VIVER É MUITO PERIGOSO e A GENTE MORRE PARA PROVAR QUE VIVEU
José Raimundo Gomes da Cruz
Procurador de Justiça de São Paulo aposentado
Ao eminente Prof. Dr. Alfredo Mansur,
grande médico cardiologista, professor e erudito
de São Paulo
Em crônica intitulada “A obra de arte tem de ser imperfeita”, o cineasta-cronista
Arnaldo Jabor relembrava, com admiração, o teatrólogo Nelson Rodrigues (O Estado de S.
Paulo, 7/6/2011). Certo trecho mal disfarça alguma mágoa: “Consideram-no o maior
dramaturgo do País, sem dúvida, mas não o colocam no pódio da literatura culta, ao lado de
gente como Guimarães Rosa, por exemplo, que o irritava muito: “Jabor diga-me pelo amor de
Deus, qual a profundidade da frase ‘Viver é muito perigoso’? ou: ‘A gente morre para provar
que viveu...’? Nelson implicava com a pose do Rosa.”
O Jabor não se refere à fixação do teatrólogo contra o crítico Alceu Amoroso Lima,
que não se incluía entre os ardorosos entusiastas de Nelson. Nas crônicas jornalísticas deste,
que eu começava a ler com frequência, quase sempre interrompia a leitura pela insistência do
teatrólogo em tentar ironizar o grande pensador católico, com ou sem qualquer motivo
aparente. Deixo de lado referências à mitologia grega, com a figura de Narciso, aos egos
exagerados, notoriamente exagerados, da nossa vida cultural. Todas as biografias circulam
por aí, cabendo a cada interessado seu próprio julgamento.
D. Hélder Câmara talvez se beneficiasse com a verdadeira proibição do seu nome até
no noticiário da imprensa nos anos de chumbo, com relação à perseguição ideológica do
cronista-teatrólogo. Não se ignora que o regime da época chegou a pressionar contra a
concessão do Nobel da Paz ao grande Cardeal (Nelson Piletti e Walter Praxedes. Dom Helder
Camara – o profeta da paz. 2. ed. São Paulo : Contexto, 2008. p. 11).
Como certas personalidades teriam sofrido com o Nobel da Paz para D. Hélder! E com
a frase do sucessor do primeiro presidente do regime de 1964, quando lhe sugeriram alguma
aproximação dos “intelectuais”. Resposta do candidato Costa e Silva: Essa coisa de
intelectuais é do Castelo. Para aquele, bastaria um: Alceu Amoroso Lima. O encontro
ocorreu, despistando-se, completamente, a imprensa (Cartas do Pai – de Alceu Amoroso Lima
para sua filha madre Maria Teresa. São Paulo : Instituto Moreira Salles, 2004. pp. 560 e ss.).
Como ficariam os adeptos do regime excluídos?
Se Nelson Rodrigues apenas encontrou, nas centenas de páginas do romance do
grande Rosa de Cordisburgo, as duas expressões tomadas para título deste comentário, ─ e,
nas circunstâncias, a busca realizada deve ter sido exaustiva ─ tratar-se-ia, em primeiro lugar,
de objeção inexpressiva. A frase de Horácio, lembrada até sem a autoria – “Até o bom
Homero cochila às vezes.” (Paulo Rónai. Dicionário Universal de Citaçõess. Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1985. p. 455) – absolveria completamente o autor criticado da censura.
Por outro lado, parece que nenhum outro ficcionista pátrio tem sido mais esmiuçado
do que o autor de Primeiras Estórias. Exemplos de obras coletivas especializadas:
Convivendo com Guimarães Rosa: Grande sertão: veredas – Programa de Literatura e
Crítica Literária PUC/SP (Org. Beatriz Berrini. São Paulo : Educ, 2004) e, mais
recentemente, Nos sertões de Guimarães Rosa (Org. Carlos A. Corrêa Salles. Curitiba : CRV,
2011).
No primeiro, inclui-se o estudo de Marise Branco, “Riobaldo e seus provérbios”. v. 3).
Ao lado dos provérbios, “a forma renovada roseana” (p. 83). Em “entrevista ao crítico Lorenz,
Rosa explicou que seu método implicava ‘retirar as impurezas da linguagem cotidiana e
reduzi-las ao sentido original, como se elas acabassem de nascer’. O autor explicitou ainda
que não se utilizava somente do vocabulário ou de expressões regionais, que ele procurava
reproduzir fielmente em suas anotações, mas também de literatura erudita.” (p. 90)
Na introdução das lembradas Primeiras Estórias, sob o título “Os vastos espaços”, o
notável linguista Paulo Rónai já salientava: “Lembre-se que o autor fez sua aparição na
literatura como escritor regionalista. Não adotara, porém, nenhuma das três técnicas à
disposição do regionalismo: servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro,
restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem literária,
convencional. A quarta solução, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e
processos da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada
embeberem a linguagem dos figurantes.” (Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2005. p. 32).
Luiz Otávio Savassi Rocha ja destacava, há três décadas, a extensa bibliografia sobre o
autor de “A Terceira Margem do Rio”, lamentando, porém, com razão, seu caráter
fragmentário e informando que o pioneiro “estudo de conjunto da obra rosiana coube ao
norte-americano Jon Vincent, da Universidade de Kansas” (João Guimarães Rosa. Belo
Horizonte : Imprensa da UFMG, 1981. p. 49).
Há muito tempo, portanto, ficava superada a elementar e provinciana crítica de
expressão ou frase do grande escritor.
Mesmo assim, Sebastião Abrão Salim observa: “Rosa enfatizou em Grande Sertão:
Veredas que ‘viver é muito perigoso’. Embora estivesse se remetendo à realidade externa da
vida no sertão carente de recursos para a sobrevivência e vivida em constantes desafios,
intuitivamente referia-se mais ao seu mundo interior dominado por um litígio entre forças do
continuar sendo e do desfazer-se... Esse desafio é vivido por Riobaldo... Ainda revelando o
desafio do viver está o próprio título do livro – Grande sertão: Veredas, isto é o lado animal e
estéril de organização cognitiva do homem em contraste com sua parte civilizada
desenvolvida ao longo de milhões de anos. Penso que apenas Kafka, um desafiante da morte
física e psíquica (a loucura), aproximou-se de Rosa na precisão da narrativa literária para
descrever as angústias existenciais do homem por meio de seus personagens: Samsa Gregor e
Riobaldo. A metamorfose e Grande Sertão: Veredas são narrativas de leitura difícil porque
denunciam os dois maiores temores do homem: a travessia do Nonada até o ficar sendo e a
morte que o espreita.” (“Guimarães Rosa: um ensaio literário-psicanalítico”. Nos sertões, cit.,
pp. 121/122).
Leitura superficial e apressada do Rosa é muito perigosa.
De tudo o que se resumiu, acima, sem dúvida se beneficia a expressão “A gente morre
para provar que viveu”. Valem aqui explicações e conjeturas elementares, algumas já citadas,
outras expostas por Rónai, com grande firmeza (ob. cit., pp. 33/36 e passim).
De resto, principalmente em ficção, não caberia, sempre, a preocupação com a
profundidade de qualquer frase. Teatrólogo e contista notável, como o Rosa, Tchekov
também era médico. Três vezes, tentei homenageá-lo, o que só consegui nas duas últimas
(meus artigos “Nova tentativa de homenagear Tchekov no seu centenário”. O Sino do Samuel,
set/2004; “Os 150 anos do nascimento de Tchekov”. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais. v. 25, abril de 2011. pp. 255 e ss.).
A propósito da sua terceira peça, “Três irmãs”, Tchekov escreveu a certo amigo: “Na
vida real não vejo, a todo momento, criaturas dando tiros no ouvido, enforcando-se ou
fazendo declarações de amor e não as vemos, igualmente, dizendo, a todo instante, coisas
inteligentes. O que estamos acostumados a ver, na vida corrente, é as pessoas tratarem dos
seus negócios, comerem, beberem e dizerem vulgaridades, tolices. Pois bem, o artista deve
cuidar de pôr isso em cena.” As outras peças, inicialmente mal recebidas pela crítica e pelo
público, como as demais, foram “Tio Vania” e “Casa das cerejas” (obs. e locs. cits.).
Fico feliz de estar atento e disposto a rever textos do grande escritor mineiro de
Cordisburgo e a seu respeito, contribuindo para maior exatidão de conceitos.
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