COORDENAÇÃO DE ENSINO E PESQUISA, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-DOUTORADO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO RELATÓRIO DE PESQUISA – PÓS-DOUTORAMENTO FEVEREIRO 2011 – FEVEREIRO/MARÇO 2012 Pesquisador – Jeroen Johannes Klink Supervisor responsável - Giuseppe Mario Cocco/Professor Titular UFRJ Título do projeto: Governanças, escalas e o território metropolitano. Novas dinâmicas informacionais, comunicacionais e de inovação. 1 Maio 2012 Regimes, regulação e máquinas urbanas transescalares. Contornos de uma agenda de pesquisa ampliada sobre a metrópole? “ ‘You don’t have to be a postmodernist’, Harvey Molotch (1990: 175) argues, ‘to suspect efforts that cast all cities as uniform in their response to larger economic changes’. Nor, of course, do you have to be an unreformed structuralist to discern intriguing parallels and telling similarities in the response of contemporary cities to wider forces, such as neoliberalism and economic globalization.” (JESSOP; PECK; TICKELL, 1999, p. 141). “ ‘O INQUILINO é para o PROPRIETÁRIO o que o ASSALARIADO é para o CAPITALISTA’. Isso é absolutamente falso.” (MARX; ENGELS, sd, p. 118). 1. Introdução As metrópoles continuam desempenhando um papel central nos debates sobre o desenvolvimento. O discurso mais recente das agências internacionais de fomento representa um caso emblemático. Estas últimas redescobriram as economias urbanas e regionais como espinha dorsal do espaço nacional, a serem conectadas à economia mundial – pelo Estado facilitador – por meio de um sistema de livre comércio e circulação de capital.1 Por exemplo, o Relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial de 2009 constrói um raciocínio de acordo com o qual as economias de aglomeração formam a base de uma trajetória virtuosa de desenvolvimento, na qual o Estado, nas suas múltiplas escalas, apenas interfere para garantir o funcionamento correto dos mercados (via a construção de cadastros e registros de propriedade, o fortalecimento e a flexibilização do mercado de capitais e de crédito etc.), ou para conectar os territórios periféricos às regiões vencedoras na economia mundial (WORLD BANK, 2009). Numa crítica à abordagem deste relatório, Harvey problematiza a “naturalização” do discurso neoclássico sobre a produção de espaços “desiguais e 1 Trata-se de uma redescoberta, pois, já nos anos 1980-1990, várias agências multilateriais e bilateriais produziram diagnósticos sobre o papel das cidades na Economia e na estratégia nacional de desenvolvimento urbano (WORLD BANK, 1991; UNDP, 1991). 2 Maio 2012 combinados” e o fato de esta abordagem dissociar a evolução da metrópole de uma leitura geo-histórica do movimento dinâmico e contraditório do capital na economia mundial. No arcabouço neoclássico, “nunca se aprofunda a ideia de que uma cidade pode se dar bem, enquanto o seu povo vai mal” (HARVEY, 2009, p. 1275). Na visão desse autor, o fato de o referido Relatório nem sequer mencionar as raízes urbano-fundiárias da mais recente crise do subprime de 2008 é apenas uma das várias facetas dessa representação esterilizada da metrópole que marca a nova economia espacial mainstream. Também no Brasil do chamado novo desenvolvimentismo (OLIVA, 2010), o paradoxo das metrópoles continua no centro das discussões (MARICATO, 2011; ROLNIK; KLINK, 2011). Assistimos à retomada de taxas expressivas de crescimento econômico, acompanhadas por avanços referentes ao fortalecimento do arcabouço de regulação dos mercados urbanos, o que se refletiu na aprovação do Estatuto da Cidade, assim como na consagração de um planejamento colaborativo-participativo como norma para nortear a atuação do Estado na (re)produção do espaço. Após um período prolongado de ajustes fiscais, o Estado brasileiro injetou recursos financeiros vultosos destinados às cidades por meio de programas como o Minha Casa, Minha Vida (MCMV) e o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Ao mesmo tempo, os conflitos, historicamente enraizados em torno do ambiente construído e da terra, fizeram com que poucas cidades conseguissem produzir planos diretores participativos compatíveis com a função social da propriedade (SANTOS Jr.; MONTANDON, 2011).2 Guardadas as devidas proporções, referidos debates lembram as discussões dos anos 60 e 70 sobre o papel urbano-metropolitano nas transformações mais amplas que ocorriam no campo da economia e da sociedade. De um lado, havia uma “macroteoria” que interpretava a crise do fordismokeynesianismo e o esvaziamento do Estado nacional nos países centrais (JESSOP, 1995) como oportunidades para deslanchar estratégias de desenvolvimento local endógeno. De acordo, com tal visão, os galpões industriais vazios, as áreas portuárias abandonadas e as macroinfraestruturas obsoletas representariam o 2 Ver também a edição especial do periódico Caderno Metrópoles sobre o direito à cidade na metrópole, a ser publicado em março de 2012. 3 Maio 2012 ponto de partida para inovar com projetos pautados pela competitividade sistêmica, na linha de experiências como a da “Terceira Itália”, do “BadenWürtemberg” na Alemanha e do “Vale de Silício” nos Estados Unidos da América (EUA). De outro lado, encontrávamos um pensamento crítico, que se deparava com dois desafios complementares. O primeiro era romper com a tendência do marxismo clássico de analisar o urbano em termos de um fetiche da teoria burguesa (CASTELLS, 1975) e inserir o tema do espaço numa reflexão atualizada acerca da dinâmica socioespacial e temporal do capitalismo.3 O que estava em jogo nesse caso era complementar o materialismo histórico, que privilegiava uma leitura do conflito capital-trabalho a partir do tempo, com uma dialética socioespacial, e reconhecer, por meio da análise geo-histórica, o papel central do espaço na sobrevivência do próprio capitalismo (LEFEBVRE, 1974; SOJA, 1989). O segundo desafio era problematizar a endogenização das estratégias de desenvolvimento local-regional e a proliferação do urbanismo empreendedorcompetitivo (HARVEY, 1989; HALL, 1995), no sentido de enraizar estas tendências numa leitura mais ampla da desestruturação dos espaços do fordismo, das suas relações socioeconômicas e tecnológicas e formas de produção e circulação de valor. De modo geral, referida reflexão crítica desenvolveu-se a partir de duas tradições complementares, cujas trajetórias, com poucas exceções, não passaram por um processo de fecundação cruzada. Primeiramente, encontramos uma vertente geopolítica e histórica, que priorizou a análise das transformações no sistema de acumulação e no modo de regulação e seus impactos sobre a produção do espaço urbano e regional. Esta leitura de inspiração regulacionista privilegiou as tendências macroestruturais, sem aprofundar a explicação de trajetórias urbano-metropolitanas específicas. Apesar de avanços recentes no sentido de reconhecer as imbricações entre as transformações estruturais e a (re)produção do espaço da metrópole (BRENNER, 2004; FERNANDES; CANO, 2005), desta vertente estruturalista-regulacionista 3 A reflexão clássica de autores como Marx e Ricardo foi influenciada pelo momento histórico da transição do feudalismo para o sistema capitalista, reservando papel marginal para a classe de proprietários de terra. 4 Maio 2012 emergiu uma caracterização do espaço local-metropolitano como receptáculo das forças sociais e econômicas, que não reconhecia complexidades, contingências e aberturas para estratégias locais em cidades-regiões concretas. Uma segunda corrente, impulsionada pelos trabalhos clássicos de Logon e Molotch (1987) sobre as chamadas máquinas urbanas de crescimento nas cidades norte-americanas, privilegiou a análise de coalizações locais de crescimento, que procuravam maximizar o valor de troca da terra urbana via uma série de estratégias de desenvolvimento local (frequentemente em detrimento do valor de uso da terra). Talvez até involuntariamente (JESSOP; PECK; TECKEL, 1999), esta vertente acabou supervalorizando a capacidade de agenciamento nas metrópoles, em detrimento de uma reflexão que privilegiasse as relações imbricadas entre a (re)produção da metrópole e as transformações mais amplas no campo da economia e da sociedade. Neste artigo exploramos a hipótese de que um maior diálogo entre as duas tradições mencionadas acima poderia contribuir com o aprofundamento de uma visão geo-histórica crítica da trajetória das metrópoles no atual cenário da economia mundial e o aperfeiçoamento de um programa de pesquisa pautado pela dialética socioespacial, na linha apontada por autores como Soja, Harvey e Lefebvre. Mais particularmente, argumentamos que há “complementaridades intrigantes” (JESSOP; PECK; TICKEL, 1999, p.147) entre a perspectiva regulacionista, cujo fundamento metodológico é o conflito capital-trabalho e a geração e circulação de valor e a tese das “máquinas urbanas de crescimento”, enraizada no prisma da economia política do ambiente construído, que poderiam servir na construção de uma compreensão aprimorada acerca do papel das metrópoles no atual estágio da globalização financeira. Uma agenda de pesquisa que buscasse os limites e as potencialidades desta aproximação epistemológica não apenas serviria para aprofundar a análise das novas faces de que Maricato (2011) chama de “o nó da terra” na urbanização periférica que marca o caso brasileiro (e de outros países), mas também para aprofundar a análise dos transbordamentos complexos entre os mercados financeiro-imobiliários e os demais circuitos do capital na (re)produção do espaço da metrópole contemporânea, mediados pelo Estado nas suas múltiplas escalas de poder e 5 Maio 2012 facilitados pelas tecnologias de comunicação e informação. Após esta introdução, estruturamos este artigo em quatro seções. Na primeira, problematizamos a narrativa mainstream sobre o desenvolvimento local endógeno, enquanto na seguinte apresentamos uma interpretação da evolução do pensamento crítico sobre o papel da metrópole na geopolítica do capitalismo contemporâneo. Na terceira, com base em alguns fatos estilizados sobre o atual fase do capitalismo mundial, argumentamos em favor de um diálogo mais intenso entre as abordagens regulacionistas e a “economia política do local” para aperfeiçoar a compreensão da (re)produção da metrópole na economia mundial financeirizada. Na conclusão, apresentamos alguns elementos para uma agenda de pesquisa (aplicada) que caminha na direção apontada ao longo deste artigo. 6 Maio 2012 2. Tecnologia, território e trabalho. Três metanarrativas sobre o desenvolvimento local endógeno Nesta seção, esquematizamos três discursos que, por meio de variações ao tema central das economias de aglomeração, fizeram com que uma representação do espaço urbano-regional em termos de plataformas dinâmicas, inseridas na economia internacional, assumisse gradativamente a hegemonia no debate sobre o desenvolvimento ao longo dos anos 70 e 80. Nosso objetivo não será discutir detalhadamente os limites e potencialidades de cada um dos referidos discursos, mas sintetizar o fio condutor das narrativas, incluindo suas omissões e “silêncios”, bem como demonstrar em que pontos ajudaram a “naturalizar” a proliferação de experiências de reestruturação produtivo-urbana na Europa e nos EUA dos anos 70 em diante. Esta síntese também nos ajudará a preparar o terreno para o pensamento crítico, cuja análise mais detalhada será o objeto da terceira seção. A abordagem neoschumpeteriana baseou-se nas ideias desse autor sobre ondas longas, inovação tecnológica e empreendedorismo. Diferente da escola (neo)clássica, cujo raciocínio foi construído em torno da noção central do equilíbrio, motor subjacente ao sistema de acumulação, na visão schumpetariana, seria o desequilíbrio, alimentado pela estratégia do empreendedor de romper e inovar o sistema, para assim gerar e captar sobrelucros temporários. Na fase inicial (FREEMAN; PEREZ, 1988; NELSON; WINTER, 1982), esta abordagem ainda caracterizou-se pela ênfase nas trajetórias e paradigmas tecnológicos e por uma subordinação da chamada esfera socioinstitucional à esfera tecnoeconômica (ELAM, 1994). A partir de contribuições interdisciplinares, este programa ampliou-se com uma agenda de pesquisa em torno das economias urbanas e regionais de aprendizagem e inovação (OECD, 2001), uma aplicação da ideia de sistemas de inovação para o campo urbano-regional. Os autores buscaram distanciar-se de certo determinismo tecnológico e lançaram mão de uma análise mais cuidadosa das interações sociais e dinâmicas territoriais que consubstanciariam o processo de inovação e de aprendizagem. Isso culminou na proliferação de publicações sobre “learning regions” (FLORIDA, 1995), normas extramercantis de coordenação das atividades econômicas e interdependências 7 Maio 2012 tácitas e não-comercializáveis (STORPER, 1997). Também no Brasil, proliferaram-se, dos anos 90 em diante, estudos sobre regiões inovadoras, clusters e sistemas locais produtivos e inovativos (LASTRES; CASSIOLATO, 2005; COSTA, 2007). A obra de autores como Becattini (1979), Piore e Sabel (1984) e Scott (1988) sobre a chamada segunda linha divisória na organização industrial moderna (após a revolução fordista) marcou o ponto de partida para uma abordagem neosmithiana sobre a substituição das grandes plantas industriais integradas por um sistema de especialização flexível, composto por redes de micro e pequenas empresas, articuladas a uma demanda que oscila intensamente em função das preferências de mercado. Valendo-se do teorema de Adam Smith4, no qual o tamanho do mercado molda a ampliação da divisão social de trabalho (e, portanto, o aumento da produtividade), as economias urbanas e regionais flexíveis que emergiam e que podiam ser interpretadas como verdadeiras “comunidades produtivas” imbricadas por processos de subcontratação, apresentariam condições superiores para lidar com os riscos e custos associados às intensas flutuações no perfil e no tamanho do mercado no regime pós-fordista (SABEL et al, 1989). Em relação à abordagem neoschumpeteriana, houve um deslocamento do objeto da análise das questões de viés tecnológico ao tema da construção (social) do mercado como um todo (ELAM, 1994). A partir dos anos 70, a escola neoclássica também redescobriu a dimensão espacial da economia, em geral, e as economias de aglomeração, em particular (MARSHALL, 1920). A retomada foi estimulada pela capacidade de “modelar” mercados não competitivos e cenários tecnológicas de rendimentos crescentes de escala (gerando custos marginais decrescentes), até então considerados obstáculos insuperáveis para a inserção da questão espacial no pensamento econômico mainstream (KRUGMAN, 1996; ROMER, 1986). Na visão de Krugman, esta capacidade foi crucial para avançar na análise dos processos de causação circular e de crescimento cumulativo que caracterizam as dinâmicas territoriais nas 4 Apesar da ênfase comum nas questões relacionadas à divisão social de trabalho, à estrutura de mercado e à configuração das relações de subcontratação, há diferenciações internas na narrativa neosmithiana. Na análise de Scott, por exemplo, inspirada na abordagem dos custos transacionais (o chamado teorema “Coase-WilliamsonScott”), “a herança técnico-profissional e o espirito de comunidade caros aos italianos apagam-se (a metrópole é um imenso mercado de trabalho flexível) para darem lugar aos efeitos de aglomeração, às economias de variedade e à redução dos custos de transação provocados pelo florescimento de empresas complementares na mesma área metropolitana” (BENKO; LIPIETZ ,1994, p. 12). 8 Maio 2012 metrópoles.5 E também permitiu “o pulo do gato” de endogeinizar a explicação para a existência do chamado Distrito Central de Negócios (Central Business District - CBD), uma lacuna grave na primeira geração de modelos da regional science. Pois, na melhor tradição de autores como von Thünen (1826) e Alonso (1964), tais modelos explicavam o uso e a ocupação do solo em cidades como Chicago em base de círculos concêntricos em torno de um distrito central, mas deixando a própria área central como variável exógena.6 No seu Relatório de Desenvolvimento de 2009 o Banco Mundial utiliza as ferramentas da nova economia espacial para construir uma abordagem multiescalar elegante, incorporando como fio condutor o conceito de economia de aglomeração, que se irradia da escala local-regional (criando densidade), para a nacional (rompendo distância) e a internacional (aumentando a divisão social de trabalho).7 As críticas que surgiram às abordagens sintetizadas acima podem ser agrupadas em quatro blocos complementares, o primeiro de caráter empírico e os demais de natureza conceitual. Primeiramente, o estereótipo das economias locais endógenas não correspondeu à trajetória “real” das metrópoles. Várias pesquisas empíricas apontaram a dificuldade de generalizar os distritos industriais marshallianos clássicos, compostos pelas micro e pequenas empresas que internalizaram as redes de subcontratação (MARKUSEN, 1999). Na prática, empresas atuando em estruturas oligopolizadas de mercado (MARTINELLI; SCHOENBERGER, 1994) e utilizando as novas tecnologias de comunicação e informação, pulverizaram as diversas funções empresariais, como a pesquisa e desenvolvimento, o marketing, as finanças e as atividades manufatureiras, entre outros exemplos, para assim 5 O crescimento nas metrópoles assume um caráter circular: determinado estabelecimento localiza-se na metrópole em função do ambiente propício, isto é, pela rede de fornecedores diversificados e pela presença de bacias de trabalho qualificadas, entre outros fatores locacionais. Por sua vez, esta decisão locacional aumenta a atratividade da metrópole para agentes que avaliam a sua estratégia de localização (empresas, mão de obra). 6 “The point is of course, that the von Thünen ring scheme sheds at best a very dim light on the spatial structure for polycentric cities. What we need to understand, first and foremost, is where the competing centers are located – precisely the question that von Thünen-type models avoid answering”. (KRUGMAN, 1996, p. 59) - grifo nosso. 7 O trinômio é baseado nos conceitos de densidade, distância e divisão. Densidade é sinônimo para a presença de economias de aglomeração na escala local-regional, enquanto o conceito distância relaciona-se com a escala nacional, indicando os relacionamentos entre os polos dinâmicos (as regiões vencedoras) e as demais regiões. Por fim, o conceito divisão remete à escala internacional, e refere-se à ampliação da divisão social de trabalho em função do livre comércio e circulação de capital. (WORLD BANK, 2009, p. 33-43). 9 Maio 2012 transformar as metrópoles em peças-chave no tabuleiro da estratégia empresarial na escala mundial (AMIN; MALMBERG, 1994). Além disso, a capacidade localregional de aglutinar valor e inovação não podia ser dissociada de uma dimensão setorial; as redes de cooperação em torno da pesquisa e desenvolvimento em setores como a aeronáutica e a biotecnologia, por exemplo, assumiram uma escala nitidamente global (ZHEGU; NIOSI, 2005). Neste sentido, as próprias pesquisas sobre a geografia das cidades do terciário avançado (SASSEN, 2002) e a das cadeias produtivas (COE et al, 2004) apontaram que os serviços associados às funções como as finanças, a logística e o marketing concentraram-se em um grupo seleto de metrópoles, no topo da hierarquia da rede internacional de cidades. Um segundo grupo de críticas referiu-se à esterilização do conflito capital e trabalho, e, com algumas (poucas) exceções, à ênfase na empresa e no mercado (abstrato) como elemento propulsor da geração e circulação de valor, paradoxalmente, em detrimento de uma análise mais ampla em relação às estruturas socioeconômicas e territoriais que moldaram a dinâmica de inovação e de produção do espaço urbano-regional (GALVÃO; SILVA; COCCO, 2003). Apesar do discurso em torno da centralidade das fontes tácitas e interacionais de inovação e de aprendizagem na construção de economias regionais competitivas, a abordagem neoschumpeteriana também não fez jus às dimensões socioterritoriais da inovação. Acabou, assim, por privilegiar os limites e potencialidades de apropriação destas dimensões do valor (na linguagem ortodoxa rotulada como “capital estrutural” e “capital humano”) pela empresa. A análise neoschumpeteriana da OCDE sobre learning-regions, por exemplo, ilustrou bem o impasse desta ambivalência: Structural capital may also be regarded as human capital that has been appropriated by the firm, translated into routinised forms and thereby controlled by the firm. Of course, it is safer for a firm to have access to structural capital than to rely only on human capital. (OCDE, 2001, p. 14). (Grifo nosso) Tanto na vertente neosmithiana sobre a especialização flexível, quanto na análise neoschumpeteriana referente à economia de inovação e de aprendizagem, emergiu, portanto, um estereótipo apologético “do capitalismo cognitivo-cultural como uma espécie de trajetória superior de desenvolvimento, dissociado das suas 10 Maio 2012 características contraditórias e potencialmente destrutivas na atual fase financeirizada” (KRÄTKE, 2011, p. 23). Esse distanciamento de uma leitura das forças socioespaciais que moldam o processo de inovação culminou na popularização das teses sobre as chamadas classes criativas (FLORIDA, 2004).8 Na visão de Florida, a geração e circulação de valor nas metrópoles devem-se à chamada classe criativa, composta por engenheiros, cientistas, consultores, profissionais liberais e artistas, que não apenas autonomizou-se em relação à dinâmica socioespacial que lhes deu origem (o sistema local de inovação na terminologia neoschumpeteriana), mas, em função da suposta hipermobilidade destes profissionais, também justificaria uma série de políticas locais para garantir sua permanência e/ou atração para a metrópole (KRÄTKE, 2011; PECK, 2005). 9 A terceira crítica disse respeito ao pressuposto de um ambiente construído e um mercado de terras que acompanhassem fluentemente, e sem conflitos, a emergência das economias regionais de aglomeração. Curiosamente, a nova economia espacial seria marcada pela ausência da produção social do espaço, pois, baseada na alocação de uso de solo via sistema de preços – ao modo de Alonso (1964); Muth (1969) e von Thünen (1832) – e aperfeiçoado pela modelagem dos rendimentos crescentes para lançar mão de uma explicação dos espaços metropolitanos policêntricos. Na visão do Harvey (2009), a ausência de uma dimensão imobiliário-fundiária representa também o “calcanhar de Alquiles” do Relatório do Desenvolvimento do Banco Mundial, que desconsidera fricções e conflitos na produção social do espaço urbano-regional. Referido relatório recomenda uma intervenção territorial do Estado que seja “cega” (spatially blind), isto é, que não busque influenciar na produção e organização social do espaço da metrópole (WORLD BANK, 2009, p. 229).10 8 A abordagem das classes criativas de Florida representa uma simplificação em relação aos trabalhos anteriores deste autor e também se diferencia “da linha californiana”, que analisou a economia cultural e criativa sob o prisma da especialização flexível. Veja, por exemplo, Storper (1994) sobre a indústria cinematográfica. 9 Peck (2005) menciona que nos EUA existe um ranking, protagonizado pelo próprio Florida, para medir a qualidade do ambiente urbano para a atração e manutenção da chamada classe criativa. 10 Excetuando as metrópoles já comprometidas nos países com altos níveis de urbanização, quadro que justifica uma política (compensatória) de urbanização de assentamentos precários. A ênfase nas políticas desterritorializadas (spatially blind policies) em países com uma taxa baixa de urbanização implica uma tendência à intervenção reativa, em cidades já comprometidas: “In areas of incipient urbanization, the objective should be to facilitate a natural rural- urban transformation. The core policy instruments are spatially blind institutions that facilitate density in some locations. (...) In areas of intermediate urbanization, the rapid growth of some cities creates congestion. In addition to spatially blind policies to facilitate density, connective policies to tackle congestion and economic distance become necessary. (...) In areas with advanced urbanization, divisions within cities caused by formal settlements and slums and by grime and crime add to challenges of density and distance. In 11 Maio 2012 Por fim, na maior parte das metanarrativas mainstream, o Estado representou uma variável exógena, uma espécie de deus ex-machina que aterrissou no território econômico para equacionar um ou outro problema, tipicamente relacionado à redução das disparidades urbano-regionais ou à montagem de estratégias de competitividade sistêmica (MARTIN; SUNLEY, 2007). Apesar da centralidade do tema, o estudo das transformações na organização e intervenção do Estado sobre a produção do espaço, e seu próprio entrelaçamento com a dinâmica econômica e política, ficaram como elemento residual nas narrativas ortodoxas (KLINK, 2011a). addition to spatially blind and spatially connective policies, spatially focussed policies for addressing intra-city divisions ar enecessary to target the difficulties of slums, crime, and the environment – and to improve livability.” (WORLD BANK, 2009, p. 229) (Grifo nosso). 12 Maio 2012 3. A dialética socioespacial e a metrópole. Uma interpretação da evolução do debate crítico Problematizando os espaços do capital. A abordagem regulacionista O ponto de partida da chamada teoria da regulação, formulada por um grupo de economistas franceses (AGLIETTA, 1982; LIPIETZ, 1991; BOYER, 1990) foi a constatação acerca do dinamismo e da capacidade de reprodução do próprio sistema capitalista. Em uma crítica “às formas mais mecânicas e catastróficas da obra de Marx, os regulacionistas levavam a sério a questão da própria sobrevivência do capitalismo” (ELAM, 1994, p. 56). Ancorada em uma variação da teoria de valor-trabalho, a abordagem regulacionista foi construída em torno do binômio composto pelo chamado regime de acumulação – a forma e a organização da relação salarial e da produção e circulação de valor – e pelo modo de regulação, isto é, o conjunto de normas, convenções, instituições e intervenções sociais, inclusive as do Estado, para dar coerência e reprodutibilidade a este regime. Em relação às teorias mainstream, este arcabouço não apenas abriu a perspectiva para a análise das relações sociais e do conflito capital-trabalho, mas também da forma de atuação do Estado na mediação de crises maiores ou menores11, dimensões relegadas para o domínio do mercado (neosmithiana/neoclássica) ou da tecnologia (neoschumpeteriana) nas narrativas ortodoxas. Vários autores regulacionistas dialogaram com a tese dos espaços localmetropolitanos que emergiriam no regime de acumulação mais flexível (BENKO; LIPIETZ, 1994). Mas a natureza deste programa assumiu maior abertura e indefinição do que a ortodoxia quanto às formas espaciais e sociais concretas e à virtualidade do futuro regime de acumulação e regulação (AMIN, 1994).12 Em um primeiro balanço sobre o pós-fordismo, por exemplo, Esser e Hirsch (1994) ressaltaram o agravamento das contradições socioespaciais nas cidades alemãs. 11 A teoria distingue entre crises menores (ou no regime de acumulação, ou no modo de regulação) e maiores (compostas pela ocorrência simultânea de crises no regime de acumulação e no modo de regulação), estas últimas gerando uma perspectiva concreta de crises sistêmicas (por exemplo, no sistema fordista). 12 “É o que confirma, como macroeconomista, Robert Boyer. Intervindo a montante do debate (“As alternativas ao Fordismo”), o autor põe a questão: “Estará em vias de emergir um novo modelo de desenvolvimento?” E, num estilo perfeitamente acessível, dá o seu diagnóstico: “é possível que sim, em estado embrionário, mas nesse caso há vários, em concorrência uns com uns outros. Seria, pois vão pretender que a forma espacial canónica do pósfordismo seja uma forma urbana(...)”(BENKO; LIPIETZ, 1994, p. 12). 13 Maio 2012 Ao mesmo tempo, autores como Lipietz (1994) e Mayer (1994) argumentaram em prol da possibilidade de uma política local emancipatória nos espaços do fordismo. Boyer (1990) menciona que a teoria da regulação disseminou-se principalmente a partir do debate sobre a reestruturação do fordismo, mas que suas aplicações, baseadas na tensão “criativa” entre acumulação e regulação, transbordam os limites dessa discussão. Abramo (1995), por exemplo, discutiu a utilidade da abordagem regulacionista para mediar entre um marxismo clássico estruturalista, que subordinava o urbano à lógica de reprodução do capital e das suas relações sociais e um approach que buscava uma leitura mais apurada das particularidades históricas e geográficas do fenômeno urbano (ABRAMO, 1995, p. 510). Em uma tentativa de “espacializar” a teoria por meio de conceitos como regulação urbana e regime urbano, este autor discute uma série de hipóteses sobre a trajetória geo-histórica do sistema capitalista – com ênfase no caso norte-americano, desde as cidades operárias do capitalismo concorrencial, ao subúrbio construído via o binômio carro-moradia subsidiada, culminando nas tecnopóles na era pós-(neo)fordista. Outro transbordamento “produtivo” do approach regulacionista ocorreu na discussão sobre as escalas e os regimes de organização e atuação do Estado sobre o espaço, que, de certa forma, ampliou os trabalhos anteriores de Harvey (1989a) sobre as transformações de gerenciamento para empresariamento urbano no capitalismo tardio. Brenner (2004), por exemplo, também influenciado pela tradição lefebvriana, enraizou a reestruturação produtiva e territorial no contexto europeu em uma análise sobre a transformação do que chama de regimes de políticas públicas territoriais desde a década de 70. O argumento é que, a partir desse período, um regime de keynesianismo espacial de organização e intervenção do Estado na produção do espaço evoluiu para um regime competitivo e reescalonado de organização e intervenção territorial do Estado. O keynesianismo espacial concentrou-se no objetivo de redistribuição de ativos, renda e infraestrutura e na manutenção da coesão territorial na escala nacional, coordenada pelo Estado nacional por meio de intervenções e instituições relativamente homogêneas e centralizadas. O regime competitivo, no entanto, representou 14 uma Maio 2012 mudança de abordagem para arranjos institucionais descentralizados, baseados em componentes customizados, com um papel proeminente das estratégias e intervenções locais-regionais de modo a proporcionar competitividade urbano-regional. Ainda de acordo com Brenner, o regime competitivo e reescalonado de organização e intervenção do Estado na produção do espaço aumentou as instabilidades e disparidades inter-regionais nas economias nacionais e na economia espacial europeia, em particular, por meio da proliferação do empreendedorismo competitivo em nível urbano-metropolitano. Também no Brasil, esta perspectiva de regimes desencadeou uma série de estudos referentes à desestruturação do keynesianismo-espacial periférico, em sua versão nacional-desenvolvimentista e na emergência de um neolocalismo competitivo via projetos de planejamento estratégico e de desenvolvimento econômico local, agravando as históricas disparidades intra e interurbanas no espaço nacional brasileiro (FERNANDES, 2001; BRANDÃO, 2003). A teoria da regulação, e suas diversas aplicações para o campo de estudos urbanos e regionais, não ficaram sem críticas.13 Apesar da abertura em relação ao determinismo tecnoeconômico que marcava a ortodoxia, a teoria sofreu críticas em função do seu funcionalismo, deixando pouca margem para uma leitura mais contestada e dialética do processo histórico (AMIN, 1994, p. 11). A visão de Brenner sobre o reescalonamento e os regimes competitivos, mencionada acima, é emblemática. Autores como Brown e Purcell (2004), por exemplo, argumentaram que não há nada inerente e fixo ao conceito de escala, que é politicamente contestada e construída ao longo do tempo pelos agentes que buscam alcançar seus interesses, gerando uma perspectiva mais complexa “de política de escalas e escalas de política” (VAINER, 2002). Esta permanente tensão no arcabouço estruturalista-regulacionista entre “macronecessidades e microdiversidades” (JESSOP; PECK; TICKEL, 1999, p. 149) também se deveu ao fato deste se basear numa teoria de valor-trabalho – centrada na relação salarial – (BOYER, 1990) o que implicou em um foco menor nos possíveis conflitos entre as diversas frações do capital (produtivo, imobiliáriofinanceiro, rentista) e os entrelaçamentos destes com as estratégias locais de desenvolvimento. Portanto, as abordagens regulacionistas conseguiram dar um 13 Para uma crítica das bases epistemológicas da teoria da regulação ver também o prefácio à edição brasileira do livro de Lipietz, elaborado por Francisco de Oliveira (LIPIETZ, 1991, p. 7-16). 15 Maio 2012 macrossentido crítico à emergência de economias urbanas e regionais flexíveis e inovadoras, moldadas pela intervenção espacial do Estado que incentivou a inserção competitiva de cidades e metrópoles na economia internacional (BRENNER, 2004). Ao mesmo tempo, referido programa de pesquisa não lançou muita luz sobre a formação, consolidação e estabilidade das alianças regionais de classes, as forças que consubstanciaram a sua coerência regional estruturada (HARVEY, 2005, p. 151-152) e a disputa de hegemonia sobre a direção de estratégias locais específicas. Conforme argumenta Krätke (2011), a reestruturação produtiva, a emergência de novas tecnologias de comunicação e de informação e as transformações na regulação não sobredeterminam a produção de espaço em cidades específicas, tampouco explicam trajetórias urbanas e alianças regionais diferenciadas, desde as metrópoles com uma presença significativa de serviços de “comando e controle” (inclusive as finanças), as que captam poder aquisitivo externo (via eventos, turismo e grandes projetos urbanos etc.) ou recursos junto às escalas superiores de governo, até as cidades de inovação e de aprendizagem. Metrópoles, máquinas urbanas de crescimento e a economia política do local Uma segunda linha de trabalho consolidou-se em torno da tese da chamada “máquina urbana de crescimento”. A obra pioneira de Logon e Molotch (1987) delineou os principais pressupostos conceituais e o objeto desse programa de pesquisa, cuja análise iria contrapor-se às tradições deterministas no campo dos estudos urbanos, tanto as da ecologia humana e suas vertentes neoclássicas – naturalizando a estruturação do espaço a partir do sistema dos preços – como as do marxismo clássico, com seu enfoque abstrato-estruturalista, que sobredeterminava o espaço local a partir das relações sociais. Em relação a esta última abordagem, a teoria das máquinas agregou uma dimensão de agenciamento ao campo dos estudos urbanos no sentido de privilegiar a produção e transformação social do espaço pelo homem. O fio condutor da abordagem do realismo crítico de Logon e Molotch foi a existência de coalizações locais nas cidades – compostas por empresas enraizadas no território local, governos locais e políticos, (filiais de) bancos, jornais, 16 Maio 2012 autarquias e empresas de infraestrutura, auxiliados por agentes como sindicatos de trabalhadores, universidades, museus, clubes esportivos e filiais de grandes empresas (multinacionais), cujo objetivo principal seria aumentar o crescimento da economia local, para, assim, maximizar o valor de troca da terra urbana. O conflito principal, e força motriz da dinâmica local, originou-se na contradição entre o valor de troca da terra, cuja maximização seria estratégia consensual da coalização local (as chamadas máquinas urbanas de crescimento)14 e o valor de uso da terra, cuja preservação seria objetivo central dos moradores e dos movimentos sociais. O empreendedor imobiliário – o chamado especulador estrutural (LOGON; MOLOTCH, 1987, p. 30) – desempenharia um papel central no sentido não apenas de projetar rendas imobiliárias, mas também de interferir na própria trajetória urbana e na produção do espaço, para, desse modo, gerar e captar rendas fundiárias diferenciadas, associadas às mudanças no ambiente construído. As coalizões locais e as máquinas urbanas utilizar-se-iam de constructos ideológicos, consolidando, assim, uma representação hegemônica do espaço local em termos do que os autores chamaram de “desenvolvimento isento de valores” (value free development), indicando que o desenvolvimento, interpretado em termos de crescimento econômico local e intensificação do solo urbano, beneficiaria a cidade como um todo. A história urbana dos EUA estaria repleta de exemplos de máquinas urbanas que moldaram e influenciaram o crescimento das cidades (urban boosters) (COX, 1995). 15 A teoria das máquinas urbanas originou-se e disseminou-se no debate sobre as cidades no cenário norte-americano, marcado pela fragmentação macroinstitucional e pelo alto grau de descentralização para a escala local – incluindo atribuições como o desenvolvimento urbano e o planejamento do uso e da ocupação de solo, com uma presença significativa do setor privado na 14 Na visão de Logon e Molotch, a teoria das máquinas apresenta uma descrição melhor da política de desenvolvimento local norte-americana que a teoria das elites pluralistas e o marxismo clássico. O pluralismo privilegiou o tema de “quem governa”, mas distanciou-se da questão mais relevante, isto é, “governar para o que?”. Portanto, não reconheceu o fato de que, apesar dos frequentes desencontros entre as facções da elite local no que se refere a temas públicos, estas últimas sempre se reuniriam em torno de uma representação do espaço pautado pelo tema central de crescimento: “The issues that reach the public agenda (and are therefore avaliable for pluralists ‘ investigations) do so precisely because they are matters on which elites have, in effect, agreed to disagree. Only under rather extraordinary circumstances is this consensus endangered” (LOGON; MOLOTCH, 1987, p. 51). 15 Nas regiões menos favorecidas do Centro-Oeste, e da Costa Oeste, tratava-se de mobilizar apoio federal em termos de recursos financeiros e infraestrutura para desenvolver as cidades. No caso de Los Angeles, uma cidade com escassez de água, um porto deficitário e fraca acessibilidade, o papel dos empreendedores imobiliários em trazer a rede ferroviária e a água foi fundamental (LOGON; MOLOTCH, 1987, p. 55). 17 Maio 2012 produção do espaço urbano (diretamente, mas também via financiamentos de campanhas eleitorais). Talvez pela semelhança com o quadro das cidades norte-americanas, em geral, e considerando a efervescência do neolocalismo e a alavanca dos agentes privados sobre o mercado do ambiente construído, em particular, a teoria “viajou” com certa facilidade para o cenário brasileiro. Isso culminou, particularmente a partir de meados dos anos 90, na proliferação de estudos sobre o empresariamento urbano a partir de projetos estratégico-imobiliários, cidades globais (imaginárias) e coalizões locais de patriotismo urbano (FIX, 2007; ARANTES; MARICATO; VAINER, 2000), sempre apontando um conflito básico em torno da mercantilização das cidades e da maximização do valor de troca da terra, em detrimento à função social da cidade e da terra. A teoria das máquinas urbanas não ficou sem questionamentos (JONAS; WILSON, 1999). Na formulação inicial de Logon e Molotch, que combateram explicações mais estruturalistas, a abordagem estava, mesmo assim, relativamente alinhada com uma interpretação mais abstrata sobre o funcionamento do capitalismo, em geral, e o caráter fictício da terra, em particular. Entretanto, Jessop, Peck e Tickel (1999, p. 143-144) argumentaram que, nos trabalhos posteriores, o approach acabou: (...) privilegiando o papel da política local e do agenciamento pelas elites locais. A metodologia bottom-up tende a atribuir uma capacidade explicativa causal às redes políticas locais, e por isso sugere, talvez de forma involuntária, que variações espaciais nas riquezas urbanas se relacionam com a distribuição geográfica de lideranças carismáticas, ou a capacidade de criar redes urbanas funcionando com efetividade. Desse modo, a teoria das máquinas teria privilegiado a leitura das dinâmicas urbanas a partir do agenciamento local, distanciando-se de uma compreensão acerca dos entrelaçamentos entre as trajetórias locais e as estruturas sociais. O referido distanciamento teria gerado um custo de oportunidade. Pois, as transformações multifacetadas (no campo da economia, da tecnologia e da cultura, entre outros) e a globalização financeira, que se intensificaram a partir dos anos 80, fizeram com que a abordagem, em termos de agentes locais e coalizões, enraizados no espaço local, estivesse ameaçada de virar anacrônica. A 18 Maio 2012 proliferação de estratégias multiescalares gerou um cenário local mais complexo em comparação ao circuito urbano-econômico fechado que marcava o fordismo, inclusive aumentando o desafio de criar e manter a coesão local das máquinas urbanas de crescimento.16 Em uma análise de Los Angeles no período pós-1985, Purcell (2000, p. 89-91), por exemplo, argumentou que a globalização da economia dificultou a manutenção da coesão interna das coalizões locais prócrescimento nesta cidade. Outros autores alertaram para o fato de que uma estratégia de crescimento pautada em torno do ambiente construído era importante, mas não representaria a única tática para garantir a valorização e circulação do capital, em geral, e do imobiliário, em especial. Krätke (2011), com base em Harvey (2005), ressaltou que a concorrência intercapitalista na escala mundial implicou na moldagem de espaços locais e regionais com coerência estruturada, mas que o formato destas estratégias locais não estava prescrito no espaço; dependendo do entrelaçamento entre dinâmicas locais e fatores estruturais, este poderia assumir faces diferenciadas (cidades criativas e inovadoras, cidades do comando e controle, cidades do entretenimento etc.). Na próxima seção, argumentamos que uma fecundação cruzada das tradições mencionadas acima poderia contribuir para uma compreensão mais apurada dos entrelaçamentos entre a (re)produção do espaço da metrópole e a geopolítica do capitalismo global. 4. Acumulação, regulação e (re)produção social das máquinas urbanas. Por uma agenda de pesquisa ampliada? 17 16 Logon e Molotch (1987, p. 220) reconheceram a importância de incorporar o efeito da globalização e das estratégias transescalares na teoria das máquinas. A proliferação de filiais de empresas multinacionais reduziria o multiplicador de renda e emprego associado à expansão da economia local, aumentando os custos da construção de consensos locais em torno de crescimento. 17 Esta seção beneficiou-se das discussões que ocorreram durante o III Seminário Internacional sobre Capitalismo Cognitivo. “Revolução 2.0: Da crise do capitalismo global à constituição do comum”, organizado no período de 24 a 26 de agosto de 2011 no Rio de Janeiro pelo Laboratório Território e Comunicação (LABtec- PPGCO/UFRJ), pelo Laboratório Interdisciplinar sobre informação e Conhecimento (Liinc-IBICT-UFRJ), pelo Programa de PósGraduação em Ciência da Informação (PPGCI-IBICT-UFRJ) e pela Rede Universidade Nômade. 19 Maio 2012 “O que acontece com a política urbana quando as principais forças econômicas são orientadas para o mercado mundial? (SASSEN, 1991). É uma pergunta interessante, mas que ela em nenhuma ocasião chega a aprofundar” (PURCELL, 2000, p. 89). O quadro de “encontros e desencontros” entre as duas grandes narrativas críticas que discutimos anteriormente, uma baseada no eixo da macronecessidade, outra na microdiversidade, ainda caracteriza o pensamento crítico sobre a geohistória das metrópoles. O objetivo aqui não será providenciar ajustes teóricos rápidos para este impasse, mas sim sugerir elementos de complementaridade entre estes dois programas que evoluíram de forma relativamente desarticulada. Geramos a hipótese de que uma maior espacialização da agenda regulacionista permitiria fortalecer o approach da economia política do desenvolvimento local. Em seguida, discutiremos duas possibilidades de um maior entrelaçamento entre estas agendas, a primeira relacionada ao regime de acumulação, a outra referente ao modo de regulação. Acumulação financeira e a reestruturação das máquinas urbanas O primeiro exemplo refere-se às relações imbricadas entre a financeirização da economia e das políticas públicas e a produção das metrópoles. Não se trata aqui de retomar a abundante literatura acerca da implosão do sistema de coordenação monetária internacional de Bretton Woods nos anos 70 pelos EUA e da (re)emergência das finanças globais, orquestradas a partir das políticas de desregulamentação e de liberalização dos mercados de crédito, de capitais e de câmbio pelos Estados Nacionais, coordenadas pelos EUA (HELLEINER, 1994). O que cabe destacar desta literatura de inspiração histórico-regulacionista é que a financeirização e a crescente interdependência entre os mercados imobiliário e financeiro18 permitiram uma renovação da clássica “fuga para frente” do capital, a partir da penetração das relações de débito e crédito na economia e sociedade, em geral, e na produção e reprodução das cidades (e da própria vida), em particular. A financeirização do circuito imobiliário e a ampliação do volume de 18 De certa forma, estes entrelaçamentos fizeram com que a separação de Harvey (1989b) entre os circuitos primário (o capital produtivo) e secundário (o capital imobiliário e o ambiente construído) virasse artificial. 20 Maio 2012 crédito (subsidiado) para a compra da casa própria – ambas patrocinadas pelo Estado – permitiram, ao mesmo tempo, conter o crescimento dos salários, sem brecar a demanda agregada macroeconômica, condição sine qua non para a manutenção da taxa de rentabilidade no sistema de acumulação. Em vários países, esta estratégia também consolidou uma “sociedade de proprietários”, cujos “sócios” podiam compartilhar dos benefícios associados ao crescimento imobiliário19, via engenharia financeira que proporcionou o surgimento de novos instrumentos como as hipotecas flexíveis e as invertidas. O caso do “arranjo espacial” espanhol pós-Franco, cuja bolha imobiliária estourou em 2007-2008, foi um exemplo emblemático desta trajetória. Na era Franco, a ideologia da casa própria e a política desenvolvimentista de construção de moradias públicas e, posteriormente, de subvenção da construção pelo mercado, já haviam desempenhado papel importante como amortecedor dos conflitos sociais no processo rápido de urbanização espanhola no período de 1950 a 1970 e preparado o terreno para o que viria a ser um ciclo econômicoimobiliário virtuoso no período de 1995 a 2007. Como analisado por Hernández e López (2010), o que formou a base desta trajetória no período de 1995 a 2007 foi a articulação estreita, já iniciada nos anos 80, entre a política habitacional, financeira e fundiária, com forte participação (transescalar) do Estado via a (des)regulação e o financiamento público. Alinhada à dinâmica internacional dos mercados subprime (GOTHAM, 2009), a “modernização” e financeirização do sistema habitacional espanhol, coordenadas pelo Estado Nacional por meio de medidas como a securitização das hipotecas, a criação e ampliação dos mercados secundários e a conexão com as praças financeiras internacionais proporcionaram maior liquidez, diluição dos riscos e aumento de escala na estrutura de provisão habitacional, elementos estratégicos para viabilizar a inserção definitiva do mercado do ambiente construído espanhol no circuito financeiro internacional. Hernández e López (2010), num démarche regulacionista, rotulam este cenário, ancorado num espiral de desregulação 19 As hipotecas flexíveis (os chamados Home Equity Loans) são lastreadas ao crescimento do valor da garantia (isto é, o valor da casa). O crescimento do valor da casa implica na possibilidade de usar a hipoteca para comprar bens de consumo não-duráveis. Referido instrumento é amplamente utilizado em países com uma maior penetração do capital financeiro-imobiliário na economia, como os EUA, a Inglaterra e a Espanha. Hipotecas invertidas permitem que o mutuário receba um empréstimo de acordo com o valor das prestações já quitadas. Nos países anglo-saxônicos, referido instrumento proliferou-se na faixa etária dos aposentados (o chamado terceiro circuito de Harvey [2005]). 21 Maio 2012 financeiro-imobiliária, juros baixos, créditos fartos e aumentos sistêmicos de preços, uma espécie de keynesianismo de preços de ativos, considerando a retroalimentação entre o aumento dos preços imobiliários, o efeito positivo sobre a riqueza e a renda dos proprietários e, subsequentemente, a demanda agregada das famílias. Entretanto, a “macronecessidade” da financeirização da economia e da política na Espanha traduziu-se numa microdiversidade de máquinas urbanas de crescimento. Pois, conforme observam Hernández e López (2010, p. 267-315), a estrutura fundiária pulverizada de muitas cidades espanholas criou um conflito entre o pequeno proprietário de terra agrário-urbano, figura rentista ricardiana enraizada na comunidade local, e o promotor imobiliário – o especulador estrutural à Logon e Molotch, mas agora inserido nas dinâmicas informacionaiscomunicacionais e imobiliário-financeiras em escala nacional-internacional, que visava a transformação do espaço em grande escala. Cabia, no caso espanhol, ao Estado, à Comunidade Autônoma (esfera provincial, responsável pela legislação urbanística e pela aprovação de planos locais) e ao município (responsável pela elaboração dos planos locais), um papel central na mediação de tais conflitos entre as duas frações do capital. A Comunidade Autônoma de Valência, por exemplo, objetivando reduzir o preço da terra por meio do aumento da oferta, lançou mão, no início dos anos 90, de uma legislação considerada progressista, que limitou a capacidade de apropriação de rendas especulativas, pelo proprietário de terra, em benefício da captação de rendas imobiliárias associadas à utilização da terra através de projetos de habitação, infraestrutura e equipamento público. De certa forma, com esta legislação, o Estado consolidou um papel hegemônico para o promotor imobiliário de grande porte, ligado ao circuito imobiliário-financeiro globalizado, na transformação desenvolvimentista do espaço urbano-regional. Ao contrário da expectativa inicial, os preços imobiliários no período 1995-2007 subiram consistentemente.20 Ao mesmo tempo, Hernández e López (2010, p. 311-312) relatam experiências 20 E isso não era tão surpreendente assim, considerando o cenário de preços imobiliários locais ancorados ao ambiente internacional financeirizado, com forte expectativa de alta nos preços. Apenas um arcabouço teórico neoclássico mais rudimentar poderia alimentar uma expectativa de redução de preços a partir da ampliação da oferta de terra urbanizada. 22 Maio 2012 nas quais as Comunidades Autônomas, influenciadas pela configuração do bloco hegemônico local, moveram o pêndulo na direção dos proprietários de terra, favorecendo arranjos mais pulverizados e localistas de produção de espaço, alinhados à análise inicial de máquinas urbanas de crescimento. O caso de Madri talvez tenha sido o exemplo mais complexo e acabado de uma máquina urbana financeirizada. À primeira vista, a legislação da Comunidade Autônoma, que favoreceu os proprietários de terra (e não os promotoresfinancistas), pareceu contraditória com a natureza cosmopolita e financeira da metrópole de Madri, marcada pela presença significativa de um setor financeiro relativamente moderno (OCED, 2007). Entretanto, as aparências enganam; a maioria das empresas (produtivas-financeiras-imobiliárias) comprou lotes na periferia na década de 50, o que contribuiu para quase eliminar os conflitos entre as diversas frações do capital. Hernández e López (2010, p. 313) sintetizam o papel da máquina urbana de Madri da seguinte forma: En realidade, se ha tratado de crear un modelo más “acabado” de agente imobiliário: una síntese que pone el espacio urbano a los pies de la nueva oligarquia, al tiempo que reúne de forma perfecta términos que parecian en principio contradictorios: proprietário e promotor, local y global, agente econômico e politico, rentista y desarrolista. Se a evolução geo-histórica mais recente das “máquinas urbanas” espanholas deixa menos margem de dúvida quanto ao caráter imobiliário-financeiro da sua expansão (as dúvidas remanescentes referem-se mais ao ritmo e à distribuição dos benefícios deste crescimento entre as frações do capital que compõem a máquina), a exploração do cenário brasileiro abre uma perspectiva mais complexa. De um lado, um conjunto de estudos mais recentes aponta a gradativa inserção brasileira no circuito imobiliário-financeiro internacional, iniciado a partir dos anos 90 por meio da estabilização da inflação, do fortalecimento do arcabouço institucional dos mercados financeiros e creditícios, e da introdução de alguns instrumentos da engenharia financeiro-imobiliária já conhecidos nos circuitos internacionais (SHIMBO, 2010; ROYER, 2009).21 No período pós-2006, marcado pela retomada de crescimento econômico e pela expansão dos financiamentos 21 Esta representa o que Shimbo (2010) chama de fase da aproximação truncada entre o circuito financeiro (internacional) e imobiliário no Brasil, num cenário de baixo crescimento econômico, de incertezas acerca da consistência e sustentabilidade do plano de estabilização macroeconômica do Real e de pouca familiaridade com as novas engenharias financeiras. 23 Maio 2012 habitacionais-urbanos, esta tendência intensifica-se, levando alguns autores a gerar a hipótese da financeirização da política urbana e habitacional, de acordo com a qual o Estado – via desregulação e financiamentos urbano-habitacionais – delega a (re)produção do espaço para o setor privado. Análises empíricas recentes apontam que o preço da terra vem aumentando sistematicamente (SÍGILO, 2011), apesar do aumento expressivo da produção de “habitação de interesse social de mercado” (SHIMBO, 2010). De outro lado, referida macrotendência à financeirização da política urbanahabitacional e seus impactos contraditórios sobre a produção do espaço urbano e metropolitano, devem ser calibrados à luz dos avanços alcançados, por mais frágeis que fossem, a partir da articulação e aprovação do Estatuto da Cidade e da criação de um conjunto de mecanismos de democratização da gestão urbana (SANTOS Jr.; MONTANDON, 2011). Longe de pretender aqui representar uma visão estereotipada acerca da capacidade transformadora de um planejamento local do tipo participativo-colaborador em torno dos planos diretores participativos (KLINK; DENALDI, 2011b; HEALEY, 1997), dissociada das relações de poder e da construção política e contestada da escala local, cabe, ao mesmo tempo, destacar o risco do extremo contrário, no sentido de caracterizar o espaço local como mero receptáculo das forças mais amplas da globalização financeira. Isso porque, os obstáculos enfrentados na elaboração e aprovação de Planos Diretores Participativos, que buscam a função social da cidade, podem abrir perspectivas para a construção de outros espaços de representação que facilitem a construção de “planejamentos subversivos” e de contestações da representação hegemônica do espaço (RANDOLPH, 2007). Regulação, economia política das escalas e as escalas da economia política. A agenda regulacionista avançou na reflexão sobre regimes neolocalistas e competitivos e na proliferação de disputas neo-hobbesianas entre os lugares (BRENNER, 2004). Como vimos, referida perspectiva apresenta fragilidades, tendo em vista que incorporou uma visão relativamente estática das escalas e deixou de lançar luz sobre a estratégia transescalar dos agentes em busca de seus interesses. 24 Maio 2012 Reside aqui uma perspectiva de construir um programa de pesquisa que estabeleça um diálogo maior entre as teses sobre a reestruturação do modo de regulação e a (re)produção de máquinas urbanas transescalares. Vejamos algumas implicações desta agenda ampliada. Primeiramente, em países como Brasil, as escalas supralocais permanecem estratégicas na produção de máquinas (urbanas e regionais) de crescimento e na reprodução de contradições no espaço urbano e regional. Esta evidência torna mais problemática a tese, particularmente disseminada no debate Europeu, sobre a transformação de um keynesianismo-espacial (voltado para a manutenção de uma coesão espacial nacional), rumo a um neolocalismo competitivo. No caso brasileiro, esta transformação é relativa. Durante o keynesianismoespacial “periférico” do regime militar, a escala nacional representava uma arena privilegiada para o capital multinacional e o Estado construir polos regionais, intensivos na utilização de recursos naturais e energéticos, diretamente articulados com a economia internacional (BECKER; EGLER, 1996). O discurso para justificar referidas iniciativas baseava-se no conceito dos polos de crescimento perrouvianos que, na prática, não geraram muita “irradiação” de crescimento para o entorno, mas transformaram-se em verdadeiros arquipélagos marcados pelo passivo ambiental (MONTEIRO, 2005). Guardadas as devidas proporções, apesar dos avanços macroinstitucionais que ocorreram nas últimas duas décadas (democratização, descentralização, fortalecimento das instituições de planejamento), a escala nacional continua desempenhando papel estratégico na estruturação de economias metropolitanas e regionais competitivas, particularmente em setores como mineração, siderúrgica e agronegócios. Em uma avaliação do PAC no Estado do Pará, por exemplo, Leitão (2009) argumenta que o Plano reproduz contradições de abordagens anteriores (tanto a do nacional-desenvolvimento autoritário quanto a do planejamento via os eixos nacionais competitivos dos anos 90), pois, seu fio condutor é a produção de espaços urbanos e regionais competitivos, articulados à economia internacional por meio de macroinvestimentos em infraestrutura logística e energética, em detrimento de uma estratégia pautada socioambientais que marcam a região. 25 Maio 2012 pela recuperação dos atrasos Autores como Cocco (2001) e Gusmão (2010) mostram que, no caso da Grande Rio de Janeiro, a ausência de mecanismos institucionais-financeiros para a coordenação do planejamento e da gestão transforaram a escala metropolitana em uma arena privilegiada, com participação ativa dos governos federal e estadual e as grandes empresas nacionais e multinacionais, para garantir a competitividade sistêmica brasileira em setores intensivos em recursos naturais e energéticos. Como em tantas outras áreas metropolitanas brasileiras, os macroinvestimentos públicos e privados desencadeados pela máquina transescalar de crescimento e pelo vácuo institucional metropolitano, intensificaram as contradições sociais e ambientais na produção do espaço urbano e regional. Na mesma linha, no ambiente do federalismo competitivo que marcava o cenário institucional brasileiro dos anos 90, os governos estaduais frequentemente protagonizaram estratégias de competitividade sistêmica. Por exemplo, Klink e Denaldi (2011a) discutem como a máquina curitibana de crescimento, sob a liderança carismática do então governador (e ex-prefeito) Jaime Lerner, transbordou para a escala metropolitana por meio de uma política agressiva de atração de indústrias automotivas, intensificando as contradições socioespaciais e ambientais na chamada “capital ecológica do mundo”. Em segundo lugar, a escala local é arena de disputas entre os agentes sobre a hegemonia da política urbana, e, enquanto é moldada pelas relações sociais, ao mesmo tempo influencia as estratégias (transescalares) de ampliação e circulação do capital. Ao contrário do que nos levam a crer as múltiplas teses sobre as “cidades criativas-inovadoras”, “as cidades (semi)globais” e “as cidades do comando e controle”, o resultado destes embates não está prescrito no espaço local e regional em função de uma sobredeterminação a partir das instâncias técnica e/ou socioeconômica (KRÄTKE, 2011). Constitui-se aqui uma agenda de pesquisa promissora sobre as relações imbricadas entre a reestruturação produtivo-regulatória, de um lado, e, de outro, a (re)produção dinâmica e contestada da escala local, alinhada com uma concepção de arranjos e alianças regionais com coerência estruturada. Klink (2011b), por exemplo, analisa que, no caso específico de Santo André (Grande ABC), a estratégia local e o planejamento estratégico (através do chamado Projeto Eixo Tamanduateí) não representaram uma “aterrissagem 26 Maio 2012 mecânica” de um empresariamento urbano, mas foram moldados pelas disputas contínuas entre movimentos sociais, trabalhadores, frações do capital e governo local pela hegemonia sobre a política urbana. 22 A transformação rumo a economias urbanas e regionais de inovação e aprendizagem, ressaltada na literatura neoschumpeteriana, representa outro campo de disputas transescalares na produção da escala local. Donald (2006, p. 10), baseado em pesquisas para as cidades de Toronto e Boston, argumenta que estas se transformariam em verdadeiras “máquinas urbanas de ideias”, com um papel não apenas auxiliar (conforme as formulações iniciais da tese da máquina urbana), mas também central para as universidades e os grandes laboratórios de pesquisa (os chamados Eds e Meds) na construção de coalizões locais e extralocais (estas últimas assumindo papel estratégico em função da centralização das funções de pesquisa e desenvolvimento nos grandes laboratórios de pesquisa nos países centrais). O referido autor ainda menciona que a ampliação da agenda de crescimento com o tema de inovação e criatividade não eliminou os conflitos em torno do ambiente construído. Após vencer uma concorrência nacional que mobilizou a academia e o setor de biotecnologia, historicamente muito presente na cidade, a Universidade de Boston ganhou um contrato de US$ 1,6 bilhão para viabilizar experimentos com germes como Antrax e Ebola. A Universidade propôs construir o laboratório numa das comunidades mais carentes da cidade, gerando riscos para os 25mil moradores que moram num raio de menos de um quilômetro do local proposto. 22 27 Para uma leitura semelhante sobre o caso brasileiro, ver Fernandes e Cano (2005). Maio 2012 5. Conclusão Após esquematizar as narrativas mainstream sobre o desenvolvimento local endógeno, argumentamos em favor de um programa de pesquisa crítica que pudesse entrelaçar o realismo crítico das “máquinas urbanas transescalares de crescimento” e a abordagem regulacionista na busca de maior compreensão geohistórica acerca da (re)produção do espaço da metrópole no atual estágio do capitalismo internacional. Um programa com este perfil contribuiria para a análise das tendências macroestruturais no regime de acumulação (financeirização, inovação e informação, especialização flexível etc.) e no modo de regulação (reescalonamento do Estado, políticas de fomento e indução às economias locais e regionais competitivas etc.), sem, no entanto, cair numa armadilha estruturalista, de acordo com a qual o espaço da metrópole seria sobredeterminado pelas instâncias econômicas e políticas. Não pretendendo apresentar um arcabouço teórico alternativo, ilustramos o potencial desse entrelaçamento das abordagens com dois exemplos, ambos centrados nas relações imbricadas entre processos de reestruturação do regime de acumulação e do modo de regulação (no caso, a financeirização e a emergência de regimes mais competitivos de organização e intervenção do Estado), de um lado, e a (re)produção (contestada) de escalas e espaços (incluindo os locais), de outro. Pesquisas mais detalhadas, nacionais e internacionais, poderiam verificar a robustez de determinadas hipóteses estruturalistas-regulacionistas, assim como sua imbricação com a produção social de espaços urbano-metropolitanos específicos. Por fim, parafraseando Flávio Villaça no prefácio do livro de Mariana Fix (2007, p. 7-11), uma agenda de investigação ambiciosa, baseada em premissas amplas, mas ancorada na conceituação da produção social do espaço, não apenas serviria para superar “o cansaço intelectual” e a tendência de apenas descrever, ao invés de analisar as grandes manifestações do capitalismo (uma vez que este sistema seria eterno), mas geraria também implicações para uma práxis transformadora nas metrópoles. Neste sentido, são inegáveis os desafios associados à montagem de um projeto alternativo, que não apenas passaria pela articulação de escalas políticas, circuitos econômicos (primário, secundário, terciário etc.) e de tempo (pois, no capitalismo de débito e crédito, a renda 28 Maio 2012 associada ao trabalho futuro já foi hipotecada), mas também pela elaboração de estratégias discursivas e práticas espaciais contra-hegemônicas em tempos de globalização neoliberal. 29 Maio 2012 6. Referências ABRAM, P. A Regulação urbana e o regime urbano: a estrutura urbana, sua reprodutibilidade e o capital. Ensaios FEE, v. 16, n. 2, p. 510-555, 1995. AGLIETTA, M. Régulation et crise du capitalism. Paris: Calmann_Lévy, 2. ed., 1982. ALONSO, W. Location and Land use. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1964. AMIN, A.; MALMBERG, A. “Competing structural and institutional influences on the Geography of Production in Europe”. In AMIN, A. (Org.). Post-fordism: a reader. 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