ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS José Marco Rezende Andrade LIMITAÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Brasília 2009 José Marco Rezende Andrade Limitação da discricionariedade na implementação de políticas públicas Trabalho de conclusão do curso de PósGraduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios: “Ordem Jurídica e Ministério Público”. Orientadora: Dra. Luciana Medeiros. Brasília 2009 Resumo ANDRADE, José Marco Rezende. Limitação da discricionariedade na implementação de políticas públicas. 2009. 79 f. Monografia de Curso de Pós-Graduação. Curso: Ordem jurídica e Ministério Público. FESMPDFT, Brasília, 2009. Monografia sobre a limitação da discricionariedade da Administração Pública em sua escolha de políticas públicas adotadas na área da saúde. As políticas públicas são os instrumentos do Estado para a implementação de ações que assegurem a realização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Dentre esses direitos temos o direito à saúde como dever do Estado e que permanece com uma deficiência muito grande diante das necessidades da população. Durante muito tempo foi contemplada como dogma inatacável a impossibilidade de intervenção nas escolhas da Administração sobre quais políticas adotar, principalmente com o argumento de que a independência entre os poderes do Estado não permitiria a atuação do Judiciário sobre essa discricionariedade da Administração. Porém, diante de um Estado ineficiente e clientelista exsurge a necessidade de intervenção da sociedade, do Ministério Público e do Poder Judiciário para um direcionamento das políticas públicas em saúde com uma finalidade maior de eficiência e efetividade. Calçados nos princípios da garantia do mínimo existencial, da proibição do retrocesso social e da inafastabilidade da atividade judicial, tanto o Ministério Público como o Judiciário têm o poder-dever de agir em prol da sociedade interferindo nas escolhas da Administração. Já existe uma atividade nesse sentido em termos de garantias individuais dos cidadãos, porém deve ser buscada uma efetiva ação em termos coletivos para se garantir que a saúde seja efetivamente oferecida pelo Estado como direito fundamental e fator de reconhecimento da dignidade da pessoa humana. SUMÁRIO Introdução. ............................................................................................................................... 4 Capítulo 1. O Estado e as Políticas Públicas ............................................................................ 7 Capítulo 2. Direitos Fundamentais ......................................................................................... 13 2.1. Direito Fundamental e o Princípio da Proibição do Retrocesso Social ....................... 20 2.2. O Mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais .............. 22 2.3. A Saúde como Direito Fundamental .......................................................................... 25 Capítulo 3. Políticas Públicas .................................................................................................. 34 3.1. Limitações às realizações de políticas públicas .......................................................... 46 Capítulo 4. Discricionariedade e Atividade Administrativa ................................................... 49 Capítulo 5. Limitação da discricionariedade e controle das Políticas Públicas ...................... 61 5.1. Litigância judicial dos direitos sociais ....................................................................... 72 Conclusão ...............................................................................................................................75 Referências ............................................................................................................................. 79 Introdução As políticas públicas são os principais instrumentos das realizações estatais nos campos de propostas programáticas da Constituição Federal de 1988. Essas propostas tecem uma teia de promoção do desenvolvimento social e da diminuição das desigualdades seculares com as quais convivemos diariamente na área da Saúde Pública. No planejamento dessas políticas, recorre a Administração Pública ao poder discricionário que lhe é previsto dentro das normas de Direito Público. Assim, dentro de um conjunto de opções aptas a viabilizarem um projeto poderá o administrador, respeitadas as limitações legais e principiológicas, escolher a que se apresentar como a melhor segundo os critérios de oportunidade e conveniência. O que se discute neste trabalho é a limitação do poder discricionário do Estado na escolha e implantação das políticas públicas. Diante de um direito fundamental garantido pela Constituição Federal, o direito à saúde, a execução de políticas públicas nesta área devem ser desenvolvidas com um viés de maior eficiência e com a priorização do interesse público sobre os interesses individuais. Apesar do reconhecimento do papel do Judiciário e do Ministério Público na fiscalização e controle das políticas públicas não se tem a definição exata do alcance destas atividades. A Administração se utiliza da argumentação do respeito à independência entre os três poderes do Estado para rechaçar possíveis interferências em suas escolhas no planejamento das políticas públicas em saúde. Por outro lado, tanto o princípio constitucional da inafastabilidade da atividade judicante como as prerrogativas da atuação do Ministério Público servem como eixo para uma participação maior destas instituições no controle das políticas públicas. O tema delimitado nesta monografia parte da definição da saúde como direito fundamental a ser garantido e prestado pelo Estado através da instituição de políticas públicas em que a discricionariedade deve e pode ser limitada na busca de melhores resultados em suas metas. Tendo como parâmetro inicial o chamado “mínimo essencial”, as políticas públicas de saúde devem se desenvolver buscando os princípios da universalidade e da eficiência em todos os níveis. Não pode a Administração fazer uso da doutrina da “reserva do possível”, limitação de recursos financeiros e técnicos, como limitadora de seus esforços na execução dessas políticas. Assim, vemos crescer o campo de atuação do Ministério Público e do Judiciário no controle da discricionariedade das escolhas do Estado em termos de políticas públicas de saúde utilizando as doutrinas do “mínimo existencial” e do princípio da proibição do retrocesso social como parâmetros. Essa atividade tem sido mais comum no campo de garantias de direitos individuais, principalmente em casos de necessidade de leitos em Unidade de Terapia Intensiva e no fornecimento de medicamentos, o que alcança pequena parcela da necessidade real de efetivação do direito à saúde como matéria de interesse coletivo. O que se propõe neste estudo é demonstrar que sendo a saúde um direito fundamental, explicitamente garantido pela Constituição Federal e com legislação suficiente para a sua implementação, surge a obrigação do Estado em garantir políticas públicas para sua maior efetivação. Mesmo sabendo que em certos momentos as necessidades superam a disponibilidade de recursos disponíveis, não pode a Administração se esquivar da execução de ações que garantam a saúde, assim como não há justificativa para uma ilimitada liberdade de escolha diante de necessidades tão antigas e essenciais para uma condição de sanidade para a população. Com a definição dos papéis dos atores sociais e políticos, principalmente o Ministério Público e o Judiciário, pretendemos justificar a necessidade da intervenção destas instituições na limitação da discricionariedade da Administração para a implementação de políticas públicas na saúde. Além disso, busca-se demonstrar que as intervenções nesse campo são predominantemente em casos individuais, quando a premência de uma ação que pode resultar na sobrevivência do indivíduo pela falta da assistência que o Estado deveria cumprir ordinariamente. Embora seja inegável a importância dessas ações, deve-se atentar para a necessidade desse tipo de intervenção no que diz respeito às atividades voltadas para a saúde coletiva. Uma intervenção na escolha das políticas públicas a serem adotadas deve alcançar um planejamento a médio e longo prazo com o objetivo de suprir de maneira ampla a efetivação dos serviços de saúde e diminuir as demandas individuais, que após o sucesso das políticas efetivadas seriam reduzidas em proporção exponencial. A metodologia de pesquisa adotada constou de leitura da doutrina e de decisões judiciais que se correlacionam com o tema. Além das referências doutrinárias, o trabalho apresenta dados referentes a trabalhos de estatísticas ligados à saúde, relatórios de trabalho do Banco Interamericano de Desenvolvimento sobre a análise política da efetividade das políticas públicas na América Latina e um estudo empírico sobre a litigância judicial em ações que envolvem o tema. A análise, compreensão e desenvolvimento dessas informações permitiram que se estabelecesse uma justificativa para que haja uma limitação da discricionariedade na implementação de políticas públicas de saúde. 1. O Estado e as Políticas Públicas O estudo do controle sobre as políticas públicas passa obrigatoriamente pela compreensão da evolução do Estado a partir de sua caracterização como Estado de Direito. Não cabe no presente estudo um aprofundamento sobre as origens históricas e sociológicas do Estado de Direito. Porém, é importante destacar os seus fundamentos encontrados em nossa Constituição. São eles, segundo Gilmar Ferreira Mendes1: • Princípio Republicano: no qual o Brasil é uma república constitucional, uma forma de governo onde a investidura no poder está ao alcance de todos os cidadãos que preencham as condições de capacidade estabelecidas na própria Constituição. Além disso, tal estrutura de poder deve garantir as liberdades civis e políticas; • Princípio do Estado Democrático de Direito: afirma que a vontade do povo é a origem do poder que sustenta a organização política do Estado, sendo exercida de maneira direta ou por meio de representantes eleitos livremente; • Princípio da Dignidade Humana: diz que todo ser humano carrega em si um valor intrínseco único que o torna um indivíduo singular. É um valor de “hierarquia supraconstitucional”2, não sendo o valor da dignidade humana discutível em si mesmo, mas tão somente o desrespeito à essa condição humana. • Princípio da Separação dos Poderes: está contido no artigo 2º da CF, com a determinação de que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são poderes independentes e harmônicos entre si. É considerada cláusula pétrea, não cabendo emendas, reformas ou revisões que possam retirar sua validade. 1 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.140. 2 Idem • Princípio do Pluralismo Político: sustenta que respeitadas as restrições existentes na própria Constituição, cada pessoa é livre para se autodeterminar, não podendo nem mesmo o Estado interferir em suas escolhas e opções, desde que não extrapolem as liberdades inseridas na Lei Fundamental; • Princípio da Isonomia: sinteticamente, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei3. Tal princípio goza de um importante destaque em um país com tantas desigualdades como o Brasil e que tem na própria Constituição determinado o objetivo de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. • Princípio da Legalidade: previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, normatiza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Tal desiderato se estende a todo o ordenamento jurídico traduzindo a idéia de que a lei é o instrumento por excelência da conformação jurídica das relações sociais. A presença de tais princípios inseridos nas diversas Constituições de países democráticos demonstrou, ao longo do tempo, que não seriam suficientes para o alcance de seus objetivos de desenvolvimento social caso não houvesse o respeito por parte da Administração Pública e a efetivação de um plano político permanente voltado para tais fins. Após o período da Segunda Grande Guerra, houve uma potenciação do Estado de Direito com um maior respeito aos desígnios constitucionais e a construção de Estados incondicionalmente fundados nos ditames inseridos em suas Cartas Magnas. Já não basta buscar concretizar o interesse público considerado conforme a circunstância política de quem ocupa a Administração Pública, mas utilizar a Constituição como nova fonte de legitimação para a atividade estatal de administração do Estado. Desenvolvese, assim, o Estado Constitucional. 3 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. Cabe à Administração Pública, como um dos poderes constituídos, o papel de efetivar materialmente os comandos gerais estabelecidos no ordenamento jurídico, principalmente as normas constitucionais. Os veículos mais adequados são as políticas públicas, como destaca Thiago Lima Breus: Para que a Administração realize os comandos normativos contidos na Constituição, especialmente os Direitos Fundamentais sociais ou prestacionais, é preciso que o faça por meio de programas e ações específicas, os quais, exatamente por serem dirigidos à realização desses direitos de forma convergente e adequada, podem ser denominados de 4 políticas públicas. O Brasil sempre carregou as influências históricas do patrimonialismo (ausência de definição entre o público e o privado pelos agentes da Administração Pública) do Estado português. Além disso, o governo brasileiro sempre foi marcado pela centralização do poder, pela influência da Igreja, pela pouca expressão da sociedade civil e por uma cultura política autoritária. Todas essas influências ajudaram a criar uma sociedade alijada do centro das decisões sobre o desenvolvimento de políticas que atendessem suas necessidades mais básicas, assim como impediram a formação de um senso crítico mais apurado em matéria de questionamento dos governantes. Segundo João Pedro Schmidt5, quatro aspectos marcam a cultura política brasileira baseados em uma sociedade civil fraca e um Estado forte: o personalismo, conduta política orientada pelo padrão pessoal e afetivo, contrário do princípio da impessoalidade; o patrimonialismo, que consiste na gestão da coisa pública como se fosse privada; o clientelismo, uma relação de troca de favores entre agentes políticos, agentes econômicos e as pessoas; e o autoritarismo, o excesso de autoridade com a imposição da obediência sem prévio consenso entre Estado e a sociedade. Com o aumento da urbanização da população brasileira e a formação de um núcleo social mais consciente das obrigações pertinentes ao Estado. Associado a essa incipiente movimentação da população, coube ao Estado, tentando se ajustar a uma 4 BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pg. 47 5 SCHMIDT, João Pedro. Gestão de políticas públicas: elementos de um modelo pós-burocrático e pósgerencialista. In: REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério Gesta (organizadores). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, pg. 1988-2032 nova realidade administrativa, adotar o planejamento governamental com a organização de políticas públicas.Uma constatação do início dessa nova característica do Estado no Brasil começa a ocorrer a partir da década de 30 do século passado. Segundo Schmidt: A Revolução de 1930 é o grande marco da modernização do Estado no Brasil, o período em que se originam as principais estruturas responsáveis pelas políticas públicas e em que o ideário do welfare state passa a ser o 6 referencial orientador das políticas. As primeiras políticas tiveram relação com um estímulo à economia nacional (construção de siderúrgicas e exploração do petróleo), com a intervenção estatal nas relações de trabalho e com o início de uma estrutura previdenciária e assistencial à saúde, inicialmente restritos a algumas categorias profissionais urbanas, e que mais tarde foi universalizada pela Constituição Federal de 1988. No período entre as décadas de 30 e 80 do século passado, a implantação de políticas públicas teve como característica a destinação dos benefícios aos integrantes de certas categorias específicas de trabalhadores, melhores organizadas e com influência em setores da política. Essas políticas se destacaram pela sua ineficiência e ineficácia; pelos altos custos de implementação e administração; pelo distanciamento entre os formuladores das políticas, os executores e seus beneficiários; pela instabilidade e descontinuidade das ações propostas; pela ausência de avaliação dos programas; e pela impossibilidade de um maior controle por parte dos demais poderes do Estado. O grande marco normativo para o estabelecimento de um Estado Constitucional efetivo no Brasil foi a promulgação da Carta Constitucional de 1988, que buscou superar o quadro institucional anterior de caráter desigual e autoritário. Com a nova Constituição aderimos ao Estado Constitucional caracterizado, em sentido formal, pela supremacia definitiva da Carta Magna, pela normatização plena dos princípios e regras constitucionais, e numa concepção material pela explicitação de valores, dentre eles o da dignidade humana, e dos Direitos Fundamentais. 6 Idem Na década de 90 do século XX, passamos por reformas na estrutura do Estado sob a bandeira do “neoliberalismo”, mesmo sob uma Constituição voltada a princípios de efetivação de direitos sociais e promotores da igualdade social. A reforma gerencial empreendida não foi capaz de aumentar a capacidade de implementação de políticas públicas nem a melhoria dos serviços públicos. Já sob a égide de uma nova Constituição, que apresenta claramente um programa para efetivação do desenvolvimento social da nação e buscando reduzir as desigualdades sociais, a Administração Pública não foi capaz de transformar esses objetivos em realidade. Ainda assim, verificou-se uma evolução em termos de regulamentação nas áreas de proteção à criança e ao adolescente, da seguridade social, da saúde, da assistência social, da educação, da previdência social, do consumidor e do meio ambiente. Como destaca em sua obra, Thiago Lima Breus: A virada para o século XXI, portanto, ficou marcada no Brasil pelo conflito entre a expectativa da implementação das políticas públicas que concretizassem esses direitos conquistados, assegurados pela Constituição, e 7 as restrições políticas e econômicas postas à sua imediata implementação. Voltando ao Estado Constitucional como modelo a ser seguido, vemos a substituição dos interesses públicos pelos Direitos Fundamentais como escopo fundamental do Estado de Direito. A partir do reconhecimento dessa condição, tem o Estado que direcionar todos os seus esforços para proteger e efetivar esses direitos, principalmente através de atos que os garantam e na prestação de atividade que concretize os direitos sociais. A atividade estatal deverá ter como principal fundamento a dignidade humana. Inicialmente, como limitador da atividade estatal impedindo a violação do indivíduo pelos abusos do Estado. Em um segundo estágio, vinculando o poder estatal à sua efetivação através de suas ações. Além de fundamento da República expressamente declarado no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana é integrada ao texto constitucional em três outros momentos de forma explícita: como finalidade no 7 BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. exercício da atividade econômica, como princípio essencial da família e como direito fundamental da criança e do adolescente. Pode-se afirmar, com toda segurança, que a dignidade da pessoa humana deve ser encarada como princípio fundamental do qual todos os demais princípios derivam e que norteia todo o ordenamento jurídico. Sua validade e eficácia como regra foi elevada acima das demais normas e princípios, servindo como eixo para a integração e legitimação dos demais princípios que regem o ordenamento. Assim, vemos a evolução de um Estado guiado por regras estabelecidas e que passa a utilizar como eixo normativo os direitos fundamentais. Sintetizando o que significa essa transição de um Estado de Direito para um Estado Constitucional e sua relação com a implementação de políticas públicas, utilizamos a lição de MORAES quando se refere a atual fase do constitucionalismo, que marca a normatividade e positivação dos princípios gerais de Direito. A decomposição do Direito em princípios e regras delimitou dois campos distintos, porém não estanques: os campos da juridicidade – direito por princípios, dentre os quais o da legalidade, e o campo da legalidade – direito por regras, contido no primeiro, e no domínio do Direito Administrativo, o princípio da juridicidade da administração substitui o princípio da legalidade, 8 englobando-o. Portanto, principalmente após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, carta elaborada por constituintes legitimamente eleitos em um processo democrático e com ampla participação popular, abre-se para a Administração Pública uma perspectiva diferente no modo de governar. Tendo como guia os Princípios Constitucionais e os Direitos Fundamentais, o Estado brasileiro se encontra vinculado à obrigação de tornar concreto o ideal de uma nação desenvolvida e sem desigualdades sociais, tendo como norte a proteção à dignidade humana. Para a instrumentalização desse mister deve o administrador se utilizar das políticas públicas. 8 MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. 2a ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 197. 2. Direitos Fundamentais Os direitos fundamentais podem ser conceituados como direitos subjetivos positivados na Constituição Federal, ou em normas infraconstitucionais, com aplicação nas relações das pessoas com o Estado e na sociedade. Não se restringem esses direitos àqueles enumerados na Constituição Federal, são qualificados como fundamentais os direitos equiparáveis, pelo seu objeto e pela sua importância, aos direitos de natureza constitucional. São, simultaneamente, um tipo especial de direito subjetivo, que confere aos seus titulares a pretensão de que se adote um determinado comportamento em respeito à dignidade humana, e elemento constitutivo do direito objetivo compondo a base do ordenamento jurídico onde a afirmação e garantia dos direitos fundamentais legitimam o Estado de Direito. Sua titularidade é alcançada por pessoas naturais (sejam elas brasileiras, estrangeiras ou apátridas) e por pessoas jurídicas, que disponham de capacidade de fato ou de exercício, ou não. A sua fruição não depende da aptidão intelectual do seu titular. O Poder Público é o sujeito passivo, por excelência, dos direitos fundamentais. Porém, não se discute mais se esses mesmos direitos seriam aplicáveis no campo do Direito Privado, ou seja, com o pólo passivo ocupado por um sujeito que não de Direito Público. A eficácia dos Direitos Fundamentais no âmbito do Direito Público ocorre em todas as suas atividades. Na atividade legislativa sempre deverá ocorrer conformidade entre a confecção das leis, tanto em seu processo de formação como em seu conteúdo, e os comandos dos Direitos Fundamentais, inclusive na imperatividade da construção de normas indispensáveis à regulamentação desses direitos. Assim, como destacado por Breus9, os Direitos Fundamentais apresentam os seguintes aspectos: as normas que os vinculam são hierarquicamente superiores às 9 BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. demais normas; possuem limitação constitucional de reforma e emendas; têm aplicabilidade imediata; e vinculam todos os poderes. Os atos da Administração Pública podem ser invalidados pela violação de direitos fundamentais, assim como não podem advir de aplicação de lei ou ato normativo inválido. Já ao Judiciário cabe regular a concretização desses direitos, tanto na atividade pública como nas relações privadas. Atualmente, não se discute mais sobre a aplicação dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado, visto que não existe relação jurídica que possa se afastar dos preceitos básicos desses direitos. Não se concebe que possam ser afastados os direitos que sustentem a proteção da dignidade humana de qualquer relação social, tendo em mente que a nenhum homem será negada a proteção de sua dignidade, independente de raça, cor, credo, ou qualquer outro diferencial. No Supremo Tribunal Federal temos julgados que demonstram essa aplicabilidade envolvendo a garantia constitucional de intimidade nas relações de trabalho10, garantia do devido processo e ampla defesa em exclusão de associado de instituição privada11 e a aplicação do princípio da igualdade em relação a estrangeiro empregado de empresa brasileira nas relações trabalhistas12. Em todos eles vemos a confirmação da extensão da proteção dos Direitos Fundamentais nas relações de Direito Privado, onde o mais importante é a proteção final à dignidade da pessoa humana. Algumas correntes doutrinárias fundamentam a existência e aplicação dos Direitos Fundamentais. A teoria realista, elaborada por Noberto Bobbio13, defende que a partir da Proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948 não cabem mais questionamentos sobre a existência e necessidade de aplicação dos direitos humanos, mas da criação de mecanismos de proteção e de efetivação. Com a concordância da grande maioria dos Estados esse tema se tornou fato consumado e sem justificativas para a sua negação. Não seria mais uma questão filosófica, mas política. Eles existem e necessitam de uma atividade estatal mais concreta para sua realização. 10 STF, RE 160.222, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJU 01.09.1995. STF, RE 158.215, Rel. Ministro Marco Aurélio, DJU 07.06.1996. 12 STF, RE 161.243, Rel. Ministro Carlos Velloso, DJU 19.12.1997. 13 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 11 Enquanto isso, as teorias juspositivistas questionam a possibilidade de justificação racional dos direitos humanos. Segundo seu maior representante, Hans Kelsen14: “uma norma somente é válida na medida em que tenha sido produzida de maneira determinada por outra norma”. Sendo assim, se não forem determinados objetivamente e positivados no ordenamento jurídico, os direitos fundamentais do homem não serão válidos. Já as teorias jusnaturalistas pregam a possibilidade de justificação racional dos direitos humanos amparadas na existência de valores, princípios e regras que possuem validade universal, objetiva e absoluta, independente da consciência ou experiência dos indivíduos. A positivação desses direitos teria mera natureza declaratória e sua aplicação não careceria de um procedimento especial dentro do ordenamento jurídico, sendo de aplicação imediata e universal. Seriam direitos que nascem antes da própria organização da sociedade e da elaboração de um ordenamento jurídico, por isso sua positivação em leis seria apenas uma confirmação de sua existência, e não sua criação. Os direitos fundamentais, segundo Moraes15, possuem três características básicas: inalienabilidade, historicidade e relatividade. A inalienabilidade indica que tal direito não pode ser alienado ou renunciado, não podem ser objeto de negócios jurídicos que importem em transmissão de sua titularidade. A historicidade indica que os direitos fundamentais se transformam ao longo do tempo podendo ser retratados em gerações. Com isso, ganha um caráter de permanente atualidade permitindo que a sociedade tenha resguardados os novos direitos que surgem diante de situações inéditas até então. Segundo Mendes16, a primeira geração é identificada como o dever de abstenção do Estado frente a determinadas liberdades do indivíduo. Surgem como garantidores da liberdade do indivíduo frente a um Estado poderoso. Impedem que esse mesmo Estado interfira na expressão da dignidade de cada ser humano, quando este age dentro do que a própria norma lhe confere como espaço vital. São chamados também de 14 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 240. MORAES, Guilherme Peña. Direito constitucional: teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 16 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.223. 15 direitos negativos, justamente por negarem qualquer possibilidade de interferir nos direitos individuais dos cidadãos. A segunda geração envolve um dever de ação, uma prestação para o atendimento às necessidades sociais, econômicas ou culturais para a realização da vida de maneira mais digna, por parte do Estado Social. Esses direitos prestacionais são direitos do indivíduo frente ao Estado obrigando-o a fornecer condições ou prestar serviços, que caso o indivíduo possuísse recursos financeiros suficientes ou encontrasse oferta no mercado poderia realizá-los sem a intervenção estatal. Encontram-se neste rol os direitos à educação, saúde, trabalho, lazer, moradia, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância. A terceira geração é informada pela fraternidade ou solidariedade, envolve os direitos à comunicação, desenvolvimento, meio ambiente equilibrado e sadio, proteção ao patrimônio cultural, etc. São direitos que traduzem uma responsabilidade de toda a sociedade em torno do pleno desenvolvimento dos seres humanos, garantindo uma atuação de todos na garantia de um mundo mais justo. E, finalmente, os direitos de quarta geração, que envolvem questões mais atuais como a manipulação do patrimônio genético, globalização da economia, justa distribuição de riquezas, entre outros. Esses direitos ainda não estão bem definidos pela doutrina como um conceito unânime, porém todas as condições descritas como pertencentes a essa geração possuem um grau de proteção normativa suficiente para garantir sua efetivação. Outra característica é a relatividade, que diz respeito à possibilidade de colisão entre os direitos fundamentais. Essa situação deverá ser resolvida pelo mecanismo de ponderação, que deverá proporcionar uma harmonização entre os princípios buscando uma resultante mais efetiva, onde não se perca a essência da garantia dos direitos em jogo. Essa ponderação, de acordo com Edilsom Farias17, compreende o ajustamento dos bens jurídicos buscando resolver o conflito dos direitos fundamentais com o mínimo sacrifício dos valores constitucionais, nesse exercício deverá o intérprete 17 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. 1ª ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1996, p. 93. utilizar os princípios da concordância prática, da unidade da Constituição e da razoabilidade. Segundo José Afonso da Silva18, a essas características seriam somadas a imprescritibilidade e a irrenunciabilidade. Gilmar Ferreira Mendes19 inclui como características o fato desses direitos serem universais e absolutos, constitucionalizados, de vincularem os Poderes Públicos à sua aplicação e a sua aplicabilidade imediata. Sendo a dignidade da pessoa humana o valor supremo da ordem jurídica, valor que atribui unidade teleológica aos princípios e regras do ordenamento jurídico assegurando o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais, deverá ser usada como guia na ponderação entre a efetivação dos direitos fundamentais em colisão, de maneira que a pessoa deverá ser tratada como um fim em si mesma, e não como mero objeto ou meio para se atingir outros objetivos. No Título II da CF presenciamos a tipologia dos direitos fundamentais em torno dos critérios formal e material. O critério formal diz respeito à origem da qual procedem os direitos fundamentais, que podem ser divididos em constitucionais quando decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e em direitos derivados de acordos, tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja parte. O critério material está ligado ao objeto de tutela dos direitos fundamentais escritos na Constituição Federal, principalmente os estabelecidos no seu artigo 5º. Em síntese, com base na Constituição, José Afonso da Silva20 classifica os Direitos Fundamentais em seis grupos: direitos individuais; direito à nacionalidade; direitos políticos; direitos sociais; direitos coletivos e direitos solidários. Os direitos fundamentais desempenham várias funções na sociedade e na ordem jurídica. Podemos categorizá-los, segundo Gilmar Mendes21 utilizando as idéias de Jellinek, em direitos de defesa, direitos a prestação e direito de participação. 18 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. 19 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. 20 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. 21 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.245 O direito de defesa impõe ao Estado um dever de abstenção, de não-interferência no espaço de autodeterminação do indivíduo. Segundo Gilmar Ferreira22: “Destinam-se a evitar ingerência do Estado sobre os bens protegidos (liberdade, propriedade...) e fundamentam a pretensão de reparo pelas agressões eventualmente consumadas.” O direito a prestação visa à consecução de atividades do Estado com a finalidade de diminuir as desigualdades, buscando uma configuração igualitária da sociedade em suas realizações e oportunidades, configurando um direito de promoção. Essa prestação pode se referir a uma prestação material ou a uma prestação jurisdicional. A prestação material resulta da concepção social do Estado, sendo seu objetivo executar uma ação que tenha utilidade concreta. Entre esses direitos temos o direito à educação e à saúde, quando o indivíduo não pode, por seus próprios meios, alcançar as condições necessárias para desfrutar desses serviços. A maioria dos direitos de prestação depende da interposição do legislador a fim de ser efetivada, tanto na organização do plano orçamentário, de iniciativa do Executivo, assim como na configuração das leis que dão sustentação aos setores amparados por essas políticas públicas. Os direitos de prestação material estão relacionados ao objetivo de diminuir as desigualdades de oportunidades na sociedade, ou seja, tentam implementar uma distribuição de riquezas mais justa. Sendo assim, dependem da existência de recursos para sua efetivação, são satisfeitos segundo as conjunturas econômicas, de acordo com as disponibilidades, na forma prevista pelo legislador. A limitação de recursos econômicos leva à necessidade do Estado realizar opções para o uso das verbas mediante planejamento de suas atividades. Diante dessa limitação, diz-se que os direitos de prestação são limitados pela reserva do possível23. 22 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. 23 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana FIlchtner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti.(organizadores). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. Por outro lado, é inadmissível que aquelas prestações já existentes e efetivadas sejam retiradas do mundo fático, é a proibição do retrocesso24. Os direitos fundamentais de participação garantem a participação dos cidadãos na formação da vontade do país. Seja através do exercício dos direitos políticos, seja na formação de organizações e movimentos sociais que busquem interferir nos destinos da sociedade de forma pacífica. Assim, em uma democracia mais desenvolvida, onde a sociedade participa com maior intensidade, é possível uma interferência mais imediata como na presença de representantes em discussões com os planejadores e executores de políticas públicas. Existe um complexo de mecanismos que forma o sistema de proteção dos direitos fundamentais. Eles são dotados de natureza normativa, institucional ou processual com o objetivo de assegurar a plena realização desses direitos. O mecanismo normativo de proteção é representado pela cláusula pétrea ou limitação material explícita ao poder constituinte derivado reformador. Nela encontramos a proibição de reforma constitucional que alcance a essência dos institutos enumerados taxativamente no artigo 60, § 4º, da CF. Os mecanismos institucionais são proporcionados pela ação do Poder Judiciário, Funções Essenciais à Justiça e Tribunais de Contas. O Poder Judiciário desempenha o controle de constitucionalidade, negando a eficácia das leis e atos normativos que impliquem a violação dos direitos fundamentais, e também através do controle dos atos administrativos que importem violação dos direitos fundamentais subjetivamente considerados. Além do Judiciário, temos as instituições do Ministério Público e Defensoria Pública que, dentre as suas funções e prerrogativas, devem viabilizar a proteção de interesses públicos sociais indisponíveis. Os Tribunais de Contas atuam no controle da execução orçamentária, tanto no julgamento das contas prestadas pelos administradores quanto no julgamento de atividade administrativa que resulte em prejuízos ao erário público. Na hipótese de ameaça ou lesão a direito fundamental sob fiscalização, a efetividade das decisões finais 24 BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p.262. do Tribunal de Contas é garantido pela possibilidade de expedição de medidas cautelares pelo Judiciário. Os mecanismos processuais de proteção dos direitos fundamentais são sistematizados pelos remédios constitucionais, ações de natureza constitucional que objetivam tornar efetivas as garantias constitucionais dos direitos fundamentais. São eles: o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data, a ação popular e a ação civil pública. Em todos eles devem ser observadas as condições da ação, onde a possibilidade jurídica é alcançada pela própria vocação dessas ações e pela impossibilidade de inércia do Judiciário diante da provocação do interessado em proteger esses direitos. O interesse processual ocorrerá sempre que ocorrer o desrespeito a um direito fundamental, principalmente quando atingida diretamente a dignidade do indivíduo. E, finalmente, a legitimidade assiste no pólo ativo, aquele que teve seu direito fundamental ofendido ou aqueles enumerados na própria norma como representantes na proteção de direitos transindividuais, principalmente o Ministério Público, e no pólo passivo o Estado, principalmente nas causas que alcançam os direitos prestacionais, podendo alcançar também a particulares conforme mencionado anteriormente. 2.1. Direito Fundamental e o Princípio da Proibição do Retrocesso Social Quando o constituinte originário faz constar da Carta Magna a previsão de direitos fundamentais, determina que sejam cumpridas todas as etapas para a concretização de tais direitos. Além disso, deve existir uma certeza de que esses mesmos direitos não possam ser extirpados por falta de suporte normativo suficiente. A Constituição cria para o legislador a obrigação de produzir leis que garantam a concretização dos direitos fundamentais sociais, assim como estabelece que não se possam revogar as leis que cuidam dessa tarefa, sem que seja criada uma norma substitutiva. Além disso, não se admite a redução de forma arbitrária ou desproporcional da normatização infraconstitucional de um direito fundamental social. Em apertada síntese, a proibição do retrocesso se destina à exigência de desenvolvimento ou, ao menos, da manutenção dos níveis gerais de proteção social alcançados pela atuação do Estado. Quando um direito social é efetivado, ele ganha a condição de direito de defesa, ou seja, o Estado não pode agir, ou se omitir, de forma que prejudique esse mesmo direito. Segundo leciona Breus, o princípio da proibição do retrocesso social25 está vinculado às idéias de segurança jurídica e dignidade da pessoa humana e se manifesta através da garantia constitucional dos direitos adquiridos, dos atos jurídicos perfeitos e da coisa julgada; através das limitações constitucionais às restrições legislativas aos direitos fundamentais; através dos limites materiais ao poder de reforma da Constituição; e através da vedação de produção normativa que leve ao retrocesso na concretização dos direitos fundamentais. Decorre esse princípio das normas constitucionais que representam o princípio do Estado Democrático e Social de Direito, principalmente o princípio da segurança jurídica; o princípio da dignidade humana, sendo inadmissíveis as medidas que se situem abaixo de um nível mínimo de proteção dos direitos sociais; e o princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, decorrentes da previsão do § 1º, artigo 5º da Constituição. Na jurisprudência, encontramos a aplicação desse princípio de forma exemplar em decisão do TRF da 4ª Região26, onde um adolescente postulava a pensão previdenciária por morte de sua avó, que possuía sua guarda. Sob o argumento da proibição do retrocesso, fez prevalecer a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente sobre a Lei 8.213/91, que negava o direito pleiteado pelo autor da ação, garantindo a proteção previdenciária do adolescente. BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 262 26 TRF 4ª Região. Apelação Cível. 2006.72.99.000635-6/SC. REl. Juiz Federal Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia. Ementa publicada no DJ em 16.08.2006. 25 2.2. O Mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais A figura do mínimo existencial integra o conceito de direitos fundamentais. Segundo Sarlet27, há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que exige prestações positivas por ele. Sem o mínimo necessário à existência não há possibilidade de sobrevivência digna do ser humano. O mínimo existencial não é considerado um valor ou princípio jurídico, mas o conteúdo essencial dos direitos fundamentais que não se sujeita à ponderação. É o núcleo intocável e irrestringível dos direitos fundamentais servindo como limite para a atuação do Estado, ou seja, é seu núcleo essencial sem o qual é impossível vislumbrar a existência daquele direito. Assim, de outro modo, os direitos sociais prestacionais, que excedam o mínimo existencial, não sendo fundamentais, podem sofrer restrições pelo legislador. Ele ostenta uma dimensão positiva, que envolve um conjunto essencial de direitos prestacionais, e uma dimensão negativa, operando como um limite à prática de atos pelo Estado ou por particulares que retirem do indivíduo as condições materiais indispensáveis para uma existência digna. Segundo o magistério de Figueiredo28, existem três teorias sobre as características de garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais: a relativa, a absoluta e a mista. A teoria relativa defende que o conteúdo essencial é resultado de uma ponderação, de uma aplicação do princípio da proporcionalidade na definição do mínimo existencial frente à realidade. Para a teoria absoluta existe um núcleo em cada direito fundamental impossível de ser alterado ou relativizado. Na teoria mista, o núcleo essencial estaria cercado por elementos satélites passíveis de relativização. Predomina hoje a compreensão de que a garantia à prestação dos direitos fundamentais tenha 27 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana FIlchtner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti.(organizadores). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. 28 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para a sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p.177. caráter absoluta, mas há uma tendência ao crescimento de opiniões favoráveis à relativização da dignidade humana em casos extremos. O mínimo existencial fica limitado à reserva da lei, principalmente a lei orçamentária. Ainda que o mínimo existencial não se encontre sob a discricionariedade da Administração ou do Legislativo, fica submetido à atuação destes poderes quando não há norma positivada sobre a atuação na realização de atividade que efetive os direitos fundamentais. Na ocorrência dessas lacunas normativas, cabe principalmente à Administração a interpretação do que seja o conteúdo do mínimo existencial. Por outro lado, quando existe previsão de reserva orçamentária positivada no ordenamento jurídico , não haverá grau de discricionariedade a ser desfrutado pela Administração nem pelo legislador no que cabe ao montante a ser utilizado nessas áreas. Sendo assim, se o Estado tem o dever de oferecer prestação em matéria de saúde por força do próprio texto constitucional parece óbvio que a Administração está obrigada a tomar decisões orçamentárias relacionadas a esse dever. Nesse cenário, diante de tantas mazelas envolvendo a saúde pública no Brasil, cabe ao Executivo e ao Legislativo destinar recursos suficientes para resolver essas pendências. A não destinação de verbas nesse sentido será considerada uma deliberação incompatível com a Constituição, portanto, inválida. Cabe ressaltar que no Estado Democrático de Direito deve-se buscar a garantia do mínimo existencial dentro da maior dimensão possível. Quanto mais essencial for a necessidade material em questão, maior será o peso atribuído ao direito social pretendido. Em países em desenvolvimento como o Brasil, o mínimo existencial deve ter uma dimensão maior quando comparada aos países ricos, pois a própria sobrevivência de grande parte da população depende da efetividade de políticas públicas. Como bem observa Ricardo Lobo Torres: As imunidades e os privilégios dos pobres e as suas pretensões à assistência requerem interpretação extensiva. Embora paradoxal, o mínimo existencial protege ricos e pobres dentro do limite necessário à defesa da liberdade. As políticas públicas, inclusive judicializadas, devem garantir o máximo do 29 mínimo existencial, e não apenas o mínimo do mínimo existencial. TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.333. 29 O caminho da aplicação de uma “progressividade” no conteúdo do mínimo existencial implica em uma otimização dos direitos sociais. Tendência que ajudaria na realização do objetivo constitucional de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Infelizmente, é comum ocorrer uma deturpação na interpretação do Judiciário sobre o tema quando chamado a se manifestar, por exemplo, no fornecimento de medicamentos 30ou na determinação para que o Estado patrocine tratamento médico no exterior31, não considerando a situação econômica do requerente ou a viabilidade de tais prestações sem que haja um prejuízo na efetivação das atividades de Saúde Pública. Por isso, não se pode deixar de exigir do Judiciário que assuma a sua competência para determinar o fornecimento do mínimo essencial independente de qualquer outra coisa, como sucedâneo das normas constitucionais sobre a dignidade humana e sobre a saúde, sem deixar de observar o todo em relação às demandas individuais. Enquanto o Supremo Tribunal Federal já demonstrou sua tendência de exigir que as políticas públicas de saúde sejam dirigidas aos pobres como aconteceu com os portadores do vírus da AIDS32, as instâncias inferiores tem abusado da prática das concessões indiscriminadas de prestações positivas a indivíduos da classe média e alta. Em alguns casos chegam a determinar o fornecimento de medicamentos importados de alto preço que são estranhos ao escopo da política pública de medicamentos adotada pelo SUS33,34. Por isso, não se deve perder de vista o sentido do mínimo existencial, com o risco de adotar uma conduta paternalista que, ao final, subtrairá dos que pouco já possuem para beneficiar os que não dependem do Estado para garantir seus direitos fundamentais. Nesse sentido alerta Torres: 30 STJ, RMS 11.183 – PR, Rel. Min. José Salgado, DJU 04.09.2000. STJ, Resp 353.147-DF, Rel. Min. Franciulli Neto. J. 15/10/2002. 32 STF. ADPF/DF 45. Rel. Min. Celso de Mello. J. 29/04/2004. 33 Justiça Federal. 1ª Vara Federal de Curitiba.Autos nº 2007.70.00.015638-0. Boletim JF 269/2008. 34 Justiça Federal . 4ª Vara Federal de Curitiba. Autos nº 2006.70.00.014000-8 . Boletim JF 256/2007. 31 No Brasil, assiste-se à depredação da renda pública pela classe média e pelos ricos, especialmente nos casos de remédios estrangeiros, com o risco de criar um impasse institucional entre o Judiciário e os poderes políticos, se 35 prevalecer a retórica dos direitos individuais para os sociais. Dificuldade constante é a de definir o que seria o mínimo existencial em termos de prestações de saúde. O eixo sobre o qual deve ser confeccionado este conceito é a proteção da dignidade humana e a participação da comunidade na organização dos serviços de saúde, abandonando uma visão paternalista de que só o Estado conhece as carências e necessidades da população. Em termos efetivos, dentro da proposta de Barcellos36, esse mínimo essencial seria concretizado através da adoção de políticas públicas voltadas para a educação da população sobre os problemas de saúde que a afetam, ensinando como evitá-los, resolvê-los e como se recuperar de suas conseqüências; de fornecimento de provisões de nutrição adequada, tanto para evitar a desnutrição e outras doenças por deficiências de nutrientes como para combater a obesidade; da construção de rede de água tratada e esgoto que alcance toda a população; dos cuidados da saúde da gestante e da criança, desde o pré-natal, inclusive com aconselhamento voltado ao planejamento familiar e com uma política efetiva nos cuidados com o aborto; da imunização contra as principais doenças preveníveis por esse método; do fornecimento de medicamentos que atendam os programas de saúde pública; e da garantia de acesso ao tratamento hospitalar em todos os níveis, desde o ambulatorial até às unidades de Terapia Intensiva. 2.3. A Saúde como Direito Fundamental A saúde constitui um direito fundamental do homem, concepção que resulta de uma longa evolução nos conceitos de saúde e direito. A saúde, primitivamente concebida como uma dádiva dos deuses, passa a ser uma manifestação do bem estar do ser humano. Para alcançar o seu benefício deve a pessoa buscar uma orientação de vida 35 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.338. 36 BARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestação de saúde: complexidades, mínimo existencial e o valor das abordagens coletiva e abstrata. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.p. 810. adequada para o equilíbrio de sua vida, ao mesmo tempo deverá ter ao seu alcance uma estrutura que lhe permita tal destino. A partir do século XX, a saúde passou a ser configurada não mais como a simples ausência de doença, mas como sendo um estado de bem estar físico, mental e social37. É a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade e acesso a serviços de saúde, ou seja, é o produto das condições mínimas da existência do homem com dignidade. Sendo assim , a visão mais moderna do que é saúde leva à conclusão de que a sua promoção significa intervir socialmente na garantia dos direitos e nas estruturas sociais e econômicas que perpetuam as desigualdades na distribuição de renda, bens e serviços. As políticas de saúde devem ser planejadas na intenção de corrigir o desequilíbrio social e diminuir as desigualdades sociais, conforme preconizado na Constituição Federal. Na proteção e promoção ao direito da vida teríamos, intrinsicamente, o direito à promoção da saúde, que é um direito difuso exercido, como regra, em face do legislador a quem cabe instituir as normas relativas às ações e serviços de saúde; o direito à prevenção, que é um direito essencialmente coletivo exercido, principalmente, em face do executivo, significando o poder de exigir prestações da Administração para evitar a progressão de condições insalubres para a comunidade; e o direito à recuperação, que é um direito essencialmente individual a prestações afirmativas exercido em face do Executivo e da sociedade. Como referências históricas na evolução da compreensão da saúde como direito fundamental, temos a realização, em setembro de 1978, da primeira Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, organizada pela OMS e UNICEF em Alma-Ata, capital do Casaquistão. A Conferência foi assistida por mais de 700 participantes e resultou na adoção de uma Declaração que reafirmou o significado da saúde como um direito humano fundamental e uma das mais importantes metas sociais mundiais. Constituição da Organização Mundial de Saúde- OMS – Preâmbulo: “Os Estados parte desta Constituição declaram, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, que os seguintes princípios são basilares para a felicidade dos povos, para as suas relações harmoniosas e para a sua segurança; A saúde é um estado de completo bem bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.” 37 De acordo com a Declaração de Alma-Ata, ações dos diferentes atores internacionais no sentido de diminuir as diferenças no desenvolvimento econômico e social dos países deveriam ser estimuladas para que se atingisse a meta de saúde para todos no ano 2000, reduzindo-se a lacuna existente entre o estado de saúde dos países em desenvolvimento e desenvolvidos. A promoção e proteção da saúde dos povos passaram a ser consideradas essenciais para o contínuo desenvolvimento econômico e social e, conseqüentemente, condição única para a melhoria da qualidade de vida dos homens e para a paz mundial. Como bem sintetiza o item X da Declaração de AlmaAta: Poder-se-á atingir um nível aceitável de saúde para todos os povos do mundo até ao ano 2000, mediante o uso racional dos recursos mundiais, dos quais uma parte considerável é atualmente gasta em armamento e conflitos militares. Uma política legítima de independência, paz e desarmamento pode e deve disponibilizar recursos adicionais, que podem ser destinados a fins pacíficos, e conduzir à aceleração do desenvolvimento social e econômico, do qual os cuidados de saúde primários, como parte essencial, devem receber 38 sua parcela apropriada. Em 1986, a Carta de Ottawa39, elaborada na Conferência do Canadá, listou condições e recursos fundamentais, identificando campos de ação na promoção da saúde e ressaltando a importância da eqüidade. São identificados cinco campos de ação na promoção da saúde: elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis, criação de ambientes favoráveis à saúde, reforço da ação comunitária, desenvolvimento de habilidades pessoais e reorientação dos serviços de saúde. Seguindo esse direcionamento, em 1988, a Conferência da Austrália enfatizou a importância das políticas públicas saudáveis, que se caracterizam “pelo interesse e pela preocupação explícitos de todas as áreas das políticas públicas com a saúde e a equidade, e pelos compromissos com o impacto de tais políticas sobre a saúde da população”40, destacando a responsabilidade das decisões políticas, especialmente as de caráter econômico para a saúde. As áreas prioritárias para as políticas públicas em saúde 38 Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde; 6-12 de setembro 1978; Alma-Ata; USSR. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde.. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001. p. 15. 39 Carta de Ottawa. Disponível em <http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Ottawa.pdf. >. Acesso em: 12 jan. 2009. 40 Declaração de Adelaide. Disponível em < http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Adelaide.pdf >. Acesso em : 12 jan. 2009. . seriam o apoio à saúde da mulher, alimentação e nutrição, tabaco e álcool, e criação de ambientes favoráveis. Na Suécia, foi organizada a terceira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde em 1991, onde se destacou a ecologia e a saúde, concluindo-se que estes são interdependentes e inseparáveis. Como conseqüência, as políticas governamentais deveriam estabelecer prioridades de desenvolvimento que respeitassem esta interrelação. Para se alcançar níveis desejáveis de saúde entre as pessoas é necessária a preservação de um meio ambiente saudável. A quarta Conferência foi realizada em Bogotá, Colômbia, em 1992 trazendo a discussão para a situação da saúde na América Latina, buscando transformar as relações existentes e conciliar interesses econômicos e propósitos sociais de bem estar. O documento elaborado reiterou a necessidade de mais opções nas ações de saúde pública, orientadas para combater o sofrimento causado pelas enfermidades oriundas do atraso e da pobreza, bem como as derivadas da urbanização e da industrialização nos países em desenvolvimento. Entre os principais compromissos assumidos pelos signatários do documento de Bogotá41 estão os de avançar com o conceito de saúde condicionado por fatores políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, e com a promoção da saúde como estratégia para modificar esses fatores condicionantes; e incentivar políticas públicas que garantam a equidade e favoreçam a criação de ambientes e opções saudáveis. Em 1998, a Assembléia Mundial da Saúde adotou uma Declaração reiterando a estratégia de “Saúde para Todos no Século XXI” e a necessidade de implementação de novas políticas nacionais e internacionais. Nessa perspectiva, observa-se que a humanidade, representada por diferentes atores sociais, ainda busca transformar o paradigma vigente para a saúde, conciliando paradoxos e desigualdades crescentes entre fatores de natureza social, econômica, política, cultural e ambiental. 41 Declaração de Santafé de Bogotá. Conferência Internacional de promoção da saúde; 9-12 de novembro 1992; Santafé de Bogotá; Co. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. Declaração de Alma-Ata; Carta de Ottawa; Declaração de Adelaide; Declaração de Sundsvall; Declaração de Santafé de Bogotá; Declaração de Jacarta; Rede de Megapaíses; Declaração do México. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001. p. 15. Na quinta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), realizada na Cidade do México em 2000, foi elaborada a Declaração do México42, que recomenda a promoção da saúde como prioridade fundamental das políticas e programas locais, regionais, nacionais e internacionais. Tais orientações que abordam o direito à saúde como multidisciplinar foi adotada pelo Legislador brasileiro na Lei 8.080 de 19/09/1990, a Lei Orgânica da Saúde, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde e organização e o funcionamento dos serviços correspondentes em seu artigo terceiro: Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País. Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. A noção de que a saúde é um processo continuado e interdependente de preservação da vida criou uma nova dimensão social. A saúde tornou-se um elemento no processo de cidadania. Assim, todos cidadãos têm direitos, mas são igualmente responsáveis pela manutenção desses direitos. A saúde, dentro deste enfoque, ocorre e é conseqüência de ações realizadas em toda a sociedade. O desenvolvimento do conceito de saúde revela sua inclinação indissociável à idéia de direito fundamental e, consequentemente , com a efetiva participação do Estado na garantia desse direito através de políticas públicas. Como constata Sueli Gandolfi Dallari: Assim, sem qualquer receio de deslize metodológico, pode-se afirmar que, com a criação do Estado Moderno, a saúde pública é uma política de Estado. 42 Declaração do México. Quinta Conferência Internacional Sobre Promoção da Saúde.Cidade do México, México, 5-9 de junho de 2000 . Disponível em <http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Mexico.pdf>. Acessado em: 15 jan 2009. E, sob o prisma jurídico, de tal conclusão decorre a constatação da existência de uma estrutura legal de base constitucional fundamentando todo e qualquer atuação estatal em nome da promoção, proteção e recuperação da saúde 43 pública. Na Assembléia Constituinte de 1988 ficou clara a opção do legislador em garantir a saúde como direito a ser garantido pelo Estado e pela sociedade de maneira inquestionável, algo visível já em seu seu artigo 1º , quando afirma como fundamento da República a dignidade. Também, entre os objetivos fundamentais relacionados no artigo 3º, temos a busca pela diminuição das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos. E, finalmente, no artigo 5º, o estabelecimento de garantia constitucional à inviolabilidade do direito à vida. De maneira mais específica, e sem deixar qualquer margem a dúvidas, cuidou o constituinte de gravar no titulo “Da ordem social”, em seu capítulo II “Da ordem social”, uma seção sobre a rubrica “Da saúde”. Em seu artigo inicial anuncia o reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, prevendo como ações necessárias a sua promoção, proteção e recuperação, além da universalidade de acesso aos seus serviços : Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Ainda dentro do texto constitucional, são confeccionados os princípios da Lei Orgânica de Saúde (Lei 8.080/1990): a universalidade, a hierarquização, a descentralização, a integralidade do atendimento com a priorização das ações preventivas e a participação da comunidade. O direito à saúde deve ser visto em duas vertentes, uma negativa e uma positiva. A vertente negativa consiste no direito do cidadão de exigir do Estado, ou de terceiros, que se abstenha de atos que prejudiquem a saúde coletiva e individual. Já a vertente positiva pretende que o direito à saúde garanta aos indivíduos a prestação estatal de 43 DALLARI, Sueli Gandolfi. Políticas de Estado e políticas de governo: o caso da saúde pública. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (organizadora). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo:Saraiva, 2006, p.252. serviços e ações que busquem a prevenção, cura e recuperação dos estados mórbidos de patologias. Interessante é a observação de José Afonso da Silva sobre a demora do enquadramento da saúde como direito fundamental e da necessidade de se adequá-lo a cada situação onde for exigido: É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem. E há de informar-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito 44 valor sua consignação em normas constitucionais. Seguindo o comando constitucional, elaborou-se a Lei Orgânica da Saúde (na verdade, tal norma seria resultante da junção das Leis 8.080 de 19 de setembro de 1990 e 8.142 de 28 de dezembro de 1990) que trás as diretirzes e limites que devem ser respeitados pela União, pelos Estados e pelos Municípios, ao elaborarem suas próprias normas direcionadas à garantia da saúde. A fim de estimular a participação maior da sociedade no planejamento e no processo de decisão pelas políticas a serem adotadas foram previstas a Conferência de Saúde e os Conselhos de Saúde. A primeira é uma instância colegiada “com a representação dos vários segmentos sociais, para avaliar e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos nívies correspondentes”45. Enquanto isso, os Conselhos de Saúde, órgãos colegiados formados por representantes do governo, dos prestadores de serviços, dos profissionais de saúde e dos usuários, têm caráter permanente e deliberativo, atuando na “formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo”.46 44 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 832. 45 BRASIL. Lei 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. art. 1º, § 1º. 46 Idem. Sendo assim, examinando-se a evolução do tratamento normativo sobre a saúde no Brasil, que culminou com a organização do Siatema Único de Saúde (SUS), podemos concluir que os princípios que devem orientar a atuação do Estado, seja no planejamento, na destinação financeira ou na execução das atividades, estão definidos na Constituição Federal e sua concretização se dará através das políticas públicas desenvolvidas pelos entes federativos. Cabe ainda analisar a complexidade que envolve o direito constitucional a prestação de saúde. É inegável que, caso não se atendam as necessidades de prestação de serviços de saúde pelo Estado, existe um conjunto de prestações de saúde exigíveis diante do Judiciário por determinação e como consequência da Constituição. Isso significa que os poderes constituídos tem a obrigação de disponibilizar aos indivíduos todos os serviços que viabilizem tais prestações, independente de qual for a agenda política de quem está no poder, e que essas obrigações sejam suficientes para atender, pelo menos, um mínimo razoável das carências existentes. Inicialmente, há uma dificuldade natural em desenhar o significado do mínimo de saúde como um compromisso básico de prestação pelo Estado. Não se pode considerar que a obrigação da prestação aceitável seja só aquela que resolva totalmente o problema, mas aquelas que estão disponíveis para a execução pela Administração ou a seu custeio. Ou seja, diante de um fato concreto tem que existir alternativas para a sua solução. Não cabe se exigir do Estado, por exemplo, que disponibilize uma vacina para Dengue e resolva o problema desta endemia, haja visto que não existe tal recurso disponível, mas é factível e razoável que se exija da Administração que desenvolva ações de educação para conscientizar a população dos riscos da doença e como evitar as situações que facilitam o progresso da epidemia. Outro fator indicador das melhores escolhas na área da saúde é a necessidade de que tais ações alcancem o maior número possível de pessoas. A disponibilização das prestações de saúde pela Administração em situações individualizadas, como no fornecimento de medicações de alto custo para patologias raras, tem pouca repercussão no capítulo da saúde pública e na efetivação de uma condição de vida mais digna para a comunidade como um todo. Para piorar essa situação, verifica-se com frequência que é mais fácil o Judiciário determinar tais prestações individualizadas do que impor uma ordem judicial para que se cumpram as metas previstas nas políticas de saúde pública. Concluindo, o desenvolvimento do conceito mais moderno de saúde pública adquire uma estreita relação com a idéia de políticas públicas. É inadmissível a ausência do Estado na defesa da saúde pública através de sua atividade de planejamento e execução de pretações à sociedade. 3. Políticas Públicas Com o desenvolvimento e o estabelecimento do Estado Constitucional a atividade de governar passa a exigir o exercício combinado de várias tarefas em que a atividade de governo não fica restrita à administração de conjunturas. Faz-se necessário o planejamento para ações permanentes e futuras com o estabelecimento de políticas de médio e longo prazo. Assim, nasce o governo por políticas, ou governo de políticas públicas. Segundo Patrícia Helena Massa-Arzabe: A ação do Estado por políticas se faz vinculada a direitos previamente estabelecidos ou a metas compatíveis com os princípios e objetivos constitucionais, de forma que, ainda quando aqueles a serem beneficiados não tenham um direito a certo benefício, a provisão deste benefício contribui 47 para a implementação de um objetivo coletivo da comunidade política. Podemos conceituar Política Pública como “o conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público que visa dar conta de determinada demanda, em diversas áreas. Expressa a transformação daquilo que é do âmbito privado em ações coletivas no espaço público.”48 Compreende um elenco de ações e procedimentos que visam à resolução pacífica de conflitos em torno da alocação de bens e recursos públicos, sendo que os personagens envolvidos nestes conflitos são denominados "atores políticos", cujo elenco é formado pela população, pelo legislador, pelo administrador público e pelo Judiciário. A concepção e efetivação de políticas públicas devem ser respostas a algum aspecto da sociedade que venha a ser compreendido como um problema de tal intensidade que sem a intervenção do Estado não será resolvido de maneira adequada. O 47 MASSA-ARZABE, Patrícia Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas. In:BUCCI, Maria Paula Dallari (organizadora). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, pg.51-74. 48 GUARESCHI, Neuza; COMUNELLO, Luciele Nardi ; NARDINI, Milena; HOENISCH, Júlio César. Problematizando as práticas psicológicas no modo de entender a violência. In: Violência, gênero e políticas públicas. Orgs: STREY, Marlene N.; AZAMBUJA, Mariana P. Ruwer; JAEGER, Fernanda Pires. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2004, p.180 andamento natural dos acontecimentos e manutenção da máquina administrativa não seriam suficientes para estabelecer o equilíbrio entre carências e resoluções. Eros Grau coloca a importância da implementação de políticas públicas como medida de “prevenção dos conflitos sociais”49, sendo uma atuação interventiva na ordem social, não só como produtor de direito e provedor de segurança mas como realizador de programs de ação, incluindo no rol destas políticas o próprio Direito. A formulação de políticas públicas passa por um processo em que estão presentes os poderes do Estado. O Legislativo opera na confecção de leis que darão os meios, sejam de orientação sejam financeiros, para a consecução dessas políticas. O Judiciário deverá verificar a compatibilidade das políticas com as previsões normativas constitucionais e infraconstitucionais. E o Executivo participa na proposta dessas políticas, no seu planejamento, assim como em sua execução. No campo da saúde, o desenvolvimento das políticas públicas significa a intervenção estatal, e da sociedade, na garantia dos direitos à saúde e nas estruturas econômicas que perpetuam as desigualdades na distribuição de bens e serviços, com o objetivo de corrigir os desequilíbrios e reduzir as desigualdades sociais nesta área.50 O acesso à saúde deve proporcionar tratamento médico e hospitalar (inclusive na fase de reabilitação de doença), odontológico, psicológico, nutricional , educação para a saúde e prevenção, dentre outros, devendo ser os mais eficazes e sem impor sacrifícios desproporcionais aos doentes. No Brasil, encontramos uma série de problemas derivados de desigualdades sociais e econômicas que se perpetuam há décadas. Um país em que a maioria dos habitantes não consegue conhecer ou entender seus direitos, com baixa mobilização da sociedade e um distanciamento notável entre os discursos dos governantes e suas ações em prol do desenvolvimento social. Nesse cenário vemos todos os dias fatos que demonstram a precariedade da saúde pública: o ressurgimento e recrudescimento de doenças como a dengue, a tuberculose e a hanseníase; surtos repetidos de infecções hospitalares em unidades de 49 50 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito proposto. 7ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. 8ª ed. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Edições Loyola, 2008, p. 204. terapia intensiva; falta de equipamentos hospitalares, assim como a ausência de manutenção destes; falta de profissionais nas áreas de medicina de prevenção primária51 e constantes greves de profissionais da saúde por melhores condições de trabalho. Além disso, dentro de uma concepção ampla de saúde, considerando que as causas externas de morbidade, tais como decorrentes de atos violentos e acidentes de carros, correspondem a um grande percentual das atividades do setor de saúde, vemos que a falta de uma ação mais efetiva do Estado nos campos da segurança pública e na segurança do trânsito fomentam a ineficiência de nossa saúde pública. É inegável que após a instituição do Sistema Único de Saúde como principal vetor de políticas públicas em saúde surgiu um novo modelo com perspectivas positivas de efetividade na promoção da saúde. Até então, o planejamento e execução das ações era centralizado pelo governo federal que mal conhecia as necessidades e peculiaridades das regiões mais distantes que, por sua vez, ficavam embaladas pela sorte ou por iniciativas de organizações humanitárias, como as tradicionais Santas Casas de Misericórdia, que durante décadas foram provedoras de atendimento médico às populações pobres. Antes da CF 88 e da instituição do SUS, o atendimento à saúde era garantido apenas para quem era registrado no emprego e contribuia para a previdência social (INPS, IAPAS, IPASE, etc.). Além disso, algumas empresas, interessadas em manter uma mão-de-obra saudável que garantisse melhor lucratividade, investiam em grupos de atendimento médico aos seus empregados. Com a instituição do SUS, o atendimento à saúde passa a ser universalizado com a garantia de acesso a qualquer pessoa independente de qualquer tipo de associação e contribuição. Isso trouxe a oportunidade da população conseguir atendimento médico, porém não garantiu as condições minimamente dignas para esse atendimento. Para garantir o financiamento da saúde, a CF 88 determinou que as ações de saúde, tanto a assistência médica como as ações coletivas, deveriam ser financiadas com Medicina de prevenção primária: ações na área de saúde que busca prevenir doenças e promover a saúde, entre suas atividades temos imunização, prevenção de diabetes, acompanhamento de crescimento e desenvolvimento das crianças, acompanhamento de pré-natal, etc. ( ROUQUAYROL, Maria Zélia. Epidemiologia e Saúde. 6ªed. Rio de Janeiro: MEDSI, 2003, p. 677). 51 recursos provenientes do Orçamento da Seguridade Social, do Orçamento da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios e das contribuições sociais. A Emenda Constitucional 29, de 13 de setembro de 2000, estabelece um piso mínimo de orçamento vinculado para a saúde nos níveis municipais, estaduais e federal. A partir de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde seriam de 12% (doze por cento) para os estados e 15% para os municípios do produto dos impostos arrecadados. Quanto à União, foi estabelecido que no ano de 2000 seria acrescentado 5% (cinco por cento) em relação ao montante do orçamento de 1999 para a saúde, e a cada ano subsequente seria feita a correção de acordo com a variação nominal do PIB (Produto Interno Bruto). Porém, ainda não foi aprovada a regulamentação dessa Emenda, o que vem gerando constantes problemas no gerenciamento desses recursos. Segundo levantamento da Frente Parlamentar da Saúde52, seria necessário crédito suplementar de R$ 5,5 bilhões para fechar as contas do setor de saúde no ano de 2008. Sendo assim, o financiamento do Sistema Único de Saúde continua sendo alvo de muito debate e polêmica, principalmente no tocante aos critérios de repartição dos recursos financeiros centralizados no Fundo Nacional de Saúde. O gasto público com saúde corresponde às despesas com ações e serviços públicos de saúde definidas na quinta e sexta diretrizes da Resolução 322/2003 do Conselho Nacional de Saúde. A sua composição financeira compreende: • Gastos diretos (despesas correntes, investimentos, outras despesas de capital) efetuados em cada esfera de governo (administração direta, autarquias e fundações); e • Transferências negociadas de recursos a outras esferas de governo (estados e municípios) e a instituições privadas1. Excluem-se os gastos com encargos da dívida (juros e amortização) e os realizados com inativos e pensionistas do setor saúde. No âmbito federal excluem-se, também, as despesas com o Fundo de Erradicação e Combate à Pobreza. Excluem-se também os gastos com saúde destinados a clientelas fechadas, como os realizados por 52 Saúde precisa de 5,5 bi para 2009. Revista Medicina. Conselho Federal de Medicina. Brasília, nº 173, p.10, set/out, 2008. hospitais da estrutura dos ministérios militares, bem como despesas com a assistência médica e odontológica prestada a servidores públicos federais, que são classificadas como benefícios a estes servidores. Em 200453, a despesa com saúde pública, no Brasil, por habitante foi de R$ 359,00 (trezentos e cinquenta e nove reais) nas três esferas de governo: pouco mais da metade, R$180,00 (cento e oitenta reais) foi financiada pela União, R$ 88,00 (oitenta e oito reais) pelos estados e R$ 90,00 (noventa reais) pelos governos municipais. As Regiões Sudeste e Sul receberam mais recursos federais per capita que as demais regiões. Em termos de gastos estaduais, o maior volume de recursos per capita ocorre nas Regiões Norte e Centro Oeste, enquanto o maior volume de recursos municipais per capita é encontrado nas Regiões Sul e Sudeste. Entre 2000 e 2004, o maior crescimento dos gastos públicos com saúde ocorreu na esfera estadual (+137%, em média), sem considerar a inflação do período. Por região, destaca-se o crescimento dos gastos estaduais (+159%) e municipais (+171%) na Região Nordeste. Ao analisarmos o papel da Administração Pública não podemos fugir às variações encontradas nos diferentes períodos dos governos. Dentro de uma democracia é lícito e necessário o rodízio de diversas tendências políticas nos cargos eletivos, principalmente no Executivo. Mas essa sucessão de ideologias e práticas não devem exceder as necessárias execuções de políticas públicas que só garantem a persecução de suas metas pela sua continuidade. Como bem destaca o Relatótio do BID sobre a America Latina no ano de 2006: Uma burocracia competente e independente, à qual se possa delegar parte da tomada de decisões e da implementação de políticas públicas, poderia facilitar acordos intertemporais, particularmente em áreas de políticas que são propensas a politização e oportunismo político.54 53 Gasto público com saúde per capita, por esfera de governo. Brasil e grandes regiões, 2000 e 2004. Disponível em < http://www.ripsa.org.br/fichasIDB/record.php?node=E.6.2&lang=pt >. Acesado em: 12 jan 2009. 54 BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO; DAVID ROCKEFELLER CENTER FOR LATN AMERICA STUDIES. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina: Relatório 2006. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, pg. 149. Segundo os critérios adotados pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento55, a análise das políticas públicas envolvem a : • Estabilidade: em que medida as políticas são estáveis ao longo do tempo; • Adaptabilidade: em que medida as políticas podem ser reajustadas quando falham ou quando o cenário muda; • Coerência e coordenação: qual o grau de compatibilidade com outras políticas afins e a possibilidade de ações coordenadas com potencialização de resultados; • Qualidade da implementação e da aplicação efetiva; • Consideração do interesse público: em que grau as políticas atendem ao interesse público, interpretado aqui como a finalidade da Adminstração cumprir a proteção da dignidade humana e garantia dos Direitos Fundamentais; • Eficiência: em que medida as políticas conseguem os resultados buscados com o mínimo de alocação de recursos possíveis. Outro elemento a ser considerado é a capacidade das políticas públicas alcançarem o bem comum, que segundo Garcia de Enterría “constitui a raiz ou a alma de uma sociedade política, englobando os fins primordiais que caracterizam e fundam o Estado como a forma mais perfeita de organização social”56. Apesar das dificuldades em conceituar “bem comum”, esse elemento pode ser compreendido, segundo Brugger57 na soma dos conceitos de segurança jurídica, legitimidade e conveniência. 55 56 Idem, pag. 17. GARCIA DE ENTERRÍA. La lengua de los Derechos: La formacion Del Deredho Público Europeo trás La Revolución Francesa, p. 109 . Apud BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. Pg. 114 57 BRUGGER, Winfried. O bem comum como conceito de integração entre segurança jurídica, legitimidade e conveniência. In: REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério Gesta (organizadores). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, p. 2.033. A segurança jurídica trás a certeza de que o direito válido não esteja somente posto, mas que, em caso de necessidade, seja aplicado, ainda que coativamente. As regulações devem ser claras e estáveis, com sua consolidação na consciência jurídica da população. Isso passa por uma delimitação clara e definida das competências de cada um dos poderes estatais. A legitimidade engloba todos os processos formadores de decisões e que devem se submeter aos mandamentos fundamentais do ordenamento jurídico, tanto de sua origem como em sua extensão. Não se pode aceitar como único fundamento o poder de uma maioria, seja circunstancial ou não, mas a busca de um desenvolvimento social que englobe as necessidades primordiais de toda a comunidade. A conveniência, aqui vista como a racionalidade instrumental entre meios e fins, deve ser trabalhada com a arguta avaliação dos fatos e necessidades do momento. A agilidade das decisões frente a novas demandas deve ser considerada como instrumento possível na busca do bem comum. Na consideração sobre a implementação e aplicação efetiva nota-se a extrema importância do Poder Judiciário, considerado pelo relatório do BID58 como “o agente mais óbvio dentro do sistema político para fazer cumprir as normas”. Isso se dá pela garantia da aplicação intertemporal de decisões políticas e de políticas públicas anteriores, conforme refletidas em constituições e leis. A correlação entre efetividade de políticas públicas e a medida de independência do judiciário é significativa59. Nesse sentido, alerta o relatório do BID que “a presença de um árbitro razoavelmente independente revela-se, portanto, muito importante para determinar se o jogo político gera ou não políticas públicas de alta qualidade.”60 No mesmo relatório, está fortemente recomendado o esforço para o fortalecimento das instituições do Estado para uma maior efetividade das políticas públicas:“As instituições e os processos não são neutros ou meramente instrumentais; 58 Banco Interamericano de Desenvolvimento; David Rockefeller Center for Latin America Studies. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina: Relatório 2006. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. Pg. 146 59 60 Idem Idem eles são o cadinho em que as políticas são forjadas e moldadas e adquirem sua verdadeira forma e seu significado”61 As políticas e as instituições são inseparáveis e devem ser consideradas em conjunto na análise e planejamento de estratégias e operações. Um Legislativo que busque atender melhor os interesses e necessidades de seus representados, concebido dentro de um processo democrático onde se respeitem as diferenças e não beneficie interesses de pequenos grupos poderosos, será o local mais adequado para a construção de leis que busquem a instituição de políticas públicas efetivas. O Executivo deve pautar suas ações nos princípios basilares da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Além disso, deve contar em seus quadros com profissionais competentes e dispostos a executarem as ações necessárias para os melhores resultados de suas metas. Inicia seu trabalho pelo planejamento e arrecadação de recursos, passando pela execução, avaliação e reconsideração de planos, se assim for necessário. Finalmente, o Judiciário, assim como o Ministério Público, deve pautar suas ações pela independência e fiscalização do cumprimento das leis, principalmente das normas inseridas na Constituição Federal que servem de fundamento para a construção das políticas públicas. Não se pode negar que o campo das políticas públicas tornou-se uma categoria jurídica que merece toda a atenção dos juristas. As prestações positivas do Estado na área dos direitos sociais são a materialização do eixo fundamental da Constituição em seus objetivos e princípios. Como bem descreve Maria Paula Dallari Bucci62: “A necessidade de compreensão das políticas públicas como categoria jurídica se apresenta à medida que se buscam formas de concretização dos direitos humanos, em particular dos direitos sociais” 61 62 Idem, pg. 254. BUCCI, Maria Paula Dallari (organizadora). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. Sendo assim, o controle jurisdicional que se faz com fulcro na Constituição Federal e no Direito Administrativo, não pode ser afastado da crítica substanciada no andamento dos processos que levam ao desenvolvimento das políticas públicas. Nesse sentido comenta Thiago Lima Breu: A efetividade de uma política pública, de qualquer natureza, está relacionada com a qualidade do processo administrativo que precede a sua realização e que a implementa. As informações sobre a realidade a transformar, a capacidade técnica e a vinculação profissional dos servidores públicos, a disciplina jurídica dos serviços públicos determinarão em concreto os 63 resultados da política pública como instrumento de desenvolvimento. Podemos notar na própria Constituição Federal quatro prioridades a serem buscadas na área de saúde: a prestação de serviço de saneamento (arts. 23, IX; 198,II; e 200, IV); o atendimento materno-infantil (art. 227, § 1º,I); as ações de medicina preventiva (art. 198,II); e as ações de prevenção epidemiológica. Além dessas previsões constitucionais, temos como guia para escolha de políticas públicas na saúde os dados relevantes em matéria de mortalidade. As doenças da modernidade são as que mais matam no Brasil. Dados do Ministério da Saúde confirmam que o perfil da mortalidade no país mudou ao longo dos anos, acompanhando a tendência mundial de mais mortes por doenças crônicas e violentas. Por grupo de causa, as doenças do aparelho circulatório - associadas à má alimentação, consumo excessivo de álcool, tabagismo e falta de atividade física – lideram o ranking e são as que mais matam homens e mulheres no Brasil, 32,2% das mortes em 2005. É o que mostra os dados do capítulo Mortalidade no Brasil e regiões da publicação Saúde Brasil 2007, do Ministério da Saúde64. Esse perfil de mortalidade mostra mudanças que refletem a urbanização rápida e desenvolvimento do país. No passado, o que mais matava no país eram as doenças infecciosas e parasitárias, tais como as diarréias, tuberculose, malária, entre outras. Hoje, com a mudança nas condições ambientais e com o envelhecimento da população, vemos o crescimento das doenças relacionadas à idade mais avançada e estados 63 BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007,pg. 223. 64 Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Disponível em < http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/sis_mortalidade.pdf>. Acessado em: 17 jan 2009. mórbidos ligados à violência urbana, principalmente decorrentes de acidentes de trânsito e uso de armas de fogo. Como as doenças crônicas estão ligadas à inatividade física, ao consumo de álcool, tabaco e alimentação inadequada, os dados reforçam que o brasileiro deve investir na mudança de hábitos e buscar, por exemplo, parar de fumar, consumir alimentos saudáveis como frutas, legumes e verduras, praticar atividade física regularmente e diagnosticar e controlar a hipetensão arterial e a diabetes. Ou seja, temos nas mãos uma longa pauta de políticas públicas de saúde que busca resolver tais problemas, tais como programas de educação em nutrição, programas de orientação e supervisão de atividades físicas e esporte para saúde, políticas de restrição de acesso e uso do tabagismo, políticas de prevenção e controle de doenças como a diabetes e a hipertensão arterial. Digno de nota é a constatação que tais ações não resultariam apenas em diminuir a mortalidade de tais patologias, mas diminuir sua incidência e morbidade, ou seja, teríamos uma incidência menor dessas doenças e, quando ocorressem, suas conseqüências seriam menores. Resultado disso seria uma melhor condição de vida, com maior respeito à dignidade humana e, por outro lado, menores gastos com tratamento e recuperação de seqüelas graves dessas doenças. Para se ter uma idéia da evolução desse perfil de doenças que levam o brasileiro ao óbito, na década de 1930, as doenças infecciosas respondiam por cerca de 46% das mortes em capitais brasileiras. A partir de então, verificou-se a redução progressiva, sendo que, em 2003, essas doenças responderam apenas por cerca de 5%. Por outro lado, as doenças cardiovasculares, que representavam apenas 12% na década de 30, são, atualmente, as principais causas de morte em todas as regiões brasileiras, respondendo por quase um terço dos óbitos65. Mesmo com os avanços estruturais e econômicos obtidos nas últimas décadas, dados do Ministério da Saúde66 mostram que uma parcela expressiva da população Ministério da Saúde. Estudo aponta perfil da mortalidade do brasileiro. Disponível em:< http://www.ibfan.org.br/noticias/noticia.php?id=348> Acessado em 18 jan 2009. 65 66 Idem perde a vida prematuramente no país. Isso significa que 413.345 pessoas faleceram antes de alcançar a terceira idade, considerada a partir dos 60 anos. Isso representou 41,2% do total de 1.003.350 óbitos registrados no Brasil em 2005. As causas de mortes podem ser agrupadas em grandes grupos (circulatórias, respiratórias, neoplasias, causas externas) ou categorizadas por causas específicas (AVC, pneumonia, atropelamento, homicídio). Segundo os mesmos dados do Ministério da Saúde, em 2005, a causa que mais atingiu os brasileiros e levou-os a morte foi o Acidente Vascular Cerebral (AVC), responsável por 10% das mortes no país. A segunda maior causa específica de óbito no Brasil é a Doença Isquêmica do Coração, principalmente o infarto agudo do miocárdio, responsável por 9,4% do total de mortes. No quadro geral da mortalidade dos brasileiros, as neoplasias malignas, grupo que reúne os vários tipos de câncer, ocupam o segundo lugar entre as causas de mortes no Brasil, com o registro de 16,7% dos óbitos totais. Com número expressivo de óbitos, as causas externas respondem pela terceira posição no ranking da mortalidade no Brasil. Nesse grupo são incluídas as mortes violentas, seja por acidentes de trânsito ou por homicídios. Embora estudos do Ministério da Saúde já tenham apontado redução na tendência de mortes por homicídios, principal causa específica do grupo das externas, essa mortalidade se mantém em patamar elevado, sendo a primeira causa deste grupo. Outra causa importante nesse grupo é o acidente de transporte terrestre, constituindo a sétima causa específica no total de óbito do país. O Brasil é o país com o terceiro maior índice de mortalidade infantil na América do Sul. A informação consta do Relatório sobre a Situação da População Mundial 2008, divulgado pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa) 67 . De acordo com o estudo, a estimativa para este ano é que, em cada grupo de mil crianças nascidas vivas no país, 23 morram antes de completar um ano de idade. O índice brasileiro só não é maior do que o da Bolívia, com 45 mortes, e o do Paraguai, com 32. Brasil tem terceiro maior índice de mortalidade infantil na América do Sul . Folha On Line .12/11/2008 Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u466926.shtml >. Acessado em 21 jan 2009. 67 Na América do Sul, a menor taxa foi registrada no Chile, que apresenta uma média de sete mortes para cada grupo de mil crianças nascidas vivas. Em seguida, aparecem Argentina e Uruguai, ambos com 13 óbitos, e Venezuela, com 17. Não é por coincidência que o Chile é apontado pelo BID como o país da América do Sul com maior efetividade na implementação de políticas públicas68. De acordo com a mesma fonte, o Brasil também registra o terceiro pior índice em relação à expectativa de mortalidade entre crianças menores de 5 anos para 2008. A estimativa é que 32 meninos e 24 meninas nessa faixa etária em cada grupo de mil crianças nascidas vivas morram em decorrência das chamadas doenças da infância. Esses dados revelam a grande distância entre as intenções normativas no campo da saúde e da proteção da infância e a realidade da ineficiência dos meios utilizados para a promoção da saúde no Brasil. O itinerário a se seguir nessa área, seria segundo Ana Maria Cavalcante e Silva e Jocileide Sales Campos, regido por uma grande gama de atividades interligadas entre si: A política de atenção à saúde da criança compreende grandes eixos estratégicos estritamente relacionados entre si, e que visam produzir, de forma sustentável, mudanças na situação de vida e da saúde. Os principais eixos para a promoção da saúde da criança são: 1) a redução da mortalidade infantil; 2) a promoção de vida saudável; 3) a humanização da qualidade da atenção; 4) qualidade da gestão; e 5) a mobilização social e política com o 69 estabelecimento de parcerias. Concretamente, são consideradas como ações efetivas decorrentes de políticas públicas para a saúde da criança: o acompanhamento adequado do pré-natal pela gestante; o acesso a locais adequados para o nascimento do bebê, tanto do ponto de vista de estrutura material como humana; a disponibilização de unidades de tratamento para bebês que nascem com algum problema imediato decorrente da gestação e do parto (Unidades de Terapia Intensiva Neonatal); acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil; incentivo ao aleitamento materno; acesso à vacinação, com a 68 Banco Interamericano de Desenvolvimento; David Rockefeller Center For Latin America Studies. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina: Relatório 2006. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. 69 SILVA, Ana Maria Cavalcante; CAMPOS, Jocileide Sales. Política de saúde pública da criança: a criança e o Sistema Único e Saúde. In: LOPEZ, Fábio Ancona; JÚNIOR, Dioclécio Campos. Tratado de Pediatria – Sociedade Brasileira de Pediatria. Barueri, SP: Manole, 2007, p.151 - 154 inclusão de vacinas existentes no mercado e que não constam no calendário do Ministério da Saúde; e programa de atenção às doenças mais comuns da infância. Além disso, não podem faltar políticas que busquem informar e orientar aqueles que cuidam de crianças sobre os cuidados com acidentes domésticos e com a violência, já que são causas crescentes de morbidade infantil. 3.1. Limitações às realizações de políticas públicas A realização das políticas públicas depende de um processo que envolve, além das previsões mandamentais explícitos na Constituição Federal, a eleição das ações pela Administração Pública e da previsão orçamentária contida em legislação própria. É indiscutível que todo esse processo depende da mobilização do Estado em conjunto com a sociedade e da disponibilização de recursos financeiros. Como sintetiza OHLWEILER ao discorrer sobre Políticas Públicas e seu possível controle: No entanto, para materializar políticas públicas é imperioso que os governos e a própria sociedade assumam-se como co-responsáveis por este processo e tenham a capacidade de construir espaços públicos de aprendizagem social, quer dizer, um planejamento temporalizado, mas preparado para o acontecer ou os fracassos possíveis da democracia. 70 Surge, então, na Alemanha, na década de 1970, a teoria da reserva do possível como elemento de limitação à ação estatal na realização de políticas públicas. Através dessa teoria, passou a se entender que os direitos sociais de prestação positiva somente poderiam ser exigíveis do Estado segundo os limites da possibilidade, ou seja, daquilo que o indivíduo, de maneira racional e razoável, pode esperar da sociedade tendo como patamar mínimo o “direito mínimo de existência”. Na decisão da Corte Constitucional alemã, a avaliação sobre a reserva do possível deveria ser feita, inicialmente, pelo legislador, que “deve atender, na 70 OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Constitucional. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti.(organizadores). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 323-345 administração do seu orçamento, também a outros interesses da coletividade, considerando...as exigências da harmonização econômica geral”71. A idéia da “reserva do possível” pode se desdobrar em dois elementos: um fático e outro jurídico. O elemento fático diz respeito à disponibilidade efetiva de recursos financeiros para a satisfação do direito prestacional. Essa disponibilidade deve ser suficiente para uma razoável universalização da prestação exigida. Por outro lado, a existência de autorização orçamentária para o Estado desenvolver as políticas de efetivação dos direitos fundamentais perfaz o elemento jurídico. Crítica pertinente de Sarmento72 se faz quanto à aplicação dessa teoria em países com grande carência de efetividade de políticas públicas como o Brasil, pois a insuficiência de recursos financeiros é rotineira e uma interpretação equivocada poderia eximir o Estado de atuar em áreas sensíveis da sociedade, mantendo um estado de precariedade e desrespeito à dignidade do cidadão menos favorecido economicamente. A reserva do possível se apresenta como uma cláusula de restrição ao direito, não significa a ineficácia ou a não aplicação imediata dos direitos fundamentais. Na verdade, ela expressa a necessidade de ponderação entre princípios. No Estado Constitucional, os Direitos Fundamentais e sociais não podem deixar de serem satisfeitos, desse modo, o argumento da reserva do possível somente será válida quando se comprovar que os recursos públicos destinados à realização das políticas públicas estão sendo utilizadas com a ponderação das necessidades de promoção desses direitos e de forma progressiva no tempo, sendo vedado o retrocesso e a insuficiência de efetivação do mínimo existencial naquele campo Do ponto de vista processual, a reserva do possível é matéria de defesa trazida pelo Estado, que deverá demonstrar a impossibilidade da Administração conceder a prestação pretendida por uma insuficiência de recursos. Como esclarece Sarmento: Não basta, portanto, que o estado invoque genericamente a reserva do possível para se opor à concessão judicial de prestações sociais – como, SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 569. 72 Idem 71 infelizmente, tem ocorrido na maior parte das ações nesta matéria. É preciso 73 que ele produza prova suficiente desta alegação. Na doutrina brasileira vemos a preponderância da correlação da reserva do possível com as restrições orçamentárias, porém o seu alcance é mais amplo. Ela alcança a eleição de prioridades e o planejamento na execução das políticas públicas, que devem ser pensadas como atividades de longa duração, sem jamais se permitir o retrocesso dos resultados alcançados. Assim, temos que buscar parâmetros para buscar o controle das políticas públicas e que sirvam de elementos para analisá-las e avaliar a sua efetividade. Devem se tratar de mecanismos jurídicos capazes de determinar a priorização das metas constitucionais voltadas para aquelas políticas, principalmente na realização da dignidade humana e na promoção dos Direitos Fundamentais. Nessa avaliação devem ser identificados os parâmetros de controle, principalmente o montante de recursos públicos disponíveis para a execução das políticas públicas e as metas previamente estabelecidas, principalmente nas normas constitucionais; a garantia de acesso à informação, quando poderá ser apreciada a eficácia e a eficiência das ações praticadas pela Administração; e a elaboração de um sistema de controle. 73 Idem, p. 572. Capítulo 4. Discricionariedade e Atividade Administrativa No exercício do poder de administração, recorre o administrador à possibilidade de escolha entre tantas opções possíveis diante das metas a serem alcançadas. Na Administração Pública essa liberdade de escolha fica limitada pelos princípios e normas que integram a legislação do Direito Público. Segundo Moraes74, o administrador exerce a liberdade de escolha ponderando entre os interesses, integrando a norma aberta de diversas maneiras: quando trabalha na complementação, mediante valoração e aditamento, dos pressupostos de fato necessários para a edição do ato administrativo, ou discricionariedade quanto aos pressupostos; quando decide a possibilidade de sua edição e quando fazê-la, ou discricionariedade de decisão; quando escolhe, dentre várias opções autorizadas pela norma, seu conteúdo, ou discricionariedade de escolha optativa; e quando preenche o conteúdo do ato administrativo na lacuna da lei, ou discricionariedade de escolha criativa. A atividade administrativa pública, assim como a utilização da discricionariedade, requer a plena consciência por parte do administrador de seu papel na defesa da dignidade de todos. Isso ocorre através do respeito aos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública, principalmente os que dizem respeito aos princípios da democracia e da participação, da legalidade, da justiça, da imparcialidade, da transparência, da moralidade, da boa administração e da eficiência. Embora não escrito explicitamente na CF 88, o princípio da democracia e da participação na administração pública exsurge da interpretação de outros princípios integrados ao ordenamento jurídico. Implica o acesso dos cidadãos aos mecanismos de participação nas atividades que envolvem o interesse público na Administração Pública. Apesar se sua importância não tem uma grande efetividade em países de baixa organização e participação da sociedade. A participação dos administrados nas decisões da Administração acaba sendo muito restrita, ainda que a Constituição admita a possibilidade de participação da MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. 2a ed. São Paulo: Dialética, 2004. 74 sociedade, por meio de conselhos, em diversas atividades que envolvem a definição de políticas públicas (no caso da saúde temos os Conselhos de Saúde nos diversos níveis da administração) e na fiscalização da gestão administrativa. É possível identificar pelo menos duas causas para a baixa participação da sociedade nas decisões do poder público: a primeira, devido à dificuldade do cidadão ter acesso aos mecanismos de participação, seja por não conhecê-los, seja pela impossibilidade de estar presente em audiências públicas geralmente marcadas em horário em que a maior parte da população se encontra no trabalho; e a segunda, a prática participativa se torna pouco estimulante na medida em que a Administração Pública não consegue produzir os resultados propostos nas ações decididas nessas ocasiões, além de, poucas vezes, se buscar apresentar e justificar os resultados obtidos durante o desenvolvimento das políticas públicas. Segundo Dal Bosco75, a Administração Pública contemporânea é regida por princípios inafastáveis de sua organização e atividade. O primeiro desses princípios seria o princípio da legalidade, considerado um dos pressupostos do Estado de Direito. Postula, como regra geral, a vinculação dos atos administrativos ao comando da lei, ou seja, toda a atividade administrativa deve ser regulada por uma legislação prévia que lhe dará validade. Implica, também, que todos os poderes da administração, regrados ou discricionários, nunca sejam ilimitados, mas estejam descritos em seu conteúdo e extensão, como indicador de outro princípio básico, o da divisão dos poderes. Segundo a mesma autora, o princípio da justiça seria decorrência do próprio princípio da legalidade, e trás em sua concepção a idéia de que o sistema jurídico deve ser dotado de instrumentos apropriados à defesa da sociedade, individualmente ou coletivamente, contra atos da Administração considerados ilegítimos, ficando ao alcance de decisões judiciais com poder de anulá-las. Assim, constrói-se a possibilidade de um controle social da função administrativa tendo como instrumento um dos poderes definidos do Estado. A Administração deve respeitar critérios de impessoalidade nas suas relações com os administrados, o tratamento de cada indivíduo será conduzido dentro do modelo DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 134 75 que a legislação normatizar a respeito dos seus interesses, inexistindo privilégios. Assim, temos o princípio da imparcialidade ou impessoalidade, explicitamente previsto no caput do seu artigo 37, e que deve ser observado em conjunto com os princípios da honestidade, equidade, eficiência e de diligência no desenvolvimento de suas atividades. Já o princípio da transparência ou da publicidade obriga a Administração a atuar de forma aberta, acessível aos administrados. A regra é a disponibilidade de informações sobre os atos administrativos com possibilidade de acesso a todos os interessados. Inclui dentro desse princípio a obrigatoriedade de adoção pela Administração de procedimentos simples, com linguagem acessível e menor burocracia para facilitar o acesso às informações. A maior virtude na aplicação desse princípio está na real possibilidade do administrado conhecer e valorar a atuação da Administração Pública. Nas palavras de Dal Bosco: Só a informação democratizada pode fornecer aos cidadãos, possibilidade de avaliar a atuação da Administração, assim como de oferecer sua opinião e expor suas aspirações no que se refere às decisões que os dirigentes públicos 76 devem adotar em relação aos problemas comuns dos administrados. O conceito mais amplo de uma boa administração consiste na execução adequada das funções deste encargo, tais como planejar, organizar, dirigir, coordenar e controlar. Sendo assim, o princípio da boa administração deve ser entendido como uma atividade eficiente e adequada por parte da Administração Pública, sendo a eficiência entendida como o melhor emprego possível dos recursos na busca dos objetivos pretendidos pela Administração, e a adequação como a obrigatoriedade de uma estrutura funcional capaz de atender os fins institucionais, assegurando, assim, a rapidez, simplicidade, regularidade e economia de suas ações. A atividade da Administração Pública deve ser feita de maneira coordenada, com a ponderação dos diversos interesses públicos, e exercida com autonomia política proporcionada pela Constituição. A boa administração deve ser considerada um direito de cidadania dos administrados, só é possível se justificar a existência de todo um aparato burocrático financiado pelos cidadãos se ele estiver atuando para o atendimento das demandas sociais. DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 173. 76 O princípio da moralidade envolve um conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina própria da Administração que, segundo Maurice Hauriou77, envolve a distinção entre o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, mas também, entre o honesto e o desonesto. Sem embargo da sua dificuldade de constatação objetiva, esse princípio é inafastável das atividades dos titulares de cargos públicos. No Brasil, com toda sua tradição de clientelismo e oportunismo político, enfrentamos diariamente com situações que ofendem ao princípio da moralidade. O consagrado “jeitinho brasileiro” surge como ferramenta para a obtenção de favorecimentos junto à Administração, inclusive com o arranjo de emendas ao orçamento com uma roupagem de legalidade. Assim, quando examinada , a atividade administrativa deve ser profundamente analisada para além de sua legalidade e alcançar sua moralidade, que muitas vezes dependem da subjetividade do julgador. Deve ser destacado que o desrespeito ao princípio da moralidade administrativa é causa suficiente para a anulação do ato administrativo pelo poder judiciário, mesmo que não sejam desrespeitados outros princípios. Além disso, são alcançados pela Lei de Improbidade Administrativa, mesmo que não estejam presentes danos ao patrimônio público78. A eficiência foi elevada à condição de princípio constitucional a partir da Emenda Constitucional 19 de 1998, sendo a sua razão de ser a obtenção do máximo de resultados a partir de recursos disponíveis, ou ainda, a obtenção de melhores resultados a partir de menores custos. Pode-se usar o termo eficiência não apenas em relação à Administração Pública, mas, também, alcança os demais poderes. Há na doutrina uma grande discussão sobre como aplicar tal princípio na avaliação das atividades administrativas e como encontrar um parâmetro adequado para demonstrar que os resultados obtidos foram os mais eficientes, ou possíveis. Dal Bosco explica bem como é possível utilizar esse princípio: 77 HARIOU, Maurice. Princípios de derecho público y constitucional. Granada, Espanha: Comares, 2003, p. 138. 78 STJ. REsp 2003/0231437-9 – Rel. Ministro Luis Fux – DJ 27.06.2005, p. 230. A exigência da observação à eficiência das ações públicas não pode ser vista como uma consagração da tecnocracia, mas o princípio está voltado à razão e fim maior do Estado, ou seja, a prestação dos serviços sociais essenciais à população, tendo como objetivo o uso de todos os meios legais e morais possíveis para promover o bem comum. Além disso, deve-se ter presente a ligação do princípio da eficiência com a razoabilidade e a moralidade, dado que o administrador deve utilizar-se de critérios razoáveis na realização de sua atividade discricionária, pois a ineficiência grosseira deve ser considerada 79 imoralidade. A avaliação da eficiência deve ter em foco as possibilidades reais de execução dos serviços e a expectativa em relação aos parâmetros de mercado. Como exemplo podemos citar estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)80, em 2003, indicando que o tempo de espera para internação nos hospitais credenciados pelo SUS era de 6,2 dias, sendo a possibilidade de um paciente do SUS passar mais de um dia esperando uma internação era de 39,3%. Fácil concluir que esse intervalo para a internação é muito superior ao esperado como resultado de um sistema de saúde eficiente. Vários motivos poderiam ser apontados para tal ineficiência, desde a falta de leitos disponíveis até a falta de coordenação na distribuição de internações hospitalares. Contudo, qualquer um deles demonstraria a ineficiência do SUS no atendimento digno da população. Outro fato corriqueiro em relação ao funcionamento do SUS é a falta de leitos para atendimento em Terapia Intensiva, principalmente para recém-nascidos e crianças. Com frequência, vemos no noticiário81 a movimentação desesperada de pais e familiares em busca de atendimento especializado com a intervenção do Judiciário, que muitas vezes transfere para o sistema de medicina privada o ônus deste atendimento. Como preleciona Alexandre de Moraes82, o princípio da eficiência veio reforçar a legitimidade do Ministério Público para exercer o controle sobre o respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na 79 DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 200. 80 MARINHO, Alexandre. Um estudo sobre as filas para internação e para transplantes no Sistema Único de Saúde brasileiro. IPEA . Rio de Janeiro: 2006. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/csp/v22n10/22.pdf>. Acessado em 20 jan 2009. 81 Bebê sem vaga em UTI deve ir para rede privada. Jornal do Commercio . Recife- PE - 12 /02/ 2009. Disponível em < http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/janeiro-2009/bebe-sem-vaga-em-uti-deve-ir-pararede-privada/ >. Acessado em 26 jan 2009. 82 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 20a ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 311. Constituição, devendo propor as medias judiciais, e extrajudiciais, necessárias para a sua garantia. Várias decisões enriquecem a jurisprudência sobre o tema, reforçando a idéia da exigibilidade da eficiência como princípio orientador da atividade administrativa do setor público83. Na avaliação da eficiência da atuação da Administração Pública, não se limita o julgador aos resultados finais, mas também os meios através dos quais se chega ao objetivo final. Assim, incluí-se no bojo da análise o controle dos gastos efetuados na atividade administrativa. Haveria uma mitigação do princípio da eficiência em casos excepcionais quando a Administração tem o dever de atender necessidades urgentes, como em calamidades públicas. Porém, mesmo na exceção, não se pode abrir mão da melhor execução dos serviços dentro das condições possíveis. Não deixa de existir a exigência da boa administração e da moralidade administrativa. Assim, vemos que a legitimação das escolhas administrativas fundamenta-se em sua eficácia, motivação, proporcionalidade, transparência, imparcialidade, respeitabilidade à participação social, moralidade e plena responsabilidade. Ao escolher a melhor opção, pode o administrador dispor de opções, dependendo da conveniência e oportunidade estabelecida pela lei. Para ser considerado legítimo, o ato administrativo discricionário deve ser devidamente motivado, deixando clara a sua compatibilidade com as normas vigentes e os princípios de direito, além de fundamentar o porquê daquela escolha. Nisso consiste o mérito do Ato Administrativo, ou seja, “o processo de valoração dos motivos e de definição do conteúdo do ato administrativo não parametrizado por regras, nem por princípios, mas por critérios não positivados”.84 A conveniência representa a adequação do ato ao interesse público sob enfoque daquela escolha administrativa que justifica a sua prática ou à sua compatibilidade no confronto entre interesses públicos afetados pelo ato. Por 83 STJ . ROMS 5590/DF. Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro- j. em 16/04/1996; STJ. MS 9.420/DF. Relª. Min. Laurita Vaz – j. em 25.08.2004; STJ. MS 8.481/DF . Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa – j. em 27.10. 2004. 84 MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. 2a ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 200. conveniência entendemos a ponderação entre os interesses envolvidos para aquela decisão e sua melhor acomodação para o cumprimento de seus objetivos. A presença do Estado em inúmeras atividades levou o ordenamento jurídico a conceder certa liberdade para ampliar o horizonte de ações dos agentes públicos na busca do atendimento dos interesses públicos. Essa miríade de tarefas não seria possível se todo e qualquer movimento da máquina administrativa dependesse de previsão normativa, restrita ao princípio da legalidade. Assim, não se discute a importância da discricionariedade na Administração Pública, assim como sua presença na determinação das políticas públicas. Inicialmente, o conceito de discricionariedade pode ser utilizado sob dois enfoques: como referência à liberdade do intérprete no momento da verificação do sentido da norma, o que reflete na doutrina administrativa como uma ausência de programação normativa e na impossibilidade da regra jurídica objetivamente delimitar a conduta do administrador em todos os momentos; e em um segundo momento, a discricionariedade é reconhecida como uma deliberação do próprio ordenamento jurídico que permite uma “liberdade assistida” para a manifestação do administrador, que se encontra limitada pela própria norma, ou seja, a discricionariedade surge com a previsão legal expressa de quando e como o administrador terá liberdade de agir. O fundamento da atividade discricionária da Administração na doutrina brasileira, segundo Eros Grau85, começa a ser delineada por Francisco Campos86 na década de 1950 em sua obra Direito Administrativo, com a idéia de que a autoridade administrativa poderia escolher para o ato, aquele que lhe parecesse mais adequado dentro das possibilidades do momento, quando não coubesse uma determinação objetiva. O fundamento lógico e jurídico estaria na indeterminação do conceito legal. Mais recentemente, Celso Antônio Bandeira de Melo, sem se afastar do entendimento anterior, conceitua discricionariedade como: A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que se cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante 85 86 GRAU Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ª ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p.203. CAMPOS, Francisco, Direito administrativo. V. 1. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar 87 satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal. Esse mesmo autor adverte que não se deve confundir discricionariedade com arbitrariedade. Quem age arbitrariamente como administrador público age contra o ordenamento jurídico, visto que age fora do que lhe permite a lei. Ao invés disso, quem age discricionariamente o faz por autorização da lei, devendo cumprir o mandamento normativo de buscar o melhor meio de satisfazer o interesse público naquele caso concreto. Segundo Eros Grau88, o uso da discricionariedade leva a uma liberdade de escolha “entre alternativas igualmente justas ou entre indiferentes jurídicos – porque a decisão se fundamenta em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos, etc.)”, ausentes na lei e que dependem do juízo subjetivo da Administração. Sendo assim, no Estado de Direito, a competência para a prática de atos discricionários pelo agente público só ocorrerá quando a norma jurídica válida a ele possibilitar a formulação de juízo de oportunidade. O mesmo autor estabelece forte crítica à tese da existência de uma “discricionariedade técnica” 89, que se constituiria em decisões baseadas em alto grau de especialização técnica de difícil avaliação por pessoas leigas ao assunto, assim haveria uma impossibilidade de qualquer controle, exceto aos erros manifestos que neles se exteriorizem. Seria uma blindagem tecnocrática a uma decisão ou ato administrativo que, porém, não pode afastar a apreciação do judiciário, que contaria com o auxílo especializado de peritos ou mesmo na figura do amicus curiae. Segundo FREITAS90, pode-se conceituar a discricionariedade administrativa legítima como “a competência administrativa (não mera faculdade) de avaliar e de escolher, no plano concreto, as melhores soluções, mediante justificativas válidas, coerentes e consistentes de conveniência e oportunidade (com razões juridicamente 87 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 416. 88 Grau, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ª ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p. 203. 89 Idem, p. 214. 90 Freitas, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração. Malheiros:São Paulo, 2007, p. 22. aceitáveis), respeitados os requisitos formais e substanciais da efetividade do direito fundamental à boa administração pública.” O uso de uma discricionariedade legítima consagra o direito fundamental à boa administração pública, que segundo Juarez Freitaz seria: ... o direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a 91 regem. Muito se discute sobre a possibilidade de controle dos atos discricionários além da prerrogativa da Administração em poder anular ou revogar por conveniência e oportunidade seus próprios atos. Mais especificamente, o controle por parte do Judiciário frente à atividade discricionária da Administração. Nesse controle, a função do juiz será a de analisar e revisar uma conduta realizada por quem possui a legitimação e legalidade da aplicação da norma, o que provoca a demanda por uma maior aptidão do julgador. Os atos administrativos discricionários, em princípio, não estariam sujeitos ao controle do Poder Judiciário, exceto quando houvesse indício de abuso de poder ou desvio de finalidade. Porém, sempre quando esse ato discricionário for examinado pelo Judiciário, mesmo que outro seja o fundamento para o seu julgamento, deverá receber o crivo do julgador sobre os requisitos de sua discricionariedade. Apesar da imprecisão conceitual, a definição jurídica da discricionariedade não deixa de se submeter aos parâmetros do Estado de Direito, principalmente no que se refere aos princípios da legalidade, da inafastabilidade da atividade jurisdicional e da proteção dos direitos fundamentais. Nesse tema, temos que apreciar o princípio da inafastabilidade da atividade jurisdicional em consonância com o princípio da separação dos poderes, afastando qualquer possibilidade de conflito entre ambos. A análise desse tema transita por um caminho que passa pelo reconhecimento da Constituição como eixo e limitador da 91 Idem, p. 20. interpretação desses princípios. Assim sendo, devemos partir do reconhecimento do princípio da unidade da Constituição que, segundo Mendes92, estabelece que a sua interpretação deve ser feita de forma harmônica, como um conjunto sistemático dotado de sentido, buscando evitar contradições. Além disso, ambos os princípios funcionam como garantia de direitos, criados para a proteção do cidadão, não sendo factível existir antinomia entre eles. Assim, esclarece Gerson dos Santos Sicca: Quanto ao judiciário, na sua relação com a administração, a separação dos poderes significa que o juiz deve controlar a interpretação realizada pelo administrador, para indagar se o agente público ponderou adequadamente os 93 elementos da realidade e não violou os limites de sentido do conceito. É sempre interessante lembrar que o Estado de Direito é uma forma de racionalização do poder em que o objetivo é limitar o predomínio da subjetividade sobre a forma jurídica. O ordenamento jurídico representa a legitimidade do exercício do poder estatal e exige que a Administração pública se comporte de acordo com suas normas. Na apuração destes atos deve o Poder Judiciário apurar se ele está de acordo com o Direito, se sua motivação é pertinente e se ele atende aos valores dominantes naquela ocasião. Sintetizando, o Judiciário deve examinar a proporção que marca a relação entre meios e fins do ato, e a sua relação com seus motivos. Significa que o controlador do ato discricionário se encontra, finalisticamente, orientado pelos princípios constitucionais, não ficando restrito à mera alegação de conveniência e oportunidade. Por outro lado, a legitimação normativa do administrador não lhe confere um salvo conduto para tomar as decisões definitivas na aplicação dos preceitos do direito administrativo, com a exclusão ou limitação do controle jurisdicional. A representatividade do administrador e seu mandato concedido no exercício de sua MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 107. 93 SICCA, Gerson dos Santos. Discricionariedade administrativa: conceitos indeterminados e aplicação. Curitiba: Juruá, 2006 , p.220. 92 função têm limitações na ordem jurídica, sendo proibido qualquer desrespeito ao ordenamento jurídico. Assim já decidiu o STJ em sede de Recurso Especial: O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de 94 moralidade e razoabilidade. Quando os atos administrativos são motivados por razões de interesse público, segundo Eros Grau95, podem, e devem, ser controlados, pois não seriam verdadeiros atos discricionários. Não existiria atividade discricionária quando se tratasse de interesse público envolvido. Como conclui Juarez Freitas quando discorre sobre a sindicabilidade dos atos administrativos: O “mérito” (atinente ao campo dos juízos de conveniência ou de oportunidade) não é diretamente controlável, mas o demérito ou a antijuridicidade o serão, inescapavelmente. Mais que nunca, a discricionariedade legítima supõe o aprofundamento da sindicabilidade, voltada à afirmação dos direitos fundamentais, notadamente do direito fundamental à boa administração pública.96 No Brasil, ainda há forte restrição quanto à revisão jurisdicional dos atos administrativos discricionários. Na jurisprudência dominante há um apego muito grande ao conceito de mérito administrativo como sinônimo de juízo de valoração efetuado pelo administrador com o objetivo de determinar a conveniência e a oportunidade da medida administrativa. O controle desses atos, no que extrapola à verificação dos pressupostos legais externos ao elemento decisório, tem se limitado à existência dos motivos determinantes e ao desvio de poder, tipificado como controle de mérito. Em respeito aos princípios constitucionais ligados à administração pública e à busca da efetivação de direitos fundamentais dependentes de atos da Administração STJ, REsp 429.570-GO, Relª. Min. Eliana Calmon, RSTJ 187/219. Grau, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ª ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p. 216. 96 FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Editora Malheiros, 2007, p. 67. 94 95 Pública, o Judiciário poderá tanto invalidar como substituir a decisão julgada, se a ponderação apresentar elementos para tanto. Capítulo 5. Limitação da discricionariedade e controle das Políticas Públicas É impossível se falar em Políticas Públicas sem considerar as suas possibilidades e as suas finalidades, hoje compreendidas como a distribuição efetiva dos componentes básicos de um estado de bem estar para a população, contempladas através de ações da Administração que garantam a realização dos Direitos Fundamentais inscritos na Constituição Federal. Do mesmo modo, é notório que tais políticas continuam deficientes, como nas áreas da saúde e da educação. A própria Constituição normatiza a legitimidade democrática dos Poderes Executivos e Legislativo na promoção das políticas públicas, porém, diante do grande déficit de efetivação destas, é preciso se reconhecer a importância dos mecanismos de controle na formulação e aplicação das políticas, inclusive se reconhecendo o papel do Poder Judiciário como provedor de decisões válidas na discussão sobre os direitos fundamentais. Tendo como sustentáculo a realização dos Direitos Fundamentais em seu núcleo essencial, as políticas públicas carecem de uma lapidação que lhes dê o brilho para justificar sua implementação. Mesmo se cuidando de respeitar a discricionariedade inerente ao exercício dos Poderes Legislativo e Executivo na determinação dessas políticas, não se deve perder de vista a restrição desta discricionariedade naquilo que a norma permite sem desviar os olhos dos Direitos Fundamentais, principalmente o da dignidade humana. A atividade de controlar indica que aquele que controla deve apontar determinado horizonte de sentido para uma atividade. No campo do controle das políticas públicas, dentro de um Estado Democrático de Direito, haverá a delimitação de certo campo para o administrador público agir. Como essas políticas devem buscar a efetividade de uma gama de direitos fundamentais, a finalidade desse controle deverá ser a verificação da satisfação desses direitos dentro de uma programação existente na própria Constituição e com a máxima efetividade, dentro das condições possíveis à Administração. Dessa forma, como leciona OHLWEILER97, as decisões do Poder Público concernentes à construção de um arsenal de políticas públicas não estão imunes à apreciação de sua juridicidade. No Estado Democrático de Direito “é plenamente possível controlar tais políticas públicas, relativamente à sua procedimentalização e ao próprio conteúdo da decisão adotada pelo agente público”. No mesmo sentido, afirma Thiago Lima BREUS: Até a afirmação teórica do Estado de Direito, sob o qual se buscou subsumir o poder do soberano à legalidade, o centro da atividade administrativa do Estado era infensa e impenetrável ao Direito e a qualquer outro controle externo. Sob o pretexto de que o conteúdo do direito exercido se identificava com a vontade do príncipe ou sob o postulado de que “o rei não poderia errar”, os atos do titular exercente do poder político administrativo do Estado 98 não comportavam qualquer espécie de controle. Ainda que se reconheça que existam limitações de ordem econômica, como a já explicada teoria da reserva do possível, jamais poderá o Estado se omitir da instituição de ações que positivem, pelo menos, o mínimo essencial insculpido em cada Direito Fundamental. A exigüidade de recursos deve ser sanada com um planejamento fiscal equilibrado e eficiente para garantir uma melhor arrecadação, sem onerar àqueles que serão os beneficiários potenciais dessas políticas. Tem-se como alternativa a busca de apoio em organismos internacionais que financiam obras e serviços direcionados ao bem estar social da população. Quando se aplicam os recursos públicos em políticas públicas de saúde, deve-se cuidar para o respeito às regras de utilização dos parâmetros instituídos na Emenda Constitucional 29, com a ressalva de que este montante é o mínimo a ser aplicado na saúde, o que não quer dizer que esteja limitado por essas cifras ou que não se deva aplicar além delas. Por exemplo, é de conhecimento de todos que a dengue é um problema sério de saúde pública no Brasil, que leva a uma grande número de vítimas e que depende de 97 OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Constitucional. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti.(organizadores). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 323-345 98 BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. políticas públicas para combatê-la de maneira eficiente. Logo, entre direcionamento de recursos públicos para incentivar eventos como Jogos Pan-Americanos ou Copa do Mundo de Futebol, como se justificar que esse montante não seja direcionado para combater essa doença? Até onde se pode utilizar de uma discricionariedade desvinculada dos propósitos fundamentais da atividade da Administração e o respeito aos seus princípios básicos, sem um maior controle dessas decisões? Assim, dentro do mesmo espírito de respeito ao Princípio da Democracia que sempre foi utilizado para blindar a discricionariedade na escolha de políticas públicas em respeito ao processo democrático que permite escolher os representantes do povo no governo baseado na confiança de que esses cumpram suas propostas, não se podem afastar as possibilidades de controle desse poder de escolha do administrador. A discricionariedade nas políticas públicas pode ser limitada, e controlada, por pelo menos quatro vias: o controle social, o controle político-eleitoral, o controle legal e o controle jurisdicional. O controle social, segundo Leal99, é aquele efetivado pela fiscalização da própria sociedade, que ao constatar a inexistência ou ineficiência de determinada atuação estatal em prol da efetivação dos Direitos Sociais Fundamentais, se organiza e busca uma realocação dos esforços administrativos na busca dessa atividade. É o caminho mais democrático, porém o menos utilizado e efetivo. O primeiro fator que interfere nesse controle é a falta de acesso a informações detalhadas sobre o planejamento e a execução das políticas públicas. Essa transparência necessária é derivada do princípio da publicidade, que garante ao administrado o acesso à informação acerca da arrecadação e da receita dos entes estatais e seu uso na implementação das políticas públicas. A falta de organização da sociedade em núcleos de discussão e representação é o principal fator que impede uma atividade fiscalizadora das políticas públicas diretamente pela população, que é a sua própria destinatária. Desde a década de 1990, vemos um crescente movimento de organização social na forma de Organizações NãoLEAL, Rogério. O controle social dos serviços públicos no Brasil como condição de sua possibilidade. In REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério Gesta (organizadores). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, p. 1843-1869. 99 Governamentais (ONGs) que, aos poucos, vêm desenvolvendo essa atividade fiscalizadora. Outro fator que minimiza a efetividade desse controle social é a dificuldade instrumental para a efetivação dessa atividade diretamente pela sociedade. Além da divulgação de sua inconformidade através de movimentos e protestos, a sociedade, mesmo organizada em grupos bem definidos, não tem uma via de acesso direta para questionar ou obrigar o Estado a melhor decidir sobre suas metas em políticas públicas. Dentro das políticas públicas para a saúde, temos as instituições das Conferências de Saúde como órgãos colegiados de caráter consultivo onde são avaliadas a situação da saúde e a proposição de diretrizes para a execução de políticas públicas. Além disso, existem os Conselhos de Saúde que são formados por representantes do governo, dos prestadores de serviços, trabalhadores da saúde e usuários. Sua competência legal envolve a área de planejamento e controle, cujos temas principais são o financiamento do sistema e a área de articulação com a sociedade, a partir da qual são desenvolvidas ações sanitárias. Além dessas participações normatizadas na Lei 8.142/1990 acima citadas, não se pode perder de vista o direito de petição, que permita a qualquer cidadão ter acesso à Administração com a finalidade de questionar e pedir providências em relação a fatos que tenham relação com a atividade administrativa. Tem sido crescente a disponibilização, por parte da Administração e de seus órgãos, de Ouvidorias que servem de canal de comunicação direta entre os cidadãos e à Administração Pública. Esses meios disponibilizados para maior participação da sociedade no controle das políticas públicas esbarram em dificuldades estruturais, principalmente a falta de conhecimento sobre os direitos pelo próprio cidadão, que aliada à inércia da Administração, não estimula a sociedade a adotar uma conduta mais incisiva nesse campo. Assim, essa alternativa ainda deve ser desenvolvida pela sociedade, que aos poucos vai percebendo que políticas voltadas às suas necessidades básicas não podem esperar por uma “boa-vontade” da Administração, mas devem ser realizadas em todos os momentos dentro das reais necessidades da população, principalmente a de menor condição econômica. O controle político-eleitoral, na verdade uma extensão do controle social com o uso do poder da cidadania, se efetua pela participação eleitoral através do voto. O processo eleitoral envolve a apresentação de propostas políticas que envolvem a realização dos Direitos Fundamentais. Não há candidato a cargo eletivo que em seus discursos não mencione que fará algo para melhorar as condições de saúde, habitação, segurança e educação, o que se torna possível através da instituição das políticas públicas, seja por elaboração de lei ou por atividade do Executivo. Na prática, esse é o controle com menores possibilidades efetivas imediatas. Além do lapso temporal entre as eleições, a cultura de clientelismo incrustada em uma boa parte da população leva ao costume de trocas envolvendo o uso da máquina pública por votos. A atividade política acaba sendo reduzida à execução de ações que em nada condizem com as necessidades da população e a efetivação dos Direitos Fundamentais ainda carentes de realização. Esse controle teria melhores resultados práticos posteriores ao mandato dos eleitos que não cumpriram as propostas de políticas a serem efetivadas, quando não seriam reconduzidos aos seus cargos pelo voto popular. Porém, a realidade tem sido outra. Aliada à falta de informações sobre as efetivas realizações dos candidatos, temos a cultura de considerar que seja um bom administrador àquele que apresenta muitas obras, a perversa lógica do “rouba, mas faz”, ignorando todas as necessidades que já poderiam ter sido sanadas com o simples cumprimento da lei. Esse é um caminho válido, e talvez o mais democrático, para o controle da discricionariedade nas políticas públicas, porém, sua eficácia depende da evolução da capacidade de avaliação crítica da sociedade como um todo e de uma conscientização sobre o papel dos representantes políticos como vetores de aplicação das leis e diretrizes que garantam os direitos fundamentais. Ou seja, ainda estamos muito longe desse objetivo. O controle legal, um controle prévio determinado pela própria norma, seja na Constituição Federal ou de índole infraconstitucional, ou seja, que é deduzido pela aplicação do princípio da legalidade100. A CF 88 tem como uma de suas características DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 164. 100 mais marcantes a sua vocação programática, ou seja, suas normas traçam objetivos a serem alcançados pela nação sob a regência de um Estado democrático e republicano, onde prevalece o Estado de Direito. Além das normas programáticas se destacam as normas que exigem o direcionamento de verbas orçamentárias para o cumprimento de políticas públicas, como na educação e na saúde. Outro aspecto orçamentário é o da política fiscal com a previsão de criação de tributos e a destinação de alguns destes para garantir uma reserva financeira suficiente para a efetividade das políticas públicas. Essas leis servem como eixo determinante para o planejamento orçamentário e o seu descumprimento será alvo de controle imediato pela própria Administração ou pelo Judiciário. Ora, tirando o controle político-eleitoral que se efetiva pelo exercício direto do voto nos processos eleitorais, os demais controles só serão possíveis se for acionado o aparato jurisdicional, ou seja, sem uma atuação do Judiciário as contestações ao mau uso da Administração na execução das políticas públicas desde seu planejamento até a verificação dos seus resultados, dependeria exclusivamente de uma “autocrítica” severa da própria Administração. Sendo assim, o controle jurisdicional tem sido o meio efetivo para o controle das políticas públicas e da discricionariedade da Administração no planejamento e execução destas. Como instituição indispensável nesse processo, é interessante se verificar o papel do Ministério Público nesse controle e, posteriormente, analisar as possibilidades do controle jurisdicional propriamente dito. A partir da CF 88, o Ministério Público teve fixada sua independência em relação aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como a sua natureza de órgão constitucional autônomo. Dentro de suas finalidades foram confiadas a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Sendo assim, é necessária e natural a intervenção do Ministério Público na fiscalização e na exigência de produção de políticas públicas comprometidas com a realização dos programas instituídos pela Constituição. É importante relembrar que existe uma discricionariedade a ser exercida pelo Executivo e pelo Legislativo ao implementar programas de governo que visem à realização do bem comum, que depende, em grande parte, de previsões orçamentárias nem sempre suficientes. Porém, não poderão deixar de realizar um mínimo programa de governo que contemple a consagração da dignidade humana, princípio que não deixa qualquer margem à discricionariedade. Assim, podemos legitimar a ação do parquet com a seguinte fundamentação: o Ministério Público existe para a defesa do interesse social, o Estado, para promover o interesse coletivo; logo, quando o Estado não cumpre esse papel, o Ministério Público deve atuar na defesa do interesse social em face da própria Administração Pública. Portanto, vivendo em um regime democrático, a atuação do Ministério Público levando a uma conseqüente judicialização das questões relacionadas à implementação das políticas públicas estará sempre legitimada quando o mínimo social composto pelo núcleo essencial dos direitos fundamentais seja negado à sociedade, principalmente àquela parcela menos favorecida economicamente. Usando da síntese afirmada por Choukr: A atuação institucional é, portanto, vinculada à hierarquia advinda dos Direitos Fundamentais para a formação das políticas públicas, a partir da qual jurídica e judicialmente o Ministério Público está autorizado a agir no papel 101 de construtor da ordem jurídica democrática. Além disso, não se deve perder o foco de que a política pública exige uma avaliação combinada entre política e direito, principalmente quando vemos na própria norma os ditames para a sua formulação, complexidade, alcance do interesse público, diretrizes gerais e perenidade. Como a lei representa em última instância a vontade da sociedade podemos afirmar que ela concretiza uma política pública. Essa atuação ministerial pode ser iniciada com a mobilização da sociedade, principalmente quando são estabelecidas parcerias entre o Ministério Público e as associações civis, dentro do controle social das políticas públicas. O Ministério Público 101 CHOUKR, Fauzi Hassan.. Ministério Público e Políticas Públicas. In: CHAVES, Cristiano; ALVES, Leonardo Barreto Moreira; ROSENVALD, Nelson (coordenadores). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do parquet nos 20 anos da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 444. pode atuar na educação, sensibilização e conscientização da população sobre seus direitos civis, políticos e sociais, e como produtor social na mobilização da população com fins de formulação de políticas públicas. Como salienta TARIN: A mobilização da sociedade civil é um processo que deve ser construído pelos Promotores de Justiça e constitui uma das alternativas de efetivação da norma, uma vez que devemos considerar a conexão direito/poder como 102 aprimoramento das relações sociais. Dentre as formas de atuação do Ministério Público temos o inquérito civil e a formalização do termo de ajustamento de conduta (TAC) como métodos de mediação de conflitos. Essas vias podem ser adotadas de forma preventiva, enquanto não houver prejuízos maiores para a sociedade, como uma forma de estabelecer um voto de confiança na Administração como executora das políticas públicas. Ao promover os TACs com as administrações públicas, o MP acaba interferindo em atitudes que implicam definições ou ajustes em políticas públicas que beneficiam os mais variados setores da população, desde a proteção ao direito à educação até a efetivação de políticas voltadas para a saúde. Assim, se verificado que determinada vacina foi retirada do calendário vacinal obrigatório pela Administração Pública sem um motivo convincente e que haverá prejuízo futuro provável com aumento da incidência de doença evitável por aquele fármaco, poderá o Ministério Público formalizar um termo de ajustamento de conduta com a Administração para que seja restabelecido o fornecimento da vacina a toda população. Por outro lado, caso seja apreciado um prejuízo já ocorrido ou na iminência de acontecer, deverá o Ministério Público agir com maior rigidez e presteza, muitas vezes não sendo prudente a confecção de um TAC. Na implementação de políticas públicas vislumbra-se um grande problema na admissibilidade da tutela jurisdicional, principalmente quando consideramos que esses processos são muito complexos e envolvem grande dificuldade técnica e 102 TARIN, Denise. A aliança entre o Ministério Público e a sociedade civil na definição de políticas públicas. In: VILLELA, Patrícia (coordenadora). Ministério Público e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 59. argumentativa, relacionadas às necessidades básicas das pessoas com inegável vocação coletiva, e ainda são vistas como algo novo, sem um modelo de julgamento que supere a base do processo jurisdicional liberal clássico, ainda distante da realização dos direitos sociais pelo Estado. A crescente demanda judicial na busca de efetivação dos direitos sociais se deve, principalmente, à aprovação da CF 88, às sucessivas crises que atingem os poderes Legislativo e Executivo e à superação do positivismo no campo da metodologia constitucional. Não é possível extrair diretamente do texto constitucional a conclusão de que o Judiciário pode ou deve condenar a Administração a prover bens e serviços sociais, principalmente quando existir a previsão de poder discricionário para o administrador. Por outro lado, a mesma Constituição prevê o controle da constitucionalidade das omissões estatais através do mandado de injunção e da ADIN por omissão, instrumentos suficientes para conduzir à Administração ao cumprimento do seu mister de suprir as condições para realização dos direitos sociais fundamentais. Há várias críticas contra a atuação do Judiciário nesse sentido, que segundo Souza Neto103, seriam de origem principiológicas e institucionais. Entre as críticas principiológicas temos a de concepção liberal que repele essa atuação por respeito ao princípio da separação dos poderes, na qual o poder Judiciário não poderia interferir nas atividades próprias do Executivo e do Legislativo. Em outras palavras, em caso de decisões judiciais no campo de ação do Executivo obrigando à execução de determinada atividade, estaria o Judiciário governando. A crítica democrática alega que a concretização judiciária dos direitos sociais seria uma contradição aos princípios democráticos de escolha pelo povo dos seus representantes e mandatários que seriam substituídos por juízes sem a legitimação do voto popular. Durante o processo eleitoral o eleitor teria condições de avaliar e escolher seus representantes, elegendo, assim, as propostas apresentadas por seus candidatos. 103 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. A justiciabilidade dos direitos sociais: críticas e parâmetros. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 515-551. Outra vertente a ser considerada é a das críticas institucionais de cunho financeiro, administrativo, técnica, econômica e da desigualdade no acesso à Justiça. A crítica financeira aborda a impossibilidade da realização de políticas públicas pela restrição de recursos públicos disponíveis, a chamada “reserva do possível”, já abordada anteriormente. A falta de conhecimento técnico imprescindível para verificar qual a política pública mais adequada para cada caso é o argumento central da crítica técnica. Os juízes, geralmente, não possuem conhecimento técnico especializado necessário, nem contam com uma estrutura de apoio que lhes dê informações apropriadas para a avaliação das políticas públicas. Porém, nada impede que o Judiciário use o expediente de nomeação de “amicus curiae” ou de solicitação de parecer técnico de especialistas na área em discussão. Na crítica econômica, sustenta-se que a decisão judicial não procura maximizar os benefícios produzidos pelos investimentos públicos, principalmente nas ações individuais, o que, ao invés de promover o bem-estar social estaria reduzindo o impacto da atuação pública. Assim, haveria o atendimento de carências pontuais com o potencial desvio de recursos advindos de propostas administrativas que alcançariam uma parcela maior da população. Outra crítica pertinente diz respeito à desigualdade quanto ao acesso à Justiça, tendo em vista que a maioria das pessoas que tem este acesso é composta de pessoas que, em tese, não necessitariam da atuação estatal para conseguir suprir suas demandas por possuírem uma condição social e econômica mais favorável. É fato que as pessoas com melhores condições econômicas e sociais têm também maior acesso à compreensão dos seus direitos e como acessá-los, assim conseguem melhores resultados em suas pretensões junto ao Judiciário. Por outro lado, a população com menor poder econômico é aquela com menor conhecimento de seus direitos e maiores dificuldades de acesso à Justiça, além de uma notória ausência de estrutura de atendimento jurídico gratuito à população, o que , aliás, demonstra a ineficiência das políticas públicas nessa área. Em que pese a lógica de algumas dessas críticas, não há mais que se discutir a necessidade e a importância das decisões judiciais na efetivação de ações para implementação dos direitos sociais fundamentais. O controle jurisdicional se faz necessário diante de uma realidade desfavorável à consecução de políticas públicas ligadas à saúde, cujos resultados ainda estão muito abaixo do que se poderia qualificar de uma condição satisfatória. Não se pode recusar a idéia de que o Judiciário deve tutelar as políticas públicas na medida em que elas expressam direitos fundamentais, sendo excluídos, segundo a doutrina anteriormente majoritária, os juízos referentes à qualidade ou adequação de opções ou caminhos administrativos do governo, acobertados pela discricionariedade. No entanto, tomando como guia a compreensão mais moderna do direito com a utilização dos princípios constitucionais como referência, todo ato administrativo é suscetível de revisão judicial visando sua compatibilidade com os princípios gerais de direito e com os princípios constitucionais ligados à Administração Pública e à dignidade humana. Ao examinar um ato administrativo discricionário deve o julgador extrair os critérios de controle jurisdicional do sistema constitucional, determinar os limites da sindicabilidade judicial da atividade administrativa discricionária e determinar as conseqüências de seu julgamento, inclusive a substituição do ato administrativo anulado por outro. Assim, como proposto por Souza Neto104, podemos adotar alguns parâmetros como guia para uma atuação legítima e mais efetiva do Judiciário. Inicialmente, esses parâmetros seriam divididos em materiais e processuais. Entre os parâmetros materiais para a efetivação dos direitos sociais pelo Judiciário temos que sua atuação deve se restringir à garantia do mínimo existencial; que sua atuação se caracterize pela proteção aos hipossuficientes; que a prestação requerida seja passível de universalização; que suas decisões prestigiem a solução técnica proposta pela Administração, quando apta a solucionar o problema; que a decisão busque a solução que demande menor gasto de recursos públicos; e que o Judiciário considere a atuação da Administração in concreto na concretização das políticas públicas, deve ser maior o controle jurisdicional onde essa atuação for menor. 104 Idem No campo processual, recomenda o mesmo autor que, como regra geral, as demandas por prestações sociais deveriam ser levadas ao Judiciário, em regra, na forma de ações coletivas, excepcionalmente como ação individual; essa litigância individual deveria ser facultada quando houvesse risco de dano irreversível ou quando a prestação estivesse positivada na lei; e a atribuição do ônus da prova quanto à falta de recursos para que a Administração cumpra sua obrigação seja do Estado. Com essa linha de raciocínio, seria possível uma conduta mais homogênea do Judiciário frente a essas demandas sem extrapolar os limites existentes entre as competências dos poderes estatais. 5.1. Litigância judicial dos direitos sociais Em levantamento conduzido por Hoffmann e Bentes105, temos o espelho do que representam as ações intentadas com o objetivo de garantir que a Administração cumpra seu papel de implementar a realização dos direitos sociais fundamentais. Inicialmente, parece haver forte correlação entre litigiosidade e melhor condição social e financeira do requerente. Quanto mais rica e educada for a população, mais litígios são gerados. Somente 2% (dois por cento) das ações relativas à saúde foram demandas coletivas, com uma demanda per capita que chega a um processo para cada 2.848 habitantes no estado do Rio Grande do Sul. A causa mais freqüente, cerca de oitenta e cinco por cento de todos os casos, diz respeito à reivindicações de pessoas físicas contra o Estado em busca de suprimento. A taxa de êxito na primeira instância é de 70% (setenta por cento), em nível de recurso nos tribunais cai para um pouco mais de 60% (sessenta por cento), e nos Tribunais Superiores alcança a cifra de 82% (oitenta e dois por cento). A argumentação jurídica prevalente se baseia na garantia ao direito de saúde (art. 6º e 196 da CF) ou no direito à vida (art. 5º da CF). A Administração Pública, na condição de requerida, alega, frequentemente, sua impossibilidade de suprir os pedidos dos administrados pela falta de verbas públicas ou pela impossibilidade de seu uso fora HOFFMANN, Florian F., BENTES, Fernando R. N. M.. Litigância judicial dos direitos sociais no Brasil: uma abordagem empírica. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 383-416 105 da lei orçamentária, o que caracterizaria um tipo criminal. Outro argumento muito usado pela Administração é que uma ordem judicial contra ela seria uma violação expressa do princípio da separação dos poderes, o que leva o governo a administrar através de ordens judiciais. Já as decisões dos tribunais são motivadas principalmente no direito à vida, depois no direito à saúde e na garantia da dignidade humana. Outros argumentos utilizados nas decisões têm como base a consideração que os direitos fundamentais e a dignidade humana devem prevalecer sobre normas administrativas, inclusive de natureza orçamentária; que determinados direitos sociais fundamentais são uma parte essencial da “democracia humanizada” estabelecida pela Constituição Federal; e que os direitos sociais fundamentais têm direito não só a serem consagrados através de tribunais ordinários como também à sua consecução por meio de ação jurídica. O perfil dessas ações, em sua maioria, envolve casos de reivindicação de fornecimento ou financiamento individual, seja de medicamentos seja de tratamento médico especializado, ou seja, elas representam ações de obrigação de fazer contra o Estado que falha no cumprimento das ações que garantam o princípio fundamental da saúde. Impressiona o aumento do montante de dispêndio devido por essas demandas que em 2003 representavam cerca de R$ 188.000,00 (cento e oitenta e oito mil reais) enquanto no primeiro semestre de 2007 chegou a cerca de R$ 26.000.000,00 (vinte e seis milhões de reais). 106 Fato interessante nesse estudo é que existe uma tendência muito forte dos tribunais em outorgar os direitos quando instrumentalizados em ações individuais, porém há uma negativa constante desses mesmos direitos nas ações coletivas. Nas ações individuais, as decisões não estabelecem culpa ou negligência das autoridades públicas na falta da prestação da Administração, mas concede o direito sob a chancela da responsabilidade objetiva do Estado. 106 HOFFMANN, Florian F., BENTES, Fernando R. N. M.. Litigância judicial dos direitos sociais no Brasil: uma abordagem empírica. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 415. Assim, na prática diária do Judiciário, encontramos uma atividade de controle da discricionariedade nas prevalentemente, as demandas individuais. políticas públicas, embora alcancem, Conclusão A proposta de realização de um Estado Constitucional como modelo adotado pelo constitucionalista de 1988 no Brasil criou uma expectativa de desenvolvimento social do país tendo como fundamento principal a dignidade do homem. O caráter programático da Constituição Federal de 1988 evidenciou a preocupação com as carências estruturais da sociedade, dentre elas a da saúde , e uma tendência a formulação de normas constitucionais de garantia para a efetivação de políticas públicas a fim de se diminuir as desigualdades e se instalar um pleno Estado Social, com distribuição de serviços essenciais à parcela mais carente da população. Dentro dessa lógica, o Estado passou a ter sua racionalidade pautada pelo planejamento de ações voltadas para o respeito aos Direitos Fundamentais, assim como o planejamento e realização de atividades que garantissem esse mesmo respeito. Tais atividades se dào através das políticas públicas, concebidas como atividade estatal de prestação de serviços e condições materiais que propiciem à sociedade um mínimo existencial relacionado à dignidade humana, constitucionalmente protegida, e que objetivam a efetivação dos direitos fundamentais sociais previstos na Constituição. Acompanhando uma tendência universal, reconheceu o constituinte nacional a saúde como direito fundamental, garantindo no texto constitucional a sua condição de direito de todos e dever do Estado. Como conseqüência, elaborou o legislador as normas que sintetizam a Lei Orgânica de Saúde e a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS), principal instrumento de execução das atividades estatais ligadas à saúde. A elaboração dessas políticas pelos poderes Legislativo e Executivo cumpre o preceito do princípio democrático em que os agentes eleitos como representantes do povo, verdadeiros detentores do poder de decisão do país, desenvolvem os projetos de governo apresentados aos eleitores durante o processo eleitoral. Portanto, não há que se discutir a legitimidade da produção dessas políticas por esses poderes, assim como não há como ignorar a existência de um espaço, autorizado pela norma, para decisões do legislador e do administrador público na escolha das opções a serem implantadas, ou seja, a discricionariedade administrativa. Porém, dentro de uma concepção principiológica de nossa Constituição, temos uma grande limitação dessa discricionariedade. Apesar do constante apelo à “reserva do possível”, principalmente no que toca às restrições orçamentárias, exsurge da interpretação constitucional a exigência do cumprimento de um mínimo existencial, a efetivação do núcleo essencial dos direitos fundamentais em que se preserva a dignidade humana, e da proibição do retrocesso a condições inferiores às já alcançada por essas políticas públicas. Apesar das freqüentes manifestações da Administração Pública contrárias a um controle na escolha e efetivação das políticas públicas, principalmente ancoradas na legitimação de um governo democraticamente eleito, na melhor condição técnica de escolha de tais políticas, e na separação dos poderes, não se pode negar um controle de sua atividade discricionária na escolha dos meios que serão utilizados para a efetivação dos Direitos Fundamentais Sociais. Esse controle pode ser efetivado pela sociedade, seja pela maior participação dos cidadãos e organizações sociais diretamente, ou através das instituições envolvidas na proteção dos direitos dos cidadãos. Destaca-se a atuação do Ministério Público, constitucionalmente legitimado a agir na proteção do ordenamento jurídico e na defesa dos direitos transindividuais, tendo como instrumento a Ação Civil Pública e o Termo de Ajuste de Conduta para interferir na condução das políticas públicas antes uma atuação concreta do Judiciário. Além do controle social, temos o controle jurisdicional da discricionariedade das políticas públicas. Cada vez mais comum nas instâncias ordinárias, o controle jurisdicional é plenamente justificado pelo princípio da inafastabilidade da atividade jurisdicional do Estado. Nenhum litígio pode ficar isento de exame e decisão por parte do Poder Judiciário, desde que preenchidas as condições que possibilitem tal exame. Especificamente, no caso do controle da discricionariedade das políticas públicas temos a legitimidade da sociedade como um todo, já que a ela é destinada tais políticas na proteção dos seus interesses, e que se pode fazer representar pelo Ministério Público. Além disso, a possibilidade jurídica está ancorada na realização dos princípios constitucionais estabelecidos no campo dos direitos sociais, que devem ser prestados, garantidos e efetivados pelo Estado em cumprimento à proteção da dignidade humana. Objetivamente, esse controle deve buscar a presença do respeito aos princípios da atividade administrativa do Estado, principalmente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Em se tratando de atividade discricionária da Administração, a motivação dos seus atos deve ser clara e plenamente vinculada aos princípios da boa administração. Qualquer desvio desses quesitos deve levar ao questionamento e anulação desses atos. Para não cair na armadilha de um subjetivismo judicante, deve o julgador utilizar de algumas premissas objetivas no controle da discricionariedade dessas políticas. Um primeiro passo é o de priorizar as ações coletivas, já que essas políticas têm como alvo a sociedade como um todo, ou partes relevantes dela; num segundo momento deve avaliar os limites dessa discricionariedade definidas na norma, como as determinações orçamentárias presentes nas normas constitucionais; depois, deve apreciar se houve a realização de uma prestação que garanta o mínimo existencial relacionado ao direito assistido por aquela política, sem jamais permitir o retrocesso naquele campo, esta avaliação pode ser corroborada pela assistência de especialistas nas áreas de atuação que municiariam o julgador com elementos técnicos. E, finalmente, a apreciação da reserva do possível, ou seja, caso a Administração utilize deste argumento para a decisão de qual opção deveria tomar na instituição de determinada política pública. Nesses casos, o julgador deve exigir da Administração Pública provas que não havia condição para alocar recursos em determinadas atividades que seriam exigíveis para a efetivação de direitos fundamentais sociais. Nesse campo, seria possível ao julgador questionar a falta de empenho do administrador em buscar tais recursos em outras fontes além do orçamento estabelecido, como em parcerias com outros entes estatais ou com a sociedade civil. Cumpre esclarecer que não se discute mais a possibilidade do controle da discricionariedade da atividade do Estado, principalmente no que toca ao desenvolvimento de políticas públicas. O que se nota é uma timidez da sociedade e do Judiciário em adotar medidas concretas para fazê-lo. A sociedade, por sua própria desorganização e falta de cultura no sentido de participar mais efetivamente dessas políticas, e o Judiciário, por sua tradicional estruturação voltada para uma cultura liberal em que os direitos individuais são mais importantes que os direitos coletivos. Sendo assim, fica estabelecido que o controle dos limites da discricionariedade nas políticas públicas é possível e necessário para que se cumpram as determinações constitucionais de proteção à dignidade humana e plena possibilidade de desenvolvimento da sociedade com seus direitos fundamentais sociais sendo efetivados pelo Estado. A fundamentação desse controle está na própria Constituição e deve ser estimulada para que a sociedade se aproxime do ideal de uma sociedade justa e sem desigualdades. Referências 1. BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO; DAVID ROCKEFELLER CENTER FOR LATIN AMERICA STUDIES. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina: Relatório 2006. 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