo, a sua realidade, a partir da sua totalidade, relacionando as partes que a constituem, ou seja, nem ficar preso aos “automovimentos da razão”, nem à pura manifestação do objeto. O giro marxiano, como diz Chasin, é voltar-se para os “auto-movimentos” do mundo real. É preciso acabar com o hermafroditismo da especulação, deixando que a realidade fale pela cabeça da filosofia, pois a realidade é que deixa o pensamento significá-la ontologicamente.161 Essa perspectiva metodológica de conhecimento da realidade inexiste, a nosso ver, no movimento sindical cutista, nem gnosiológica nem ontológica. Hoje é perceptível, através dos discursos e documentos, que a maioria das lideranças sindicais de esquerda não tem uma formação ideológica no campo do marxismo, logo não possui os elementos teóricos fundamentais para entender o movimento do capital com suas contradições e crises. A formação educativa sindical não tem preparado quadros teóricos anticapitalistas, ou melhor, marxistas, que possam ser caixas de ressonância do ideário socialista para a classe trabalhadora. O papel da formação educativa sindical limitou-se a formar o cidadão para o regime capitalista, e não o revolucionário para contestá-lo. Isso por si só já responde, em parte, as duas primeiras questões acima. Saber até que ponto as mudanças objetivas ocorridas dentro da CUT (nos estatutos, nas concepções, resoluções e de certo abandono do horizonte socialista na formação política) são consequências das mudanças econômicas adversas ou apenas uma estratégia conjuntural da Central é uma resposta não muito fácil de se dar, pois o que fica claro é que a determinação da conjuntura histórica, adversa aos trabalhadores, determinou o comportamento sindical cutista a uma mudança mais de conciliação de classes ou de concertação (colaboração) do que de confrontação. É notório o despreparo teórico de muitas lideranças sindicais para compreender o fenômeno histórico do 161 Cf. CHASIN, J. Marx: da razão do mundo ao mundo sem razão. In:____. (Org.) Marx hoje. Cadernos Ensaio, n. 1. São Paulo: Ensaio, 1987. p. 45. (Série Grande Formato). 312 capital, quando ouvimos seus discursos, ao fazer análises de conjuntura, ou seja, uma total falta de visão teórica marxiana da crise do capitalismo contemporâneo. Para nos ajudar nessa análise, Mészáros nos fornece uma reflexão sobre o fracasso das esquerdas, dizendo que desde o início da história do movimento sindical a parcialidade e a setorialidade eram algo presentes nas associações parciais e nos vários sindicatos. Diz ele ainda que “[...] a parcialidade inevitavelmente afetou todos os aspectos do movimento socialista, inclusive sua dimensão política.” 162 Isso tanto é verdade, diz Mészáros, que depois de um século e meio, a parcialidade ainda é um problema a ser resolvido pelo movimento sindical. Se o movimento operário ainda não deixou de ser setorial e parcial não foi porque ele adotava subjetivamente uma estratégia errada, mas porque as determinações objetivas na ordem do capital não foram superadas como, por exemplo, a “pluralidade do trabalho”. O trabalhador ainda não pôde se tornar totalmente antagonista ao capital, pois ainda continua numa posição de certa servilidade ao sistema. Isso decorre das tentativas, mesmo de pessoas que se dizem de esquerda, de propagar a mística do “capitalismo do povo”163, como bem anota Mészáros. Com suas palavras, diz Mészáros: O caráter fragmentado e parcial do movimento operário combinou-se com sua articulação defensiva. O sindicalismo inicial – do qual mais tarde surgiram os partidos políticos – representava uma centralização da setorialidade de tendência autoritária e através dela a transferência do poder de decisão das “associações” locais para os centros do sindicalismo e em seguida para os partidos políticos. Assim, já no seu início, todo movimento sindical foi inevitavelmente setorial e defensivo.164 Para Mészáros, portanto, a lógica interna do desenvolvimento do movimento sindical já trazia essa condição da centralidade setorial e, por tabela, o seu “entrincheiramento defensivo”, abandonando, dessa maneira, os ataques esporádicos aos seus antagonistas sociais, os capitalistas. Nesse sentido, houve e há um paradoxo, a saber, o trabalho se tornou o interlocutor do capital, mas sem deixar pari passu (ao mesmo tempo) de ser seu antagonista. Isso trouxe vantagens e desvantagens para os trabalhadores: vantagens nas questões de extrair algumas benesses do capital; e desvantagens, como a acomodação da luta que visa o socialismo como condição da sua emancipação total da exploração capitalista. 162 MÉSZÁROS, István. O século XXI: socialismo ou barbárie?. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. p. 89. Para Mészáros, a grande dificuldade teórica de Marx é que ele não pode reconhecer a fragmentação e a estratificação do trabalho, justamente por complicar a sua concepção política transicional, ou seja, é preciso unificar os interesses parciais dos trabalhadores em interesse comum para ter como pressuposto o trabalho unificado. E Mészáros ainda acrescenta outra dificuldade que é a de Marx trabalhar com o imperativo categórico de o proletariado como classe universal destruir todas as relações em que o homem é um ser escravizado etc., no entanto, Marx insiste que o problema não é este ou aquele proletário ou todo o proletariado, mas seu ser objetivo que está obrigado historicamente a fazer. Cf. MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 1054-1055. 163 Cf. MÉSZÁROS, O século XXI: socialismo ou barbárie?., p. 90. 164 MÉSZÁROS, op. cit., p. 90. 313 Retomando então as questões colocadas antes, o movimento sindical cutista hoje vive o paradoxo de ser ou não ser socialista, ser não somente na retórica, mas desenvolver uma prática que efetive as condições de sua realização. Para isso, é preciso ter mais claro qual é o verdadeiro papel do sindicato como parte do processo da emancipação humana no socialismo, logo qual é o papel da formação político-sindical nesse sentido. É visível que a classe trabalhadora não vem se preparando para se tornar um militante socialista, pelo contrário, está se tornando um militante cidadão (mercenário), já que trabalha somente para ter mais dinheiro no seu salário, sem vislumbrar a utopia socialista que supere essa condição de servidão ao capital. Dessa maneira, a consciência teórica socialista-marxista está longe de ser construída com os tipos de cursos dado na formação sindical cutista. Não fica claro se é uma estratégia política da CUT ter essa postura de conciliação conjuntural com a classe patronal ou se é cooptação mesma da Central pelo Capital. Por outro lado, fica evidente que há uma relação entre a nova ordem mundial e a formação sindical cutista, à medida que esta formação reforça o modelo de educação dos órgãos internacionais a serviço do grande capital, quando a CUT implementa cursos financiados por entidades governamentais, direta ou indiretamente ligadas a tais órgãos do sistema financeiro internacional. E, finalmente, a mudança de estratégia da CUT em relação à questão da formação, isto é, formar profissionais e dar ensino integral, tem a ver com a questão do financiamento que os órgãos públicos dão para qualificar os trabalhadores. Embora haja um grau de liberdade nesses cursos de formar o cidadão crítico, exigente de direitos sociais, por outro lado, não se forma o cidadão antagônico ao capital como ser revolucionário. Sem teoria, sem consciência e sem ação revolucionárias, não haverá revolução social, superação do capitalismo. E aí fica o trabalhador preso constantemente a uma concepção política de convergência com o capital, sem ter a perspectiva da retomada da luta revolucionária. 314 CONCLUSÃO 315 A Tese parte do pressuposto de que o marxismo, como teoria revolucionária na formação educativa sindical, seria o Aufhebung1 da luta cotidiana dos trabalhadores, enquanto movimento dialético entre dois polos da práxis – teoria e prática – no curso do resgate do humano no homem, numa totalidade das relações sociais alienadas de produção fetichista. Transcender e/ou abolir essa situação de alienação, fazer este Aufhebung do estranhamento humano é, como nos diz Mészáros 2, superar o anacronismo social destrutivo da autoobjetivação como autoalienação em um estágio posterior de desenvolvimento histórico da humanidade. Na verdade, é uma necessidade ontológica inadiável para a humanidade. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx afirma que a atividade humana, ou melhor, que a verdadeira humanidade precisa ser resgatada das formas de reificação e/ou alienação social capitalista. A alienação como Übergreifendes Moment (Momento Predominante) desse complexo social capitalista, efetivado na atividade produtiva, tem que tomar a forma de alienação positiva enquanto objetivação da vontade, dos desejos e da consciência humana, pois a alienação, no sentido negativo, caracteriza-se pela extensão universal da “vendabilidade” em que tudo é transformado em mercadoria, pela conversão das pessoas em coisas (reificação das relações humanas) e pela fragmentação do corpo social em “indivíduos isolados” que apenas buscam seus objetivos particularistas em “servidão à necessidade egoísta”, quer dizer, fazendo do egoísmo uma virtude de culto da privacidade, pois, como diz Marx, na tradução de Mészáros, “a venda é a prática da alienação”.3 Com estas proposições, Marx afirma peremptoriamente que a estrutura social capitalista precisa ser superada pela classe revolucionária, pois dentro dela o trabalho estranhado, ou melhor, o trabalhador alienado e o indivíduo social reificado perdem sua condição humana, genérica, enquanto ser onto-histórico de múltiplas possibilidades de efetivação da sua verdadeira individualidade, dos nobres sentidos humanos; e a natureza perde a sua capacidade de se regenerar, portanto, esgotando-se pelo uso predatório do capital. Nesse sentido, não há liberdade plena numa estrutura social baseada em relações fetichistas de servidão humana, sob o acicate do capital ou a falsa troca de equivalência entre valores, isto é, entre salário e força de trabalho (capital e trabalho). Esta condição sine qua non do capitalismo nos levou a analisar a forma específica de 1 Aufhebung em alemão significa ao mesmo tempo “transcendência”, “supressão”, “preservação” e “superação” (ou substituição) pela elevação a um nível superior. Cf. MÉSZÁROS, István. Introdução. In: A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. p.18. 2 Cf. Ibid., p. 107-108. 3 MARX, Karl. On jewish question apud MÉSZÁROS, István. Op. cit., p. 39, nota 27. 316 superação histórica do sistema de produção alienante, a partir da luta do trabalho contra o capital. De fato observamos, em nossos estudos, que vários foram os movimentos anticapitalistas que surgiram, a partir do século XIX até hoje, para construir essa luta por uma sociedade baseada na igualdade e distribuição equitativa da riqueza social. Desde os movimentos “utópicos” comunistas, socialistas e anarquistas até o socialismo ao modus operandi “marxista-leninista”, com a Revolução Russa em 1917, a luta contra “a exploração do homem pelo homem” se faz obstinadamente na história. Poderíamos até dividir esses movimentos de emancipação humana como ante festum e post festum do marxismo. Nesse período, foram criadas várias associações sindicais, partidos políticos revolucionários e outros tipos de movimentos políticos apartidários como o dos anarquistas etc. que tinham o objetivo de construir um mundo mais justo e humano, enfim, de realizar a justiça social sem partido e Estado. As utopias, os sonhos políticos, a esperança e os desejos coletivos foram se efetivando em parte ou por partes, como pedras que historicamente se interpõem uma sobre a outra, para edificar a sociedade comunalmente mais evoluída. Sabemos que o século XX foi marcado pela efervescência dos movimentos libertários colocados em prática, quer dizer, pela tentativa de realizar historicamente os princípios revolucionários do socialismo científico, como também de pôr fim a colonização de vários países. Contudo, a história tem suas armadilhas políticas, econômicas e culturais que pegam de surpresa a humanidade. E nem tudo o que se deseja, acontece na realidade, pois a história humana nem sempre dá azo para realização das utopias ou projetos políticos, pois ela cria obstáculos subjetivos e objetivos que impedem a efetivação desses sonhos ou intenções humanas; justamente porque nem tudo depende da “onipotência da vontade política” ou da vontade arbitrária, como nos alerta Marx nas Glosas Críticas. Como ele mesmo diz no Dezoito Brumário, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado”4, sobretudo, porque esse jogo dos elementos “determinante” e “determinado” se faz mutuamente em que um acaba influenciando o outro, isto é, o homem faz a história e a história faz o homem. Desta feita, entendemos, a partir dos estudos realizados, de que há um movimento dentro de um movimento maior, a Emancipação Humana, que é o movimento sindical. Este faz parte da luta contra o capitalismo, contra a exploração do trabalho pelo capital; pois a associação sindical dos trabalhadores é também conditio sine qua non para se construir a 4 Cf. Nota de referência 133 na p. 86 da Tese. 317 consciência anticapitalista em busca da sociedade socialista/comunista. Tal consciência se dá primeiramente na luta prática do dia a dia, enquanto consciência pró-reativa da exploração do capital sobre o trabalho, da luta cotidiana por melhores condições de trabalho e salário, ou seja, uma luta de caráter economicista. Mutatis mutandis, a luta econômica pode se transformar numa luta política, no sentido de que não adianta mais lutar por melhores condições de vida para os trabalhadores, nos marcos da sociedade capitalista em degeneração e crise crônica. Quando a luta toma o rumo de supressão da ordem burguesa, é aí que a revolução das estruturas e superestruturas sociais poderá acontecer. Nessa perspectiva, apresenta-se como requisito essencial que a classe trabalhadora, com suas organizações sindicais ou partidárias, dê um salto qualitativo na sua luta e consciência de classe, ou seja, saia da condição de “classe em si” para “classe para si”. Essa condição ontológico-política é fundamental para que se dê o processo de humanização no homem. A partir daí nos deparamos, ao longo dessa investigação, com uma série de questões complexas: Como fazer essa metamorfose subjetiva-objetiva, teorica e praticamente, com os trabalhadores? Quais passos devem ser dados para efetivação dessa subjetividade e objetividade revolucionária pelos trabalhadores? Quais os meios ou instrumentos eficazes para a construção desse movimento histórico libertário? São questões que sempre o movimento proletário se colocou no decorrer de mais ou menos dois séculos de luta contra a opressão capitalista, num jogo de ensaio e erro histórico. Do ponto de vista teórico-prático, sem as armas da crítica, numa perspectiva onto-marxista, a classe trabalhadora será impedida de desenvolver concretamente as condições de uma verdadeira superação (Aufhebung) da sociedade fetichista da alienação capitalista para instaurar um novo momento histórico, tendo como Übergreifendes Moment, não mais alienação enquanto negação do humano no homem, mas a realização social da autêntica individualidade humana. Nessa direção, recorremos à máxima de Lênin como pressuposto da nossa investigação, a saber: “sem teoria revolucionária não há consciência revolucionária”, sem consciência revolucionária não há ação revolucionária e sem ação revolucionária não há revolução ou nova evolução social. Nesse sentido, a problemática central que buscamos desenvolver nesta pesquisa é que meios o movimento sindical brasileiro, particularmente, vivenciado no período histórico do século XX até os dias atuais, se utilizou e se utiliza, ou não, para tornar o marxismo uma arma teórico-crítica, um método de apreensão da sociabilidade capitalista e uma ideologia orgânica da classe trabalhadora contra o capital. O único meio só poderia ser a formação, ou melhor, a formação da “consciência de classe” por meio da educação sindical, através de cursos de formação política, congressos, encontros, greves etc. Desse modo, podemos fazer algumas 318 inferências a partir das leituras realizadas, como também da prática político-sindical vivenciada por mim durante anos. De início, é impossível desenvolver uma luta anticapitalista, antifetichista e antialienante, se não levarmos em conta o legado teórico desenvolvido por Marx e Engels e seus séquitos, para orientar a ação prática dos trabalhadores. É o pensamento a favor da luta pela emancipação dos trabalhadores do domínio do capital. Conforme o jovem Lukács, a doutrina e o método de Marx nos fornecem um método sui generis para se conhecer a sociedade e a história, id est, o presente. Logo, a tarefa fundamental das lideranças sindicais é fazer com que os trabalhadores tenham (cons)ciência da teoria e do método de Marx para lhes auxiliar na captura das leis dos fenômenos capitalistas de um determinado período histórico, para descobrir a lei da transformação e do desenvolvimento da história e, portanto, entender como se poderia dar a transição de uma determinada forma de produção para outra ou de uma ordem de relações sociais para outra. É importante compreender que a teoria marxiana contribui para o entendimento da vida econômica, apreendendo as leis especiais que regem o nascimento, a existência, o desenvolvimento e o fim de um organismo social. Assim sendo, coerente com a perspectiva onto-histórica marxista, apropriar-se do método de exposição e de pesquisa de Marx é conditio sine qua non para o trabalhador decifrar os antagonismos da realidade capitalista em suas múltiplas determinações, analisar suas formas de desenvolvimentos, perquirindo a conexão íntima entre elas, enfim compreender o movimento real do sistema do capital. Estabelecer, portanto, a verdade deste mundo, denunciar a autoalienação humana e libertar o ser humano do acicate do capital é simplesmente negar o presente político, como afirma Marx, na Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. O que deve ser resgatado das formas de alienação/servidão capitalista é a atividade prática do homem (o trabalho). No entanto, é preciso que os trabalhadores tomem consciência da sua condição de homo labor no capitalismo, das formas de alienação que os tornam seres estranhos entre si e estranhados com a própria atividade laboral. É mister, então, restaurar no pensamento a realidade autêntica, o existente em si, quer dizer, os trabalhadores tomarem consciência das formas de expropriação de seu trabalho mascarada pela forma salário. Para isso, o proletariado precisa desenvolver uma consciência antagônica ao capital, compreendendo o sentido exato do seu “ser aí existente” enquanto atividade prática destrutiva; em outras palavras, buscar desmascarar essa forma de trabalho no modo capitalista de produção e/ou negar essa condição determinada do trabalho abstrato, assalariado, constitui-se na possibilidade histórica dos trabalhadores saírem dos limites da luta reivindicativa, 319 economicista-salarial e puramente pró-reativa à ofensiva do capital. Daí a necessidade de os trabalhadores compreenderem esse caráter ontológico-teleológico do trabalho na sociedade capitalista, ou seja, o trabalho alienado, estranhado, abstrato, e entenderem o trabalho como fundamento da vida social, da realização humana. Se Marx nos revela o caráter ontológico do capitalismo como “auto-alienação humana”, a partir do fato econômico contemporâneo, apresentando os aspectos negativos da forma do trabalho assalariado, então por que os cursos de formação sindical não desvelam o caráter alienante deste trabalho a partir da teoria marxiana, perspectivando uma nova forma ontológica de trabalho? Ou melhor: por que os sindicatos não têm essa clareza teórica da complexidade do trabalho abstrato enquanto condição ontológico-teleológica da exploração humana e ainda lutam por esta forma de trabalho capitalista? Conforme as nossas investigações, a partir dos livros e textos analisados, podemos inferir que os sindicatos de esquerda no Brasil, especificamente aqueles vinculados à CUT, trabalham com a concepção de humanização do trabalho no capitalismo, com a tese da “conquista dos direitos humanos”, tão criticada por Marx em A Questão Judaica. Para corroborar esta proposição, a CUT hoje compartilha com a tese da OIT da concepção de “trabalho decente”, como garantia da dignidade dos trabalhadores, criando uma nova ilusão na luta sindical, quando na verdade, deveria desmistificar esse tipo de ideologia social liberal nos marcos da ditadura do capital. Negar ou postergar a discussão do antagonismo social e da luta de classes, trabalhar a ideia de conciliação de classes, fortalecendo o sistema de negociação entre trabalho e capital, é, a nosso ver, mais uma mística político-sindical de adiamento da reflexão ou construção subjetiva-objetiva, antagônica ao capital, para que a classe trabalhadora, estando ciente da sua situação histórica de classe, possa escolher a forma de luta que deseja protagonizar. Numa direção contrária, os cursos sindicais de formação política querem aperfeiçoar a forma de luta cotidiana contra a intensidade da exploração do capital, e não contra o capital em si, enquanto estrutura de negação do ser social. Parece, como nos diz Suchodolski, que “a educação da consciência se refere cada vez menos à forma real da existência humana para se converter em algo autônomo e espiritualizado”5; e eu diria, moralizado. A autêntica luta é deveras aquela que visa à recomposição da individualidade do ser humano, abolindo os fundamentos do capital que têm como elemento principal de sua existência, o trabalho assalariado. 5 SUCHODOLSKI, Teoria marxista da educação, v. III, p. 49. 320 Romper, portanto, com a cooperação forçada entre capital e trabalho é conditio sine qua non para começar a inversão dos papéis nessa tensão histórica entre classes com interesses antagônicos e irreconciliáveis. Para o capital é fundamental reduzir todo o trabalho da sociedade a um trabalho social médio necessário à proporção de um determinado produto, algo imprescindível para a determinação dos lucros e salários. Logo, a restrição da luta da classe trabalhadora por melhores condições de trabalho e salário no capitalismo, sem perspectivar a superação do sistema, é mais uma forma de promover o proudhonisno ou o socialismo dos utópicos franceses, de que é possível construir uma sociedade “justa” com a manutenção da divisão de classes, da divisão social do trabalho, cujo objetivo seria buscar a “igualização” dos salários na troca entre desiguais, ou seja, realizar o capitalismo do povo. Nas reflexões de Marx, o trabalho é o fundamento da realidade social que aperfeiçoou o modo de ser humano na história, ao diferenciar o homem dos animais. E que só a forma de trabalho “não estranhado” pode devolver ao homem a sua condição genuinamente humana. Como diz Lukács, o trabalho é a protoforma do ser social, a condição teleológica e ontológica do homem, pois o ato de trabalho tem uma finalidade e se transmuta de ação em ser, de movimento em produto concreto. Mas o trabalho continua refém do fetichismo capitalista e o salário como preço da força de trabalho se contrabalança nesse jogo da acumulação capitalista, ou seja, quando as forças produtivas se desenvolvem e a tecnologia elimina postos de trabalhos, produzindo mais em menor tempo, então os custos de subsistência caem, fazendo cair também o preço do trabalho. Por isso que Marx não hesita em dizer que a miséria social é o objetivo da economia capitalista. Segundo Marx, citando Adam Smith, “o tipo de sociedade fundada na mercantilização do trabalho tem [cada vez mais] uma maioria infeliz”. Quando a CUT na sua cartilha – Trabalho decente na estratégia da CUT (2011, no ponto 30 da página 30) 6 – diz que é preciso “Fortalecer as políticas de qualificação e certificação profissionais através da implantação de um sistema nacionalmente articulado que integre as dimensões da qualificação profissional, educação dos níveis de escolarização e formação para a vida”, ela compactua com a visão capitalista de “sociedade” e “trabalho”, destoando, assim, do pensamento marxista que visa a formar o homem revolucionário a partir de uma educação revolucionária, conforme o Manifesto. Noutras palavras, a CUT, em seus documentos (teses, proposições e resoluções congressuais, plenárias nacionais e encontros nacionais e regionais de formação), demonstra 6 Disponível em: < http://www.cut.org.br/publicações/3/cartilha>. Acesso em: 27 mar. 2012. 321 secundarizar o pensamento marxiano que desvela as armadilhas dos direitos sociais burgueses, ou melhor expressando, o trabalho de formação política da CUT não propicia a classe trabalhadora “a superar a visão econômico-corporativista”, como nos propõe Gramsci. O próprio Marx já alertava para esse tipo de armadilha ideológica (dos direitos humanos), quando afirma que o trabalho é o preço imutável das coisas, justamente porque está submetido às flutuações do mercado, quer dizer, mesmo que a divisão do trabalho aumente o poder de produção do trabalho e a riqueza da sociedade, o trabalhador continua empobrecido e ainda se transforma num apêndice da máquina, numa reserva de mão de obra a ser contratada ou não, de acordo com as necessidades do capital, isto é, a partir da sua capacidade de expansão e acumulação, ou não. O quadro onto-histórico do trabalho capitalista ilustra que a finalidade da atividade prática do homem se resume em aumentar riqueza para uma minoria detentora do capital. Algo deletério ao trabalhador e à sociedade. A miséria social surge assim como resultado da essência do trabalho moderno, como diz Marx. E o movimento sindical, em geral, não se coloca questões éticas e políticas, ou melhor, questões reais, como o fez Marx, de ir para além da economia burguesa, ou seja, não indaga sobre o significado da redução da maior parte da sociedade ao trabalho abstrato e alienado no desenvolvimento da humanidade; como também não critica os erros que cometem os reformadores que querem elevar os salários para melhorar a vida dos trabalhadores ou mesmo consideram a igualdade ou aumento real dos salários como o fim da revolução social. Na verdade, depreendemos que o movimento sindical não o faz, porque há uma certa “ignorância”, desprezo e descompromisso com a teoria de Marx, isto é, não tem mais essa perspectiva marxista do socialismo em contraposição ao capitalismo. Se a economia burguesa, como diz Marx, só vê o trabalho abstratamente como uma mercadoria comprável e que seu valor se dá de acordo com a variação da oferta e da procura ou com o desenvolvimento das forças produtivas, então os trabalhadores só podem romper com essa ideologia mercantilista do trabalho, se eles tiverem a consciência crítica e antagônica desta forma de alienação do trabalho que visa apenas a (re)produzir a riqueza fetichista para a classe burguesa, ou seja, se eles se apropriarem dos elementos teóricos marxistas que desmascaram a ideologia burguesa do trabalho para criar as condições de rompimento com esse formato social. Daí a importante tarefa da formação política sindical com base no marxismo. Algo que os sindicatos de esquerda, predominantemente, ignoram fazer na atualidade. Como nos diz Lukács, se o trabalho alienado capitalista funda a vida alienada dos trabalhadores, então é preciso abolir as estruturais sociais que determinam essas condições de 322 trabalho. Se para Lukács, a atividade de trabalho é uma resposta à carência humana, então as necessidades humanas só poderão ser saciadas plenamente se o trabalho enquanto atividade humana deixar de ser abstrato, estranhado, reificado. Isso só ocorre se houver uma grande revolução social que destrua as estruturas perversas de mediação do capital. Lamentavelmente, poucas são as lideranças sindicais que têm uma visão marxista da sociabilidade capitalista. O pragmatismo da luta cotidiana as obriga a pensar a “realidade melhor para si” dentro da visão “burocrática” do poder sindical. O prisma revolucionário fica reduzido a um horizonte longínquo, quase a uma utopia fantasiosa que nunca acontecerá de fato. Serviria apenas como horizonte de contemplação, logo, restringindo a luta a melhores condições de trabalho e salário, mas dentro da concessão possível do capital. Por isso, a importância da luta econômica se converter a posteriori numa luta política revolucionária como nos alertam Marx e Lênin: a busca pela supremacia da luta política. Nesse sentido, em vez de os trabalhadores cooperarem com a situação capitalista, poderiam declarar guerra a esta situação de dominação classista. E Marx convoca a crítica como arma para fazer a ruptura com as condições políticas existentes, ou seja, negar as circunstâncias políticas e jurídicas do capital para efetivar o Aufhebung histórico das deficiências civilizadas do mundo moderno, restituindo o poder de Estado à sociedade. Todavia, o entusiasmo revolucionário feneceu no movimento sindical como um todo, quer dizer, abandonou-se a perspectiva marxista de dissolução da ordem capitalista sob a base da exploração humana e da natureza. O movimento sindical optou, deveras, pela “emancipação política” em detrimento da “emancipação humana”, fortalecendo as ilusões da matriz política anacrônica do “melhorismo” para os trabalhadores no capitalismo. Parafraseando Mészáros, é o mesmo que ter uma ação política vácua nos limites do capitalismo contemporâneo. Nas Glosas Críticas, Marx chama atenção para essa miopia política de não enxergar no Estado burguês a razão das mazelas sociais, mas estas como consequências da má administração do Estado. O mito da “onipotência da vontade política” predomina hoje no pensamento pragmático sindical, justamente por não perceber as limitações intelectuais e práticas desta “vontade”, nem desvendar a fonte das mazelas sociais. Não é à toa que a questão do aumento salarial, na visão sindicalesca, é apenas uma questão de decisão política. Todavia, Marx nos alerta sobre a contradição entre a finalidade e a boa vontade da administração que o Estado não pode suprimir. Entretanto, o “movimento sindical”, em geral, continua a acreditar no Estado como entidade universal, aperfeiçoável e laico, que pode solucionar o conflito entre o capital e o trabalho. Um exemplo real é a negociação sindical tripartite entre Empresários-Governo-Trabalhadores que buscam acordar os interesses 323 antagônicos entre capital e trabalho. No entanto, Marx nos ensina que é preciso agir de modo “não político” para abolir o estado de coisas em que se encontra a sociedade. Mesmo que a emancipação política represente um progresso, ela não é a forma final da emancipação humana, pois os direitos humanos são direitos baseados nos valores da sociedade burguesa. E, segundo Marx, consagrar os direitos universais do homem está longe de efetivar o homem como ser genérico; ao contrário, tais direitos não vão além do direito do homem egoísta enquanto indivíduo separado da comunidade. Analisando então o perfil formativo da CUT, as temáticas exploradas nos seus cursos de formação, dentre outras coisas, observamos que a mesma vem reafirmando essa ideologia burguesa da cidadania, dos direitos humanos, impossíveis de se realizar na ordem social capitalista. E se formos usar a terminologia crítico-reflexiva de Marx nas Glosas Críticas sobre essa questão, os cutistas hoje poderiam ser denominados de “liberais burgueses” ou “libertadores políticos”, na medida em que defendem a cidadania e a comunidade política como modo de preservar os direitos do homem; no entanto, o cidadão continua sendo servo do homem egoísta (burguês). Por isso, os sindicalistas pragmáticos podem ser considerados hoje de “libertadores políticos” que Marx denunciava, ou seja, eles acreditam que a libertação dar-se-á pela via da política (liberal burguesa) da consagração dos direitos humanos ou das convenções da OIT para humanizar o trabalho indecente no capitalismo. Querem acabar com a perversidade do capital, sem minar a estrutura social dessa dominação iníqua. Combater esse cidadão abstrato, cujos direitos só existem na forma de lei, é efetivar uma luta para além da política de cooperação entre classes antagônicas. A política é, em princípio, superior ao dinheiro, mas na realidade tornou-se seu escravo. Tal como a formação política sindical que ficou “dependente”, de certo modo, dos financiamentos estatais para a formação profissional. No que se refere ao sufrágio universal, por exemplo, Engels já via com certo temor esse evento político burguês de cooptar os trabalhadores, pois a eleição democrático-burguesa não é instrumento da emancipação total da humanidade, sobretudo, porque a burguesia cria leis ou mecanismos político-jurídicos que limitam a prática da eleição como forma de emancipação dos trabalhadores. O sufrágio universal não deixa de ser uma armadilha ou um instrumento de esbulho da burguesia liberal. Por isso que não podemos renunciar o direito à revolução como algo incontestável e reconhecido universalmente. As massas precisam amadurecer neste sentido, ou seja, compreender do que trata esse movimento da emancipação humana para ter consciência dos motivos de dar seu sangue, suor e vida nessa luta. Ficar conformado em ter triunfos legais e não buscar mais os triunfos revolucionários, é parar a locomotiva da história, ou seja, a Revolução. Limitar a ação política à sua forma monárquica 324 ou burguesa é a maneira de se mistificar os governos, cujo objetivo é inibir e retardar a luta de classes. Nessas circunstâncias, a luta sindical precisa ter o papel educativo, formativo, de elevar o nível de consciência política dos trabalhadores para decifrar o enigma histórico do processo de dominação classista do capital. Se o trabalhador não assume a consciência da realidade ideologicamente, então ele fica limitado apenas a uma consciência do conflito, como diz Gramsci. Portanto, não basta ter a consciência moral deste mundo, é preciso, pois, ter a consciência revolucionária para transformar a realidade social. Quando Marx critica o Programa de Gotha, que se limita às reivindicações políticas da ladainha burguesa do sufrágio universal, da legislação direta, do direito popular etc., é porque tais reivindicações não passam de ideias fantásticas de um democratismo de Estado que não deixa de ser um despotismo militar de cariz burocrático e de blindagem policial. E é isso que o movimento sindical cutista hoje proclama em suas resoluções, isto é, alguns dos objetivos políticos da burguesia. Então podemos inferir que as principais reflexões da teoria marxiana estão longe de ser abraçadas pelos trabalhadores, isto é, não há este conhecimento teórico por parte deles de que a dominação do capital sobre o trabalho é de caráter fundamentalmente econômico e não político. Os trabalhadores, em geral, não conhecem a conexão entre Estado, Capital e Trabalho como força pública organizada que perpetua sua escravidão social a uma alienação perversa de degradação genérica do ser humano. Por isso, é mister sair da política do substitucionismo para restituir à sociedade os poderes usurpados pelo Estado. Isso, sem dúvida, é resultado do tipo de concepção de sindicato que os trabalhadores e suas lideranças sindicais têm. Marx, Engels, Rosa, Lênin, Trotsky dentre outros deixaram um legado teórico importantíssimo sobre o papel e a função do sindicato na luta contra o capitalismo e a favor do socialismo. Elencamos algumas dessas concepções nesta pesquisa que hoje não estão em voga na luta sindical, no caso específico, a cutista. A palavra-chave para o êxito da luta dos trabalhadores é União, conforme Marx, na Miséria da Filosofia; Marx também se preocupava com a fragmentação dos trabalhadores por causa da competição entre si. Para Marx, os sindicatos são lutas de guerrilhas entre o capital e o trabalho, agências de organização para abolir o salariato e o regime capitalista; no entanto, naquela época ele já percebia que os sindicatos mantinham-se longe das lutas políticas e sociais, isto é, não tinham a percepção da sua missão histórica, como centros organizadores para a emancipação humana. O mesmo acontece hoje, a falta de uma visão política radicalmente concebida sobre o papel do sindicato, que se reduziu à luta por aumentos salariais e melhores condições de trabalho. Corroborando então com Marx, os trabalhadores lutam apenas contra os efeitos e não contra as causas dos efeitos da exploração capitalista. Não é por acaso que, em Salário, 325 preço e lucro, Marx percebe a falha dos sindicatos quando usam pouco inteligentemente a sua força, pois se limitam a uma luta corporativa contra a ofensiva capitalista, sendo deficientes por não compreenderem que poderiam transformar os sindicatos em alavancas para a emancipação final da classe trabalhadora para abolir o capitalismo. Confinam-se os sindicatos, segundo Marx, à luta meramente econômica, tal como acontece hoje. Isso nos leva a deduzir que a luta sindical fica à deriva das crises econômicas capitalistas, pois, se presa antes ao ciclo de Kondratieff, hoje está refém da crise estrutural-sistêmica; ou, como diz Mészáros, uma luta submetida a repiques de recessão crescentes com intervalos cada vez mais curtos, tendendo a um continuum em depressão. Não podemos achar, portanto, que uma reforma moral vá emancipar o mundo da perversidade econômico-social do capital, como diz Rosa Luxemburgo. Neste caso, pegando o conceito luxemburguiano de “greve política” e aplicando hoje à forma de greve que o sindicalismo realiza, temos uma greve que apenas visa à conclusão de acordos políticos que beneficiam mais as direções dos sindicatos, diferentemente das greves de massas que alargam o horizonte intelectual dos trabalhadores para reavivar suas ideias e aumentar suas energias. Não é à toa que Lênin criticava o bernsteinismo e os marxistas legais por pregarem a teoria da atenuação dos antagonismos sociais, limitando a luta dos trabalhadores a reformas pequenas e graduais, ou seja, transformando o movimento operário em apêndice do movimento liberal; e hoje o movimento sindical, especialmente o cutista, age como coadjuvante indireto do capitalismo, a saber, fazendo acordos para efetivar objetivos práticos do movimento que desembocam na comercialização de princípios e concepções teóricas, pondo em xeque a importância da teoria (marxista) e mesmo do socialismo. E o sindicalismo cutista hoje reproduz essa mesma prática bernsteiniana, legalista, de atenuar o conflito de classes, ou seja, faz justamente o rebaixamento teórico dos trabalhadores que tanto Lênin criticava. Em outras palavras, o movimento sindical dos trabalhadores se subjuga, de certa maneira, à ideologia burguesa e realiza “um sindicalismo do mínimo esforço” que “se refugia sob as asas da burguesia”. Tal descaso com a teoria marxiana retarda e enfraquece a luta contra o capitalismo e não cria uma consciência e atitude anticapitalista. Hoje isso não é muito diferente. Daí inferirmos que é imprescindível a educação política marxista no movimento sindical para elevar o nível de consciência do trabalhador, explicando a natureza das crises do capitalismo, mostrando as necessidades da transformação social, enfim, fornecendo as “ideias-bases” do marxismo para um maior conjunto de pessoas. Os capitalistas querem o contrário, ou seja, fazer desaparecer nos sindicatos o espírito socialista e limitar a luta à 326 legalidade burguesa, tal qual como fazem muitos sindicalistas, a partir de um novo pacto de cooperação. Todavia, Trotsky coroa essa discussão, ressaltando o marxismo como um antídoto à burocratização da luta, pois é preciso educar os trabalhadores no espírito do autêntico marxismo. Trotsky tinha clareza de que a educação sindical educa até certo limite, pois é fundamental que os intelectuais e militantes marxistas tornem-se guias teóricos para sistematizar a luta proletária de forma programática; sobretudo, porque a burocracia sindical pode empacar a transformação das organizações sindicais em organizações revolucionárias. Quando formamos indivíduos revolucionários, nos diz Suchodolski, rompemos com as condições que dependem das causalidades do capitalismo, caso contrário, os indivíduos se tornam colaboradores do capital. Contudo, não é fácil resgatar o marxismo como teoria revolucionária da classe trabalhadora, que ainda tem uma visão distorcida dos fatos históricos sobre o desastre do socialismo soviético, propagandeada pela mídia burguesa internacional. Sabemos que o marxismo passou por várias crises após o falecimento de Marx. Certamente, a maior delas foi a precipitada conclusão da morte das ideias de Marx com o fim do socialismo real no Leste Europeu. Com efeito, isso levou o movimento sindical de esquerda a um distanciamento do marxismo e, concomitantemente, do socialismo, embora já houvesse antes uma crítica àquele modelo de comunismo. A consequência prática foi o desprezo do movimento sindical, em geral, pelo marxismo nos cursos de formação política. Mas como diz Mészáros, não podemos atribuir a uma experiência histórica de socialismo num canto do mundo o fracasso do marxismo, ou melhor, imputar à prática de um modelo de transição socialista a invalidade da teoria de Marx ou inviabilidade do socialismo. Na verdade, a implosão do “socialismo real” tem a ver com as causas econômicas, políticas e sociais enraizadas na sociedade soviética, pois as personificações do capital – Estado, Capital e Trabalho – continuaram a existir no seu sistema de produção, como componentes entrelaçados do sistema orgânico do capital, extraindo politicamente o excedente de trabalho. No entanto, o “marxismo autêntico” é de caráter universal e fica difícil abandoná-lo quando os princípios dialéticos que sustenta, a interpretação materialista da história e a sociedade que propõe, as leis do capitalismo que estuda e os antagonismo sociais que desmascara, segundo Claudio Katz, não podem ser encaixotados na história por causa do raio estreito que ele foi posto em prática em tal ou qual país. Vimos que Marx e Engels não se iludiam em relação à lentidão, aos riscos de ruptura e à involução do processo de autoeducação dos trabalhadores, pois a influência ideológica burguesa sobre a mentalidade dos trabalhadores era e é uma constante. Talvez, se o 327 movimento sindical tivesse se aprofundado mais em compreender o movimento do capital, suas contradições, crises etc., do que apenas se limitar à luta econômica, a forma de luta política contra o capital poderia ter sido melhor desenvolvida. Como diz Letízia, com a queda do muro de Berlim, várias teorias sobre o papel do sindicato se multiplicaram, tais como o sindicalismo moderno que propõe um sindicalismo mais construtivo, com soluções exequíveis, de cooperação com as empresas. Isso significa, em outras palavras, que está havendo um processo de “desideologização” ou de “despolitização” do movimento sindical, restringindo a luta à mera defesa das conquistas dos trabalhadores. Seria então um novo pacto neocorporativo, desde a crise do modelo de produção fordista, entre o capital e o trabalho? Sem dúvida, o fim do socialismo real, a crise estrutural do capitalismo e a violenta ofensiva neoliberal pegaram de surpresa o movimento sindical que estava acostumado à cooperação fordista, sobretudo, no Brasil, ou seja, tais eventos fizeram com que houvesse um refluxo na luta ideológica do sindicalismo brasileiro de esquerda. Alguns especialistas em movimento sindical apontam causas diferenciadas para esse recuo histórico do movimento sindical combativo e classista para uma posição “defensivista”. Com a crise do modo de produção fordista, na Europa e nos Estados Unidos, a reestruturação produtiva neoliberal surgiu para acabar com a estagnação da acumulação e expansão do capitalismo, a partir de três objetivos: competitividade internacional, redução do Estado ao mínimo de atuação social e flexibilidade do mercado de trabalho. Destacamos, porém, que há uma relação dialética entre o avanço da reestruturação produtiva neoliberal e a crise das estratégias da luta de classes, uma retroalimentando a outra, como afirma Paula Regina. No entanto, citamos as principais causas para a crise ou o enfraquecimento do poder sindical tais como: a acumulação flexível, reestruturação produtiva, globalização (financeira), flexibilização da organização e do mercado de trabalho, redução drástica da força de trabalho industrial, explosão do trabalho em serviços, terceirização do circuito de valorização do capital (causando a pulverização e fragmentação do trabalhador coletivo), dispersão da produção, debilitamento da solidariedade dos trabalhadores, desemprego estrutural, dessindicalização, burocratização do movimento sindical, enfraquecimento das lideranças mais vanguardistas, fortalecimento das lideranças mais modernas e atrasadas, derrocada do socialismo, o enfraquecimento de pertencimento de classe, crise de lideranças e representatividade, “despolitização” e “desideologização” da luta, militantismo alienante, colaboração de classes (concertação social), neocorporativismo, luta de caráter “propositivonegociativo”, lutas setorizadas e parciais, a social-democratização sindical, esvaziamento teórico da luta, declínio das greves etc. Portanto, alguns especialistas explicam a crise ou o 328 enfraquecimento do poder sindical a partir das transformações tecnológicas e organizações do mundo do trabalho, ou melhor, a partir de explicações conjunturais, estruturais e políticas, sobretudo, explicações macroeconômicas, institucionais e até mesmo culturais e valorativas. Contudo, a causa da crise do movimento sindical é também, a nosso ver, em última instância, de caráter teórico-metodológico, pois a ausência de uma consciência revolucionária (teórico-prática) do trabalhador no campo do marxismo seja um dos principais fatores do declínio, da rendição e do acomodamento do movimento sindical ao neoliberalismo. Não que a teoria por si só seja a condição fundamental para a transformação radical da sociedade, mas constitui uma mediação imprescindível para o desenvolvimento da luta anticapitalista, principalmente, para a construção da consciência e ação revolucionárias face ao capital. É impossível desenvolver uma ofensiva contra o capital se não compreendermos a teleologia de seu movimento na história, a sua raiz ontológica na formação social dos homens, os elementos fundamentais de sua crise, o desenvolvimento de suas contradições, a irrealizabilidade da sua justiça social, a voracidade de sua expansão e acumulação em detrimento da natureza e do próprio homem, enfim, se não entendermos os nexos categóricos onto-históricos que permitem seu movimento incessante de destruição do planeta. É preciso superar a ação puramente reativa, emocional, reivindicativa, politicista do sindicalismo moderno dentro dos marcos do capital. Portanto, a condição histórica urge ser modificada, a partir de uma ação mais sistemática e menos espontaneísta; e construir uma rota de ação antagônica ao sistema, um programa anticapitalista, requer que haja uma consciência clara de seu funcionamento, de seus objetivos maléficos e efeitos sociais perversos. Mesmo que a tese das consequências da reestruturação produtiva, das inovações tecnológicas e organizacionais no trabalho e da fragmentação dos trabalhadores tenha valor teórico para justificar a crise do sindicalismo combativo, a nosso ver, o desprezo teórico, isto é, a ausência de uma consciência revolucionária a partir do marxismo autêntico, foi crucial para impedir um confronto acirrado entre o trabalho e o capital, pelo menos, um confronto ideológico enquanto equilíbrio de forças. Ao contrário, o movimento sindical passou a ser , de certo modo, interlocutor do capital, abandonando a sua função de adversário estrutural; optou, segundo Mészáros, pela linha da menor resistência, aceitando quase que passivamente as imposições do neoliberalismo. A acuação do movimento sindical em face dessa globalização financeira do capital, a partir do neoliberalismo, só demonstrou que o movimento sindical não eliminou a precariedade teórica dos trabalhadores sobre a teleologia do movimento do capital. A luta pela emancipação da classe trabalhadora do capital foi substituída pela luta dos direitos humanos, individuais, democráticos, pela luta do exercício da cidadania no Estado burguês, 329 conforme as teses do pós-modernismo. O movimento sindical deixou de ser um movimento antissistêmico para ser pilar do sistema do capitalista, deixando de ser antagônico. Parece que houve uma rendição ideológica por parte do movimento sindical à ideologia do capitalismo humanizado ou capitalismo do povo, isto é, da terceira via, a uma ressocialdemocratização da política ou um remake de um neokeynesianismo pós-moderno. Isso nos permite dizer que a dimensão da luta de classe, particularmente na Central sindical cutista, vem sendo abandonada enquanto perspectiva histórica. O socialismo e o marxismo sofreram um verdadeiro apagão teórico-prático nas lutas sindicais, nos cursos de formação política, pois o que mais se discute hoje no movimento sindical, seja nas instâncias de base, seja nos sindicatos, federações, confederações e centrais, é o salário justo no “capitalismo menos injusto”, as eleições para formar a burocracia sindical, a forma de negociação pacífica e rápida com o patronato e as lutas internas pelo poder sindical e sua burocracia administrativa. Um sindicalismo totalmente burocratizado, esvaziado de sentimento e pensamento revolucionário, isto é, sem ideologia revolucionária, ateórico e acrítico ao capital. As estratégias de contrapoder e de visar uma sociedade para além do capital, sucumbiram diante das lutas puramente reivindicativas e burocratizadas. O dirigismo e o burocratismo sindical abafaram os princípios do sindicalismo revolucionário. Observando os congressos da CUT, suas resoluções e ações sindicais, percebemos que o movimento sindical atuou conforme a conveniência conjuntural do capital ou consoante o seu processo de acumulação. A luta sindical combativa estacionou no tempo; ficou truncada pela sua incapacidade teórica de compreender o momento histórico predominante, justamente, porque não havia a teoria ou o método marxista de compreensão dessa realidade por parte da maioria das lideranças sindicais. Se, por um lado, o poder sindical se expressa pela força das greves, isto é, se é por meio delas que o sindicalismo se determina como movimento social, como instituição de defesa dos trabalhadores, por outro lado, é pela força da sua consciência política e ideológica anticapitalista que o movimento sindical se torna uma ameaça. Quando historiamos que, no Brasil, os primeiros sindicatos ou associações de trabalhadores tinham a preocupação de construir uma pedagogia socialista para formar politicamente os trabalhadores e que não visavam apenas à ascensão social deles, mas a transformá-los em militantes revolucionários para sua emancipação total, ou seja, que a educação política dos trabalhadores teria que ser formada sem a influência da educação burguesa, é para contrastar com que vemos hoje, a saber, um sindicalismo que tacitamente se escusa de construir um programa ou uma estratégia revolucionária para a luta contra o capital, visando o socialismo. Em outras palavras, prioriza-se o campo da luta institucional em 330 detrimento das ações de massa, fortalecendo o sindicalismo oficial e corporativo de Estado. Na verdade, há o abandono da luta política e da agitação de ideias contra o capitalismo, para ajustar o movimento sindical a um modelo sindical de cooperação com o sistema do capital. As greves gerais foram quase descartadas no Brasil e no mundo, com alguns ensaios atuais, de caráter esporádico e rápido em alguns países europeus, como na França, Espanha, Itália e Grécia. No caso do movimento sindical cutista, percebemos isso a partir do III e IV CONCUTs e da derrota de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 1989. A guinada à direita do movimento sindical cutista deu-se com a hegemonia da Corrente Articulação Sindical; e esta começou a desenhar outra estratégia política e sindical para a CUT, a partir dos Congressos, Plenárias e Encontros posteriores. O neoliberalismo foi a pá de cal para formar o alicerce de uma nova estruturação político-ideológica e institucional na CUT, em correlação com os objetivos do Partido dos Trabalhadores (PT). Moderou-se a luta ofensiva sindical, saindo de um sindicalismo combativo-classista para um sindicalismo propositivo-negociativo, privilegiando, portanto, a luta “democrático-cidadã” na ordem do capital. A Articulação Sindical cutista trabalha com a tese de que se o sindicato perder o objetivo da negociação, as bases não acompanharão o voluntarismo político vanguardista, distanciando-se, assim, ideologicamente das concepções marxistas de sindicato. Isso denota a falta de uma concepção marxista da luta sindical e política, de uma visão marxiana da crise estrutural do capitalismo no conjunto da história. Não foi à toa que houve uma fase de “aproximação” da CUT com algumas propostas neoliberais, tais como a das câmaras setoriais, quer dizer, um novo pacto social entre capital e trabalho, tendo como interlocutor o Estado burguês. Isso confirma a incapacidade da CUT de responder antagonicamente à ofensiva do neoliberalismo. Concordando com Boito Jr., a CUT não tinha uma base teórica marxista de fundamentação da luta sindical, mesmo tendo uma visão de classe e compreendendo o movimento sindical como parte de um conflito maior. Se tomarmos como referências os cursos cutistas de formação política, percebemos que o marxismo ou as teorias de Marx sobre o movimento e a crise do capital passou ao largo. Isto é demonstrado na pesquisa de Paula na EQUIP, em que não havia na tabela de cursos, espaço para o marxismo. Mesmo pleiteando em suas resoluções o socialismo como horizonte a ser vislumbrado, a CUT limitou-se a fazer formação política muito mais para formar dirigentes e militantes sindicais que atuassem no campo da negociação e da administração burocrática da estrutura sindical do que no campo da luta político-ideológica contra o capital. Embora em alguns cursos, categorias marxistas tenham sido colocadas, como o curso de “economia política básica” – que implica na compreensão e dominação dos elementos 331 fundamentais da sociedade capitalista –, este curso jamais chegou a ser dado de forma satisfatória como afirma Tumolo, desaparecendo até mesmo como mera proposta do conjunto de programas da formação. Os textos de vários cursos, portanto, se voltavam mais para discutir as práticas cotidianas, sem o suporte teórico do conhecimento marxista. As escolas de formação orgânicas e conveniadas foram fundamentais para a formação de militantes e formadores de formadores da CUT. No entanto, algumas delas funcionam precariamente e outras até foram fechadas. Isso demonstra uma crise no campo institucional ideológico cutista, isto é, de a CUT ser ou não ser mais socialista. A formação de base foi substituída por uma formação instrumental que visa apenas preparar a militância para atender as demandas da conjuntura e do cotidiano sindical. Daí uma ênfase maior na formação profissional em detrimento de uma formação política, sobretudo, no campo do marxismo. Isto porque a CUT trabalha com a ideologia de que o problema do desemprego estrutural no capitalismo é um problema de qualificação e requalificação dos trabalhadores e não como uma questão da crise sistêmica do capital. Em outras palavras, a CUT se fundamenta na ideia de que é preciso radicalizar a democracia popular para construirmos a fase de transição para o socialismo, baseada na visão de sociedade cidadã, um modelo alternativo que se baseia na democracia e justiça social, com desenvolvimento rural, política de segurança alimentar e cidadã e reforma do Estado. Dessa maneira, o sindicalismo CUT, que se propõe ser de esquerda, está distante do referencial teórico-metodológico materialista-dialético. Os textos de sua formação vão na direção de criticar o modelo de desenvolvimento econômico capitalista, construir a cidadania, fortalecer a democracia e a participação cidadã nas decisões do Estado, ou seja, de buscar construir uma rede econômica e política solidária no rumo da empregabilidade e da renda para os trabalhadores, sem perceber que está desenvolvendo uma luta meramente moral de combate ao individualismo capitalista, ao mercado de trabalho competitivo, sem perspectivar uma luta emancipatória plena do trabalhador. A tese da esquerda moderna é a de que é possível aperfeiçoar a sociedade democrático-cidadã, quando se supera as desigualdades com a ampliação e melhoria dos direitos sociais e das instituições capitalistas que os implementam. Por isso, como diz Paula em sua dissertação, nos cursos da EQUIP se faz apenas a crítica moral do capitalismo, abandonando a teoria macro, sem criticar a lógica da exploração, a saber, o abandonando o legado crítico marxiano e tendo como ponto de partida para a construção do conhecimento somente as experiências individuais, a partir da metodologia participativa, em que não se faz uma relação entre o saber do educando com o saber teórico. Em outras palavras, a formação torna-se sindicalesca, formando apenas dirigentes e não 332 trabalhadores de base. Uma linha metodológica que prioriza a prática pela prática para transformar a realidade, negando, assim, a importância da teoria marxista. Se a prática sindical cutista, seja no campo da formação, seja no campo da implementação das lutas, está diretamente correlacionada com os princípios políticos das suas resoluções congressuais, então no âmbito da formação política, sua prática reflete a concepção política que ela tem de sindicalismo e de sociedade. A CUT se pauta, dessa maneira, mais por uma visão de um antagonismo entre “sociedade civil” e “governo” do que entre “capitalistas” e “trabalhadores”, como infere Oliveira do Rio em sua dissertação, desconsiderando, portanto, a objetividade ontológica do antagonismo entre o “capital” e “trabalho” como diz Tonet (2005)7. Assim sendo, a partir dos resultados teóricos, enfatizados nesta pesquisa, a tese ilustra que desde os primórdios do sindicalismo no Brasil, nunca houve, de verdade, por parte da maioria dos dirigentes sindicais, um maior aprofundamento no conhecimento das teorias de Marx, sobretudo, em relação às categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa com suas contradições, evoluções e crises e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais, como assevera Marx nos Grundrisse. E pior. As bases sindicais nunca tiveram acesso a esse legado teórico de Marx de forma mais sistemática por meio de cursos contínuos que pudessem nortear o seu comportamento político-sindical de enfrentamento ideológico e político com os capitalistas. As lutas sempre se pautaram por movimentos conjunturais históricos, sazonais, setoriais, às vezes espontaneístas, às vezes programáticos, de caráter economicista, mas sem uma direção clara de minar constantemente o capitalismo em seus momentos de crise ou pelo menos a sua ideologia. Os cursos de formação sindical, mesmo na fase da Primeira República 1889-1930 (41 anos), com a influência de anarquistas, anarcosindicalistas, socialistas e comunistas, nunca formaram uma base sindical que dominasse o conteúdo marxista in totum para compreender a lógica do capital ou que vulgarizassem tal conteúdo para a classe trabalhadora. Mesmo com o advento do sindicalismo oficial de Estado na era Vargas, os sindicalistas comunistas ficaram atrelados ao marxismo leninista, estalinista, trotskista ou maoísta, restringindo a luta tout court à tática e propaganda do socialismo russo, ou formando militantes para ação e propaganda comunista do Comintern (Terceira Internacional). Já o Novo Sindicalismo limitou-se, com o tempo, a resgatar o projeto democrático popular, com alguns lampejos ideológicos sobre o socialismo, mas cujo resultado foi a radicalização deste projeto no esteio mesmo do capitalismo, ao chegar ao Poder com o Partido dos Trabalhadores (PT). 7 Cf. TONET, Ivo. Educação, cidadania e emancipação humana. 333 A partir dessas proposições, a tese nos indica que, grosso modo, não houve de fato a construção da consciência revolucionária ou anticapitalista nas bases sindicais – através de cursos de formação política – a partir da teoria marxiana do capitalismo em sua totalidade, isto é, da sua gênese ao assombro do colapso contemporâneo, impedindo-os, portanto, de entenderem o desenvolvimento do sistema metabólico do capital, as suas várias formas de evolução, a conexão íntima de suas relações de produção, distribuição, circulação e consumo da riqueza produzida, ou, melhor dizendo, de conhecerem a estrutura, a dinâmica e as contradições da economia capitalista; como também impossibilitando os trabalhadores de não terem um senso revolucionário da sua condição ontológica humana na ordem social capitalista, isto é, sendo acríticos em relação à forma de trabalho da qual são alienados ou reificados e mesmo excluídos. A sonegação do autêntico marxismo nos cursos de formação política pode ter sido um dos principais fatores da precarização política e ideológica da luta dos trabalhadores, de uma militância teoricamente fraca ou ateórica marxianamente, enquanto classe antagônica ao capital, distanciando-se do projeto social classista, pois o marxismo contribui, em grande medida, para libertar o trabalhador da sua consciência empírica e imediatista, formando assim o sujeito contestador da ordem do capital e não um sujeito cooperador. Pois, como bem diz Mészáros, o espírito do marxismo é devolver justamente o poder político aos indivíduos sociais. Por fim, se houve um processo de ascendência do movimento sindical quanto à sua forma de organização, estruturação e institucionalização desde os primórdios até hoje, o mesmo não se pode dizer que houve uma ascendência no desenvolvimento de uma consciência anticapitalista, revolucionária e socialista pari passu ou a posteriori, sobretudo, nas bases do movimento sindical. O Espírito da luta sindical continua subordinado ao desenvolvimento contraditório do capital. E se a exploração do capitalismo é pressuposto para a união da classe trabalhadora, então o marxismo como teoria revolucionária é pressuposto para se desenvolver a consciência antagônica dessa união contra o capital. Face ao exposto, podemos concluir, afirmando que houve um rebaixamento teórico crítico ao capitalismo por parte do movimento sindical, em especial, o da Central sindical cutista, justamente por esta, em última instância, desdenhar a teoria marxiana enquanto força crítica e ideológica ainda de contrapoder ao capitalismo; logo a causa do enfraquecimento do poder sindical não se deve somente às questões conjunturais e político-ideológicas ou estruturais do capitalismo, mas também à debilidade teórica sindical no campo do autêntico e revolucionário marxismo, ou seja, a partir do entendimento da realidade antagônica produzida pelo desenvolvimento ontohistórico do capital, das suas relações sociais de produção. 334 REFERÊNCIAS ABENDROTH, Wolfgang. A história social do movimento trabalhista europeu. São Paulo: Paz e Terra, [s.d]. 191 P. ALVES, Giovanni. A nova ofensiva do capital, crise do sindicalismo e as perspectivas do trabalho – O Brasil nos anos 90. In: TEIXEIRA, Francisco José e OLIVEIRA, Manfredo de (Org.). Neoliberalismo e reestruturação produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. Fortaleza: Cortez-UECE, 1996. p. 129-154. _____. O novo (e precário) mundo do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. 368 P. ALTHUSSER, Louis. O marxismo hoje. Kriterion – Revista de Filosofia. Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e ciências humanas da UFMG. Belo Horizonte, 1987. 157 P. ANDERSON, Perry. A crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 127 P. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. 264 P. _____. (Org.). A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004. 200 P. _____. O que é sindicalismo. 10. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 95 P. (Coleção Primeiros Passos, 3). _____. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2010. 213 P. ARAÚJO, Angela Maria Carneiro. Estado e trabalhadores. In: ARAÚJO, Angela M. C. (Org.). Do corporativismo ao neoliberalismo: Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 29-57. ARON, Raymond. Introdução: sobre a dificuldade de interpretar Marx. In:____. O marxismo de Marx. São Paulo: ARX, 2003. 648 P. BABEUF, BLANQUI, FOURIER, SAINT-SIMON. O socialismo pré-marxista. 2. ed. São Paulo: Global Editora, 1986. 232 P. BARBARA, Maristela Miranda et al. (Orgs.). Educação integral dos trabalhadores: práticas em construção. São Paulo: CUT, 2003. 180 P. ______. MIYASHIRO, Rosana (Orgs.). Formação cidadã: uma ação educativa somando iniciativas. São Paulo: CUT, 2003. 140 P. 335 BENJAMIN, César (Org.). Marx e o socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2003. 160 P. BEYNON, Huw. O sindicalismo tem futuro no século XXI?. In: SANTANA, Marco A.; RAMALHO, José R. Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 44-71. BICCA, Luiz. Marxismo e liberdade. São Paulo: Edições Loyola, 1987. 246 P. BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. 288 P. BOITO JR. Armando. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã Editora, 1999. 248 P. _____. (Org). O sindicalismo brasileiro nos anos 80. São Paulo: Paz e Terra, 1991.198 P. _____. A crise do sindicalismo. In: SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo (Orgs.). Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 319-333. _____. Neoliberalismo e corporativismo de Estado no Brasil. In: ARAÚJO, Angela Maria Carneiro. Do corporativismo ao neoliberalismo: Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 59-87. _____. (Org.) et al. O sindicalismo brasileiros nos anos 80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 196 P. BORON, Atílio A.; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina (Compiladores). La teoría marxista hoy – problemas y perspectivas. Buenos Aires: Consejo Latino Americano de ciencias sociales CLAESO, 2006. 512 P. BRAGA, Ruy. Da ideologia do progresso técnico à crise da sociedade do trabalho. In: DIAS, Edmundo et al. A ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e luta de classes. Brasília: Sindicato dos Eletricitários de Brasília, 1996. 170 P. BUEY, Francisco Fernández. Marx y los marxismos uma reflexión para el siglo XXI. In: _____. La teoria marxista hoy – problemas y perspectivas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de ciencias sociales CLAESO, 2006. p. 191-208. CALVET DE MAGALHÃES, Thereza. A categoria de trabalho (Labor) em Hannah Arendt. In: Ensaio 14. São Paulo: Editora Ensaio, 1985. p. 131-168. CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa. Rio de Janeiro: topbooks, 1994. CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil (1887-1944). São Paulo: Difel, 1979. CARDOSO, Adalberto Moreira. Os sindicatos e a segurança socioeconômica no Brasil. In: _____. Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 227-270. 336 CASTORIADIS, Cornelius. Koinônia. In: ______. As encruzilhadas do labirinto 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 235-263. CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES. Avaliação externa da política nacional de formação da CUT. São Paulo: Xamã, 1997. 256 P. ______. A intervenção da CUT nas políticas públicas de geração de trabalho, emprego, renda e educação dos trabalhadores: avaliação, resultados e ampliação de perspectivas. Organizado por Martinho da Conceição et al. São Paulo: CUT, 2003. 240 P. ______. Educação integral dos trabalhadores: práticas em construção/organizado por Maristela Miranda Barbara, Rosana Miyashiro, Sandra Regina de Oliveira Garcia. São Paulo: CUT, 2003. 179 P. _______. Formação cidadã: uma ação educativa somando iniciativas/organizado por Maristela Miranda Barbara, Rosana Miyashiro. São Paulo: CUT, 2003. 140 P. SINDSEP-CE. Formação de lideranças: práticas em construção no SINDSEP. Quixadá-CE: [s.n.], 2005. 88 P. CHAGAS, Eduardo Ferreira. A crítica à política em Marx. In: SOUSA, Adrina e Silva; OLIVEIRA, Elenilce Gomes de (Org.) et al. Trabalho, filosofia e educação no espectro da modernidade tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 67-81. CHASIN, José. Posfácio: Marx – Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: TEIXEIRA, Francisco José Soares. In: ______. Pensando com Marx: uma leitura críticocomentada de O Capital. São Paulo: Ensaio, 1995. p. 335-537. _______. Marx: da razão do mundo ao mundo sem razão. In: _____. (Org.). Marx hoje. São Paulo: Ensaio 1987. p. 45. (Cadernos, série Grande Formato, n.1). CHENAIS, François. Mundialização financeira e vulnerabilidade sistêmica. In: _____. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 249-293. ______. Posfácio: os craches financeiros asiáticos e os mecanismos de propagação internacional de crise econômica. In ______. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 295-318. COATES, David. Força de trabalho e competitividade internacional. In: ARAÚJO. Angela M. C. Do corporativismo ao neoliberalismo: Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. p. 133-183. COGGIOLA, Oswaldo. A vigência do Marxismo. In: ______. (Org.). Marxismo hoje. São Paulo: Xamã, 1996. 128 P. COURI, Sergio. Capitalismo-marxismo: ensaios sobre a evolução do capitalismo e do marxismo. 2. ed. Brasília: Editora UNB, 2001. 198 P. 337 DIAS, Edmundo Fernandes. Capital e trabalho: a nova dominação. In: ______. A ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e luta de classes. Brasília: Sindicato dos Eletricitários de Brasília, 1996. p. 7-54. ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1990. 224 P. ________. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global Editora, 1986. 390 P. (Coleção Bases, 47). ________. Prefácio. A situação da classe operária na Inglaterra. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.]. v. 3. ENGELS, Friedrich. Cartas de Engels a Bebel. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 2, p. 226-231. FARNETTI, Richard. O papel dos fundos de pensão e de investimentos coletivos anglosaxônicos no desenvolvimento das finanças globalizadas. In: CHENAIS, François. Mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 183-210. FAUSTO. Ruy. Marx: lógica & política. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Tomo I, p. 89138. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. FROMM, Erich. Conceito marxista de homem. 8. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. 224 P. GÓMEZ, José María. Globalização da política – mito, realidades e dilemas. In: GENTILI, Pablo (Org.) et al. Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 128-179. GONÇALVES, Adelaide. Imprensa dos trabalhadores no Ceará: histórias e memórias. In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. 4. ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2004. GONZÁLEZ, Sabrina. Introducción: crônicas marxianas de una muerte anunciada. In: _____. La teoría marxista hoy – problemas y perspectivas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de ciencias sociales CLAESO, 2006. p. 15-33. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. 245 P. _______. Concepção dialética da história. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. 342 P. _______. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. I, 2004. 520 P. GHIRALDELLI JR., Paulo. Educação e movimento operário. São Paulo: Cortez Editora, 1987. 168 P. 338 GIANNOTTI, Vito; LOPES NETO, Sebastião. CUT, ontem e hoje. São Paulo: Vozes, 1991. HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 456 P. HOLANDA, Francisco Uribam Xavier. Do liberalismo ao neoliberalismo. Porto Alegre: EdiPUCRS, 1998. 82 P. (Coleção Filosofia, n. 75). HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988. 448 P. HOBSBAWM, Eric J. et al. História do marxismo I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 446 P. _______. História do marxismo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 340 P. _______. História do marxismo III. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 314 P. _______. História do marxismo IV. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 320 P. _______. História do marxismo V. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 344 P. _______. História do marxismo VI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 381 P. _______. História do marxismo VII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 381 P. _______. História do marxismo VIII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 467 P. _______. História do marxismo IX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 392 P. _______. História do marxismo X. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 325 P. _______. História do marxismo XI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 445 P. _______. História do marxismo XII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 479 P. IANNI, Otavio. Dialética & capitalismo: ensaio sobre o pensamento de Marx. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. 86 P. IRIARTE, Gregório. Neoliberalismo sim ou não?. São Paulo: Paulinas, 1995. 93 P. KATZ, Claudio. O pós-marxismo: uma crítica. In: COGGIOLA, Osvaldo (Org.) et al. Marxismo hoje. São Paulo: Xamã, 1996. p. 68-91. LASKI, Harold J. O manifesto comunista de Marx e Engels. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. 147 P. LEFRANC, Georgs. O sindicalismo no mundo. Portugal [s.l.]: Ed. Europa-América, 1974. 339 LENIN, Ilich Ulianov. Sobre os sindicatos. São Paulo: Editorial Livramento, 1979. 355 P. LÊNIN, V. I. Que fazer?. São Paulo: Editora Hucitec, 1986. 150 P. _____. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. São Paulo: Global Editora, [s.d]. 81P. (Coleção bases, 9). LÉNINE, V. I. Sobre as greves. In: ______. Obras escolhidas. Lisboa: Edições Avante, 1984, v. 1. _____. Obras escolhidas. Lisboa: Edições Avante, 1984, v. 2. _____. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1980, v. 3. 778 P. _____. O Estado e a Revolução. São Paulo: Editora Hucitec, 1987. 154 P. LOSOVSKY, A. Marx e os sindicatos. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 1989. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Porto: Publicações Escorpião, 1974. 381 P. _____. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda., 1979. 253 P. _____. As bases ontológicas do pensamento de Marx e da atividade do homem. In: Temas de ciências humanas. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1978, nº 4, p.1-18. _____. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx. In: _______. Ontologia do ser social. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda, 1979. 175 P. LUKÁCS, György. I principi ontologici fondamentali di Marx. In: Ontologia dell essere sociale. Roma: Editori Riuniti, 1976. p. 261-403. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma social ou revolução?. São Paulo: Global Editora, 1986. 128 P. ________. Os sindicatos, as cooperativas e a democracia política. In: Textos Escolhidos. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 90-126. MACIEL, David; FARIA, Maciel. Crise do capital, dominação burguesa e a alternância dos trabalhadores. In: _______. A ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e luta de classes. Brasília: Sindicato dos Eletricitários de Brasília, 1996. p. 79-120. MANDEL, Ernest. Introdução ao marxismo. Lisboa: Edições Antídoto, 1978. p. 241-252. ________. O lugar do marxismo na história – “a fusão do movimento operário real e do socialismo”. 2. ed. São Paulo: Xamã, 2001. 120 P. MANFREDI, Silvia Maria. Educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002. 340 MARCELINO, Paula Regina Pereira. A logística da precarização. São Paulo: Expressão Popular, 2002. MARCUSE, Hebert. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968. MARTINS, Nicolaus. Marx e o desconhecido. In: BENJAMIN, César (Org.). Marx e o socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 99-137. MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 1-21. (Os Economistas). ______. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. 792 P. ______. A origem do capital. São Paulo: Centauro Editora, 2000. 116 P. ______. Capítulo VI inédito de O Capital – resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Editora Moraes, [s.d.]. 173 P. ______. Salário, preço e lucro. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 133-185. (Os Economistas). ______. Trabalho assalariado e capital. São Paulo: Global Editora, 1987. ______. O rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 187-240. ______. O capital. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A., 1988. v. I, 579 P. ________. ________. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d.]. v. II, 345P. ________. ________. 5. ed. São Paulo: Bertrand Brasil S. A., 1987. v. III, 587 P. ________. ________. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S. A., 1991. v. IV, 316 P. ________. ________. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S. A., 1991. v. V, 395 P. ________. ________. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. v. VI, 378 P. ________. Miseria de la filosofia. [s.l.]: Editorial Progresso, 1985. 201 P. ________. Miséria da filosofia. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1982. 288 P. ________. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 95-262. MARX, Karl. A questão judaica. In: _______. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 33-73. ________. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: _______. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 75-93. 341 MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 1, p. 93-198. _____. Glosas críticas ao artigo “‘O rei da Prússia e a reforma social’ de um Prussiano”. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010. 95 P. _____. Manifesto do Partido Comunista. In: _____. Obras escolhidas. São Paulo: AlfaOmega, [s.d.], v. 1, p. 17. _____. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: _____. Obras escolhidas. São Paulo: AlfaOmega, [s.d.], v. 1, p. 199-285. _____. A guerra civil na França. In: _____. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 2, p. 40-103. _____. Crítica ao Programa de Gotha. In: _____. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 2, p. 203-225. _____. Teses sobre Feuerbach. In MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 99-103. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 122 P. _____. A sagrada família. São Paulo: Editora Moraes, 1987. 216 P. _____. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: Editora Moraes Ltda., 1992. 100 P. MATTOSO, Jorge Eduardo Levi. Desordem do trabalho. São Paulo: Scritta, 1995. MCLLROY, John. Os sindicatos e o Estado. In: ARAÚJO, Angela M. C. Do corporativismo ao neoliberalismo: Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 89-132. MENEZES, Ana Maria Dorta de. Habermas: indicações para uma reflexão crítica à centralidade do trabalho. In: MENEZES, Ana Maria Dorta de (Org.) et al. Trabalho, educação, Estado e a crítica marxista. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p. 37-48. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. 1104 P. _____. O século XXI: Socialismo ou Barbárie?. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 119 P. _____. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 296 P. MOURIAUX, René. O sindicalismo nos países industrializados em fins dos anos 1970: efetivos, estruturas e estratégias. In: _______. Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 89-105. 342 _____. Lê syndicalisme dans le mond. Paris: PUF,1993. NOGUEIRA, Claudia Mazzei. O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho e na reprodução: um estudo das trabalhadoras de telemarketing. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2006. 240 P. NOGUEIRA, Arnaldo J. F. Mazzei. A liberdade desfigurada: a trajetória do sindicalismo no setor público brasileiro. São Paulo: Expressão Popular, 2005. NÓVOA, Jorge (Org.). Incontornável Marx. Salvador/São Paulo: EdUFBA/Editora UNESP, 2007. 407 P. OLINDA, Ercília Maria Braga. O conceito de formação integral no projeto formativo moderno – aprendendo com a experiência cearense. In: OLINDA, Ercília M. Braga. Formação humana: liberdade e historicidade. Fortaleza: Editora UFC, 2002. 271 P. (Coleção Diálogos Intempestivos, 16). OLIVEIRA, Carlos Eduardo Barbosa de; MATTOSO, Jorge Eduardo Levi et al. Crise e trabalho no Brasil: Modernidade ou volta ao passado?. São Paulo: Scritta, 1996. 334 P. (Pensieri) OLIVEIRA, Jorge Luís de. Alienação, trabalho e emancipação humana em Marx. Fortaleza: Edições UFC, 2007. (Coleção Diálogos Intempestivos, 47). OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993. OLIVEIRA, Thiago Chagas; FELISMINO, Sandra Cordeiro. Formação política e consciência de classe no jovem Gramsci (1916-1920). In: MENEZES, Ana Maria Dorta; LIMA, Claudia Gonçalves, LIMA, Kátia Regina; (Orgs.) et al. Trabalho, educação, Estado e a crítica marxista. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p. 61-72. PABLO, González Casanova. Globalidade, neoliberalismo e democracia. In: GENTILI, Pablo (Org.) et al. Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 46-62. PASTORE, José A. Flexibilização dos mercados de trabalho e contratação coletiva. São Paulo: LTR Editora Ltda., 1995. PIRES, Márcia Gardênia Lustosa. A educação na sociabilidade do capital: (im)possibilidades para a classe trabalhadora. In: SILVA E SOUZA, Adriana (Org) et al. Trabalho, filosofia e educação no espectro da modernidade tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007. RABELO, Jackline; FELISMINO, Sandra Cordeiro (Orgs.) et al. Trabalho, educação e a crítica marxista. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2006. 385 P. RODRIGUES, Leôncio Martins. Destino do sindicalismo. São Paulo: EdUSP, 2002. 336 P. RODRIGUES, Iram Jácome (Org.). O novo sindicalismo: vinte anos depois. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. 248 P. 343 _______. Sindicalismo e política: a trajetória da CUT. São Paulo: Scritta, 1997. 282 P. SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo. Trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. In: ________. (Orgs.). Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 11-43. SANTOS, Anselmo Luis dos; POCHMANN, Marcio. Custo de trabalho e competitividade internacional. In. ____. Crise e trabalho no Brasil: Modernidade ou volta ao passado?. São Paulo: Scritta, 1996. p. 189-220. SAUL, Ana Maria et al. (Orgs.). A intervenção da CUT nas políticas públicas de geração de trabalho, emprego, renda e educação dos trabalhadores: avaliação, resultados e ampliação de perspectivas. São Paulo: CUT: Unitrabalho, 2003. 240 P. SCHLESENER, Anita Helena. Estado, intelectuais e atividade educativa em alguns escritos de Gramsci. In: MENEZES, Ana Maria Dorta (Org.) et al. Trabalho, educação, Estado e a crítica marxista. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p. 49-59. SOARES, José de Lima. Para onde vai o mundo do trabalho? Crises e perspectivas do movimento sindical. In: _______. A ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e luta de classes. Brasília: Sindicato dos Eletricitários de Brasília, 1996. p 141-169. SOUZA, Nilson Araújo de. A nova ordem econômica mundial internacional. São Paulo: Global, 1987. 144 P. (Coleção Global Universitária). SUCHODOLSKI, Bogdan. Teoria marxista da educação. Lisboa: Editorial Estampa, 1976. v. I, 224 P. ________. Teoria marxista da educação. Lisboa: Editorial Estampa 1976. v. II, 193 P. ________. ________. Lisboa: Editorial Estampa, 1976. v. III, 199 P. TEIXEIRA, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura crítico-comentada de O Capital. São Paulo: Ensaio, 1995. 552 P. _______; FREDERICO, Celso. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008. 198 P. TONET, Ivo. Educação e formação humana. In: JIMENEZ, Susana; OLIVEIRA, Jorge Luís de; SANTOS, Deribaldo. Marxismo, educação e luta de classes. Fortaleza: EdUECE, 2008. p. 83-96. ________. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. TROTSKI, Leon. Escritos sobre sindicato. São Paulo: Kairós Livraria e Editora, 1978. 120 P. TUMOLO, Paulo Sergio. Educação, consciência de classe e o programa da transição socialista. In: ________. Marxismo, educação e luta de classes. Fortaleza: EdUECE, 2008. p. 63-81. 344 TUMOLO, Paulo Sergio. Da contestação à conformação: A formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2002. 296 P. VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 1992. v. 1, 261 P. WACQUANT, Loïc. A penalização da miséria e o avanço do neoliberalismo. In: _______. Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 72-88. WALLERSTEIN, Immanuel. A reestruturação capitalista e o sistema-mundo. In: _______. Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 223-250. DOCUMENTOS: CORREA, Sonia. Evolução das Sociedades. [s.l.: s.n. s.d.]. CUT. Caderno texto base da Direção Nacional da CUT para o 11º CONCUT: Liberdade e Autonomia Sindical, democratizar as relações de trabalho para garantir e ampliar direitos/CUT. São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2012. 88 P. ________. Gestão sindical: tópicos para um debate sobre a administração de sindicatos. ________. Projeto nacional de qualificação profissional da CUT Brasil: curso de formação – dirigentes de base. (Módulo 2). CUT-Brasil. 5º CONCUT – Congresso Nacional da Central Única dos Trabalhadores, Resoluções. 19 a 22 de maio. São Paulo, SP. 1994. OLIVEIRA, Waldemar de. 13ª Plenária da CUT: liberdade e autonomia: por uma nova estrutura sindical. São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2011. 88 P. TESES E DISSERTAÇÕES: OLIVEIRA DO RIO, Cristiane Porfírio de. A política nacional de formação da CUT: análise crítica dos princípios e estratégias da Escola Nordeste, 2003. 130 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2003. _________. O movimento operário e a educação dos trabalhadores na Primeira República: a defesa do conhecimento contra as trevas da ignorância. 2009. 273 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009. 345 PAULA, Francisca Clara de. Educação sindical: uma reflexão a partir da prática educativa da Escola Quilombo dos Palmares – EQUIP, 1995. 114 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graducação em Educação, Universidade Federal do Ceará, 1995. SENA, José Acrísio de Sena. Sindicalismo e educação da classe trabalhadora: a disputa política e o debate das idéias na Central Única dos Trabalhadores (CUT). 2004. 110 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, 2004. PUBLICAÇÕES ON LINE: BOITO JR. Armando. A economia capitalista está em crise e as contradições tendem a se aguçar. In: _________. Brasil de fato. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/content/ “-economia-capitalista-está-em-crise-econtradições-tendem-se-aguçar”>. Acesso em: 10 abr. 2012. COSTA, Edmilson. A crise mundial do capitalismo e a perspectiva dos trabalhadores. Disponível em: <http://resistir.info/crise/a_crise_do_capitalismo.htlm:>. Acesso: em 06 mar. 2011. CUT. CUT chega a 2 mil entidades registradas, mas questiona Ministério do Trabalho. Disponível em: <http:// www.redebrasilatual.com.br/temas/trabalho/2011/02/cut-chega-a-2mil-sindicatos-registrados-no-ministerio-do-trabalho-mas-desconfia-de-criterios;> Acesso em: 14 nov. 2011. ________. XVII Encontro da Política Nacional de Formação – ENAFOR – CUT. Disponível em: <http://cut.org.br/secretarias-nacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr. 2012. ________. Síntese dos principais debates e encaminhamentos do XVII Encontro da PNFCUT (2011). Disponível em: <http://cut.org.br/secretariasnacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr. 2011. ________. Formação – Documentos. Disponível em: <http://cut.org.br/secretariasnacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr. 2011. ________. CUT Nacional – Escolas Sindicais. Disponível http://www.cut.org.br/estrutura/58/escolas-sindicais>. Acesso: 5 abr. 2012. em:< FERNANDES, Vinícius Betsur Alvarenga. Argentina: crise e recuperação. Disponível em: <http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/>. Acesso em: 06 mar. 2011.