O Cálculo do Ponto de Equilíbrio Econômico como Ferramenta de Planejamento e Controle Financeiro em Organizações de Microcrédito: um Estudo de Caso na CrescerCrédito Solidário Autoria: Murilo Carneiro, Alberto Borges Matias, Silvia Helena Carvalho Ramos Valladão de Camargo, Vanessa Bernardi Ortolan Resumo: O trabalho apresenta a relevância das operações de microcrédito para o desenvolvimento econômico e redução do desemprego, colocando as OSCIPs, organizações sem fins lucrativos, como agentes principais na concessão deste tipo de empréstimo. No Brasil, tais organizações vêm enfrentando vários desafios para se consolidarem no mercado, dentre eles a necessidade de atingir a auto-sustentação financeira. Através de um estudo de caso, elaborado em uma dessas organizações, desenvolveu-se um modelo para o cálculo de seu ponto de equilíbrio, levando-se em conta as peculiaridades de suas receitas e gastos. O desenvolvimento de tal modelo demonstra a viabilidade e as vantagens deste cálculo para quantificar o montante de receitas necessário para que se cubram os gastos totais de tal organização, levantando-se, dessa forma, o nível de atividade necessário para que sua autosustentação seja atingida. Além disso, defende-se que o cálculo do ponto de equilíbrio facilitará o desenvolvimento de um planejamento e controle financeiro, pois fornecerá informações que possibilitem o estabelecimento e acompanhamento de metas de receitas e gastos. Introdução Segundo Parente (2002), no Brasil, 25% da PEA (População Economicamente Ativa) é formada por microempreendedores (cerca de 14 milhões de pessoas), dos quais um montante de 95% não têm acesso ao crédito. Coloca-se como principal causa deste problema a percepção de risco das instituições financeiras tradicionais em relação aos microempreendimentos, principalmente devido à falta de bens para garantir o empréstimo, e também por serem empreendimentos aparentemente instáveis, que realizam transações informais; portanto, são desprovidos de documentos contábeis que constituam base de informações confiáveis sobre sua real situação e suas perspectivas de sucesso. No entanto, esses microempreendimentos têm grande potencial para crescer e são de considerável importância para o desenvolvimento econômico e social do país. Dentro desse cenário, o microcrédito surgiu como uma tentativa de amenizar esse problema, ou seja, como uma forma de conceder pequenos créditos a esses microempreendimentos, que são excluídos do sistema financeiro tradicional. De acordo com Painter e Tang (2001), os programas de microcrédito, ao fornecer crédito aos pequenos empreendimentos que não têm acesso ao segmento bancário tradicional, tornam-se importantes instrumentos de combate à pobreza e de desenvolvimento econômico para as comunidades menos favorecidas. Para atender a esse tipo de cliente, as organizações sem fins lucrativos que atuam com microcrédito precisam ter flexibilidade quanto à garantia do pagamento do crédito concedido, adotando o princípio da confiança, dispensando várias exigências que são feitas pelos bancos tradicionais, utilizando apenas o mínimo indispensável de burocracia. Dentro do processo de consolidação e fortalecimento do microcrédito no Brasil, as organizações sem fins lucrativos que atuam neste segmento enfrentam vários desafios. Acredita-se que o primeiro desafio que deve ser enfrentado é o de levantar qual é o tamanho 1 da carteira ativa de empréstimos necessário para que elas atinjam seu ponto de equilíbrio, ou seja, qual é o montante de dinheiro que elas devem manter emprestado para que suas receitas passem a se igualar aos seus gastos, fazendo com que elas se tornem auto-sustentáveis. Ao atingir a auto-sustentação, tais organizações garantirão a continuidade e ampliação do programa no atendimento a novos clientes. De acordo com Dantas (2002), sociólogo e diretor executivo da Ceape-Nacional, somente um atendimento massivo poderá produzir impacto econômico e social gerando renda e trabalho; melhorando, conseqüentemente, as condições de vida das pessoas envolvidas. Portanto, é importante que essas organizações cobrem juros que, considerando uma determinada carteira de clientes, conduzam a organização à auto-sustentação. O desafio da auto-sustentação dessas organizações no “terceiro mundo” também é levantado por Painter e Tang (2001). Eles afirmam que é necessário que elas sejam autosuficientes financeiramente, para fazer frente aos altos gastos administrativos associados à atividade de conceder pequenos empréstimos. Será desenvolvido neste trabalho um modelo de cálculo do ponto de equilíbrio de uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que atua com microcrédito, utilizando suas peculiaridades de gastos e receitas. Trata-se da Crescer-Crédito Solidário, situada na cidade de Ribeirão Preto, SP. Acredita-se que tal modelo possa ser utilizado por organizações que atuam neste segmento de mercado como uma ferramenta de planejamento e controle financeiro. O modelo facilitará o planejamento, pois fornecerá informações que possibilitam o estabelecimento de metas de receitas e gastos e, posteriormente, pode-se comparar as metas estipuladas com os resultados efetivamente atingidos, exercendo assim o controle. Vale também ressaltar a relevância acadêmica do trabalho, pois, no processo de levantamento bibliográfico para elaboração do mesmo, verificou-se uma carência de outros trabalhos nacionais e internacionais que abordassem os assuntos que aqui serão tratados. 1. Caracterização do Microcrédito no Brasil Pode-se atribuir a Mohammed Yunus, professor de economia bengalês, o título de pioneiro do microcrédito no mundo. No ano de 1974, em Bangladesh, Yunus se comoveu com a situação de uma aldeia, onde algumas artesãs recorriam a agiotas para conseguir comprar matéria-prima para confeccionar seus produtos. Passou a emprestar-lhes seu próprio dinheiro, com uma taxa de juros bem mais baixa. Com essa atitude ele mudou a vida delas e a sua também. Essa experiência o inspirou a criar, em 1976, o Banco Grameen (Banco das Aldeias). “O caso (de microcrédito) mais mencionado do mundo é o Grameen Bank.” (Caixa Econômica Federal, 2002). No Brasil, experiências expressivas com microcrédito passaram a emergir somente após a implementação do Plano Real, em 1994. Até àquele ano, as duas organizações que tiveram mais repercussão foram a FENAPE (Federação Nacional dos Pequenos Empreendedores) e o Banco da Mulher. Pode-se dizer que uma das organizações pioneiras de microcrédito no Brasil é o Portosol, que surgiu em Porto Alegre, no ano de 1995, e serviu de modelo para várias outras organizações que foram fundadas posteriormente. Barcellos e Beltrão, apud Singer e Souza (2000), citam a grande importância que tal organização teve para o desenvolvimento dos microempreendimentos da Grande Porto Alegre, pois, até o ano de 2000, ela já havia liberado 11.600 créditos, totalizando 20,4 milhões de reais. Outro exemplo que deve ser mencionado: a iniciativa pioneira do Banco do Nordeste, que lançou o programa Crediamigo, em 1997, passando a atuar diretamente na concessão de 2 microcrédito através de 50 agências. De acordo com Parente (2002), o Banco do Nordeste tornou-se a segunda maior instituição no fornecimento de microcrédito na América Latina, em apenas dois anos de atividades. Pode-se também destacar o surgimento, nos últimos anos, dos chamados “Bancos do Povo”. São iniciativas de governos estaduais e municipais como parte da política pública de geração de trabalho e renda. A grande crítica que se pode fazer a essa iniciativa é que, ao cobrar apenas 1% de juros ao mês, caso do estado de São Paulo, tais organizações nunca conseguirão atingir sua auto-sustentação. Segundo Costa, apud Parente (2002), o governo acaba fornecendo crédito a fundo perdido, pois a experiência internacional desaconselha operar com taxas inferiores às de mercado. Dessa forma, elimina-se a possibilidade de a agência alcançar sua autonomia política e sustentabilidade econômica. Além das iniciativas do setor público, cabe destacar o surgimento, em várias cidades brasileiras, de organizações de pequeno porte que operam com microcrédito. Normalmente, seu raio de atuação é pequeno, abrangendo apenas a cidade onde estão localizadas. A tipologia dessas organizações, segundo Kwitko (2002), é apresentada a seguir: • ONG (Organização não Governamental): associação civil sem fins lucrativos, regida por estatuto social, não vinculada de forma obrigatória a nenhuma entidade controladora e, assim, sujeita a restrições quanto às estipulações usurárias; • OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público): pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, regida por estatuto e que não se encontra sujeita à Lei da Usura. Pode estabelecer parcerias para executar parte das políticas sociais que cabe aos poderes públicos; • SCM (Sociedade de Crédito ao Microempreendedor): associação com fins lucrativos, que pode ser constituída como sociedade por quotas de responsabilidade limitada ou sociedade anônima. Sujeita-se à fiscalização do Banco Central; • Cooperativa de Crédito: sociedade de pessoas de natureza civil, sem fins lucrativos, com o objetivo de conceder empréstimos e prestar serviços aos seus associados e com funcionamento determinado pelo seu respectivo estatuto social. Os bancos comerciais também estão autorizados a conceder microcréditos. O Banco Central, através de uma resolução de agosto de 2003, autorizou os bancos a utilizar 2% do seu recolhimento de depósito compulsório como funding para ofertar microcrédito. Tal operação deve possuir as seguintes características: valores máximos de R$ 1.000,00 para microempreendedores e R$ 500,00 para pessoas físicas e taxa de juro efetiva máxima de 2% ao mês. Segundo Prado (2003), cada instituição financeira está adotando critérios diferentes na hora de conceder os empréstimos. Algumas restringem o crédito apenas a certas categorias ou somente liberam o dinheiro para pequenos empreendedores rigorosamente selecionados. Outras instituições declaram que o simples fato de o requerente não ser inadimplente e ter menos de R$ 1.000,00 no banco é suficiente. Os prazos de pagamento oferecidos variam de 4 a 12 meses. Apesar de o próprio governo estar denominando microcrédito esta nova modalidade de empréstimo que os bancos estão oferecendo, defende-se que ela é muito diferente do microcrédito oferecido pelas OSCIPs, tipo de organização que será utilizada no estudo de caso deste trabalho. De acordo com Alves (2003), de forma equivocada, estão sendo divulgadas como microcrédito medidas de “bancarização” e de criação de novas linhas de crédito para consumo, que não são microcrédito, confundindo a opinião pública. O microcrédito caracteriza-se pela geração de trabalho e renda, financiando atividades produtivas que propiciam desenvolvimento sustentável. 3 Esta opinião também é compartilhada por Pedro Moreira Salles, CEO do Unibanco e presidente do Conselho de Administração da PlaNet Finance, uma ONG de origem francesa, que atua no Brasil e em mais sete países, com o propósito de apoiar o desenvolvimento do microcrédito, por meio da divulgação das melhores práticas mundiais. Salles (2003) argumenta que o microcrédito tradicional busca apoiar pequenos e microempreendedores que desejam investir no seu negócio e com ele crescer. Alguns chamam isto de “crédito produtivo”, para diferenciar do “crédito de consumo”. Em sua opinião, é tudo muito diferente: o cliente , que na sua grande maioria não é bancarizado, a natureza dos riscos e custos envolvidos, o treinamento do quadro funcional, os processos, etc. Ele afirma que, por esses motivos, tem receio de chamar de microcrédito esta nova modalidade de crédito de consumo oferecida pelos bancos. Diante do exposto, serão consideradas operações de microcrédito, neste trabalho, as operações de “crédito produtivo” oferecidas por organizações sem fins lucrativos denominadas OSCIPs, pois elas se enquadram nas características apresentadas por Alves e Salles. 2. Desafios para a consolidação das OSCIPs que atuam com microcrédito Na verdade, o grande objetivo dessas OSCIPs é combater a pobreza e o desemprego, nas regiões onde atuam, através do fornecimento de crédito produtivo. Hossain (2002) comenta que, no campo da “ajuda desenvolvimentista”, poucos projetos têm gerado tanto entusiasmo quanto o microcrédito, que busca reduzir a pobreza em países pobres. Pode-se comprovar os resultados concretos neste sentido recorrendo-se à afirmação de Dokmo (2000). Segundo ele, em 1999, um total de 176.147 clientes, em 25 países em desenvolvimento, foram beneficiados por operações de microcrédito, e tais clientes geraram 276.886 empregos. Dokmo (2000) também afirma que o microcrédito combina as melhores práticas capitalistas com os mais altos valores humanitários e que se deve concentrar esforços no trabalho que vem sendo desenvolvido pelas ONGs (Organizações não Governamentais) que atuam neste segmento. Apoiar a constituição e consolidação dessas organizações torna-se imperativo para o crescimento do microcrédito no mundo. Tal apoio é muito importante, pois, de acordo com Freedman (2000), um dos maiores desafios para as organizações que fornecem microcrédito é sobreviver nos primeiros anos. No Brasil, as OSCIPs que atuam com microcrédito enfrentam vários desafios para se consolidarem no mercado. Segundo estudo realizado pela Caixa Econômica Federal (2002), eles podem ser assim resumidos: • Inadimplência: é um dos maiores problemas de toda a indústria de microcrédito no Brasil, devido à má qualidade da carteira do país. Conseqüentemente, esta situação não só aumenta os custos das instituições brasileiras, mas, principalmente, impossibilita o seu crescimento. É bom lembrar que esta inadimplência, longe de ser um fenômeno independente, é conseqüência dos outros desafios que serão tratados. No entanto, caso se considere a indústria mundial de microcrédito, o nível de inadimplência normalmente não é alto, ficando abaixo de 5% da carteira total das instituições, em média. Na intenção de reduzir a taxa de inadimplência, as instituições de microcrédito criaram o papel do agente de crédito, cuja função é, além de possibilitar que esses clientes alcancem o sistema financeiro, acompanhar o cliente de maneira próxima e contínua em seu local de trabalho, e avaliar a viabilidade de seu microempreendimento; • Metodologia Creditícia: para a determinação da metodologia, as organizações precisam, primeiramente, compreender as diferenças entre o microcrédito e o sistema convencional 4 de concessão de crédito para micro e pequenas empresas. Segundo Parente (2002), a metodologia do microcrédito deve possuir as seguintes características: a) trabalhar com o agente de crédito, que busca o cliente no mercado e acompanha o seu trabalho; b) fornecer empréstimos rápidos e sucessivos, com a eliminação de entraves burocráticos; c) renovação imediata, com a possibilidade de elevação gradual do valor; d) incentivos à pontualidade no pagamento, ao invés de punição; e) cobrança ágil e preventiva de atrasos; f) sanções financeiras, pois não se renova o crédito em caso de inadimplência; g) garantias intangíveis, baseadas na confiança e no acompanhamento dos clientes, inclusão de avalistas ou grupos solidários, que podem ser amigos ou vizinhos que assumem a responsabilidade pelo crédito em conjunto por meio da fiança solidária. Através da análise desses fatores, Parente (2002) sugere um modelo de metodologia creditícia, que compreende sete etapas: I - Pesquisa: o objetivo da pesquisa é selecionar as áreas com maior potencial de pequenos negócios, onde se supõe alta probabilidade de operações de crédito com boas perspectivas; II - Promoção: o objetivo é divulgar de modo maciço a organização, os serviços e os produtos financeiros por ela oferecidos, além de dar a conhecer todo o programa de microcrédito aos clientes potenciais; III - Solicitação: construir com o cliente a ficha cadastral, o plano de aplicação e iniciar com ele a consolidação das garantias; IV - Análise: coletar dados sócioeconômicos junto ao cliente e organizá-los, para que ao serem transformados em informação, possam embasar a opinião do agente a respeito da liberação ou não do crédito; V - Desembolso: entrega do crédito ao cliente, informando sobre as condições definitivamente aprovadas pelo comitê de avaliação de crédito da organização; VI - Acompanhamento: consiste em monitorar os clientes para a correta aplicação do crédito, verificando e auxiliando na evolução de sua atividade e praticando procedimentos preventivos de cobrança; VII - Renovação: verificar o histórico do crédito anterior, atualizar as informações, reconsolidar cliente / avalista / grupo e fazer novo crédito. • Marketing: Apesar de as organizações de microcrédito ainda investirem pouco nesta área, elas reconhecem a importância do marketing como uma ferramenta de crescimento. Há ainda uma grande dependência do boca-a-boca, o que não é suficiente para possibilitar que penetrem no mercado de forma massiva, para que possam atingir o seu objetivo maior, que é reduzir consideravelmente a pobreza mundial. Portanto, essas instituições precisam de uma divulgação adequada para que possam atingir seus clientes potenciais; • Produto: a maioria das organizações que operam com o microcrédito apresentam como principais produtos o financiamento para capital de giro e o financiamento para investimentos fixos, pois se baseiam em características e necessidades comuns que os microempreendimentos apresentam a despeito de dificuldades de contexto local e vocação econômica de cada região. No entanto, a formatação dos produtos depende também da missão e do foco de mercado que a organização de microfinanças deseja priorizar. Assim, além da segmentação por atividade e vocação econômica dos microempreendimentos em sua área de atuação, os produtos levarão em conta a segmentação pelo nível de acumulação de capital. Parente (2002) define uma tipologia com 3 tipos de microempreendimentos: 5 I - Nível de subsistência: negócios também chamados de “microunidades de sobrevivência”, incapazes de gerar acumulação, conseguindo ganhar apenas a renda básica para a sobrevivência do microempreendedor – extrema pobreza; II - Acumulação simples: microempreendimentos que conseguem reter pequena parte da renda gerada, o que se reflete em pequeno aumento no volume da produção e das vendas; III - Acumulação ampliada: negócios capazes de reter parte substancial da renda gerada e, com isso, conseguem aumentar sua escala de produção e crescer ao longo do tempo. Naturalmente, dependendo do nível de acumulação em que se classifique o cliente, ele terá necessidade de uma maior ou menor variedade de produtos financeiros. Portanto, para que as instituições de microcrédito possam melhor atender a seus clientes é importante que ofereçam produtos variados, como: cartão de crédito popular, crédito moradia, poupança popular, escambo de bens e serviços ou clube de trocas, entre outros. • Auto-sustentação: um dos grandes desafios para as organizações de microcrédito é atingir seu ponto de equilíbrio, ou seja, construir uma carteira ativa de clientes que seja suficiente para que possam cobrir todos os seus gastos apenas com as receitas de suas operações de crédito. Assim sendo, alcançar o ponto de equilíbrio passa a ser o primeiro passo a ser tomado para que tais organizações possam enfrentar todos os seus desafios, sem que estes impossibilitem sua sobrevivência e crescimento. De acordo com Salles (2003), ainda são relativamente poucas as sociedades de microcrédito que atingiram a escala necessária à auto-suficiência econômica. 3. Cálculo do Ponto de Equilíbrio Econômico A auto-sustentação das organizações de microcrédito é um desafio que deve ser quantificado para poder ser suplantado, ou seja, é imprescindível que se saiba qual é o montante de receitas necessário para que se arque com os gastos envolvidos no negócio. A ciência da Administração Financeira oferece uma ferramenta para que se encontre tal montante: o cálculo do ponto de equilíbrio. Este cálculo também é conhecido por outras denominações, tais como: cálculo do ponto de ruptura, break-even point e análise-custovolume-lucro. Segundo Gitman (2001), o cálculo do ponto de equilíbrio deve ser utilizado pelas empresas para determinar o nível de operações necessário para cobrir todos os seus gastos e para avaliar a lucratividade associada aos vários níveis de atividade. Pode-se, de acordo com Assaf e Martins (1986), calcular três tipos de ponto de equilíbrio para uma organização: o contábil, o econômico e o financeiro. No cálculo do ponto de equilíbrio contábil, as receitas totais se igualam aos gastos totais. Neste caso, o resultado se anula, pois se obtém um lucro contábil igual a zero. Acima deste ponto, existe lucro; abaixo, prejuízo. No cálculo do ponto de equilíbrio econômico é introduzida, além dos gastos, uma outra variável: o lucro. Na verdade, qualquer empresa persegue um lucro mínimo representado pelo custo de oportunidade do investimento feito pelos sócios, ou seja, um lucro mínimo que compense o investimento realizado. Ao ponto que produz lucro desse valor mínimo se dá o nome de ponto de equilíbrio econômico. No cálculo do ponto de equilíbrio financeiro são incluídos os gastos não desembolsáveis, como as depreciações. Na verdade, as depreciações são gastos incluídos na contabilidade de uma empresa, mas que não representam desembolsos efetivos de caixa. Através dessas definições, pode-se observar que o valor de receita necessário para se cobrir os custos pode variar, de acordo com a metodologia de cálculo que se adote. Portanto, para uma mesma empresa, o valor do ponto de equilíbrio financeiro é maior que o do econômico, que é maior que o do contábil. 6 Neste trabalho, será adotado o cálculo do ponto de equilíbrio econômico, pois ele permite que se inclua no modelo uma previsão de lucro. Embora as OSCIPs que atuam com microcrédito não tenham o lucro como objetivo, pois são constituídas como organizações sem fins lucrativos, é imprescindível que elas o projetem e o obtenham. A diferença entre elas e as outras organizações com fins lucrativos é que o lucro obtido não deverá ser destinado aos sócios. No caso dessas organizações, ele deve ser utilizado como fonte de investimentos, tais como: compra de novos equipamentos, ampliação do volume de atividade, treinamento dos agentes de crédito e divulgação. Esta variável também é importante no modelo, pois, pode-se identificar, quantitativamente, o prejuízo que a organização obterá caso não consiga o faturamento necessário para cobrir seus gastos. De acordo com a definição apresentada, para se encontrar o ponto de equilíbrio econômico de uma organização deve-se calcular qual o valor de faturamento necessário para se cobrir todos os gastos e ainda garantir um montante de lucro. Diante destas informações, pode-se deduzir a seguinte fórmula: FT = GT + RO Onde: • FT = faturamento total; • GT = gasto total; • RO = retorno operacional (lucro ou prejuízo). Para se encontrar o faturamento total de uma organização, basta que se multiplique o preço unitário de seu produto pela quantidade total vendida, ou seja, FT = p*q. Vale ressaltar que, neste trabalho, adotou-se a terminologia gastos para se referir a todo e qualquer tipo de desembolso de caixa que se faça, pois a organização que será abordada no estudo de caso não é uma organização industrial. Em organizações industriais, costuma-se classificar os gastos em dois tipos distintos: custos e despesas. Os custos são todos os gastos relacionados diretamente à produção dos produtos, a saber: matéria-prima e embalagens, mãode-obra direta e custos indiretos (energia elétrica, lubrificantes, manutenção, etc). As despesas são os gastos que, apesar de não estarem ligados à produção dos produtos, são imprescindíveis para o funcionamento da indústria, tais como: despesas de vendas e administrativas. O gasto total de uma empresa é composto pelos gastos fixos e variáveis. Assaf e Martins (1986) definem gastos fixos como aqueles que, dentro de um mês (ou outra unidade de tempo), assumem determinado valor independentemente de nesse mesmo mês a organização ter um nível maior ou menor de atividade, citando como exemplos: aluguéis, encargos financeiros, salários e encargos dos funcionários administrativos, etc. Os gastos variáveis são aqueles que têm o seu valor total determinado exatamente como decorrência direta do nível de atividade da empresa, podendo-se citar como exemplos: comissão dos vendedores, matériaprima, etc. Portanto, GT = GF + GVu*q. Aplicando-se estas novas definições à fórmula anterior, obtém-se: p*q = GF + Gvu*q + RO Onde: • p = preço unitário de venda; • q = quantidade total vendida; • GF = gastos fixos; 7 • Gvu = gasto variável unitário. Esta fórmula será aplicada no cálculo do ponto de equilíbrio da organização de microcrédito analisada no estudo de caso deste trabalho, levando-se em conta as peculiaridades que compõem seu faturamento e seus gastos. 4. Vantagens e limitações ao uso do ponto de equilíbrio A grande vantagem do cálculo do ponto de equilíbrio é sua utilização como uma ferramenta de planejamento e controle financeiro. Segundo Weston e Brigham (2000), o planejamento financeiro envolve a realização de projeções de vendas, renda e ativos baseadas em estratégias alternativas de produção e de marketing seguidas pela decisão de como atender às necessidades financeiras previstas. Eles também sugerem que, neste processo, os gerentes também deveriam avaliar os planos e identificar as mudanças nas operações que pudessem melhorar os resultados. Quanto ao controle financeiro, estes mesmos autores citam que ele se situa na fase de implementação dos planos, caracterizando-se como um processo de ajustamento em feedback para: (1) assegurar que os planos sejam seguidos; e (2) modificar os planos existentes em resposta a mudanças no ambiente operacional. Após o desenvolvimento do modelo de cálculo do ponto de equilíbrio, a organização passa a ter a informação de quanto precisa faturar para cobrir seus gastos, ou seja, passa a ter subsídios para elaborar seu planejamento financeiro. Dessa forma, ela pode estabelecer metas e desenvolver estratégias para aumentar seu faturamento ou reduzir seus gastos, para que consiga atingir sua auto-sustentação. Além disso, o modelo pode ser utilizado para que se façam simulações e se avaliem os impactos das mesmas, antes que sejam implementadas, e exercem o controle das metas que foram realmente implementadas, revendo-se as estratégias utilizadas, caso não sejam atingidas. Quanto às vantagens do cálculo do ponto de equilíbrio, Welsch (1996) afirma que, em situações onde ele pode ser feito com precisão razoável, pode constituir um instrumento de administração altamente valioso, pois, através dele, testa-se o efeito aproximado de vários tipos de decisões administrativas sobre os gastos e as receitas. “A análise do ponto de equilíbrio é importante no processo de planejamento, pois um volume suficiente de vendas deve ser antecipado e atingido para que os gastos fixos e variáveis sejam cobertos, senão a empresa enfrentará perdas.” (WESTON e BRIGHAM, 2000). Falando-se ainda das vantagens do cálculo do ponto de equilíbrio, Briggs (2000) ressalta que decisões importantes, como alterações de preços e esforços extras para vender mais, são mais fáceis quando se sabe o nível de atividade que faz a empresa ganhar dinheiro de fato. Apesar das vantagens apresentadas, deve-se ter consciência que a aplicação do cálculo do ponto de equilíbrio, na prática, apresenta algumas limitações. Assaf e Martins (1986) apresentam três limitações principais: • Existência de vários produtos: neste caso, o cálculo é apenas possível, tecnicamente e com validade prática e teórica, em duas situações: quando todos os produtos têm a mesma margem de contribuição (preço unitário menos gasto variável unitário) em reais (R$) ou então todos têm o mesmo percentual de margem de contribuição sobre o preço de venda. Comumente se incorre no erro de ratear os gastos fixos pelos vários produtos ou pelas várias linhas, mas isso é extremamente temerário, pois cada critério de rateio é mais arbitrário do que outro; • Gastos fixos e variáveis: a segregação entre o que é fixo e o que é variável é uma tarefa muitas vezes complexa, e a quantificação mais ainda. Ocorre também que certos gastos 8 têm comportamento não uniformes durante o ano. Além disso, comumente, há itens que sabidamente têm parcela fixa e parcela variável e a separação de um e outro nem sempre é fácil, como no caso da energia elétrica; • Curto versus longo prazo: a unidade de tempo adotada para se mensurar os gastos (semanal, mensal, semestral, anual, entre outras) tem influência muito grande na classificação do que é fixo ou do que é variável. Assim, o uso de uma classificação para períodos curtos pode ser confundido com o uso de outra que é utilizada para períodos maiores. Por exemplo, os salários e encargos do pessoal direto da produção, numa indústria, se tomados com relação a uma unidade de tempo pequena, o mês, tendem a ser chamados de fixos. Mas, caso se tome como unidade de tempo o ano, verifica-se que ele é variável, já que o seu total, dentro desse ano, passa a ter um nível muito alto de dependência das sazonalidades na produção. Além dessas limitações, Weston e Brigham (2000) destacam outra importante: o cálculo do ponto de equilíbrio se baseia na suposição de que o preço por unidade é constante, independentemente do volume de vendas e de produção. Eles afirmam que isto não é realista, pois, se a demanda for baixa, normalmente, a organização reduz o preço de venda de seus produtos em um esforço para aumentar as vendas. Inversamente, se a demanda for alta, ela tende a aumentar os preços, buscando ampliar as margens de lucro. 5. Estudo de Caso 5.1. Metodologia da Pesquisa Como o objetivo deste trabalho é apresentar o cálculo do ponto de equilíbrio como uma ferramenta de planejamento e controle financeiro, adotou-se a pesquisa aplicada como metodologia, pois, de acordo com Salomon (1991), ela tem como objetivo a aplicação de leis, teorias e modelos, na descoberta de soluções ou no diagnóstico de realidades. Além de se estabelecer o tipo de pesquisa a ser utilizado, deve-se também buscar o método de procedimento de tal pesquisa. O método adotado é o dedutivo, que é definido, por Lakatos e Marconi (1991), como um método no qual a busca da solução parte de teorias ou leis aceitas. Conforme apresentado anteriormente, o cálculo do ponto de equilíbrio é uma teoria bastante conhecida e utilizada na Administração Financeira. Após a definição do tipo e do método, deve-se adotar um procedimento de pesquisa. O procedimento utilizado foi o estudo de caso em uma organização de microcrédito sem fins lucrativos, a Crescer – Crédito Solidário. Não houve a preocupação de se utilizar mais de uma organização, pois, acredita-se que elas possuam estruturas de receitas e gastos muito semelhantes. Esta decisão está apoiada na obra de Yin, apud Martins (1998), e, segundo ele, no estudo de caso, o objetivo do investigador é expandir e generalizar teorias (generalização analítica) e não enumerar freqüências (generalização estatística). Como técnica de coleta de dados, utilizou-se a pesquisa documental. Cervo e Bervian (1996) dizem que a pesquisa documental pode ser feita a fim de se poder descrever e comparar tendências, diferenças e outras características. A pesquisa foi feita utilizando-se balancetes mensais de verificação, elaborados pelo escritório contábil que elabora a contabilidade da organização Crescer-Crédito Solidário, referentes ao período de janeiro a junho de 2003. Tal pesquisa objetivou verificar quais são as fontes de receita e quais são os tipos de gastos (fixos e variáveis) da organização. Além disso, foi elaborada uma comparação entre os diversos gastos fixos, ou seja, quais os gastos fixos mais e menos expressivos. 5.2. Histórico e caracterização da Crescer 9 Como foi elaborado um estudo de caso com a organização Crescer – Crédito Solidário, torna-se necessário apresentar seu histórico e algumas de suas peculiaridades. A Crescer foi fundada em agosto de 2000 e constituída como uma ONG. Sua missão é o fortalecimento das pequenas iniciativas econômicas, através do fornecimento de operações de microcrédito aos excluídos, visando à geração de renda e ao combate ao desemprego. A motivação do grupo que a fundou, que tem ligação com os movimentos pastorais da Igreja Católica, surgiu em decorrência da Campanha da Fraternidade de 1999, que tinha o trabalho e o desemprego como tema. Durante a Campanha, foi feita uma parceria entre a Igreja local e alunos e professores da Faculdade de Economia da USP – Ribeirão Preto, que elaborou uma minuciosa pesquisa sobre o desemprego na cidade. Descobriu-se que Ribeirão Preto possuía, na época, cerca de 90 mil pessoas desempregadas ou vivendo com menos de dois salários mínimos mensais (18% da população). Diante dessa realidade, um grupo de estudo foi organizado para iniciar um projeto para enfrentar tal problema. O grupo tomou conhecimento do trabalho realizado pelo Banco Grameen de Bangladesh e de algumas experiências que já existiam no país, como a Instituição Comunitária de Crédito Portosol, que atua na região de Porto Alegre – RS, e do Banco do Povo de Santo André, no ABC paulista. Decidiu-se pela fundação de uma ONG que iria atuar com microcrédito e conseguiu-se o respaldo da Arquidiocese da cidade, que forneceu um pequeno capital para sua constituição, proveniente dos recursos arrecadados na Campanha da Fraternidade. A Arquidiocese também colaborou, através de seu prestígio, para a viabilização de uma parceria com um banco local, com o objetivo de conseguir recursos financeiros para viabilizar o fornecimento dos créditos. Em 2002, a Crescer transforma-se em OSCIP e recebe um aporte de recursos da Prefeitura Municipal da cidade. Nesse mesmo ano, ela entra em um concurso promovido pelo Sebrae Nacional para eleger 30 organizações com as quais ele desenvolveria um programa de estímulo à difusão do microcrédito, no qual concorreram outras 140. A Crescer foi uma das aprovadas, tendo se destacado por ser a única escolhida com atuação no Estado de São Paulo. Com essa nova parceria, está previsto para 2004 o início das atividades em outra cidade, Sertãozinho, distante 20 quilômetros de Ribeirão Preto. Atualmente, o quadro funcional é composto por 6 funcionários, sendo 1 gerente, 4 agentes de crédito e 1 assistente administrativo. A organização é gerida por um conselho de administração composto por 5 membros. O crescimento da Crescer nesses 3 anos de atividade pode ser comprovado quando se observa a evolução de sua carteira ativa de empréstimos – vide Tabela I. Tabela I – Evolução da Carteira Ativa de Empréstimos Período Montante (R$) Variação (R$) Variação (%) Jan/2001 79.784,79 0,00 0 Jun/2001 104.971,45 25.186,66 31,57 Jan/2002 144.919,66 39.948,21 38,06 Jun/2002 231.112,17 86.192,51 59,48 Jan/2003 296.016,93 64.904,76 28,08 Jun/2003 341.004,50 44.987,57 15,20 Fonte: Crescer-Crédito Solidário Em relação à política de crédito adotada por tal organização, a primeira premissa é que o cliente não possua restrições cadastrais, ou seja, que ele não conste dos cadastros do SPC e Serasa. A seguir, serão apresentadas as demais características: • Finalidades: o crédito pode ser utilizado para capital de giro, capital fixo ou capital misto (capital de giro e fixo na mesma operação); 10 • Prazos máximos de pagamento: 12 meses para capital de giro e 15 meses para capital fixo e misto; • Valores: mínimo de R$ 300,00 e máximo de R$ 6.000,00. O limite de crédito, a ser disponibilizado ao cliente, depende da sua capacidade de pagamento, ou seja, o valor da parcela do empréstimo não pode ultrapassar o valor do lucro líquido mensal do empreendimento, apurado pelo agente de crédito; • Garantias: avalista, aval solidário e garantias reais; • Taxa de juros: 4,5% ao mês (independentemente do valor, do prazo, da garantia e da finalidade do crédito); • Tempo mínimo de experiência na atividade: 06 meses. A Crescer acredita estar conseguindo atingir sua missão de fornecer crédito aos excluídos, visto que, da sua carteira de clientes, apenas 2% possuem curso superior, 85 % têm uma renda mensal inferior a R$ 1.200,00 e 72% são informais. Esses microempreendedores, além de garantirem sua subsistência, passam a ter condições de ampliar seus negócios, gerando novos empregos. 5.3. Peculiaridades das receitas e gastos na Crescer Foram observadas, na pesquisa documental elaborada, dois tipos de receita. No balancete, tais receitas recebem as nomenclaturas de “juros sobre contratos” e “taxa de administração de contratos”. A primeira nomenclatura refere-se às receitas provenientes de juros que são cobrados dos clientes nas operações de microcrédito e que vão sendo apuradas mensalmente, à medida que os clientes vão pagando as parcelas. Além dos juros, é cobrada, no ato da liberação da operação, uma taxa de administração. Trata-se de uma taxa percentual fixa que incide sobre o montante do empréstimo que é liberado. Conforme já comentado, uma das limitações do cálculo do ponto de equilíbrio é a dificuldade em se classificar quais gastos são fixos e quais são variáveis. Observou-se, na análise dos balancetes, que a grande maioria dos gastos da Crescer não são totalmente fixos, ou seja, durante o período analisado, 6 meses, há pequenas variações na grande maioria deles. Apesar disso, neste trabalho, todos os gastos que não sofreram alterações, diretamente relacionadas a aumentos no nível de atividade, foram classificados como fixos. Como a organização analisada fornece empréstimos, os aumentos na carteira ativa de empréstimos são considerados aumentos no nível de atividade. Foram identificados apenas dois gastos tipicamente variáveis, ou seja, que variam de acordo com o número de empréstimos concedidos. Eles recebem as seguintes nomenclaturas: “comissão de vendas” e “juros financeiros”. Em relação à primeira nomenclatura, foi apurado que a Crescer implementou uma política de pagamento de comissão aos agentes de crédito, que são os funcionários que mantêm contato direto com os clientes. Tal comissão é calculada com base no spread (taxa de juros cobrada do cliente menos a taxa de captação dos recursos) que a organização tem com os empréstimos. Os agentes recebem, à medida que os clientes vão pagando as parcelas, uma comissão de 10% sobre o ganho em Reais que o spread gera. Quanto aos “juros financeiros”, trata-se dos juros que a Crescer paga a outras instituições, das quais capta recursos para poder repassar aos seus clientes. Além desses dois gastos variáveis, também foi identificado outro, que, na elaboração do modelo de cálculo, também será considerado variável, trata-se das “perdas”. Na conta perdas, são inseridos os saldos devedores dos clientes que se tornaram insolvente, cuja cobrança passou a ser responsabilidade de um escritório de advocacia com quem a organização mantém uma parceria. Parte-se do princípio que toda organização que forneça crédito, por melhor que seja seu processo de análise, terá problemas com clientes insolventes; portanto, é importante 11 que ela defina um percentual, em relação ao montante concedido de empréstimos, que não conseguirá receber. Diante disso, considera-se a insolvência de clientes como um gasto variável. Os gastos fixos são apresentados, nos balancetes, em 4 grupos de contas: administrativos, com pessoal, tributários e financeiros. Dentre esses gastos, é importante que sejam feitas algumas considerações sobre os gastos com tributos. Quanto aos gastos com tributos, é importante ressaltar que a Crescer, por ser uma OSCIP, possui isenção de vários deles: COFINS, IRPJ, CSLL e IOF. Foi apurado o pagamento de quatro tipos de tributos: PIS, ISS, IPTU e CPMF. O IPTU e o ISS são tributos municipais, com valores mensais fixos. O PIS é um tributo federal, cuja alíquota incide sobre a folha de pagamento; portanto, também é fixo. A CPMF, também federal, incide sobre a movimentação financeira. Em relação à CPMF, deve-se fazer algumas considerações. Tal tributo foi classificado como gasto semi-variável, ou seja, apresenta um percentual fixo e outro variável. A Crescer possui conta corrente em um banco comercial, mantendo valores poucos expressivos em seu caixa. Portanto, a grande maioria de seus desembolsos é efetuada através da emissão de cheques ou transferências bancárias, onde há a incidência da CPMF. O percentual fixo está relacionado ao total de desembolsos fixos efetuados durante o mês e o variável está relacionado á emissão de cheques aos clientes que fazem as operações de microcrédito. Diante da diversidade de gastos fixos identificados, foi visualizada a necessidade de se elaborar uma comparação entre eles, ou seja, quais são os mais e os menos expressivos em uma organização sem fins lucrativos que opera com microcrédito. Esta comparação é apresentada na Tabela II, que foi elaborada utilizando-se a média aritmética mensal de cada um dos gastos, referente aos meses de janeiro a junho de 2003, em relação ao total dos gastos fixos. Vale ressaltar que esta relação não deve ser generalizada como uma estrutura padrão de gastos de organizações de microcrédito, pois, cada uma possui estratégias diferentes na gestão de seus gastos fixos. Tabela II – Relação entre os Gastos Fixos Mensais da Crescer Tipos de Gastos % do Total dos Gastos Total de Gastos Fixos 100,00 Gastos Administrativos 47,60 Associação e assinatura de periódicos 1,58 Contabilidade 1,41 Cartório 0,64 Energia elétrica 0,49 Material de escritório 2,48 Material de copa e limpeza 0,53 Selos e portes 0,92 Aluguel 2,95 Manutenção de equipamento 0,95 Propaganda e publicidade 10,34 Telefone 3,17 Viagens e estadias 15,54 Honorários advocatícios 2,95 Prestação de serviços 1,06 Outros 2,59 Gastos com Pessoal 45,96 Salários e ordenados 27,00 INSS 11,53 FGTS 3,01 Vale transporte 3,28 Férias 1,14 12 Gastos com Tributos Contribuição sindical Impostos e taxas PIS sobre folha de pagamento IPTU Gastos Financeiros Despesas bancárias (tarifas) CPMF (considerou-se o total: fixo + variável) 1,24 0,28 0,39 0,36 0,19 5,20 3,67 1,53 5.4. Desenvolvimento e aplicabilidade do modelo de cálculo do ponto de equilíbrio Conforme já apresentado, o faturamento de uma organização é obtido quando se multiplica o preço do produto pela quantidade vendida. No caso das organizações sem fins lucrativos de microcrédito, o preço do produto é a taxa de juros cobrada no empréstimo e a quantidade vendida é a carteira ativa de empréstimos concedidos. Além disso, foi apurado que a Crescer possui outra fonte de receita, proveniente de uma taxa de administração, cobrada no ato da liberação do empréstimo. Portanto, além do ganho com a carteira ativa de empréstimos, a organização tem uma receita proveniente do volume de contratos liberados mensalmente. Diante dessas informações, pode-se calcular o faturamento total mensal da organização através da seguinte fórmula: FT = V*TxE + v*TxA Onde: • V = volume da carteira ativa de empréstimos; • v = volume de operações liberadas mensalmente; • TxE = taxa de juros do empréstimo; • TxA = taxa de administração. Normalmente, os gastos de uma organização têm um componente fixo e outro variável. Após a elaboração da parte mais complexa, que é classificá-los, basta somar os componentes fixos para se obter o gasto fixo mensal total. Além disso, deve-se acrescentar a este valor os gastos financeiros fixos com a CPMF, somando-se a alíquota definida pelo governo para tal imposto. Quanto ao componente variável, dependerá da atividade que a organização exerça. No caso da organização analisada, foram identificados quatro componentes variáveis. O primeiro é a taxa de captação, ou seja, sempre que há a liberação de uma nova operação, a organização precisa captar recursos no mercado para repassá-los aos clientes. No caso da Crescer, paga-se a uma instituição financeira, da qual foi captado o recurso, uma taxa de juros. O segundo componente variável são os gastos financeiros variáveis com CPMF, ou seja, as operações são liberadas através da emissão de cheques para os clientes; portanto, uma parte da CPMF a ser paga decorre do número de operações a serem liberadas mensalmente. Outro gasto variável identificado é a comissão paga aos agentes de crédito. Tal comissão, de 10% (0,1), incide sobre o ganho em Reais (R$) que a organização afere sobre os empréstimos concedidos, resultante do spread aplicado. Além desses três gastos variáveis, é importante que se verifique, nas organizações de microcrédito, a quantidade de clientes que se tornam insolventes. Através deste histórico, define-se, então, um percentual de perdas que se terá, em relação ao total da carteira ativa de empréstimos. Diante dessas informações, pode-se calcular o gasto total mensal da organização, através da seguinte fórmula: 13 GT = GF + V*TxC + v*%CPMF + 0,1 (S*V) + P*V Onde: • TxC = taxa de juros para captação; • %CPMF = alíquota cobrada para a CPMF; • S = spread (TxE – TxC); • P = percentual estimado de perdas (insolvência de clientes). No ponto de equilíbrio econômico: FT = GT + RO. Aplicando-se as peculiaridades do faturamento e dos gastos da organização analisada obtém-se a seguinte fórmula: V*TxE + v*TxA = GF + V*TxC + v*%CPMF + 0,1 (S*V) + P*V + RO Com o intuito de verificar a aplicabilidade do modelo desenvolvido, será elaborada uma simulação de cálculo, utilizando-se dados reais da organização analisada, referentes ao primeiro semestre de 2003, obtidos através da pesquisa documental elaborada. Dados: taxa de empréstimo = 4,5% a.m.; volume de operações liberadas mensalmente = R$ 25.000,00; taxa de administração = 3%; total de gastos fixos = R$ 11.161,00; taxa de captação = 2,2% a.m.; alíquota da CPMF = 0,38%; spread = 2,3 %; percentual estimado de perdas = 1,0%; retorno operacional desejado = R$ 2.000,00. Aplicando-se tais dados na fórmula obtém-se: V*0,045+25.000*0,03 = 11.161+V*0,022+25.000*0,0038+0,1(0,023*V)+0,01*V+2.000 0,045V – 0,022V – 0,0023V – 0,01V = 11.161 + 95 + 2.000 – 750 V = R$ 1.168.785,05 Ao se inserir no modelo os dados referentes aos gastos e receitas da Crescer-Crédito Solidário, conclui-se que ela precisaria ter uma carteira ativa de empréstimos no valor de R$ 1.168.785,05 para que conseguisse cobrir todos os seus gastos e obtivesse o retorno operacional estipulado. Conclusões Diante do modelo elaborado, pôde-se verificar que o cálculo do ponto de equilíbrio econômico, em organizações sem fins lucrativos de microcrédito, é viável. Apesar de apresentar limitações, de uma forma geral, acredita-se que neste tipo de organização tais limitações sejam menores. Dentre as quatro limitações apresentadas, verificou-se que duas não se enquadram na organização analisada, favorecendo, assim, a utilização do modelo. A primeira limitação seria a existência de vários produtos, o que não ocorre neste caso, pois, a Crescer trabalha com apenas um produto: o microcrédito. Outra limitação seria a variação do preço em relação a aumentos ou reduções na demanda. A Crescer possui um preço fixo de seu produto, ou seja, independentemente do valor e do prazo da operação que será liberada, a taxa de juros mensal cobrada é a mesma. Nunca foram utilizadas, também, estratégias de redução ou aumento da taxa em relação às oscilações na demanda. As outras duas limitações se referem a dificuldades na classificação dos gastos, como fixos ou variáveis. Realmente, tal classificação é complexa, mas, apesar disso, acredita-se que não comprometa, de forma significativa, a eficácia do modelo desenvolvido. As organizações de microcrédito são de pequeno porte, na sua maioria, e a identificação e classificação de seus 14 gastos não é tarefa extremamente complexa. Além disso, acredita-se que tais organizações tenham sua contabilidade feita por escritórios especializados, que poderiam contribuir na elaboração da classificação de seus gastos. Defende-se que o cálculo do ponto de equilíbrio é muito importante para as organizações de microcrédito, pois, além de as limitações serem pequenas, as vantagens obtidas podem ser grandes. De acordo com o BNDES, a maioria dos gerentes das organizações sem fins lucrativos de microcrédito tem sua formação nas ciências sociais, com pouco enfoque em controle interno e gerenciamento financeiro. Portanto, o modelo desenvolvido pode ser utilizado por eles como uma ferramenta de planejamento e controle financeiro, pois sua utilização não apresenta um nível grande de complexidade. As organizações sem fins lucrativos de microcrédito vêm enfrentando vários desafios para se consolidarem no mercado. Dentre eles, foi destacada, neste trabalho, a busca pela auto-sustentação. Tal fato pode ser comprovado ao se observar que a Crescer necessita ter uma carteira ativa de clientes no valor de R$ 1.168.785,05 para arcar com sua atual estrutura de gastos e, apesar de estar em processo de crescimento, possui uma carteira ativa bem inferior a este montante (vide Tabela 1). Após a elaboração do cálculo, passa-se a ter consciência do tamanho da carteira ativa de empréstimos necessária para se atingir a auto-sustentação. Tendo tal número em mãos, podese elaborar um planejamento estratégico mais consistente, baseado em metas numéricas. Além disso, o modelo permite que se façam simulações de estratégias e seus possíveis reflexos no ponto de equilíbrio, tais como: aumento ou redução na taxa de juros dos empréstimos, redução da taxa de captação de recursos, redução nos gastos fixos, aumentos ou redução na insolvência dos clientes, etc. Obviamente, o modelo também favorece o controle interno, ao se comparar as metas numéricas estipuladas com os resultados reais que vão sendo obtidos. De forma a facilitar e agilizar a simulação de estratégias que o modelo permite, sugerese que ele seja inserido em uma planilha de cálculo informatizada. Weston e Brigham (2000) afirmam que, atualmente, para tornar a análise do ponto de equilíbrio mais flexível, as simulações devem ser feitas em computador. O modelo desenvolvido, por si só, não resolverá o desafio da auto-sustentação das organizações sem fins lucrativos de microcrédito. Acredita-se que ele é simplesmente uma ferramenta para ajudar no planejamento e controle financeiro de tais organizações. Vale ressaltar também que, certamente, cada organização possui estruturas de faturamento e gastos um pouco diferentes da Crescer; portanto, adaptações devem ser feitas para sua correta utilização. Referências Bibliográficas ALVES, José Caetano Lavorato. Carta de Blumenau. Blumenau: Ata da reunião da ABCRED, 01 de agosto de 2003. ASSAF NETO, Alexandre, MARTINS, Eliseu. Administração financeira: as finanças das empresas sob condições inflacionárias. São Paulo: Atlas, 1986, 559p. BNDES. Produtos. Disponível na URL: : www.bndes.gov.br/produtos/social/ttecaudi.asp. Acesso em 12/08.2003. BRIGGS, Roy. How to find your break-even point. UDM – Upholstery Design & Manufacturing. January, 2000. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Programa de microcrédito no Brasil. Brasília: Caixa Econômica Federal. 2002, 140p. CERVO, Amado Luiz, BERVIAN, Pedro Alcino. Metodologia Científica. 4º ed. 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