ESCOLA
SUPERIOR
DO
MINISTÉRIO
PÚBLICO
DO
DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
José Marco Rezende Andrade
LIMITAÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE
NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS
Brasília
2009
José Marco Rezende Andrade
Limitação da discricionariedade na
implementação de políticas públicas
Trabalho de conclusão do curso de PósGraduação da Fundação Escola Superior
do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios: “Ordem Jurídica e Ministério
Público”. Orientadora: Dra. Luciana
Medeiros.
Brasília
2009
Resumo
ANDRADE, José Marco Rezende. Limitação da discricionariedade na implementação de
políticas públicas. 2009. 79 f. Monografia de Curso de Pós-Graduação. Curso: Ordem
jurídica e Ministério Público. FESMPDFT, Brasília, 2009.
Monografia sobre a limitação da discricionariedade da Administração Pública em sua escolha
de políticas públicas adotadas na área da saúde. As políticas públicas são os instrumentos do
Estado para a implementação de ações que assegurem a realização dos direitos fundamentais
previstos na Constituição Federal. Dentre esses direitos temos o direito à saúde como dever
do Estado e que permanece com uma deficiência muito grande diante das necessidades da
população. Durante muito tempo foi contemplada como dogma inatacável a impossibilidade
de intervenção nas escolhas da Administração sobre quais políticas adotar, principalmente
com o argumento de que a independência entre os poderes do Estado não permitiria a atuação
do Judiciário sobre essa discricionariedade da Administração. Porém, diante de um Estado
ineficiente e clientelista exsurge a necessidade de intervenção da sociedade, do Ministério
Público e do Poder Judiciário para um direcionamento das políticas públicas em saúde com
uma finalidade maior de eficiência e efetividade. Calçados nos princípios da garantia do
mínimo existencial, da proibição do retrocesso social e da inafastabilidade da atividade
judicial, tanto o Ministério Público como o Judiciário têm o poder-dever de agir em prol da
sociedade interferindo nas escolhas da Administração. Já existe uma atividade nesse sentido
em termos de garantias individuais dos cidadãos, porém deve ser buscada uma efetiva ação
em termos coletivos para se garantir que a saúde seja efetivamente oferecida pelo Estado
como direito fundamental e fator de reconhecimento da dignidade da pessoa humana.
SUMÁRIO
Introdução. ............................................................................................................................... 4
Capítulo 1. O Estado e as Políticas Públicas ............................................................................ 7
Capítulo 2. Direitos Fundamentais ......................................................................................... 13
2.1. Direito Fundamental e o Princípio da Proibição do Retrocesso Social ....................... 20
2.2. O Mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais .............. 22
2.3. A Saúde como Direito Fundamental .......................................................................... 25
Capítulo 3. Políticas Públicas .................................................................................................. 34
3.1. Limitações às realizações de políticas públicas .......................................................... 46
Capítulo 4. Discricionariedade e Atividade Administrativa ................................................... 49
Capítulo 5. Limitação da discricionariedade e controle das Políticas Públicas ...................... 61
5.1. Litigância judicial dos direitos sociais ....................................................................... 72
Conclusão ...............................................................................................................................75
Referências ............................................................................................................................. 79
Introdução
As políticas públicas são os principais instrumentos das realizações estatais nos
campos de propostas programáticas da Constituição Federal de 1988. Essas propostas
tecem uma teia de promoção do desenvolvimento social e da diminuição das
desigualdades seculares com as quais convivemos diariamente na área da Saúde
Pública.
No planejamento dessas políticas, recorre a Administração Pública ao poder
discricionário que lhe é previsto dentro das normas de Direito Público. Assim, dentro de
um conjunto de opções aptas a viabilizarem um projeto poderá o administrador,
respeitadas as limitações legais e principiológicas, escolher a que se apresentar como a
melhor segundo os critérios de oportunidade e conveniência.
O que se discute neste trabalho é a limitação do poder discricionário do Estado
na escolha e implantação das políticas públicas. Diante de um direito fundamental
garantido pela Constituição Federal, o direito à saúde, a execução de políticas públicas
nesta área devem ser desenvolvidas com um viés de maior eficiência e com a
priorização do interesse público sobre os interesses individuais.
Apesar do reconhecimento do papel do Judiciário e do Ministério Público na
fiscalização e controle das políticas públicas não se tem a definição exata do alcance
destas atividades. A Administração se utiliza da argumentação do respeito à
independência entre os três poderes do Estado para rechaçar possíveis interferências em
suas escolhas no planejamento das políticas públicas em saúde. Por outro lado, tanto o
princípio constitucional da inafastabilidade da atividade judicante como as prerrogativas
da atuação do Ministério Público servem como eixo para uma participação maior destas
instituições no controle das políticas públicas.
O tema delimitado nesta monografia parte da definição da saúde como direito
fundamental a ser garantido e prestado pelo Estado através da instituição de políticas
públicas em que a discricionariedade deve e pode ser limitada na busca de melhores
resultados em suas metas. Tendo como parâmetro inicial o chamado “mínimo
essencial”, as políticas públicas de saúde devem se desenvolver buscando os princípios
da universalidade e da eficiência em todos os níveis.
Não pode a Administração fazer uso da doutrina da “reserva do possível”,
limitação de recursos financeiros e técnicos, como limitadora de seus esforços na
execução dessas políticas. Assim, vemos crescer o campo de atuação do Ministério
Público e do Judiciário no controle da discricionariedade das escolhas do Estado em
termos de políticas públicas de saúde utilizando as doutrinas do “mínimo existencial” e
do princípio da proibição do retrocesso social como parâmetros. Essa atividade tem sido
mais comum no campo de garantias de direitos individuais, principalmente em casos de
necessidade de leitos em Unidade de Terapia Intensiva e no fornecimento de
medicamentos, o que alcança pequena parcela da necessidade real de efetivação do
direito à saúde como matéria de interesse coletivo.
O que se propõe neste estudo é demonstrar que sendo a saúde um direito
fundamental, explicitamente garantido pela Constituição Federal e com legislação
suficiente para a sua implementação, surge a obrigação do Estado em garantir políticas
públicas para sua maior efetivação. Mesmo sabendo que em certos momentos as
necessidades superam a disponibilidade de recursos disponíveis, não pode a
Administração se esquivar da execução de ações que garantam a saúde, assim como não
há justificativa para uma ilimitada liberdade de escolha diante de necessidades tão
antigas e essenciais para uma condição de sanidade para a população.
Com a definição dos papéis dos atores sociais e políticos, principalmente o
Ministério Público e o Judiciário, pretendemos justificar a necessidade da intervenção
destas instituições na limitação da discricionariedade da Administração para a
implementação de políticas públicas na saúde. Além disso, busca-se demonstrar que as
intervenções nesse campo são predominantemente em casos individuais, quando a
premência de uma ação que pode resultar na sobrevivência do indivíduo pela falta da
assistência que o Estado deveria cumprir ordinariamente.
Embora seja inegável a importância dessas ações, deve-se atentar para a
necessidade desse tipo de intervenção no que diz respeito às atividades voltadas para a
saúde coletiva. Uma intervenção na escolha das políticas públicas a serem adotadas
deve alcançar um planejamento a médio e longo prazo com o objetivo de suprir de
maneira ampla a efetivação dos serviços de saúde e diminuir as demandas individuais,
que após o sucesso das políticas efetivadas seriam reduzidas em proporção exponencial.
A metodologia de pesquisa adotada constou de leitura da doutrina e de decisões
judiciais que se correlacionam com o tema. Além das referências doutrinárias, o
trabalho apresenta dados referentes a trabalhos de estatísticas ligados à saúde, relatórios
de trabalho do Banco Interamericano de Desenvolvimento sobre a análise política da
efetividade das políticas públicas na América Latina e um estudo empírico sobre a
litigância judicial em ações que envolvem o tema. A análise, compreensão e
desenvolvimento dessas informações permitiram que se estabelecesse uma justificativa
para que haja uma limitação da discricionariedade na implementação de políticas
públicas de saúde.
1. O Estado e as Políticas Públicas
O estudo do controle sobre as políticas públicas passa obrigatoriamente pela
compreensão da evolução do Estado a partir de sua caracterização como Estado de
Direito.
Não cabe no presente estudo um aprofundamento sobre as origens históricas e
sociológicas do Estado de Direito. Porém, é importante destacar os seus fundamentos
encontrados em nossa Constituição. São eles, segundo Gilmar Ferreira Mendes1:
• Princípio Republicano: no qual o Brasil é uma república constitucional,
uma forma de governo onde a investidura no poder está ao alcance de
todos os cidadãos que preencham as condições de capacidade
estabelecidas na própria Constituição. Além disso, tal estrutura de poder
deve garantir as liberdades civis e políticas;
• Princípio do Estado Democrático de Direito: afirma que a vontade do
povo é a origem do poder que sustenta a organização política do Estado,
sendo exercida de maneira direta ou por meio de representantes eleitos
livremente;
• Princípio da Dignidade Humana: diz que todo ser humano carrega em si
um valor intrínseco único que o torna um indivíduo singular. É um valor
de “hierarquia supraconstitucional”2, não sendo o valor da dignidade
humana discutível em si mesmo, mas tão somente o desrespeito à essa
condição humana.
• Princípio da Separação dos Poderes: está contido no artigo 2º da CF, com
a determinação de que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são
poderes independentes e harmônicos entre si. É considerada cláusula
pétrea, não cabendo emendas, reformas ou revisões que possam retirar
sua validade.
1
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.140.
2
Idem
• Princípio do Pluralismo Político: sustenta que respeitadas as restrições
existentes na própria Constituição, cada pessoa é livre para se
autodeterminar, não podendo nem mesmo o Estado interferir em suas
escolhas e opções, desde que não extrapolem as liberdades inseridas na
Lei Fundamental;
• Princípio da Isonomia: sinteticamente, significa tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Tem
como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei3. Tal
princípio goza de um importante destaque em um país com tantas
desigualdades como o Brasil e que tem na própria Constituição
determinado o objetivo de “erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
• Princípio da Legalidade: previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição
Federal, normatiza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei”. Tal desiderato se estende a todo o
ordenamento jurídico traduzindo a idéia de que a lei é o instrumento por
excelência da conformação jurídica das relações sociais.
A presença de tais princípios inseridos nas diversas Constituições de países
democráticos demonstrou, ao longo do tempo, que não seriam suficientes para o alcance
de seus objetivos de desenvolvimento social caso não houvesse o respeito por parte da
Administração Pública e a efetivação de um plano político permanente voltado para tais
fins.
Após o período da Segunda Grande Guerra, houve uma potenciação do Estado
de Direito com um maior respeito aos desígnios constitucionais e a construção de
Estados incondicionalmente fundados nos ditames inseridos em suas Cartas Magnas. Já
não basta buscar concretizar o interesse público considerado conforme a circunstância
política de quem ocupa a Administração Pública, mas utilizar a Constituição como nova
fonte de legitimação para a atividade estatal de administração do Estado. Desenvolvese, assim, o Estado Constitucional.
3
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2007.
Cabe à Administração Pública, como um dos poderes constituídos, o papel de
efetivar materialmente os comandos gerais estabelecidos no ordenamento jurídico,
principalmente as normas constitucionais. Os veículos mais adequados são as políticas
públicas, como destaca Thiago Lima Breus:
Para que a Administração realize os comandos normativos contidos na
Constituição, especialmente os Direitos Fundamentais sociais ou
prestacionais, é preciso que o faça por meio de programas e ações
específicas, os quais, exatamente por serem dirigidos à realização desses
direitos de forma convergente e adequada, podem ser denominados de
4
políticas públicas.
O Brasil sempre carregou as influências históricas do patrimonialismo (ausência
de definição entre o público e o privado pelos agentes da Administração Pública) do
Estado português. Além disso, o governo brasileiro sempre foi marcado pela
centralização do poder, pela influência da Igreja, pela pouca expressão da sociedade
civil e por uma cultura política autoritária. Todas essas influências ajudaram a criar uma
sociedade alijada do centro das decisões sobre o desenvolvimento de políticas que
atendessem suas necessidades mais básicas, assim como impediram a formação de um
senso crítico mais apurado em matéria de questionamento dos governantes.
Segundo João Pedro Schmidt5, quatro aspectos marcam a cultura política
brasileira baseados em uma sociedade civil fraca e um Estado forte: o personalismo,
conduta política orientada pelo padrão pessoal e afetivo, contrário do princípio da
impessoalidade; o patrimonialismo, que consiste na gestão da coisa pública como se
fosse privada; o clientelismo, uma relação de troca de favores entre agentes políticos,
agentes econômicos e as pessoas; e o autoritarismo, o excesso de autoridade com a
imposição da obediência sem prévio consenso entre Estado e a sociedade.
Com o aumento da urbanização da população brasileira e a formação de um
núcleo social mais consciente das obrigações pertinentes ao Estado. Associado a essa
incipiente movimentação da população, coube ao Estado, tentando se ajustar a uma
4
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos
direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum,
2007, pg. 47
5
SCHMIDT, João Pedro. Gestão de políticas públicas: elementos de um modelo pós-burocrático e pósgerencialista. In: REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério Gesta (organizadores). Direitos Sociais e políticas
públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, pg. 1988-2032
nova realidade administrativa, adotar o planejamento governamental com a organização
de políticas públicas.Uma constatação do início dessa nova característica do Estado no
Brasil começa a ocorrer a partir da década de 30 do século passado. Segundo Schmidt:
A Revolução de 1930 é o grande marco da modernização do Estado no
Brasil, o período em que se originam as principais estruturas responsáveis
pelas políticas públicas e em que o ideário do welfare state passa a ser o
6
referencial orientador das políticas.
As primeiras políticas tiveram relação com um estímulo à economia nacional
(construção de siderúrgicas e exploração do petróleo), com a intervenção estatal nas
relações de trabalho e com o início de uma estrutura previdenciária e assistencial à
saúde, inicialmente restritos a algumas categorias profissionais urbanas, e que mais
tarde foi universalizada pela Constituição Federal de 1988.
No período entre as décadas de 30 e 80 do século passado, a implantação de
políticas públicas teve como característica a destinação dos benefícios aos integrantes
de certas categorias específicas de trabalhadores, melhores organizadas e com influência
em setores da política.
Essas políticas se destacaram pela sua ineficiência e ineficácia; pelos altos custos
de implementação e administração; pelo distanciamento entre os formuladores das
políticas, os executores e seus beneficiários; pela instabilidade e descontinuidade das
ações propostas; pela ausência de avaliação dos programas; e pela impossibilidade de
um maior controle por parte dos demais poderes do Estado.
O grande marco normativo para o estabelecimento de um Estado Constitucional
efetivo no Brasil foi a promulgação da Carta Constitucional de 1988, que buscou
superar o quadro institucional anterior de caráter desigual e autoritário. Com a nova
Constituição aderimos ao Estado Constitucional caracterizado, em sentido formal, pela
supremacia definitiva da Carta Magna, pela normatização plena dos princípios e regras
constitucionais, e numa concepção material pela explicitação de valores, dentre eles o
da dignidade humana, e dos Direitos Fundamentais.
6
Idem
Na década de 90 do século XX, passamos por reformas na estrutura do Estado
sob a bandeira do “neoliberalismo”, mesmo sob uma Constituição voltada a princípios
de efetivação de direitos sociais e promotores da igualdade social. A reforma gerencial
empreendida não foi capaz de aumentar a capacidade de implementação de políticas
públicas nem a melhoria dos serviços públicos. Já sob a égide de uma nova
Constituição,
que
apresenta
claramente
um
programa
para
efetivação
do
desenvolvimento social da nação e buscando reduzir as desigualdades sociais, a
Administração Pública não foi capaz de transformar esses objetivos em realidade.
Ainda assim, verificou-se uma evolução em termos de regulamentação nas áreas
de proteção à criança e ao adolescente, da seguridade social, da saúde, da assistência
social, da educação, da previdência social, do consumidor e do meio ambiente. Como
destaca em sua obra, Thiago Lima Breus:
A virada para o século XXI, portanto, ficou marcada no Brasil pelo conflito
entre a expectativa da implementação das políticas públicas que
concretizassem esses direitos conquistados, assegurados pela Constituição, e
7
as restrições políticas e econômicas postas à sua imediata implementação.
Voltando ao Estado Constitucional como modelo a ser seguido, vemos a
substituição dos interesses públicos pelos Direitos Fundamentais como escopo
fundamental do Estado de Direito. A partir do reconhecimento dessa condição, tem o
Estado que direcionar todos os seus esforços para proteger e efetivar esses direitos,
principalmente através de atos que os garantam e na prestação de atividade que
concretize os direitos sociais.
A atividade estatal deverá ter como principal fundamento a dignidade humana.
Inicialmente, como limitador da atividade estatal impedindo a violação do indivíduo
pelos abusos do Estado. Em um segundo estágio, vinculando o poder estatal à sua
efetivação através de suas ações.
Além de fundamento da República expressamente declarado no inciso III do
artigo 1º da Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana é integrada ao texto
constitucional em três outros momentos de forma explícita: como finalidade no
7
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos
direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum,
2007.
exercício da atividade econômica, como princípio essencial da família e como direito
fundamental da criança e do adolescente.
Pode-se afirmar, com toda segurança, que a dignidade da pessoa humana deve
ser encarada como princípio fundamental do qual todos os demais princípios derivam e
que norteia todo o ordenamento jurídico. Sua validade e eficácia como regra foi elevada
acima das demais normas e princípios, servindo como eixo para a integração e
legitimação dos demais princípios que regem o ordenamento.
Assim, vemos a evolução de um Estado guiado por regras estabelecidas e que
passa a utilizar como eixo normativo os direitos fundamentais. Sintetizando o que
significa essa transição de um Estado de Direito para um Estado Constitucional e sua
relação com a implementação de políticas públicas, utilizamos a lição de MORAES
quando se refere a atual fase do constitucionalismo, que marca a normatividade e
positivação dos princípios gerais de Direito.
A decomposição do Direito em princípios e regras delimitou dois campos
distintos, porém não estanques: os campos da juridicidade – direito por
princípios, dentre os quais o da legalidade, e o campo da legalidade – direito
por regras, contido no primeiro, e no domínio do Direito Administrativo, o
princípio da juridicidade da administração substitui o princípio da legalidade,
8
englobando-o.
Portanto, principalmente após a entrada em vigor da Constituição Federal de
1988, carta elaborada por constituintes legitimamente eleitos em um processo
democrático e com ampla participação popular, abre-se para a Administração Pública
uma perspectiva diferente no modo de governar. Tendo como guia os Princípios
Constitucionais e os Direitos Fundamentais, o Estado brasileiro se encontra vinculado à
obrigação de tornar concreto o ideal de uma nação desenvolvida e sem desigualdades
sociais, tendo como norte a proteção à dignidade humana. Para a instrumentalização
desse mister deve o administrador se utilizar das políticas públicas.
8
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. 2a ed. São Paulo:
Dialética, 2004, p. 197.
2. Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais podem ser conceituados como direitos subjetivos
positivados na Constituição Federal, ou em normas infraconstitucionais, com aplicação
nas relações das pessoas com o Estado e na sociedade. Não se restringem esses direitos
àqueles enumerados na Constituição Federal, são qualificados como fundamentais os
direitos equiparáveis, pelo seu objeto e pela sua importância, aos direitos de natureza
constitucional.
São, simultaneamente, um tipo especial de direito subjetivo, que confere aos
seus titulares a pretensão de que se adote um determinado comportamento em respeito à
dignidade humana, e elemento constitutivo do direito objetivo compondo a base do
ordenamento jurídico onde a afirmação e garantia dos direitos fundamentais legitimam
o Estado de Direito.
Sua titularidade é alcançada por pessoas naturais (sejam elas brasileiras,
estrangeiras ou apátridas) e por pessoas jurídicas, que disponham de capacidade de fato
ou de exercício, ou não. A sua fruição não depende da aptidão intelectual do seu titular.
O Poder Público é o sujeito passivo, por excelência, dos direitos fundamentais.
Porém, não se discute mais se esses mesmos direitos seriam aplicáveis no campo do
Direito Privado, ou seja, com o pólo passivo ocupado por um sujeito que não de Direito
Público.
A eficácia dos Direitos Fundamentais no âmbito do Direito Público ocorre em
todas as suas atividades. Na atividade legislativa sempre deverá ocorrer conformidade
entre a confecção das leis, tanto em seu processo de formação como em seu conteúdo, e
os comandos dos Direitos Fundamentais, inclusive na imperatividade da construção de
normas indispensáveis à regulamentação desses direitos.
Assim, como destacado por Breus9, os Direitos Fundamentais apresentam os
seguintes aspectos: as normas que os vinculam são hierarquicamente superiores às
9
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos
direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum,
2007.
demais normas; possuem limitação constitucional de reforma e emendas; têm
aplicabilidade imediata; e vinculam todos os poderes.
Os atos da Administração Pública podem ser invalidados pela violação de
direitos fundamentais, assim como não podem advir de aplicação de lei ou ato
normativo inválido. Já ao Judiciário cabe regular a concretização desses direitos, tanto
na atividade pública como nas relações privadas.
Atualmente, não se discute mais sobre a aplicação dos direitos fundamentais no
âmbito do Direito Privado, visto que não existe relação jurídica que possa se afastar dos
preceitos básicos desses direitos. Não se concebe que possam ser afastados os direitos
que sustentem a proteção da dignidade humana de qualquer relação social, tendo em
mente que a nenhum homem será negada a proteção de sua dignidade, independente de
raça, cor, credo, ou qualquer outro diferencial.
No Supremo Tribunal Federal temos julgados que demonstram essa
aplicabilidade envolvendo a garantia constitucional de intimidade nas relações de
trabalho10, garantia do devido processo e ampla defesa em exclusão de associado de
instituição privada11 e a aplicação do princípio da igualdade em relação a estrangeiro
empregado de empresa brasileira nas relações trabalhistas12. Em todos eles vemos a
confirmação da extensão da proteção dos Direitos Fundamentais nas relações de Direito
Privado, onde o mais importante é a proteção final à dignidade da pessoa humana.
Algumas correntes doutrinárias fundamentam a existência e aplicação dos
Direitos Fundamentais. A teoria realista, elaborada por Noberto Bobbio13, defende que a
partir da Proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia
Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948 não cabem mais questionamentos sobre a
existência e necessidade de aplicação dos direitos humanos, mas da criação de
mecanismos de proteção e de efetivação. Com a concordância da grande maioria dos
Estados esse tema se tornou fato consumado e sem justificativas para a sua negação.
Não seria mais uma questão filosófica, mas política. Eles existem e necessitam de uma
atividade estatal mais concreta para sua realização.
10
STF, RE 160.222, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJU 01.09.1995.
STF, RE 158.215, Rel. Ministro Marco Aurélio, DJU 07.06.1996.
12
STF, RE 161.243, Rel. Ministro Carlos Velloso, DJU 19.12.1997.
13
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
11
Enquanto isso, as teorias juspositivistas questionam a possibilidade de
justificação racional dos direitos humanos. Segundo seu maior representante, Hans
Kelsen14: “uma norma somente é válida na medida em que tenha sido produzida de
maneira determinada por outra norma”. Sendo assim, se não forem determinados
objetivamente e positivados no ordenamento jurídico, os direitos fundamentais do
homem não serão válidos.
Já as teorias jusnaturalistas pregam a possibilidade de justificação racional dos
direitos humanos amparadas na existência de valores, princípios e regras que possuem
validade universal, objetiva e absoluta, independente da consciência ou experiência dos
indivíduos. A positivação desses direitos teria mera natureza declaratória e sua
aplicação não careceria de um procedimento especial dentro do ordenamento jurídico,
sendo de aplicação imediata e universal. Seriam direitos que nascem antes da própria
organização da sociedade e da elaboração de um ordenamento jurídico, por isso sua
positivação em leis seria apenas uma confirmação de sua existência, e não sua criação.
Os direitos fundamentais, segundo Moraes15, possuem três características
básicas: inalienabilidade, historicidade e relatividade. A inalienabilidade indica que tal
direito não pode ser alienado ou renunciado, não podem ser objeto de negócios jurídicos
que importem em transmissão de sua titularidade.
A historicidade indica que os direitos fundamentais se transformam ao longo do
tempo podendo ser retratados em gerações. Com isso, ganha um caráter de permanente
atualidade permitindo que a sociedade tenha resguardados os novos direitos que surgem
diante de situações inéditas até então.
Segundo Mendes16, a primeira geração é identificada como o dever de
abstenção do Estado frente a determinadas liberdades do indivíduo. Surgem como
garantidores da liberdade do indivíduo frente a um Estado poderoso. Impedem que esse
mesmo Estado interfira na expressão da dignidade de cada ser humano, quando este age
dentro do que a própria norma lhe confere como espaço vital. São chamados também de
14
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 240.
MORAES, Guilherme Peña. Direito constitucional: teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008
16 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.223.
15
direitos negativos, justamente por negarem qualquer possibilidade de interferir nos
direitos individuais dos cidadãos.
A segunda geração envolve um dever de ação, uma prestação para o atendimento
às necessidades sociais, econômicas ou culturais para a realização da vida de maneira
mais digna, por parte do Estado Social. Esses direitos prestacionais são direitos do
indivíduo frente ao Estado obrigando-o a fornecer condições ou prestar serviços, que
caso o indivíduo possuísse recursos financeiros suficientes ou encontrasse oferta no
mercado poderia realizá-los sem a intervenção estatal. Encontram-se neste rol os
direitos à educação, saúde, trabalho, lazer, moradia, segurança, previdência social,
proteção à maternidade e à infância.
A terceira geração é informada pela fraternidade ou solidariedade, envolve os
direitos à comunicação, desenvolvimento, meio ambiente equilibrado e sadio, proteção
ao patrimônio cultural, etc. São direitos que traduzem uma responsabilidade de toda a
sociedade em torno do pleno desenvolvimento dos seres humanos, garantindo uma
atuação de todos na garantia de um mundo mais justo.
E, finalmente, os direitos de quarta geração, que envolvem questões mais atuais
como a manipulação do patrimônio genético, globalização da economia, justa
distribuição de riquezas, entre outros. Esses direitos ainda não estão bem definidos pela
doutrina como um conceito unânime, porém todas as condições descritas como
pertencentes a essa geração possuem um grau de proteção normativa suficiente para
garantir sua efetivação.
Outra característica é a relatividade, que diz respeito à possibilidade de colisão
entre os direitos fundamentais. Essa situação deverá ser resolvida pelo mecanismo de
ponderação, que deverá proporcionar uma harmonização entre os princípios buscando
uma resultante mais efetiva, onde não se perca a essência da garantia dos direitos em
jogo.
Essa ponderação, de acordo com Edilsom Farias17, compreende o ajustamento
dos bens jurídicos buscando resolver o conflito dos direitos fundamentais com o
mínimo sacrifício dos valores constitucionais, nesse exercício deverá o intérprete
17
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. 1ª ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1996, p.
93.
utilizar os princípios da concordância prática, da unidade da Constituição e da
razoabilidade.
Segundo José Afonso da Silva18, a essas características seriam somadas a
imprescritibilidade e a irrenunciabilidade. Gilmar Ferreira Mendes19 inclui como
características o fato desses direitos serem universais e absolutos, constitucionalizados,
de vincularem os Poderes Públicos à sua aplicação e a sua aplicabilidade imediata.
Sendo a dignidade da pessoa humana o valor supremo da ordem jurídica, valor
que atribui unidade teleológica aos princípios e regras do ordenamento jurídico
assegurando o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais, deverá ser usada
como guia na ponderação entre a efetivação dos direitos fundamentais em colisão, de
maneira que a pessoa deverá ser tratada como um fim em si mesma, e não como mero
objeto ou meio para se atingir outros objetivos.
No Título II da CF presenciamos a tipologia dos direitos fundamentais em torno
dos critérios formal e material. O critério formal diz respeito à origem da qual procedem
os direitos fundamentais, que podem ser divididos em constitucionais quando
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e em direitos derivados de
acordos, tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja parte. O critério
material está ligado ao objeto de tutela dos direitos fundamentais escritos na
Constituição Federal, principalmente os estabelecidos no seu artigo 5º.
Em síntese, com base na Constituição, José Afonso da Silva20 classifica os
Direitos Fundamentais em seis grupos: direitos individuais; direito à nacionalidade;
direitos políticos; direitos sociais; direitos coletivos e direitos solidários.
Os direitos fundamentais desempenham várias funções na sociedade e na ordem
jurídica. Podemos categorizá-los, segundo Gilmar Mendes21 utilizando as idéias de
Jellinek, em direitos de defesa, direitos a prestação e direito de participação.
18
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2007.
19
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
20
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2007.
21
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.245
O direito de defesa impõe ao Estado um dever de abstenção, de não-interferência
no espaço de autodeterminação do indivíduo. Segundo Gilmar Ferreira22: “Destinam-se
a evitar ingerência do Estado sobre os bens protegidos (liberdade, propriedade...) e
fundamentam a pretensão de reparo pelas agressões eventualmente consumadas.”
O direito a prestação visa à consecução de atividades do Estado com a finalidade
de diminuir as desigualdades, buscando uma configuração igualitária da sociedade em
suas realizações e oportunidades, configurando um direito de promoção. Essa prestação
pode se referir a uma prestação material ou a uma prestação jurisdicional.
A prestação material resulta da concepção social do Estado, sendo seu objetivo
executar uma ação que tenha utilidade concreta. Entre esses direitos temos o direito à
educação e à saúde, quando o indivíduo não pode, por seus próprios meios, alcançar as
condições necessárias para desfrutar desses serviços. A maioria dos direitos de
prestação depende da interposição do legislador a fim de ser efetivada, tanto na
organização do plano orçamentário, de iniciativa do Executivo, assim como na
configuração das leis que dão sustentação aos setores amparados por essas políticas
públicas.
Os direitos de prestação material estão relacionados ao objetivo de diminuir as
desigualdades de oportunidades na sociedade, ou seja, tentam implementar uma
distribuição de riquezas mais justa. Sendo assim, dependem da existência de recursos
para sua efetivação, são satisfeitos segundo as conjunturas econômicas, de acordo com
as disponibilidades, na forma prevista pelo legislador.
A limitação de recursos econômicos leva à necessidade do Estado realizar
opções para o uso das verbas mediante planejamento de suas atividades. Diante dessa
limitação, diz-se que os direitos de prestação são limitados pela reserva do possível23.
22
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
23 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana FIlchtner. Reserva do possível, mínimo
existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano
Benetti.(organizadores). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2008.
Por outro lado, é inadmissível que aquelas prestações já existentes e efetivadas sejam
retiradas do mundo fático, é a proibição do retrocesso24.
Os direitos fundamentais de participação garantem a participação dos cidadãos
na formação da vontade do país. Seja através do exercício dos direitos políticos, seja na
formação de organizações e movimentos sociais que busquem interferir nos destinos da
sociedade de forma pacífica. Assim, em uma democracia mais desenvolvida, onde a
sociedade participa com maior intensidade, é possível uma interferência mais imediata
como na presença de representantes em discussões com os planejadores e executores de
políticas públicas.
Existe um complexo de mecanismos que forma o sistema de proteção dos
direitos fundamentais. Eles são dotados de natureza normativa, institucional ou
processual com o objetivo de assegurar a plena realização desses direitos.
O mecanismo normativo de proteção é representado pela cláusula pétrea ou
limitação material explícita ao poder constituinte derivado reformador. Nela
encontramos a proibição de reforma constitucional que alcance a essência dos institutos
enumerados taxativamente no artigo 60, § 4º, da CF.
Os mecanismos institucionais são proporcionados pela ação do Poder Judiciário,
Funções Essenciais à Justiça e Tribunais de Contas. O Poder Judiciário desempenha o
controle de constitucionalidade, negando a eficácia das leis e atos normativos que
impliquem a violação dos direitos fundamentais, e também através do controle dos atos
administrativos que importem violação dos direitos fundamentais subjetivamente
considerados. Além do Judiciário, temos as instituições do Ministério Público e
Defensoria Pública que, dentre as suas funções e prerrogativas, devem viabilizar a
proteção de interesses públicos sociais indisponíveis.
Os Tribunais de Contas atuam no controle da execução orçamentária, tanto no
julgamento das contas prestadas pelos administradores quanto no julgamento de
atividade administrativa que resulte em prejuízos ao erário público. Na hipótese de
ameaça ou lesão a direito fundamental sob fiscalização, a efetividade das decisões finais
24
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos
direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum,
2007, p.262.
do Tribunal de Contas é garantido pela possibilidade de expedição de medidas
cautelares pelo Judiciário.
Os mecanismos processuais de proteção dos direitos fundamentais são
sistematizados pelos remédios constitucionais, ações de natureza constitucional que
objetivam tornar efetivas as garantias constitucionais dos direitos fundamentais. São
eles: o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data,
a ação popular e a ação civil pública.
Em todos eles devem ser observadas as condições da ação, onde a possibilidade
jurídica é alcançada pela própria vocação dessas ações e pela impossibilidade de inércia
do Judiciário diante da provocação do interessado em proteger esses direitos. O
interesse processual ocorrerá sempre que ocorrer o desrespeito a um direito
fundamental, principalmente quando atingida diretamente a dignidade do indivíduo. E,
finalmente, a legitimidade assiste no pólo ativo, aquele que teve seu direito fundamental
ofendido ou aqueles enumerados na própria norma como representantes na proteção de
direitos transindividuais, principalmente o Ministério Público, e no pólo passivo o
Estado, principalmente nas causas que alcançam os direitos prestacionais, podendo
alcançar também a particulares conforme mencionado anteriormente.
2.1. Direito Fundamental e o Princípio da Proibição do Retrocesso
Social
Quando o constituinte originário faz constar da Carta Magna a previsão de
direitos fundamentais, determina que sejam cumpridas todas as etapas para a
concretização de tais direitos. Além disso, deve existir uma certeza de que esses
mesmos direitos não possam ser extirpados por falta de suporte normativo suficiente.
A Constituição cria para o legislador a obrigação de produzir leis que garantam a
concretização dos direitos fundamentais sociais, assim como estabelece que não se
possam revogar as leis que cuidam dessa tarefa, sem que seja criada uma norma
substitutiva. Além disso, não se admite a redução de forma arbitrária ou
desproporcional da normatização infraconstitucional de um direito fundamental social.
Em apertada síntese, a proibição do retrocesso se destina à exigência de
desenvolvimento ou, ao menos, da manutenção dos níveis gerais de proteção social
alcançados pela atuação do Estado. Quando um direito social é efetivado, ele ganha a
condição de direito de defesa, ou seja, o Estado não pode agir, ou se omitir, de forma
que prejudique esse mesmo direito.
Segundo leciona Breus, o princípio da proibição do retrocesso social25 está
vinculado às idéias de segurança jurídica e dignidade da pessoa humana e se manifesta
através da garantia constitucional dos direitos adquiridos, dos atos jurídicos perfeitos e
da coisa julgada; através das limitações constitucionais às restrições legislativas aos
direitos fundamentais; através dos limites materiais ao poder de reforma da
Constituição; e através da vedação de produção normativa que leve ao retrocesso na
concretização dos direitos fundamentais.
Decorre esse princípio das normas constitucionais que representam o princípio
do Estado Democrático e Social de Direito, principalmente o princípio da segurança
jurídica; o princípio da dignidade humana, sendo inadmissíveis as medidas que se
situem abaixo de um nível mínimo de proteção dos direitos sociais; e o princípio da
máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, decorrentes da previsão do §
1º, artigo 5º da Constituição.
Na jurisprudência, encontramos a aplicação desse princípio de forma exemplar
em decisão do TRF da 4ª Região26, onde um adolescente postulava a pensão
previdenciária por morte de sua avó, que possuía sua guarda. Sob o argumento da
proibição do retrocesso, fez prevalecer a aplicação do Estatuto da Criança e do
Adolescente sobre a Lei 8.213/91, que negava o direito pleiteado pelo autor da ação,
garantindo a proteção previdenciária do adolescente.
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização
dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte:
Fórum, 2007, p. 262
26 TRF 4ª Região. Apelação Cível. 2006.72.99.000635-6/SC. REl. Juiz Federal Eduardo Vandré Oliveira
Lema Garcia. Ementa publicada no DJ em 16.08.2006.
25
2.2. O Mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos
fundamentais
A figura do mínimo existencial integra o conceito de direitos fundamentais.
Segundo Sarlet27, há um direito às condições mínimas de existência humana digna que
não pode ser objeto de intervenção do Estado e que exige prestações positivas por ele.
Sem o mínimo necessário à existência não há possibilidade de sobrevivência digna do
ser humano.
O mínimo existencial não é considerado um valor ou princípio jurídico, mas o
conteúdo essencial dos direitos fundamentais que não se sujeita à ponderação. É o
núcleo intocável e irrestringível dos direitos fundamentais servindo como limite para a
atuação do Estado, ou seja, é seu núcleo essencial sem o qual é impossível vislumbrar a
existência daquele direito. Assim, de outro modo, os direitos sociais prestacionais, que
excedam o mínimo existencial, não sendo fundamentais, podem sofrer restrições pelo
legislador.
Ele ostenta uma dimensão positiva, que envolve um conjunto essencial de
direitos prestacionais, e uma dimensão negativa, operando como um limite à prática de
atos pelo Estado ou por particulares que retirem do indivíduo as condições materiais
indispensáveis para uma existência digna.
Segundo o magistério de Figueiredo28, existem três teorias sobre as
características de garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais: a relativa, a
absoluta e a mista. A teoria relativa defende que o conteúdo essencial é resultado de
uma ponderação, de uma aplicação do princípio da proporcionalidade na definição do
mínimo existencial frente à realidade. Para a teoria absoluta existe um núcleo em cada
direito fundamental impossível de ser alterado ou relativizado. Na teoria mista, o núcleo
essencial estaria cercado por elementos satélites passíveis de relativização. Predomina
hoje a compreensão de que a garantia à prestação dos direitos fundamentais tenha
27
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana FIlchtner. Reserva do possível, mínimo existencial
e direito à saúde: algumas aproximações. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano
Benetti.(organizadores). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2008.
28 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para a sua eficácia e
efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p.177.
caráter absoluta, mas há uma tendência ao crescimento de opiniões favoráveis à
relativização da dignidade humana em casos extremos.
O mínimo existencial fica limitado à reserva da lei, principalmente a lei
orçamentária. Ainda que o mínimo existencial não se encontre sob a discricionariedade
da Administração ou do Legislativo, fica submetido à atuação destes poderes quando
não há norma positivada sobre a atuação na realização de atividade que efetive os
direitos fundamentais. Na ocorrência dessas lacunas normativas, cabe principalmente à
Administração a interpretação do que seja o conteúdo do mínimo existencial. Por outro
lado, quando existe previsão de reserva orçamentária positivada no ordenamento
jurídico , não haverá grau de discricionariedade a ser desfrutado pela Administração
nem pelo legislador no que cabe ao montante a ser utilizado nessas áreas.
Sendo assim, se o Estado tem o dever de oferecer prestação em matéria de saúde
por força do próprio texto constitucional parece óbvio que a Administração está
obrigada a tomar decisões orçamentárias relacionadas a esse dever. Nesse cenário,
diante de tantas mazelas envolvendo a saúde pública no Brasil, cabe ao Executivo e ao
Legislativo destinar recursos suficientes para resolver essas pendências. A não
destinação de verbas nesse sentido será considerada uma deliberação incompatível com
a Constituição, portanto, inválida.
Cabe ressaltar que no Estado Democrático de Direito deve-se buscar a garantia
do mínimo existencial dentro da maior dimensão possível. Quanto mais essencial for a
necessidade material em questão, maior será
o peso atribuído ao direito social
pretendido. Em países em desenvolvimento como o Brasil, o mínimo existencial deve
ter uma dimensão maior quando comparada aos países ricos, pois a própria
sobrevivência de grande parte da população depende da efetividade de políticas
públicas. Como bem observa Ricardo Lobo Torres:
As imunidades e os privilégios dos pobres e as suas pretensões à assistência
requerem interpretação extensiva. Embora paradoxal, o mínimo existencial
protege ricos e pobres dentro do limite necessário à defesa da liberdade.
As políticas públicas, inclusive judicializadas, devem garantir o máximo do
29
mínimo existencial, e não apenas o mínimo do mínimo existencial.
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.333.
29
O caminho da aplicação de uma “progressividade” no conteúdo do mínimo
existencial implica em uma otimização dos direitos sociais. Tendência que ajudaria na
realização do objetivo constitucional de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades
sociais e regionais.
Infelizmente, é comum ocorrer uma deturpação na interpretação do Judiciário
sobre o tema quando chamado a se manifestar, por exemplo, no fornecimento de
medicamentos 30ou na determinação para que o Estado patrocine tratamento médico no
exterior31, não considerando a situação econômica do requerente ou a viabilidade de tais
prestações sem que haja um prejuízo na efetivação das atividades de Saúde Pública.
Por isso, não se pode deixar de exigir do Judiciário que assuma a sua
competência para determinar o fornecimento do mínimo essencial independente de
qualquer outra coisa, como sucedâneo das normas constitucionais sobre a dignidade
humana e sobre a saúde, sem deixar de observar o todo em relação às demandas
individuais.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal já demonstrou sua tendência de exigir que
as políticas públicas de saúde sejam dirigidas aos pobres como aconteceu com os
portadores do vírus da AIDS32, as instâncias inferiores tem abusado da prática das
concessões indiscriminadas de prestações positivas a indivíduos da classe média e alta.
Em alguns casos chegam a determinar o fornecimento de medicamentos importados de
alto preço que são estranhos ao escopo da política pública de medicamentos adotada
pelo SUS33,34.
Por isso, não se deve perder de vista o sentido do mínimo existencial, com o
risco de adotar uma conduta paternalista que, ao final, subtrairá dos que pouco já
possuem para beneficiar os que não dependem do Estado para garantir seus direitos
fundamentais. Nesse sentido alerta Torres:
30
STJ, RMS 11.183 – PR, Rel. Min. José Salgado, DJU 04.09.2000.
STJ, Resp 353.147-DF, Rel. Min. Franciulli Neto. J. 15/10/2002.
32
STF. ADPF/DF 45. Rel. Min. Celso de Mello. J. 29/04/2004.
33
Justiça Federal. 1ª Vara Federal de Curitiba.Autos nº 2007.70.00.015638-0. Boletim JF 269/2008.
34
Justiça Federal . 4ª Vara Federal de Curitiba. Autos nº 2006.70.00.014000-8 . Boletim JF 256/2007.
31
No Brasil, assiste-se à depredação da renda pública pela classe média e pelos
ricos, especialmente nos casos de remédios estrangeiros, com o risco de criar
um impasse institucional entre o Judiciário e os poderes políticos, se
35
prevalecer a retórica dos direitos individuais para os sociais.
Dificuldade constante é a de definir o que seria o mínimo existencial em termos
de prestações de saúde. O eixo sobre o qual deve ser confeccionado este conceito é a
proteção da dignidade humana e a participação da comunidade na organização dos
serviços de saúde, abandonando uma visão paternalista de que só o Estado conhece as
carências e necessidades da população.
Em termos efetivos, dentro da proposta de Barcellos36, esse mínimo essencial
seria concretizado através da adoção de políticas públicas voltadas para a educação da
população sobre os problemas de saúde que a afetam, ensinando como evitá-los,
resolvê-los e como se recuperar de suas conseqüências; de fornecimento de provisões de
nutrição adequada, tanto para evitar a desnutrição e outras doenças por deficiências de
nutrientes como para combater a obesidade; da construção de rede de água tratada e
esgoto que alcance toda a população; dos cuidados da saúde da gestante e da criança,
desde o pré-natal, inclusive com aconselhamento voltado ao planejamento familiar e
com uma política efetiva nos cuidados com o aborto; da imunização contra as principais
doenças preveníveis por esse método; do fornecimento de medicamentos que atendam
os programas de saúde pública; e da garantia de acesso ao tratamento hospitalar em
todos os níveis, desde o ambulatorial até às unidades de Terapia Intensiva.
2.3. A Saúde como Direito Fundamental
A saúde constitui um direito fundamental do homem, concepção que resulta de
uma longa evolução nos conceitos de saúde e direito. A saúde, primitivamente
concebida como uma dádiva dos deuses, passa a ser uma manifestação do bem estar do
ser humano. Para alcançar o seu benefício deve a pessoa buscar uma orientação de vida
35
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.338.
36
BARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestação de saúde: complexidades, mínimo existencial e o
valor das abordagens coletiva e abstrata. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel
(coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.p. 810.
adequada para o equilíbrio de sua vida, ao mesmo tempo deverá ter ao seu alcance uma
estrutura que lhe permita tal destino.
A partir do século XX, a saúde passou a ser configurada não mais como a
simples ausência de doença, mas como sendo um estado de bem estar físico, mental e
social37. É a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio
ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade e acesso a serviços de saúde, ou seja, é o
produto das condições mínimas da existência do homem com dignidade.
Sendo assim , a visão mais moderna do que é saúde leva à conclusão de que a
sua promoção significa intervir socialmente na garantia dos direitos e nas estruturas
sociais e econômicas que perpetuam as desigualdades na distribuição de renda, bens e
serviços. As políticas de saúde devem ser planejadas na intenção de corrigir o
desequilíbrio social e diminuir as desigualdades sociais, conforme preconizado na
Constituição Federal.
Na proteção e promoção ao direito da vida teríamos, intrinsicamente, o direito à
promoção da saúde, que é um direito difuso exercido, como regra, em face do legislador
a quem cabe instituir as normas relativas às ações e serviços de saúde; o direito à
prevenção, que é um direito essencialmente coletivo exercido, principalmente, em face
do executivo, significando o poder de exigir prestações da Administração para evitar a
progressão de condições insalubres para a comunidade; e o direito à recuperação, que é
um direito essencialmente individual a prestações afirmativas exercido em face do
Executivo e da sociedade.
Como referências históricas na evolução da compreensão da saúde como direito
fundamental, temos a realização, em setembro de 1978, da primeira Conferência
Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, organizada pela OMS e UNICEF em
Alma-Ata, capital do Casaquistão. A Conferência foi assistida por mais de 700
participantes e resultou na adoção de uma Declaração que reafirmou o significado da
saúde como um direito humano fundamental e uma das mais importantes metas sociais
mundiais.
Constituição da Organização Mundial de Saúde- OMS – Preâmbulo: “Os Estados parte desta
Constituição declaram, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, que os seguintes princípios
são basilares para a felicidade dos povos, para as suas relações harmoniosas e para a sua segurança;
A saúde é um estado de completo bem bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na
ausência de doença ou de enfermidade.”
37
De acordo com a Declaração de Alma-Ata, ações dos diferentes atores
internacionais no sentido de diminuir as diferenças no desenvolvimento econômico e
social dos países deveriam ser estimuladas para que se atingisse a meta de saúde para
todos no ano 2000, reduzindo-se a lacuna existente entre o estado de saúde dos países
em desenvolvimento e desenvolvidos. A promoção e proteção da saúde dos povos
passaram a ser consideradas essenciais para o contínuo desenvolvimento econômico e
social e, conseqüentemente, condição única para a melhoria da qualidade de vida dos
homens e para a paz mundial. Como bem sintetiza o item X da Declaração de AlmaAta:
Poder-se-á atingir um nível aceitável de saúde para todos os povos do mundo
até ao ano 2000, mediante o uso racional dos recursos mundiais, dos quais
uma parte considerável é atualmente gasta em armamento e conflitos
militares. Uma política legítima de independência, paz e desarmamento pode
e deve disponibilizar recursos adicionais, que podem ser destinados a fins
pacíficos, e conduzir à aceleração do desenvolvimento social e econômico,
do qual os cuidados de saúde primários, como parte essencial, devem receber
38
sua parcela apropriada.
Em 1986, a Carta de Ottawa39, elaborada na Conferência do Canadá, listou
condições e recursos fundamentais, identificando campos de ação na promoção da saúde
e ressaltando a importância da eqüidade. São identificados cinco campos de ação na
promoção da saúde: elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis,
criação de ambientes favoráveis à saúde, reforço da ação comunitária, desenvolvimento
de habilidades pessoais e reorientação dos serviços de saúde.
Seguindo esse direcionamento, em 1988, a Conferência da Austrália enfatizou a
importância das políticas públicas saudáveis, que se caracterizam “pelo interesse e pela
preocupação explícitos de todas as áreas das políticas públicas com a saúde e a
equidade, e pelos compromissos com o impacto de tais políticas sobre a saúde da
população”40, destacando a responsabilidade das decisões políticas, especialmente as de
caráter econômico para a saúde. As áreas prioritárias para as políticas públicas em saúde
38
Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde; 6-12 de
setembro 1978; Alma-Ata; USSR. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde.
Projeto Promoção da Saúde.. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001. p. 15.
39
Carta de Ottawa. Disponível em <http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Ottawa.pdf. >. Acesso
em: 12 jan. 2009.
40
Declaração de Adelaide. Disponível em < http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Adelaide.pdf >.
Acesso em : 12 jan. 2009.
.
seriam o apoio à saúde da mulher, alimentação e nutrição, tabaco e álcool, e criação de
ambientes favoráveis.
Na Suécia, foi organizada a terceira Conferência Internacional sobre Promoção
da Saúde em 1991, onde se destacou a ecologia e a saúde, concluindo-se que estes são
interdependentes e inseparáveis. Como conseqüência, as políticas governamentais
deveriam estabelecer prioridades de desenvolvimento que respeitassem esta interrelação. Para se alcançar níveis desejáveis de saúde entre as pessoas é necessária a
preservação de um meio ambiente saudável.
A quarta Conferência foi realizada em Bogotá, Colômbia, em 1992 trazendo a
discussão para a situação da saúde na América Latina, buscando transformar as relações
existentes e conciliar interesses econômicos e propósitos sociais de bem estar. O
documento elaborado reiterou a necessidade de mais opções nas ações de saúde pública,
orientadas para combater o sofrimento causado pelas enfermidades oriundas do atraso e
da pobreza, bem como as derivadas da urbanização e da industrialização nos países em
desenvolvimento.
Entre os principais compromissos assumidos pelos signatários do documento de
Bogotá41 estão os de avançar com o conceito de saúde condicionado por fatores
políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, e com a promoção da saúde como
estratégia para modificar esses fatores condicionantes; e incentivar políticas públicas
que garantam a equidade e favoreçam a criação de ambientes e opções saudáveis.
Em 1998, a Assembléia Mundial da Saúde adotou uma Declaração reiterando a
estratégia de “Saúde para Todos no Século XXI” e a necessidade de implementação de
novas políticas nacionais e internacionais. Nessa perspectiva, observa-se que a
humanidade, representada por diferentes atores sociais, ainda busca transformar o
paradigma vigente para a saúde, conciliando paradoxos e desigualdades crescentes entre
fatores de natureza social, econômica, política, cultural e ambiental.
41
Declaração de Santafé de Bogotá. Conferência Internacional de promoção da saúde; 9-12 de novembro
1992; Santafé de Bogotá; Co. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto
Promoção da Saúde. Declaração de Alma-Ata; Carta de Ottawa; Declaração de Adelaide; Declaração de
Sundsvall; Declaração de Santafé de Bogotá; Declaração de Jacarta; Rede de Megapaíses; Declaração
do México. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001. p. 15.
Na quinta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde da OPAS
(Organização Pan-Americana de Saúde), realizada na Cidade do México em 2000, foi
elaborada a Declaração do México42, que recomenda a promoção da saúde como
prioridade fundamental das políticas e programas locais, regionais, nacionais e
internacionais.
Tais orientações que abordam o direito à saúde como multidisciplinar foi
adotada pelo Legislador brasileiro na Lei 8.080 de 19/09/1990, a Lei Orgânica da
Saúde, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da
saúde e organização e o funcionamento dos serviços correspondentes em seu artigo
terceiro:
Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre
outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o
trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e
serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização
social e econômica do País.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do
disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade
condições de bem-estar físico, mental e social.
A noção de que a saúde é um processo continuado e interdependente de
preservação da vida criou uma nova dimensão social. A saúde tornou-se um elemento
no processo de cidadania. Assim, todos cidadãos têm direitos, mas são igualmente
responsáveis pela manutenção desses direitos. A saúde, dentro deste enfoque, ocorre e é
conseqüência de ações realizadas em toda a sociedade.
O desenvolvimento do conceito de saúde revela sua inclinação indissociável à
idéia de direito fundamental e, consequentemente , com a efetiva participação do Estado
na garantia desse direito através de políticas públicas. Como constata Sueli Gandolfi
Dallari:
Assim, sem qualquer receio de deslize metodológico, pode-se afirmar que,
com a criação do Estado Moderno, a saúde pública é uma política de Estado.
42
Declaração do México. Quinta Conferência Internacional Sobre Promoção da Saúde.Cidade do México,
México, 5-9 de junho de 2000 . Disponível em
<http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Mexico.pdf>. Acessado em: 15 jan 2009.
E, sob o prisma jurídico, de tal conclusão decorre a constatação da existência
de uma estrutura legal de base constitucional fundamentando todo e qualquer
atuação estatal em nome da promoção, proteção e recuperação da saúde
43
pública.
Na Assembléia Constituinte de 1988 ficou clara a opção do legislador em
garantir a saúde como direito a ser garantido pelo Estado e pela sociedade de maneira
inquestionável, algo visível já em seu seu artigo 1º , quando afirma como fundamento
da República a dignidade. Também, entre os objetivos fundamentais relacionados no
artigo 3º, temos a busca pela diminuição das desigualdades sociais e a promoção do
bem de todos. E, finalmente, no artigo 5º, o estabelecimento de garantia constitucional à
inviolabilidade do direito à vida.
De maneira mais específica, e sem deixar qualquer margem a dúvidas, cuidou o
constituinte de gravar no titulo “Da ordem social”, em seu capítulo II “Da ordem
social”, uma seção sobre a rubrica “Da saúde”. Em seu artigo inicial anuncia o
reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, prevendo como
ações necessárias a sua promoção, proteção e recuperação, além da universalidade de
acesso aos seus serviços :
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.
Ainda dentro do texto constitucional, são confeccionados os princípios da Lei
Orgânica de Saúde (Lei 8.080/1990): a universalidade, a hierarquização, a
descentralização, a integralidade do atendimento com a priorização das ações
preventivas e a participação da comunidade.
O direito à saúde deve ser visto em duas vertentes, uma negativa e uma positiva.
A vertente negativa consiste no direito do cidadão de exigir do Estado, ou de terceiros,
que se abstenha de atos que prejudiquem a saúde coletiva e individual. Já a vertente
positiva pretende que o direito à saúde garanta aos indivíduos a prestação estatal de
43
DALLARI, Sueli Gandolfi. Políticas de Estado e políticas de governo: o caso da saúde pública. In:
BUCCI, Maria Paula Dallari (organizadora). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São
Paulo:Saraiva, 2006, p.252.
serviços e ações que busquem a prevenção, cura e recuperação dos estados mórbidos de
patologias.
Interessante é a observação de José Afonso da Silva sobre a demora do
enquadramento da saúde como direito fundamental e da necessidade de se adequá-lo a
cada situação onde for exigido:
É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida só agora é
elevado à condição de direito fundamental do homem. E há de informar-se
pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos
significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um
tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica,
independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito
44
valor sua consignação em normas constitucionais.
Seguindo o comando constitucional, elaborou-se a Lei Orgânica da Saúde (na
verdade, tal norma seria resultante da junção das Leis 8.080 de 19 de setembro de 1990
e 8.142 de 28 de dezembro de 1990) que trás as diretirzes e limites que devem ser
respeitados pela União, pelos Estados e pelos Municípios, ao elaborarem suas próprias
normas direcionadas à garantia da saúde.
A fim de estimular a participação maior da sociedade no planejamento e no
processo de decisão pelas políticas a serem adotadas foram previstas a Conferência de
Saúde e os Conselhos de Saúde. A primeira é uma instância colegiada “com a
representação dos vários segmentos sociais, para avaliar e propor as diretrizes para a
formulação da política de saúde nos nívies correspondentes”45.
Enquanto isso, os Conselhos de Saúde, órgãos colegiados formados por
representantes do governo, dos prestadores de serviços, dos profissionais de saúde e
dos usuários, têm caráter permanente e deliberativo, atuando na “formulação de
estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente,
inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo
chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo”.46
44
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 28a ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2007, p. 832.
45
BRASIL. Lei 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão
do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros
na área da saúde e dá outras providências. art. 1º, § 1º.
46
Idem.
Sendo assim, examinando-se a evolução do tratamento normativo sobre a saúde
no Brasil, que culminou com a organização do Siatema Único de Saúde (SUS),
podemos concluir que os princípios que devem orientar a atuação do Estado, seja no
planejamento, na destinação financeira ou na execução das atividades, estão definidos
na Constituição Federal e sua concretização se dará através das políticas públicas
desenvolvidas pelos entes federativos.
Cabe ainda analisar a complexidade que envolve o direito constitucional a
prestação de saúde. É inegável que, caso não se atendam as necessidades de prestação
de serviços de saúde pelo Estado, existe um conjunto de prestações de saúde exigíveis
diante do Judiciário por determinação e como consequência da Constituição. Isso
significa que os poderes constituídos tem a obrigação de disponibilizar aos indivíduos
todos os serviços que viabilizem tais prestações, independente de qual for a agenda
política de quem está no poder, e que essas obrigações sejam suficientes para atender,
pelo menos, um mínimo razoável das carências existentes.
Inicialmente, há uma dificuldade natural em desenhar o significado do mínimo
de saúde como um compromisso básico de prestação pelo Estado. Não se pode
considerar que a obrigação da prestação aceitável seja só aquela que resolva totalmente
o problema, mas aquelas que estão disponíveis para a execução pela Administração ou a
seu custeio. Ou seja, diante de um fato concreto tem que existir alternativas para a sua
solução. Não cabe se exigir do Estado, por exemplo, que disponibilize uma vacina para
Dengue e resolva o problema desta endemia, haja visto que não existe tal recurso
disponível, mas é factível e razoável que se exija da Administração que desenvolva
ações de educação para conscientizar a população dos riscos da doença e como evitar as
situações que facilitam o progresso da epidemia.
Outro fator indicador das melhores escolhas na área da saúde é a necessidade de
que tais ações alcancem o maior número possível de pessoas. A disponibilização das
prestações de saúde pela Administração em situações individualizadas, como no
fornecimento de medicações de alto custo para patologias raras, tem pouca repercussão
no capítulo da saúde pública e na efetivação de uma condição de vida mais digna para a
comunidade como um todo. Para piorar essa situação, verifica-se com frequência que é
mais fácil o Judiciário determinar tais prestações individualizadas do que impor uma
ordem judicial para que se cumpram as metas previstas nas políticas de saúde pública.
Concluindo, o desenvolvimento do conceito mais moderno de saúde pública
adquire uma estreita relação com a idéia de políticas públicas. É inadmissível a ausência
do Estado na defesa da saúde pública através de sua atividade de planejamento e
execução de pretações à sociedade.
3. Políticas Públicas
Com o desenvolvimento e o estabelecimento do Estado Constitucional a
atividade de governar passa a exigir o exercício combinado de várias tarefas em que a
atividade de governo não fica restrita à administração de conjunturas. Faz-se necessário
o planejamento para ações permanentes e futuras com o estabelecimento de políticas de
médio e longo prazo. Assim, nasce o governo por políticas, ou governo de políticas
públicas.
Segundo Patrícia Helena Massa-Arzabe:
A ação do Estado por políticas se faz vinculada a direitos previamente
estabelecidos ou a metas compatíveis com os princípios e objetivos
constitucionais, de forma que, ainda quando aqueles a serem beneficiados
não tenham um direito a certo benefício, a provisão deste benefício contribui
47
para a implementação de um objetivo coletivo da comunidade política.
Podemos conceituar Política Pública como “o conjunto de ações coletivas
voltadas para a garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público que
visa dar conta de determinada demanda, em diversas áreas. Expressa a transformação
daquilo que é do âmbito privado em ações coletivas no espaço público.”48
Compreende um elenco de ações e procedimentos que visam à resolução
pacífica de conflitos em torno da alocação de bens e recursos públicos, sendo que os
personagens envolvidos nestes conflitos são denominados "atores políticos", cujo elenco
é formado pela população, pelo legislador, pelo administrador público e pelo Judiciário.
A concepção e efetivação de políticas públicas devem ser respostas a algum
aspecto da sociedade que venha a ser compreendido como um problema de tal
intensidade que sem a intervenção do Estado não será resolvido de maneira adequada. O
47
MASSA-ARZABE, Patrícia Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas. In:BUCCI, Maria
Paula Dallari (organizadora). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo:
Saraiva, 2006, pg.51-74.
48
GUARESCHI, Neuza; COMUNELLO, Luciele Nardi ; NARDINI, Milena; HOENISCH, Júlio César.
Problematizando as práticas psicológicas no modo de entender a violência. In: Violência, gênero e
políticas públicas. Orgs: STREY, Marlene N.; AZAMBUJA, Mariana P. Ruwer; JAEGER, Fernanda
Pires. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2004, p.180
andamento natural dos acontecimentos e manutenção da máquina administrativa não
seriam suficientes para estabelecer o equilíbrio entre carências e resoluções.
Eros Grau coloca a importância da implementação de políticas públicas como
medida de “prevenção dos conflitos sociais”49, sendo uma atuação interventiva na
ordem social, não só como produtor de direito e provedor de segurança mas como
realizador de programs de ação, incluindo no rol destas políticas o próprio Direito.
A formulação de políticas públicas passa por um processo em que estão
presentes os poderes do Estado. O Legislativo opera na confecção de leis que darão os
meios, sejam de orientação sejam financeiros, para a consecução dessas políticas. O
Judiciário deverá verificar a compatibilidade das políticas com as previsões normativas
constitucionais e infraconstitucionais. E o Executivo participa na proposta dessas
políticas, no seu planejamento, assim como em sua execução.
No campo da saúde, o desenvolvimento das políticas públicas significa a
intervenção estatal, e da sociedade, na garantia dos direitos à saúde e nas estruturas
econômicas que perpetuam as desigualdades na distribuição de bens e serviços, com o
objetivo de corrigir os desequilíbrios e reduzir as desigualdades sociais nesta área.50
O acesso à saúde deve proporcionar tratamento médico e hospitalar (inclusive na
fase de reabilitação de doença), odontológico, psicológico, nutricional , educação para a
saúde e prevenção, dentre outros, devendo ser os mais eficazes e sem impor sacrifícios
desproporcionais aos doentes.
No Brasil, encontramos uma série de problemas derivados de desigualdades
sociais e econômicas que se perpetuam há décadas. Um país em que a maioria dos
habitantes não consegue conhecer ou entender seus direitos, com baixa mobilização da
sociedade e um distanciamento notável entre os discursos dos governantes e suas ações
em prol do desenvolvimento social.
Nesse cenário vemos todos os dias fatos que demonstram a precariedade da
saúde pública: o ressurgimento e recrudescimento de doenças como a dengue, a
tuberculose e a hanseníase; surtos repetidos de infecções hospitalares em unidades de
49
50
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito proposto. 7ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. 8ª ed. São
Paulo: Centro Universitário São Camilo: Edições Loyola, 2008, p. 204.
terapia intensiva; falta de equipamentos hospitalares, assim como a ausência de
manutenção destes; falta de profissionais nas áreas de medicina de prevenção primária51
e constantes greves de profissionais da saúde por melhores condições de trabalho.
Além disso, dentro de uma concepção ampla de saúde, considerando que as
causas externas de morbidade, tais como decorrentes de atos violentos e acidentes de
carros, correspondem a um grande percentual das atividades do setor de saúde, vemos
que a falta de uma ação mais efetiva do Estado nos campos da segurança pública e na
segurança do trânsito fomentam a ineficiência de nossa saúde pública.
É inegável que após a instituição do Sistema Único de Saúde como principal
vetor de políticas públicas em saúde surgiu um novo modelo com perspectivas positivas
de efetividade na promoção da saúde. Até então, o planejamento e execução das ações
era centralizado pelo governo federal que mal conhecia as necessidades e peculiaridades
das regiões mais distantes que, por sua vez, ficavam embaladas pela sorte ou por
iniciativas de organizações humanitárias, como as tradicionais Santas Casas de
Misericórdia, que durante décadas foram provedoras de atendimento médico às
populações pobres.
Antes da CF 88 e da instituição do SUS, o atendimento à saúde era garantido
apenas para quem era registrado no emprego e contribuia para a previdência social
(INPS, IAPAS, IPASE, etc.). Além disso, algumas empresas, interessadas em manter
uma mão-de-obra saudável que garantisse melhor lucratividade, investiam em grupos de
atendimento médico aos seus empregados.
Com a instituição do SUS, o atendimento à saúde passa a ser universalizado com
a garantia de acesso a qualquer pessoa independente de qualquer tipo de associação e
contribuição. Isso trouxe a oportunidade da população conseguir atendimento médico,
porém não garantiu as condições minimamente dignas para esse atendimento.
Para garantir o financiamento da saúde, a CF 88 determinou que as ações de
saúde, tanto a assistência médica como as ações coletivas, deveriam ser financiadas com
Medicina de prevenção primária: ações na área de saúde que busca prevenir doenças e promover a
saúde, entre suas atividades temos imunização, prevenção de diabetes, acompanhamento de
crescimento e desenvolvimento das crianças, acompanhamento de pré-natal, etc. ( ROUQUAYROL,
Maria Zélia. Epidemiologia e Saúde. 6ªed. Rio de Janeiro: MEDSI, 2003, p. 677).
51
recursos provenientes do Orçamento da Seguridade Social, do Orçamento da União, do
Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios e das contribuições sociais.
A Emenda Constitucional 29, de 13 de setembro de 2000, estabelece um piso
mínimo de orçamento vinculado para a saúde nos níveis municipais, estaduais e federal.
A partir de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde
seriam de 12% (doze por cento) para os estados e 15% para os municípios do produto
dos impostos arrecadados. Quanto à União, foi estabelecido que no ano de 2000 seria
acrescentado 5% (cinco por cento) em relação ao montante do orçamento de 1999 para a
saúde, e a cada ano subsequente seria feita a correção de acordo com a variação nominal
do PIB (Produto Interno Bruto).
Porém, ainda não foi aprovada a regulamentação dessa Emenda, o que vem
gerando
constantes
problemas
no
gerenciamento
desses
recursos.
Segundo
levantamento da Frente Parlamentar da Saúde52, seria necessário crédito suplementar de
R$ 5,5 bilhões para fechar as contas do setor de saúde no ano de 2008.
Sendo assim, o financiamento do Sistema Único de Saúde continua sendo alvo
de muito debate e polêmica, principalmente no tocante aos critérios de repartição dos
recursos financeiros centralizados no Fundo Nacional de Saúde. O gasto público com
saúde corresponde às despesas com ações e serviços públicos de saúde definidas na
quinta e sexta diretrizes da Resolução 322/2003 do Conselho Nacional de Saúde. A sua
composição financeira compreende:
• Gastos diretos (despesas correntes, investimentos, outras despesas de
capital) efetuados em cada esfera de governo (administração direta,
autarquias e fundações); e
• Transferências negociadas de recursos a outras esferas de governo
(estados e municípios) e a instituições privadas1.
Excluem-se os gastos com encargos da dívida (juros e amortização) e os
realizados com inativos e pensionistas do setor saúde. No âmbito federal excluem-se,
também, as despesas com o Fundo de Erradicação e Combate à Pobreza. Excluem-se
também os gastos com saúde destinados a clientelas fechadas, como os realizados por
52
Saúde precisa de 5,5 bi para 2009. Revista Medicina. Conselho Federal de Medicina. Brasília, nº 173,
p.10, set/out, 2008.
hospitais da estrutura dos ministérios militares, bem como despesas com a assistência
médica e odontológica prestada a servidores públicos federais, que são classificadas
como benefícios a estes servidores.
Em 200453, a despesa com saúde pública, no Brasil, por habitante foi de R$
359,00 (trezentos e cinquenta e nove reais) nas três esferas de governo: pouco mais da
metade, R$180,00 (cento e oitenta reais) foi financiada pela União, R$ 88,00 (oitenta e
oito reais) pelos estados e R$ 90,00 (noventa reais) pelos governos municipais. As
Regiões Sudeste e Sul receberam mais recursos federais per capita que as demais
regiões.
Em termos de gastos estaduais, o maior volume de recursos per capita ocorre nas
Regiões Norte e Centro Oeste, enquanto o maior volume de recursos municipais per
capita é encontrado nas Regiões Sul e Sudeste.
Entre 2000 e 2004, o maior crescimento dos gastos públicos com saúde ocorreu
na esfera estadual (+137%, em média), sem considerar a inflação do período. Por
região, destaca-se o crescimento dos gastos estaduais (+159%) e municipais (+171%) na
Região Nordeste.
Ao analisarmos o papel da Administração Pública não podemos fugir às
variações encontradas nos diferentes períodos dos governos. Dentro de uma democracia
é lícito e necessário o rodízio de diversas tendências políticas nos cargos eletivos,
principalmente no Executivo. Mas essa sucessão de ideologias e práticas não devem
exceder as necessárias execuções de políticas públicas que só garantem a persecução de
suas metas pela sua continuidade. Como bem destaca o Relatótio do BID sobre a
America Latina no ano de 2006:
Uma burocracia competente e independente, à qual se possa delegar parte da
tomada de decisões e da implementação de políticas públicas, poderia
facilitar acordos intertemporais, particularmente em áreas de políticas que são
propensas a politização e oportunismo político.54
53
Gasto público com saúde per capita, por esfera de governo. Brasil e grandes regiões, 2000 e 2004.
Disponível em < http://www.ripsa.org.br/fichasIDB/record.php?node=E.6.2&lang=pt >. Acesado em:
12 jan 2009.
54
BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO; DAVID ROCKEFELLER CENTER
FOR LATN AMERICA STUDIES. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na
América Latina: Relatório 2006. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, pg. 149.
Segundo os critérios adotados pelo BID – Banco Interamericano de
Desenvolvimento55, a análise das políticas públicas envolvem a :
•
Estabilidade: em que medida as políticas são estáveis ao longo do
tempo;
•
Adaptabilidade: em que medida as políticas podem ser reajustadas
quando falham ou quando o cenário muda;
•
Coerência e coordenação: qual o grau de compatibilidade com outras
políticas
afins
e
a
possibilidade
de
ações
coordenadas
com
potencialização de resultados;
•
Qualidade da implementação e da aplicação efetiva;
•
Consideração do interesse público: em que grau as políticas atendem
ao interesse público, interpretado aqui como a finalidade da
Adminstração cumprir a proteção da dignidade humana e garantia dos
Direitos Fundamentais;
•
Eficiência:
em que medida as políticas conseguem os resultados
buscados com o mínimo de alocação de recursos possíveis.
Outro elemento a ser considerado é a capacidade das políticas públicas
alcançarem o bem comum, que segundo Garcia de Enterría “constitui a raiz ou a alma
de uma sociedade política, englobando os fins primordiais que caracterizam e fundam o
Estado como a forma mais perfeita de organização social”56. Apesar das dificuldades
em conceituar “bem comum”, esse elemento pode ser compreendido, segundo Brugger57
na soma dos conceitos de segurança jurídica, legitimidade e conveniência.
55
56
Idem, pag. 17.
GARCIA DE ENTERRÍA. La lengua de los Derechos: La formacion Del Deredho Público Europeo
trás La Revolución Francesa, p. 109 . Apud BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado
Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública
brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. Pg. 114
57 BRUGGER, Winfried. O bem comum como conceito de integração entre segurança jurídica,
legitimidade e conveniência. In: REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério Gesta (organizadores). Direitos
Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, p.
2.033.
A segurança jurídica trás a certeza de que o direito válido não esteja somente
posto, mas que, em caso de necessidade, seja aplicado, ainda que coativamente. As
regulações devem ser claras e estáveis, com sua consolidação na consciência jurídica da
população. Isso passa por uma delimitação clara e definida das competências de cada
um dos poderes estatais.
A legitimidade engloba todos os processos formadores de decisões e que devem
se submeter aos mandamentos fundamentais do ordenamento jurídico, tanto de sua
origem como em sua extensão. Não se pode aceitar como único fundamento o poder de
uma maioria, seja circunstancial ou não, mas a busca de um desenvolvimento social que
englobe as necessidades primordiais de toda a comunidade.
A conveniência, aqui vista como a racionalidade instrumental entre meios e fins,
deve ser trabalhada com a arguta avaliação dos fatos e necessidades do momento. A
agilidade das decisões frente a novas demandas deve ser considerada como instrumento
possível na busca do bem comum.
Na consideração sobre a implementação e aplicação efetiva nota-se a extrema
importância do Poder Judiciário, considerado pelo relatório do BID58 como “o agente
mais óbvio dentro do sistema político para fazer cumprir as normas”.
Isso se dá pela garantia da aplicação intertemporal de decisões políticas e de
políticas públicas anteriores, conforme refletidas em constituições e leis. A correlação
entre efetividade de políticas públicas e a medida de independência do judiciário é
significativa59. Nesse sentido, alerta o relatório do BID que “a presença de um árbitro
razoavelmente independente revela-se, portanto, muito importante para determinar se o
jogo político gera ou não políticas públicas de alta qualidade.”60
No mesmo relatório, está fortemente recomendado o esforço para o
fortalecimento das instituições do Estado para uma maior efetividade das políticas
públicas:“As instituições e os processos não são neutros ou meramente instrumentais;
58
Banco Interamericano de Desenvolvimento; David Rockefeller Center for Latin America Studies. A
política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina: Relatório 2006. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2007. Pg. 146
59
60
Idem
Idem
eles são o cadinho em que as políticas são forjadas e moldadas e adquirem sua
verdadeira forma e seu significado”61
As políticas e as instituições são inseparáveis e devem ser consideradas em
conjunto na análise e planejamento de estratégias e operações. Um Legislativo que
busque atender melhor os interesses e necessidades de seus representados, concebido
dentro de um processo democrático onde se respeitem as diferenças e não beneficie
interesses de pequenos grupos poderosos, será o local mais adequado para a construção
de leis que busquem a instituição de políticas públicas efetivas.
O Executivo deve pautar suas ações nos princípios basilares da Administração
Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Além disso,
deve contar em seus quadros com profissionais competentes e dispostos a executarem as
ações necessárias para os melhores resultados de suas metas. Inicia seu trabalho pelo
planejamento e arrecadação de recursos, passando pela execução, avaliação e
reconsideração de planos, se assim for necessário.
Finalmente, o Judiciário, assim como o Ministério Público, deve pautar suas
ações pela independência e fiscalização do cumprimento das leis, principalmente das
normas inseridas na Constituição Federal que servem de fundamento para a construção
das políticas públicas.
Não se pode negar que o campo das políticas públicas tornou-se uma categoria
jurídica que merece toda a atenção dos juristas. As prestações positivas do Estado na
área dos direitos sociais são a materialização do eixo fundamental da Constituição em
seus objetivos e princípios.
Como bem descreve Maria Paula Dallari Bucci62: “A necessidade de
compreensão das políticas públicas como categoria jurídica se apresenta à medida que
se buscam formas de concretização dos direitos humanos, em particular dos direitos
sociais”
61
62
Idem,
pg. 254.
BUCCI, Maria Paula Dallari (organizadora). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico.
São Paulo: Saraiva, 2006.
Sendo assim, o controle jurisdicional que se faz com fulcro na Constituição
Federal e no Direito Administrativo, não pode ser afastado da crítica substanciada no
andamento dos processos que levam ao desenvolvimento das políticas públicas.
Nesse sentido comenta Thiago Lima Breu:
A efetividade de uma política pública, de qualquer natureza, está relacionada
com a qualidade do processo administrativo que precede a sua realização e
que a implementa. As informações sobre a realidade a transformar, a
capacidade técnica e a vinculação profissional dos servidores públicos, a
disciplina jurídica dos serviços públicos determinarão em concreto os
63
resultados da política pública como instrumento de desenvolvimento.
Podemos notar na própria Constituição Federal quatro prioridades a serem
buscadas na área de saúde: a prestação de serviço de saneamento (arts. 23, IX; 198,II; e
200, IV); o atendimento materno-infantil (art. 227, § 1º,I); as ações de medicina
preventiva (art. 198,II); e as ações de prevenção epidemiológica. Além dessas previsões
constitucionais, temos como guia para escolha de políticas públicas na saúde os dados
relevantes em matéria de mortalidade.
As doenças da modernidade são as que mais matam no Brasil. Dados do
Ministério da Saúde confirmam que o perfil da mortalidade no país mudou ao longo dos
anos, acompanhando a tendência mundial de mais mortes por doenças crônicas e
violentas. Por grupo de causa, as doenças do aparelho circulatório - associadas à má
alimentação, consumo excessivo de álcool, tabagismo e falta de atividade física –
lideram o ranking e são as que mais matam homens e mulheres no Brasil, 32,2% das
mortes em 2005. É o que mostra os dados do capítulo Mortalidade no Brasil e regiões
da publicação Saúde Brasil 2007, do Ministério da Saúde64.
Esse perfil de mortalidade mostra mudanças que refletem a urbanização rápida e
desenvolvimento do país. No passado, o que mais matava no país eram as doenças
infecciosas e parasitárias, tais como as diarréias, tuberculose, malária, entre outras.
Hoje, com a mudança nas condições ambientais e com o envelhecimento da população,
vemos o crescimento das doenças relacionadas à idade mais avançada e estados
63
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização
dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte:
Fórum, 2007,pg. 223.
64 Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Disponível em <
http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/sis_mortalidade.pdf>. Acessado em: 17 jan 2009.
mórbidos ligados à violência urbana, principalmente decorrentes de acidentes de
trânsito e uso de armas de fogo.
Como as doenças crônicas estão ligadas à inatividade física, ao consumo de
álcool, tabaco e alimentação inadequada, os dados reforçam que o brasileiro deve
investir na mudança de hábitos e buscar, por exemplo, parar de fumar, consumir
alimentos saudáveis como frutas, legumes e verduras, praticar atividade física
regularmente e diagnosticar e controlar a hipetensão arterial e a diabetes.
Ou seja, temos nas mãos uma longa pauta de políticas públicas de saúde que
busca resolver tais problemas, tais como programas de educação em nutrição,
programas de orientação e supervisão de atividades físicas e esporte para saúde,
políticas de restrição de acesso e uso do tabagismo, políticas de prevenção e controle de
doenças como a diabetes e a hipertensão arterial.
Digno de nota é a constatação que tais ações não resultariam apenas em diminuir
a mortalidade de tais patologias, mas diminuir sua incidência e morbidade, ou seja,
teríamos uma incidência menor dessas doenças e, quando ocorressem, suas
conseqüências seriam menores. Resultado disso seria uma melhor condição de vida,
com maior respeito à dignidade humana e, por outro lado, menores gastos com
tratamento e recuperação de seqüelas graves dessas doenças.
Para se ter uma idéia da evolução desse perfil de doenças que levam o brasileiro
ao óbito, na década de 1930, as doenças infecciosas respondiam por cerca de 46% das
mortes em capitais brasileiras. A partir de então, verificou-se a redução progressiva,
sendo que, em 2003, essas doenças responderam apenas por cerca de 5%. Por outro
lado, as doenças cardiovasculares, que representavam apenas 12% na década de 30, são,
atualmente, as principais causas de morte em todas as regiões brasileiras, respondendo
por quase um terço dos óbitos65.
Mesmo com os avanços estruturais e econômicos obtidos nas últimas décadas,
dados do Ministério da Saúde66 mostram que uma parcela expressiva da população
Ministério da Saúde. Estudo aponta perfil da mortalidade do brasileiro. Disponível em:<
http://www.ibfan.org.br/noticias/noticia.php?id=348> Acessado em 18 jan 2009.
65
66
Idem
perde a vida prematuramente no país. Isso significa que 413.345 pessoas faleceram
antes de alcançar a terceira idade, considerada a partir dos 60 anos. Isso representou
41,2% do total de 1.003.350 óbitos registrados no Brasil em 2005. As causas de mortes
podem ser agrupadas em grandes grupos (circulatórias, respiratórias, neoplasias, causas
externas) ou categorizadas por causas específicas (AVC, pneumonia, atropelamento,
homicídio).
Segundo os mesmos dados do Ministério da Saúde, em 2005, a causa que mais
atingiu os brasileiros e levou-os a morte foi o Acidente Vascular Cerebral (AVC),
responsável por 10% das mortes no país. A segunda maior causa específica de óbito no
Brasil é a Doença Isquêmica do Coração, principalmente o infarto agudo do miocárdio,
responsável por 9,4% do total de mortes.
No quadro geral da mortalidade dos
brasileiros, as neoplasias malignas, grupo que reúne os vários tipos de câncer, ocupam o
segundo lugar entre as causas de mortes no Brasil, com o registro de 16,7% dos óbitos
totais.
Com número expressivo de óbitos, as causas externas respondem pela terceira
posição no ranking da mortalidade no Brasil. Nesse grupo são incluídas as mortes
violentas, seja por acidentes de trânsito ou por homicídios. Embora estudos do
Ministério da Saúde já tenham apontado redução na tendência de mortes por
homicídios, principal causa específica do grupo das externas, essa mortalidade se
mantém em patamar elevado, sendo a primeira causa deste grupo. Outra causa
importante nesse grupo é o acidente de transporte terrestre, constituindo a sétima causa
específica no total de óbito do país.
O Brasil é o país com o terceiro maior índice de mortalidade infantil na América
do Sul. A informação consta do Relatório sobre a Situação da População Mundial 2008,
divulgado pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa)
67
. De acordo com o
estudo, a estimativa para este ano é que, em cada grupo de mil crianças nascidas vivas
no país, 23 morram antes de completar um ano de idade. O índice brasileiro só não é
maior do que o da Bolívia, com 45 mortes, e o do Paraguai, com 32.
Brasil tem terceiro maior índice de mortalidade infantil na América do Sul . Folha On Line .12/11/2008
Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u466926.shtml >. Acessado em
21 jan 2009.
67
Na América do Sul, a menor taxa foi registrada no Chile, que apresenta uma
média de sete mortes para cada grupo de mil crianças nascidas vivas. Em seguida,
aparecem Argentina e Uruguai, ambos com 13 óbitos, e Venezuela, com 17. Não é por
coincidência que o Chile é apontado pelo BID como o país da América do Sul com
maior efetividade na implementação de políticas públicas68.
De acordo com a mesma fonte, o Brasil também registra o terceiro pior índice
em relação à expectativa de mortalidade entre crianças menores de 5 anos para 2008. A
estimativa é que 32 meninos e 24 meninas nessa faixa etária em cada grupo de mil
crianças nascidas vivas morram em decorrência das chamadas doenças da infância.
Esses dados revelam a grande distância entre as intenções normativas no campo
da saúde e da proteção da infância e a realidade da ineficiência dos meios utilizados
para a promoção da saúde no Brasil. O itinerário a se seguir nessa área, seria segundo
Ana Maria Cavalcante e Silva e Jocileide Sales Campos, regido por uma grande gama
de atividades interligadas entre si:
A política de atenção à saúde da criança compreende grandes eixos
estratégicos estritamente relacionados entre si, e que visam produzir, de
forma sustentável, mudanças na situação de vida e da saúde. Os principais
eixos para a promoção da saúde da criança são: 1) a redução da mortalidade
infantil; 2) a promoção de vida saudável; 3) a humanização da qualidade da
atenção; 4) qualidade da gestão; e 5) a mobilização social e política com o
69
estabelecimento de parcerias.
Concretamente, são consideradas como ações efetivas decorrentes de políticas
públicas para a saúde da criança: o acompanhamento adequado do pré-natal pela
gestante; o acesso a locais adequados para o nascimento do bebê, tanto do ponto de
vista de estrutura material como humana; a disponibilização de unidades de tratamento
para bebês que nascem com algum problema imediato decorrente da gestação e do parto
(Unidades de Terapia Intensiva Neonatal); acompanhamento do crescimento e
desenvolvimento infantil; incentivo ao aleitamento materno; acesso à vacinação, com a
68
Banco Interamericano de Desenvolvimento; David Rockefeller Center For Latin America Studies. A
política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina: Relatório 2006. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2007.
69 SILVA, Ana Maria Cavalcante; CAMPOS, Jocileide Sales. Política de saúde pública da criança: a
criança e o Sistema Único e Saúde. In: LOPEZ, Fábio Ancona; JÚNIOR, Dioclécio Campos. Tratado
de Pediatria – Sociedade Brasileira de Pediatria. Barueri, SP: Manole, 2007, p.151 - 154
inclusão de vacinas existentes no mercado e que não constam no calendário do
Ministério da Saúde; e programa de atenção às doenças mais comuns da infância.
Além disso, não podem faltar políticas que busquem informar e orientar aqueles
que cuidam de crianças sobre os cuidados com acidentes domésticos e com a violência,
já que são causas crescentes de morbidade infantil.
3.1. Limitações às realizações de políticas públicas
A realização das políticas públicas depende de um processo que envolve, além
das previsões mandamentais explícitos na Constituição Federal, a eleição das ações pela
Administração Pública e da previsão orçamentária contida em legislação própria. É
indiscutível que todo esse processo depende da mobilização do Estado em conjunto com
a sociedade e da disponibilização de recursos financeiros.
Como sintetiza OHLWEILER ao discorrer sobre Políticas Públicas e seu
possível controle:
No entanto, para materializar políticas públicas é imperioso que os governos
e a própria sociedade assumam-se como co-responsáveis por este processo e
tenham a capacidade de construir espaços públicos de aprendizagem social,
quer dizer, um planejamento temporalizado, mas preparado para o acontecer
ou os fracassos possíveis da democracia. 70
Surge, então, na Alemanha, na década de 1970, a teoria da reserva do possível
como elemento de limitação à ação estatal na realização de políticas públicas. Através
dessa teoria, passou a se entender que os direitos sociais de prestação positiva somente
poderiam ser exigíveis do Estado segundo os limites da possibilidade, ou seja, daquilo
que o indivíduo, de maneira racional e razoável, pode esperar da sociedade tendo como
patamar mínimo o “direito mínimo de existência”.
Na decisão da Corte Constitucional alemã, a avaliação sobre a reserva do
possível deveria ser feita, inicialmente, pelo legislador, que “deve atender, na
70
OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz
do Estado Constitucional. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti.(organizadores).
Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2008, p. 323-345
administração do seu orçamento, também a outros interesses da coletividade,
considerando...as exigências da harmonização econômica geral”71.
A idéia da “reserva do possível” pode se desdobrar em dois elementos: um fático
e outro jurídico. O elemento fático diz respeito à disponibilidade efetiva de recursos
financeiros para a satisfação do direito prestacional. Essa disponibilidade deve ser
suficiente para uma razoável universalização da prestação exigida. Por outro lado, a
existência de autorização orçamentária para o Estado desenvolver as políticas de
efetivação dos direitos fundamentais perfaz o elemento jurídico.
Crítica pertinente de Sarmento72 se faz quanto à aplicação dessa teoria em países
com grande carência de efetividade de políticas públicas como o Brasil, pois a
insuficiência de recursos financeiros é rotineira e uma interpretação equivocada poderia
eximir o Estado de atuar em áreas sensíveis da sociedade, mantendo um estado de
precariedade e desrespeito à dignidade do cidadão menos favorecido economicamente.
A reserva do possível se apresenta como uma cláusula de restrição ao direito, não
significa a ineficácia ou a não aplicação imediata dos direitos fundamentais. Na
verdade, ela expressa a necessidade de ponderação entre princípios.
No Estado Constitucional, os Direitos Fundamentais e sociais não podem deixar
de serem satisfeitos, desse modo, o argumento da reserva do possível somente será
válida quando se comprovar que os recursos públicos destinados à realização das
políticas públicas estão sendo utilizadas com a ponderação das necessidades de
promoção desses direitos e de forma progressiva no tempo, sendo vedado o retrocesso e
a insuficiência de efetivação do mínimo existencial naquele campo
Do ponto de vista processual, a reserva do possível é matéria de defesa trazida
pelo Estado, que deverá demonstrar a impossibilidade da Administração conceder a
prestação pretendida por uma insuficiência de recursos. Como esclarece Sarmento:
Não basta, portanto, que o estado invoque genericamente a reserva do
possível para se opor à concessão judicial de prestações sociais – como,
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-jurídicos. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 569.
72 Idem
71
infelizmente, tem ocorrido na maior parte das ações nesta matéria. É preciso
73
que ele produza prova suficiente desta alegação.
Na doutrina brasileira vemos a preponderância da correlação da reserva do
possível com as restrições orçamentárias, porém o seu alcance é mais amplo. Ela
alcança a eleição de prioridades e o planejamento na execução das políticas públicas,
que devem ser pensadas como atividades de longa duração, sem jamais se permitir o
retrocesso dos resultados alcançados.
Assim, temos que buscar parâmetros para buscar o controle das políticas
públicas e que sirvam de elementos para analisá-las e avaliar a sua efetividade. Devem
se tratar de mecanismos jurídicos capazes de determinar a priorização das metas
constitucionais voltadas para aquelas políticas, principalmente na realização da
dignidade humana e na promoção dos Direitos Fundamentais.
Nessa avaliação devem ser identificados os parâmetros de controle,
principalmente o montante de recursos públicos disponíveis para a execução das
políticas públicas e as metas previamente estabelecidas, principalmente nas normas
constitucionais; a garantia de acesso à informação, quando poderá ser apreciada a
eficácia e a eficiência das ações praticadas pela Administração; e a elaboração de um
sistema de controle.
73
Idem, p. 572.
Capítulo 4. Discricionariedade e Atividade Administrativa
No exercício do poder de administração, recorre o administrador à
possibilidade de escolha entre tantas opções possíveis diante das metas a serem
alcançadas. Na Administração Pública essa liberdade de escolha fica limitada pelos
princípios e normas que integram a legislação do Direito Público.
Segundo Moraes74, o administrador exerce a liberdade de escolha
ponderando entre os interesses, integrando a norma aberta de diversas maneiras: quando
trabalha na complementação, mediante valoração e aditamento, dos pressupostos de fato
necessários para a edição do ato administrativo, ou discricionariedade quanto aos
pressupostos; quando decide a possibilidade de sua edição e quando fazê-la, ou
discricionariedade de decisão; quando escolhe, dentre várias opções autorizadas pela
norma, seu conteúdo, ou discricionariedade de escolha optativa; e quando preenche o
conteúdo do ato administrativo na lacuna da lei, ou discricionariedade de escolha
criativa.
A atividade administrativa pública, assim como a utilização da
discricionariedade, requer a plena consciência por parte do administrador de seu papel
na defesa da dignidade de todos. Isso ocorre através do respeito aos princípios
constitucionais aplicáveis à Administração Pública, principalmente os que dizem
respeito aos princípios da democracia e da participação, da legalidade, da justiça, da
imparcialidade, da transparência, da moralidade, da boa administração e da eficiência.
Embora não escrito explicitamente na CF 88, o princípio da democracia e da
participação na administração pública exsurge da interpretação de outros princípios
integrados ao ordenamento jurídico. Implica o acesso dos cidadãos aos mecanismos de
participação nas atividades que envolvem o interesse público na Administração Pública.
Apesar se sua importância não tem uma grande efetividade em países de baixa
organização e participação da sociedade.
A participação dos administrados nas decisões da Administração acaba
sendo muito restrita, ainda que a Constituição admita a possibilidade de participação da
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. 2a ed. São Paulo:
Dialética, 2004.
74
sociedade, por meio de conselhos, em diversas atividades que envolvem a definição de
políticas públicas (no caso da saúde temos os Conselhos de Saúde nos diversos níveis
da administração) e na fiscalização da gestão administrativa.
É possível identificar pelo menos duas causas para a baixa participação da
sociedade nas decisões do poder público: a primeira, devido à dificuldade do cidadão ter
acesso aos mecanismos de participação, seja por não conhecê-los, seja pela
impossibilidade de estar presente em audiências públicas geralmente marcadas em
horário em que a maior parte da população se encontra no trabalho; e a segunda, a
prática participativa se torna pouco estimulante na medida em que a Administração
Pública não consegue produzir os resultados propostos nas ações decididas nessas
ocasiões, além de, poucas vezes, se buscar apresentar e justificar os resultados obtidos
durante o desenvolvimento das políticas públicas.
Segundo Dal Bosco75, a Administração Pública contemporânea é regida por
princípios inafastáveis de sua organização e atividade. O primeiro desses princípios
seria o princípio da legalidade, considerado um dos pressupostos do Estado de Direito.
Postula, como regra geral, a vinculação dos atos administrativos ao comando da lei, ou
seja, toda a atividade administrativa deve ser regulada por uma legislação prévia que lhe
dará validade. Implica, também, que todos os poderes da administração, regrados ou
discricionários, nunca sejam ilimitados, mas estejam descritos em seu conteúdo e
extensão, como indicador de outro princípio básico, o da divisão dos poderes.
Segundo a mesma autora, o princípio da justiça seria decorrência do próprio
princípio da legalidade, e trás em sua concepção a idéia de que o sistema jurídico deve
ser dotado de instrumentos apropriados à defesa da sociedade, individualmente ou
coletivamente, contra atos da Administração considerados ilegítimos, ficando ao
alcance de decisões judiciais com poder de anulá-las. Assim, constrói-se a possibilidade
de um controle social da função administrativa tendo como instrumento um dos poderes
definidos do Estado.
A Administração deve respeitar critérios de impessoalidade nas suas relações
com os administrados, o tratamento de cada indivíduo será conduzido dentro do modelo
DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da
aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 134
75
que a legislação normatizar a respeito dos seus interesses, inexistindo privilégios.
Assim, temos o princípio da imparcialidade ou impessoalidade, explicitamente previsto
no caput do seu artigo 37, e que deve ser observado em conjunto com os princípios da
honestidade, equidade, eficiência e de diligência no desenvolvimento de suas atividades.
Já o princípio da transparência ou da publicidade obriga a Administração a
atuar de forma aberta, acessível aos administrados. A regra é a disponibilidade de
informações sobre os atos administrativos com possibilidade de acesso a todos os
interessados. Inclui dentro desse princípio a obrigatoriedade de adoção pela
Administração de procedimentos simples, com linguagem acessível e menor burocracia
para facilitar o acesso às informações. A maior virtude na aplicação desse princípio está
na real possibilidade do administrado conhecer e valorar a atuação da Administração
Pública. Nas palavras de Dal Bosco:
Só a informação democratizada pode fornecer aos cidadãos, possibilidade de
avaliar a atuação da Administração, assim como de oferecer sua opinião e
expor suas aspirações no que se refere às decisões que os dirigentes públicos
76
devem adotar em relação aos problemas comuns dos administrados.
O conceito mais amplo de uma boa administração consiste na execução
adequada das funções deste encargo, tais como planejar, organizar, dirigir, coordenar e
controlar. Sendo assim, o princípio da boa administração deve ser entendido como uma
atividade eficiente e adequada por parte da Administração Pública, sendo a eficiência
entendida como o melhor emprego possível dos recursos na busca dos objetivos
pretendidos pela Administração, e a adequação como a obrigatoriedade de uma estrutura
funcional capaz de atender os fins institucionais, assegurando, assim, a rapidez,
simplicidade, regularidade e economia de suas ações.
A atividade da Administração Pública deve ser feita de maneira coordenada,
com a ponderação dos diversos interesses públicos, e exercida com autonomia política
proporcionada pela Constituição. A boa administração deve ser considerada um direito
de cidadania dos administrados, só é possível se justificar a existência de todo um
aparato burocrático financiado pelos cidadãos se ele estiver atuando para o atendimento
das demandas sociais.
DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da
aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 173.
76
O princípio da moralidade envolve um conjunto de regras de conduta tiradas
da disciplina própria da Administração que, segundo Maurice Hauriou77, envolve a
distinção entre o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o
inconveniente, mas também, entre o honesto e o desonesto. Sem embargo da sua
dificuldade de constatação objetiva, esse princípio é inafastável das atividades dos
titulares de cargos públicos.
No Brasil, com toda sua tradição de clientelismo e oportunismo político,
enfrentamos diariamente com situações que ofendem ao princípio da moralidade. O
consagrado “jeitinho brasileiro” surge como ferramenta para a obtenção de
favorecimentos junto à Administração, inclusive com o arranjo de emendas ao
orçamento com uma roupagem de legalidade. Assim, quando examinada , a atividade
administrativa deve ser profundamente analisada para além de sua legalidade e alcançar
sua moralidade, que muitas vezes dependem da subjetividade do julgador.
Deve ser destacado que o desrespeito ao princípio da moralidade
administrativa é causa suficiente para a anulação do ato administrativo pelo poder
judiciário, mesmo que não sejam desrespeitados outros princípios. Além disso, são
alcançados pela Lei de Improbidade Administrativa, mesmo que não estejam presentes
danos ao patrimônio público78.
A eficiência foi elevada à condição de princípio constitucional a partir da
Emenda Constitucional 19 de 1998, sendo a sua razão de ser a obtenção do máximo de
resultados a partir de recursos disponíveis, ou ainda, a obtenção de melhores resultados
a partir de menores custos. Pode-se usar o termo eficiência não apenas em relação à
Administração Pública, mas, também, alcança os demais poderes.
Há na doutrina uma grande discussão sobre como aplicar tal princípio na
avaliação das atividades administrativas e como encontrar um parâmetro adequado para
demonstrar que os resultados obtidos foram os mais eficientes, ou possíveis. Dal Bosco
explica bem como é possível utilizar esse princípio:
77
HARIOU, Maurice. Princípios de derecho público y constitucional. Granada, Espanha: Comares, 2003,
p. 138.
78 STJ. REsp 2003/0231437-9 – Rel. Ministro Luis Fux – DJ 27.06.2005, p. 230.
A exigência da observação à eficiência das ações públicas não pode ser vista
como uma consagração da tecnocracia, mas o princípio está voltado à razão e
fim maior do Estado, ou seja, a prestação dos serviços sociais essenciais à
população, tendo como objetivo o uso de todos os meios legais e morais
possíveis para promover o bem comum. Além disso, deve-se ter presente a
ligação do princípio da eficiência com a razoabilidade e a moralidade, dado
que o administrador deve utilizar-se de critérios razoáveis na realização de
sua atividade discricionária, pois a ineficiência grosseira deve ser considerada
79
imoralidade.
A avaliação da eficiência deve ter em foco as possibilidades reais de
execução dos serviços e a expectativa em relação aos parâmetros de mercado. Como
exemplo podemos citar estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea)80, em 2003, indicando que o tempo de espera para internação nos hospitais
credenciados pelo SUS era de 6,2 dias, sendo a possibilidade de um paciente do SUS
passar mais de um dia esperando uma internação era de 39,3%.
Fácil concluir que esse intervalo para a internação é muito superior ao
esperado como resultado de um sistema de saúde eficiente. Vários motivos poderiam ser
apontados para tal ineficiência, desde a falta de leitos disponíveis até a falta de
coordenação na distribuição de internações hospitalares. Contudo, qualquer um deles
demonstraria a ineficiência do SUS no atendimento digno da população.
Outro fato corriqueiro em relação ao funcionamento do SUS é a falta de
leitos para atendimento em Terapia Intensiva, principalmente para recém-nascidos e
crianças. Com frequência, vemos no noticiário81 a movimentação desesperada de pais e
familiares em busca de atendimento especializado com a intervenção do Judiciário, que
muitas vezes transfere para o sistema de medicina privada o ônus deste atendimento.
Como preleciona Alexandre de Moraes82, o princípio da eficiência veio
reforçar a legitimidade do Ministério Público para exercer o controle sobre o respeito
dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na
79
DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da
aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 200.
80 MARINHO, Alexandre. Um estudo sobre as filas para internação e para transplantes no Sistema Único
de Saúde brasileiro. IPEA . Rio de Janeiro: 2006. Disponível em:<
http://www.scielo.br/pdf/csp/v22n10/22.pdf>. Acessado em 20 jan 2009.
81 Bebê sem vaga em UTI deve ir para rede privada. Jornal do Commercio . Recife- PE - 12 /02/ 2009.
Disponível em < http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/janeiro-2009/bebe-sem-vaga-em-uti-deve-ir-pararede-privada/ >. Acessado em 26 jan 2009.
82
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 20a ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 311.
Constituição, devendo propor as medias judiciais, e extrajudiciais, necessárias para a
sua garantia.
Várias decisões enriquecem a jurisprudência sobre o tema, reforçando a idéia
da exigibilidade da eficiência como princípio orientador da atividade administrativa do
setor público83. Na avaliação da eficiência da atuação da Administração Pública, não se
limita o julgador aos resultados finais, mas também os meios através dos quais se chega
ao objetivo final. Assim, incluí-se no bojo da análise o controle dos gastos efetuados na
atividade administrativa.
Haveria uma mitigação do princípio da eficiência em casos excepcionais
quando a Administração tem o dever de atender necessidades urgentes, como em
calamidades públicas. Porém, mesmo na exceção, não se pode abrir mão da melhor
execução dos serviços dentro das condições possíveis. Não deixa de existir a exigência
da boa administração e da moralidade administrativa.
Assim, vemos que a legitimação das escolhas administrativas fundamenta-se
em sua eficácia, motivação, proporcionalidade, transparência, imparcialidade,
respeitabilidade à participação social, moralidade e plena responsabilidade. Ao escolher
a melhor opção, pode o administrador dispor de opções, dependendo da conveniência e
oportunidade estabelecida pela lei.
Para ser considerado legítimo, o ato administrativo discricionário deve ser
devidamente motivado, deixando clara a sua compatibilidade com as normas vigentes e
os princípios de direito, além de fundamentar o porquê daquela escolha. Nisso consiste
o mérito do Ato Administrativo, ou seja, “o processo de valoração dos motivos e de
definição do conteúdo do ato administrativo não parametrizado por regras, nem por
princípios, mas por critérios não positivados”.84
A conveniência representa a adequação do ato ao interesse público sob
enfoque daquela escolha administrativa que justifica a sua prática ou à sua
compatibilidade no confronto entre interesses públicos afetados pelo ato. Por
83
STJ . ROMS 5590/DF. Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro- j. em 16/04/1996; STJ. MS 9.420/DF.
Relª. Min. Laurita Vaz – j. em 25.08.2004; STJ. MS 8.481/DF . Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa – j.
em 27.10. 2004.
84 MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. 2a ed. São Paulo:
Dialética, 2004, p. 200.
conveniência entendemos a ponderação entre os interesses envolvidos para aquela
decisão e sua melhor acomodação para o cumprimento de seus objetivos.
A presença do Estado em inúmeras atividades levou o ordenamento jurídico
a conceder certa liberdade para ampliar o horizonte de ações dos agentes públicos na
busca do atendimento dos interesses públicos. Essa miríade de tarefas não seria possível
se todo e qualquer movimento da máquina administrativa dependesse de previsão
normativa, restrita ao princípio da legalidade. Assim, não se discute a importância da
discricionariedade na Administração Pública, assim como sua presença na determinação
das políticas públicas.
Inicialmente, o conceito de discricionariedade pode ser utilizado sob dois
enfoques: como referência à liberdade do intérprete no momento da verificação do
sentido da norma, o que reflete na doutrina administrativa como uma ausência de
programação normativa e na impossibilidade da regra jurídica objetivamente delimitar a
conduta do administrador em todos os momentos; e em um segundo momento, a
discricionariedade é reconhecida como uma deliberação do próprio ordenamento
jurídico que permite uma “liberdade assistida” para a manifestação do administrador,
que se encontra limitada pela própria norma, ou seja, a discricionariedade surge com a
previsão legal expressa de quando e como o administrador terá liberdade de agir.
O fundamento da atividade discricionária da Administração na doutrina
brasileira, segundo Eros Grau85, começa a ser delineada por Francisco Campos86 na
década de 1950 em sua obra Direito Administrativo, com a idéia de que a autoridade
administrativa poderia escolher para o ato, aquele que lhe parecesse mais adequado
dentro das possibilidades do momento, quando não coubesse uma determinação
objetiva. O fundamento lógico e jurídico estaria na indeterminação do conceito legal.
Mais recentemente, Celso Antônio Bandeira de Melo, sem se afastar do
entendimento anterior, conceitua discricionariedade como:
A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que se
cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante
85
86
GRAU Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ª ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p.203.
CAMPOS, Francisco, Direito administrativo. V. 1. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958.
do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar
87
satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal.
Esse mesmo autor adverte que não se deve confundir discricionariedade com
arbitrariedade. Quem age arbitrariamente como administrador público age contra o
ordenamento jurídico, visto que age fora do que lhe permite a lei. Ao invés disso, quem
age discricionariamente o faz por autorização da lei, devendo cumprir o mandamento
normativo de buscar o melhor meio de satisfazer o interesse público naquele caso
concreto.
Segundo Eros Grau88, o uso da discricionariedade leva a uma liberdade de
escolha “entre alternativas igualmente justas ou entre indiferentes jurídicos – porque a
decisão se fundamenta em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos, etc.)”,
ausentes na lei e que dependem do juízo subjetivo da Administração. Sendo assim, no
Estado de Direito, a competência para a prática de atos discricionários pelo agente
público só ocorrerá quando a norma jurídica válida a ele possibilitar a formulação de
juízo de oportunidade.
O mesmo autor estabelece forte crítica à tese da existência de uma
“discricionariedade técnica” 89, que se constituiria em decisões baseadas em alto grau de
especialização técnica de difícil avaliação por pessoas leigas ao assunto, assim haveria
uma impossibilidade de qualquer controle, exceto aos erros manifestos que neles se
exteriorizem. Seria uma blindagem tecnocrática a uma decisão ou ato administrativo
que, porém, não pode afastar a apreciação do judiciário, que contaria com o auxílo
especializado de peritos ou mesmo na figura do amicus curiae.
Segundo FREITAS90, pode-se conceituar a discricionariedade administrativa
legítima como “a competência administrativa (não mera faculdade) de avaliar e de
escolher, no plano concreto, as melhores soluções, mediante justificativas válidas,
coerentes e consistentes de conveniência e oportunidade (com razões juridicamente
87
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22a ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2007, p. 416.
88 Grau, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ª ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p. 203.
89
Idem, p. 214.
90
Freitas, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração.
Malheiros:São Paulo, 2007, p. 22.
aceitáveis), respeitados os requisitos formais e substanciais da efetividade do direito
fundamental à boa administração pública.”
O uso de uma discricionariedade legítima consagra o direito fundamental à
boa administração pública, que segundo Juarez Freitaz seria:
... o direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz,
proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação,
imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena
responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito
corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações
administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a
91
regem.
Muito se discute sobre a possibilidade de controle dos atos discricionários
além da prerrogativa da Administração em poder anular ou revogar por conveniência e
oportunidade seus próprios atos. Mais especificamente, o controle por parte do
Judiciário frente à atividade discricionária da Administração. Nesse controle, a função
do juiz será a de analisar e revisar uma conduta realizada por quem possui a legitimação
e legalidade da aplicação da norma, o que provoca a demanda por uma maior aptidão do
julgador.
Os atos administrativos discricionários, em princípio, não estariam sujeitos
ao controle do Poder Judiciário, exceto quando houvesse indício de abuso de poder ou
desvio de finalidade. Porém, sempre quando esse ato discricionário for examinado pelo
Judiciário, mesmo que outro seja o fundamento para o seu julgamento, deverá receber o
crivo do julgador sobre os requisitos de sua discricionariedade.
Apesar da imprecisão conceitual, a definição jurídica da discricionariedade
não deixa de se submeter aos parâmetros do Estado de Direito, principalmente no que se
refere aos princípios da legalidade, da inafastabilidade da atividade jurisdicional e da
proteção dos direitos fundamentais.
Nesse tema, temos que apreciar o princípio da inafastabilidade da atividade
jurisdicional em consonância com o princípio da separação dos poderes, afastando
qualquer possibilidade de conflito entre ambos. A análise desse tema transita por um
caminho que passa pelo reconhecimento da Constituição como eixo e limitador da
91
Idem, p. 20.
interpretação desses princípios. Assim sendo, devemos partir do reconhecimento do
princípio da unidade da Constituição que, segundo Mendes92, estabelece que a sua
interpretação deve ser feita de forma harmônica, como um conjunto sistemático dotado
de sentido, buscando evitar contradições. Além disso, ambos os princípios funcionam
como garantia de direitos, criados para a proteção do cidadão, não sendo factível existir
antinomia entre eles.
Assim, esclarece Gerson dos Santos Sicca:
Quanto ao judiciário, na sua relação com a administração, a separação dos
poderes significa que o juiz deve controlar a interpretação realizada pelo
administrador, para indagar se o agente público ponderou adequadamente os
93
elementos da realidade e não violou os limites de sentido do conceito.
É sempre interessante lembrar que o Estado de Direito é uma forma de
racionalização do poder em que o objetivo é limitar o predomínio da subjetividade sobre
a forma jurídica. O ordenamento jurídico representa a legitimidade do exercício do
poder estatal e exige que a Administração pública se comporte de acordo com suas
normas.
Na apuração destes atos deve o Poder Judiciário apurar se ele está de acordo
com o Direito, se sua motivação é pertinente e se ele atende aos valores dominantes
naquela ocasião. Sintetizando, o Judiciário deve examinar a proporção que marca a
relação entre meios e fins do ato, e a sua relação com seus motivos. Significa que o
controlador do ato discricionário se encontra, finalisticamente, orientado pelos
princípios constitucionais, não ficando restrito à mera alegação de conveniência e
oportunidade.
Por outro lado, a legitimação normativa do administrador não lhe confere um
salvo conduto para tomar as decisões definitivas na aplicação dos preceitos do direito
administrativo, com a exclusão ou limitação do controle jurisdicional. A
representatividade do administrador e seu mandato concedido no exercício de sua
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 107.
93
SICCA, Gerson dos Santos. Discricionariedade administrativa: conceitos indeterminados e aplicação.
Curitiba: Juruá, 2006 , p.220.
92
função têm limitações na ordem jurídica, sendo proibido qualquer desrespeito ao
ordenamento jurídico.
Assim já decidiu o STJ em sede de Recurso Especial:
O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da
administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e
oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de
94
moralidade e razoabilidade.
Quando os atos administrativos são motivados por razões de interesse
público, segundo Eros Grau95, podem, e devem, ser controlados, pois não seriam
verdadeiros atos discricionários. Não existiria atividade discricionária quando se tratasse
de interesse público envolvido.
Como conclui Juarez Freitas quando discorre sobre a sindicabilidade dos
atos administrativos:
O “mérito” (atinente ao campo dos juízos de conveniência ou de
oportunidade) não é diretamente controlável, mas o demérito ou a
antijuridicidade o serão, inescapavelmente. Mais que nunca, a
discricionariedade legítima supõe o aprofundamento da sindicabilidade,
voltada à afirmação dos direitos fundamentais, notadamente do direito
fundamental à boa administração pública.96
No Brasil, ainda há forte restrição quanto à revisão jurisdicional dos atos
administrativos discricionários. Na jurisprudência dominante há um apego muito grande
ao conceito de mérito administrativo como sinônimo de juízo de valoração efetuado
pelo administrador com o objetivo de determinar a conveniência e a oportunidade da
medida administrativa. O controle desses atos, no que extrapola à verificação dos
pressupostos legais externos ao elemento decisório, tem se limitado à existência dos
motivos determinantes e ao desvio de poder, tipificado como controle de mérito.
Em respeito aos princípios constitucionais ligados à administração pública e
à busca da efetivação de direitos fundamentais dependentes de atos da Administração
STJ, REsp 429.570-GO, Relª. Min. Eliana Calmon, RSTJ 187/219.
Grau, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7 ª ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p. 216.
96 FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração
pública. São Paulo: Editora Malheiros, 2007, p. 67.
94
95
Pública, o Judiciário poderá tanto invalidar como substituir a decisão julgada, se a
ponderação apresentar elementos para tanto.
Capítulo 5. Limitação da discricionariedade e controle das
Políticas Públicas
É impossível se falar em Políticas Públicas sem considerar as suas
possibilidades e as suas finalidades, hoje compreendidas como a distribuição efetiva dos
componentes básicos de um estado de bem estar para a população, contempladas através
de ações da Administração que garantam a realização dos Direitos Fundamentais
inscritos na Constituição Federal. Do mesmo modo, é notório que tais políticas
continuam deficientes, como nas áreas da saúde e da educação.
A própria Constituição normatiza a legitimidade democrática dos Poderes
Executivos e Legislativo na promoção das políticas públicas, porém, diante do grande
déficit de efetivação destas, é preciso se reconhecer a importância dos mecanismos de
controle na formulação e aplicação das políticas, inclusive se reconhecendo o papel do
Poder Judiciário como provedor de decisões válidas na discussão sobre os direitos
fundamentais.
Tendo como sustentáculo a realização dos Direitos Fundamentais em seu
núcleo essencial, as políticas públicas carecem de uma lapidação que lhes dê o brilho
para justificar sua implementação. Mesmo se cuidando de respeitar a discricionariedade
inerente ao exercício dos Poderes Legislativo e Executivo na determinação dessas
políticas, não se deve perder de vista a restrição desta discricionariedade naquilo que a
norma permite sem desviar os olhos dos Direitos Fundamentais, principalmente o da
dignidade humana.
A atividade de controlar indica que aquele que controla deve apontar
determinado horizonte de sentido para uma atividade. No campo do controle das
políticas públicas, dentro de um Estado Democrático de Direito, haverá a delimitação de
certo campo para o administrador público agir. Como essas políticas devem buscar a
efetividade de uma gama de direitos fundamentais, a finalidade desse controle deverá
ser a verificação da satisfação desses direitos dentro de uma programação existente na
própria Constituição e com a máxima efetividade, dentro das condições possíveis à
Administração.
Dessa forma, como leciona OHLWEILER97, as decisões do Poder Público
concernentes à construção de um arsenal de políticas públicas não estão imunes à
apreciação de sua juridicidade. No Estado Democrático de Direito “é plenamente
possível controlar tais políticas públicas, relativamente à sua procedimentalização e ao
próprio conteúdo da decisão adotada pelo agente público”.
No mesmo sentido, afirma Thiago Lima BREUS:
Até a afirmação teórica do Estado de Direito, sob o qual se buscou subsumir
o poder do soberano à legalidade, o centro da atividade administrativa do
Estado era infensa e impenetrável ao Direito e a qualquer outro controle
externo. Sob o pretexto de que o conteúdo do direito exercido se identificava
com a vontade do príncipe ou sob o postulado de que “o rei não poderia
errar”, os atos do titular exercente do poder político administrativo do Estado
98
não comportavam qualquer espécie de controle.
Ainda que se reconheça que existam limitações de ordem econômica, como a já
explicada teoria da reserva do possível, jamais poderá o Estado se omitir da instituição
de ações que positivem, pelo menos, o mínimo essencial insculpido em cada Direito
Fundamental. A exigüidade de recursos deve ser sanada com um planejamento fiscal
equilibrado e eficiente para garantir uma melhor arrecadação, sem onerar àqueles que
serão os beneficiários potenciais dessas políticas. Tem-se como alternativa a busca de
apoio em organismos internacionais que financiam obras e serviços direcionados ao
bem estar social da população.
Quando se aplicam os recursos públicos em políticas públicas de saúde,
deve-se cuidar para o respeito às regras de utilização dos parâmetros instituídos na
Emenda Constitucional 29, com a ressalva de que este montante é o mínimo a ser
aplicado na saúde, o que não quer dizer que esteja limitado por essas cifras ou que não
se deva aplicar além delas.
Por exemplo, é de conhecimento de todos que a dengue é um problema sério
de saúde pública no Brasil, que leva a uma grande número de vítimas e que depende de
97
OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz
do Estado Constitucional. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti.(organizadores).
Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2008, p. 323-345
98
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização
dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte:
Fórum, 2007.
políticas públicas para combatê-la de maneira eficiente. Logo, entre direcionamento de
recursos públicos para incentivar eventos como Jogos Pan-Americanos ou Copa do
Mundo de Futebol, como se justificar que esse montante não seja direcionado para
combater essa doença? Até onde se pode utilizar de uma discricionariedade
desvinculada dos propósitos fundamentais da atividade da Administração e o respeito
aos seus princípios básicos, sem um maior controle dessas decisões?
Assim, dentro do mesmo espírito de respeito ao Princípio da Democracia que
sempre foi utilizado para blindar a discricionariedade na escolha de políticas públicas
em respeito ao processo democrático que permite escolher os representantes do povo no
governo baseado na confiança de que esses cumpram suas propostas, não se podem
afastar as possibilidades de controle desse poder de escolha do administrador.
A discricionariedade nas políticas públicas pode ser limitada, e controlada,
por pelo menos quatro vias: o controle social, o controle político-eleitoral, o controle
legal e o controle jurisdicional.
O controle social, segundo Leal99, é aquele efetivado pela fiscalização da
própria sociedade, que ao constatar a inexistência ou ineficiência de determinada
atuação estatal em prol da efetivação dos Direitos Sociais Fundamentais, se organiza e
busca uma realocação dos esforços administrativos na busca dessa atividade. É o
caminho mais democrático, porém o menos utilizado e efetivo.
O primeiro fator que interfere nesse controle é a falta de acesso a
informações detalhadas sobre o planejamento e a execução das políticas públicas. Essa
transparência necessária é derivada do princípio da publicidade, que garante ao
administrado o acesso à informação acerca da arrecadação e da receita dos entes estatais
e seu uso na implementação das políticas públicas.
A falta de organização da sociedade em núcleos de discussão e representação
é o principal fator que impede uma atividade fiscalizadora das políticas públicas
diretamente pela população, que é a sua própria destinatária. Desde a década de 1990,
vemos um crescente movimento de organização social na forma de Organizações NãoLEAL, Rogério. O controle social dos serviços públicos no Brasil como condição de sua possibilidade.
In REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério Gesta (organizadores). Direitos Sociais e políticas públicas:
desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, p. 1843-1869.
99
Governamentais (ONGs) que, aos poucos, vêm desenvolvendo essa atividade
fiscalizadora.
Outro fator que minimiza a efetividade desse controle social é a dificuldade
instrumental para a efetivação dessa atividade diretamente pela sociedade. Além da
divulgação de sua inconformidade através de movimentos e protestos, a sociedade,
mesmo organizada em grupos bem definidos, não tem uma via de acesso direta para
questionar ou obrigar o Estado a melhor decidir sobre suas metas em políticas públicas.
Dentro das políticas públicas para a saúde, temos as instituições das
Conferências de Saúde como órgãos colegiados de caráter consultivo onde são avaliadas
a situação da saúde e a proposição de diretrizes para a execução de políticas públicas.
Além disso, existem os Conselhos de Saúde que são formados por representantes do
governo, dos prestadores de serviços, trabalhadores da saúde e usuários. Sua
competência legal envolve a área de planejamento e controle, cujos temas principais são
o financiamento do sistema e a área de articulação com a sociedade, a partir da qual são
desenvolvidas ações sanitárias.
Além dessas participações normatizadas na Lei 8.142/1990 acima citadas,
não se pode perder de vista o direito de petição, que permita a qualquer cidadão ter
acesso à Administração com a finalidade de questionar e pedir providências em relação
a fatos que tenham relação com a atividade administrativa. Tem sido crescente a
disponibilização, por parte da Administração e de seus órgãos, de Ouvidorias que
servem de canal de comunicação direta entre os cidadãos e à Administração Pública.
Esses meios disponibilizados para maior participação da sociedade no
controle das políticas públicas esbarram em dificuldades estruturais, principalmente a
falta de conhecimento sobre os direitos pelo próprio cidadão, que aliada à inércia da
Administração, não estimula a sociedade a adotar uma conduta mais incisiva nesse
campo. Assim, essa alternativa ainda deve ser desenvolvida pela sociedade, que aos
poucos vai percebendo que políticas voltadas às suas necessidades básicas não podem
esperar por uma “boa-vontade” da Administração, mas devem ser realizadas em todos
os momentos dentro das reais necessidades da população, principalmente a de menor
condição econômica.
O controle político-eleitoral, na verdade uma extensão do controle social
com o uso do poder da cidadania, se efetua pela participação eleitoral através do voto. O
processo eleitoral envolve a apresentação de propostas políticas que envolvem a
realização dos Direitos Fundamentais. Não há candidato a cargo eletivo que em seus
discursos não mencione que fará algo para melhorar as condições de saúde, habitação,
segurança e educação, o que se torna possível através da instituição das políticas
públicas, seja por elaboração de lei ou por atividade do Executivo.
Na prática, esse é o controle com menores possibilidades efetivas imediatas.
Além do lapso temporal entre as eleições, a cultura de clientelismo incrustada em uma
boa parte da população leva ao costume de trocas envolvendo o uso da máquina pública
por votos. A atividade política acaba sendo reduzida à execução de ações que em nada
condizem com as necessidades da população e a efetivação dos Direitos Fundamentais
ainda carentes de realização.
Esse controle teria melhores resultados práticos posteriores ao mandato dos
eleitos que não cumpriram as propostas de políticas a serem efetivadas, quando não
seriam reconduzidos aos seus cargos pelo voto popular. Porém, a realidade tem sido
outra. Aliada à falta de informações sobre as efetivas realizações dos candidatos, temos
a cultura de considerar que seja um bom administrador àquele que apresenta muitas
obras, a perversa lógica do “rouba, mas faz”, ignorando todas as necessidades que já
poderiam ter sido sanadas com o simples cumprimento da lei.
Esse é um caminho válido, e talvez o mais democrático, para o controle da
discricionariedade nas políticas públicas, porém, sua eficácia depende da evolução da
capacidade de avaliação crítica da sociedade como um todo e de uma conscientização
sobre o papel dos representantes políticos como vetores de aplicação das leis e diretrizes
que garantam os direitos fundamentais. Ou seja, ainda estamos muito longe desse
objetivo.
O controle legal, um controle prévio determinado pela própria norma, seja na
Constituição Federal ou de índole infraconstitucional, ou seja, que é deduzido pela
aplicação do princípio da legalidade100. A CF 88 tem como uma de suas características
DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas: um olhar garantista da
aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2007, p. 164.
100
mais marcantes a sua vocação programática, ou seja, suas normas traçam objetivos a
serem alcançados pela nação sob a regência de um Estado democrático e republicano,
onde prevalece o Estado de Direito.
Além das normas programáticas se destacam as normas que exigem o
direcionamento de verbas orçamentárias para o cumprimento de políticas públicas,
como na educação e na saúde. Outro aspecto orçamentário é o da política fiscal com a
previsão de criação de tributos e a destinação de alguns destes para garantir uma reserva
financeira suficiente para a efetividade das políticas públicas.
Essas leis servem como eixo determinante para o planejamento orçamentário
e o seu descumprimento será alvo de controle imediato pela própria Administração ou
pelo Judiciário.
Ora, tirando o controle político-eleitoral que se efetiva pelo exercício direto
do voto nos processos eleitorais, os demais controles só serão possíveis se for acionado
o aparato jurisdicional, ou seja, sem uma atuação do Judiciário as contestações ao mau
uso da Administração na execução das políticas públicas desde seu planejamento até a
verificação dos seus resultados, dependeria exclusivamente de uma “autocrítica” severa
da própria Administração.
Sendo assim, o controle jurisdicional tem sido o meio efetivo para o controle
das políticas públicas e da discricionariedade da Administração no planejamento e
execução destas. Como instituição indispensável nesse processo, é interessante se
verificar o papel do Ministério Público nesse controle e, posteriormente, analisar as
possibilidades do controle jurisdicional propriamente dito.
A partir da CF 88, o Ministério Público teve fixada sua independência em
relação aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como a sua natureza de
órgão constitucional autônomo. Dentro de suas finalidades foram confiadas a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Sendo assim, é necessária e natural a intervenção do Ministério Público
na fiscalização e na exigência de produção de políticas públicas comprometidas com a
realização dos programas instituídos pela Constituição.
É importante relembrar que existe uma discricionariedade a ser exercida pelo
Executivo e pelo Legislativo ao implementar programas de governo que visem à
realização do bem comum, que depende, em grande parte, de previsões orçamentárias
nem sempre suficientes. Porém, não poderão deixar de realizar um mínimo programa de
governo que contemple a consagração da dignidade humana, princípio que não deixa
qualquer margem à discricionariedade.
Assim, podemos legitimar a ação do parquet com a seguinte fundamentação:
o Ministério Público existe para a defesa do interesse social, o Estado, para promover o
interesse coletivo; logo, quando o Estado não cumpre esse papel, o Ministério Público
deve atuar na defesa do interesse social em face da própria Administração Pública.
Portanto, vivendo em um regime democrático, a atuação do Ministério
Público levando a uma conseqüente judicialização das questões relacionadas à
implementação das políticas públicas estará sempre legitimada quando o mínimo social
composto pelo núcleo essencial dos direitos fundamentais seja negado à sociedade,
principalmente àquela parcela menos favorecida economicamente. Usando da síntese
afirmada por Choukr:
A atuação institucional é, portanto, vinculada à hierarquia advinda dos
Direitos Fundamentais para a formação das políticas públicas, a partir da qual
jurídica e judicialmente o Ministério Público está autorizado a agir no papel
101
de construtor da ordem jurídica democrática.
Além disso, não se deve perder o foco de que a política pública exige uma
avaliação combinada entre política e direito, principalmente quando vemos na própria
norma os ditames para a sua formulação, complexidade, alcance do interesse público,
diretrizes gerais e perenidade. Como a lei representa em última instância a vontade da
sociedade podemos afirmar que ela concretiza uma política pública.
Essa atuação ministerial pode ser iniciada com a mobilização da sociedade,
principalmente quando são estabelecidas parcerias entre o Ministério Público e as
associações civis, dentro do controle social das políticas públicas. O Ministério Público
101
CHOUKR, Fauzi Hassan.. Ministério Público e Políticas Públicas. In: CHAVES, Cristiano; ALVES,
Leonardo Barreto Moreira; ROSENVALD, Nelson (coordenadores). Temas atuais do Ministério
Público: a atuação do parquet nos 20 anos da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 444.
pode atuar na educação, sensibilização e conscientização da população sobre seus
direitos civis, políticos e sociais, e como produtor social na mobilização da população
com fins de formulação de políticas públicas.
Como salienta TARIN:
A mobilização da sociedade civil é um processo que deve ser construído
pelos Promotores de Justiça e constitui uma das alternativas de efetivação da
norma, uma vez que devemos considerar a conexão direito/poder como
102
aprimoramento das relações sociais.
Dentre as formas de atuação do Ministério Público temos o inquérito civil e
a formalização do termo de ajustamento de conduta (TAC) como métodos de mediação
de conflitos. Essas vias podem ser adotadas de forma preventiva, enquanto não houver
prejuízos maiores para a sociedade, como uma forma de estabelecer um voto de
confiança na Administração como executora das políticas públicas.
Ao promover os TACs com as administrações públicas, o MP acaba
interferindo em atitudes que implicam definições ou ajustes em políticas públicas que
beneficiam os mais variados setores da população, desde a proteção ao direito à
educação até a efetivação de políticas voltadas para a saúde.
Assim, se verificado que determinada vacina foi retirada do calendário
vacinal obrigatório pela Administração Pública sem um motivo convincente e que
haverá prejuízo futuro provável com aumento da incidência de doença evitável por
aquele fármaco, poderá o Ministério Público formalizar um termo de ajustamento de
conduta com a Administração para que seja restabelecido o fornecimento da vacina a
toda população. Por outro lado, caso seja apreciado um prejuízo já ocorrido ou na
iminência de acontecer, deverá o Ministério Público agir com maior rigidez e presteza,
muitas vezes não sendo prudente a confecção de um TAC.
Na implementação de políticas públicas vislumbra-se um grande problema
na admissibilidade da tutela jurisdicional, principalmente quando consideramos que
esses processos são muito complexos e envolvem grande dificuldade técnica e
102
TARIN, Denise. A aliança entre o Ministério Público e a sociedade civil na definição de políticas
públicas. In: VILLELA, Patrícia (coordenadora). Ministério Público e políticas públicas. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 59.
argumentativa, relacionadas às necessidades básicas das pessoas com inegável vocação
coletiva, e ainda são vistas como algo novo, sem um modelo de julgamento que supere a
base do processo jurisdicional liberal clássico, ainda distante da realização dos direitos
sociais pelo Estado.
A crescente demanda judicial na busca de efetivação dos direitos sociais se
deve, principalmente, à aprovação da CF 88, às sucessivas crises que atingem os
poderes Legislativo e Executivo e à superação do positivismo no campo da
metodologia constitucional.
Não é possível extrair diretamente do texto constitucional a conclusão de que o
Judiciário pode ou deve condenar a Administração a prover bens e serviços sociais,
principalmente quando existir a previsão de poder discricionário para o administrador.
Por outro lado, a mesma Constituição prevê o controle da constitucionalidade das
omissões estatais através do mandado de injunção e da ADIN por omissão,
instrumentos suficientes para conduzir à Administração ao cumprimento do seu mister
de suprir as condições para realização dos direitos sociais fundamentais.
Há várias críticas contra a atuação do Judiciário nesse sentido, que segundo
Souza Neto103, seriam de origem principiológicas e institucionais. Entre as críticas
principiológicas temos a de concepção liberal que repele essa atuação por respeito ao
princípio da separação dos poderes, na qual o poder Judiciário não poderia interferir
nas atividades próprias do Executivo e do Legislativo. Em outras palavras, em caso de
decisões judiciais no campo de ação do Executivo obrigando à execução de
determinada atividade, estaria o Judiciário governando.
A crítica democrática alega que a concretização judiciária dos direitos sociais
seria uma contradição aos princípios democráticos de escolha pelo povo dos seus
representantes e mandatários que seriam substituídos por juízes sem a legitimação do
voto popular. Durante o processo eleitoral o eleitor teria condições de avaliar e
escolher seus representantes, elegendo, assim, as propostas apresentadas por seus
candidatos.
103
SOUZA NETO, Cláudio Pereira. A justiciabilidade dos direitos sociais: críticas e parâmetros. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 515-551.
Outra vertente a ser considerada é a das críticas institucionais de cunho
financeiro, administrativo, técnica, econômica e da desigualdade no acesso à Justiça.
A crítica financeira aborda a impossibilidade da realização de políticas públicas pela
restrição de recursos públicos disponíveis, a chamada “reserva do possível”, já
abordada anteriormente.
A falta de conhecimento técnico imprescindível para verificar qual a política
pública mais adequada para cada caso é o argumento central da crítica técnica. Os
juízes, geralmente, não possuem conhecimento técnico especializado necessário, nem
contam com uma estrutura de apoio que lhes dê informações apropriadas para a
avaliação das políticas públicas. Porém, nada impede que o Judiciário use o expediente
de nomeação de “amicus curiae” ou de solicitação de parecer técnico de especialistas
na área em discussão.
Na crítica econômica, sustenta-se que a decisão judicial não procura maximizar
os benefícios produzidos pelos investimentos públicos, principalmente nas ações
individuais, o que, ao invés de promover o bem-estar social estaria reduzindo o
impacto da atuação pública. Assim, haveria o atendimento de carências pontuais com
o potencial desvio de recursos advindos de propostas administrativas que alcançariam
uma parcela maior da população.
Outra crítica pertinente diz respeito à desigualdade quanto ao acesso à Justiça,
tendo em vista que a maioria das pessoas que tem este acesso é composta de pessoas
que, em tese, não necessitariam da atuação estatal para conseguir suprir suas demandas
por possuírem uma condição social e econômica mais favorável. É fato que as pessoas
com melhores condições econômicas e sociais têm também maior acesso à
compreensão dos seus direitos e como acessá-los, assim conseguem melhores
resultados em suas pretensões junto ao Judiciário. Por outro lado, a população com
menor poder econômico é aquela com menor conhecimento de seus direitos e maiores
dificuldades de acesso à Justiça, além de uma notória ausência de estrutura de
atendimento jurídico gratuito à população, o que , aliás, demonstra a ineficiência das
políticas públicas nessa área.
Em que pese a lógica de algumas dessas críticas, não há mais que se discutir a
necessidade e a importância das decisões judiciais na efetivação de ações para
implementação dos direitos sociais fundamentais. O controle jurisdicional se faz
necessário diante de uma realidade desfavorável à consecução de políticas públicas
ligadas à saúde, cujos resultados ainda estão muito abaixo do que se poderia qualificar
de uma condição satisfatória.
Não se pode recusar a idéia de que o Judiciário deve tutelar as políticas
públicas na medida em que elas expressam direitos fundamentais, sendo excluídos,
segundo a doutrina anteriormente majoritária, os juízos referentes à qualidade ou
adequação de opções ou caminhos administrativos do governo, acobertados pela
discricionariedade. No entanto, tomando como guia a compreensão mais moderna do
direito com a utilização dos princípios constitucionais como referência, todo ato
administrativo é suscetível de revisão judicial visando sua compatibilidade com os
princípios gerais de direito e com os princípios constitucionais ligados à
Administração Pública e à dignidade humana.
Ao examinar um ato administrativo discricionário deve o julgador extrair os
critérios de controle jurisdicional do sistema constitucional, determinar os limites da
sindicabilidade judicial da atividade administrativa discricionária e determinar as
conseqüências de seu julgamento, inclusive a substituição do ato administrativo
anulado por outro. Assim, como proposto por Souza Neto104, podemos adotar alguns
parâmetros como guia para uma atuação legítima e mais efetiva do Judiciário.
Inicialmente, esses parâmetros seriam divididos em materiais e processuais.
Entre os parâmetros materiais para a efetivação dos direitos sociais pelo
Judiciário temos que sua atuação deve se restringir à garantia do mínimo existencial;
que sua atuação se caracterize pela proteção aos hipossuficientes; que a prestação
requerida seja passível de universalização; que suas decisões prestigiem a solução
técnica proposta pela Administração, quando apta a solucionar o problema; que a
decisão busque a solução que demande menor gasto de recursos públicos; e que o
Judiciário considere a atuação da Administração in concreto na concretização das
políticas públicas, deve ser maior o controle jurisdicional onde essa atuação for menor.
104
Idem
No campo processual, recomenda o mesmo autor que, como regra geral, as
demandas por prestações sociais deveriam ser levadas ao Judiciário, em regra, na
forma de ações coletivas, excepcionalmente como ação individual; essa litigância
individual deveria ser facultada quando houvesse risco de dano irreversível ou quando
a prestação estivesse positivada na lei; e a atribuição do ônus da prova quanto à falta
de recursos para que a Administração cumpra sua obrigação seja do Estado.
Com essa linha de raciocínio, seria possível uma conduta mais homogênea do
Judiciário frente a essas demandas sem extrapolar os limites existentes entre as
competências dos poderes estatais.
5.1. Litigância judicial dos direitos sociais
Em levantamento conduzido por Hoffmann e Bentes105, temos o espelho do
que representam as ações intentadas com o objetivo de garantir que a Administração
cumpra seu papel de implementar a realização dos direitos sociais fundamentais.
Inicialmente, parece haver forte correlação entre litigiosidade e melhor
condição social e financeira do requerente. Quanto mais rica e educada for a população,
mais litígios são gerados. Somente 2% (dois por cento) das ações relativas à saúde
foram demandas coletivas, com uma demanda per capita que chega a um processo para
cada 2.848 habitantes no estado do Rio Grande do Sul.
A causa mais freqüente, cerca de oitenta e cinco por cento de todos os casos,
diz respeito à reivindicações
de pessoas físicas contra o Estado em busca de
suprimento. A taxa de êxito na primeira instância é de 70% (setenta por cento), em nível
de recurso nos tribunais cai para um pouco mais de 60% (sessenta por cento), e nos
Tribunais Superiores alcança a cifra de 82% (oitenta e dois por cento).
A argumentação jurídica prevalente se baseia na garantia ao direito de saúde
(art. 6º e 196 da CF) ou no direito à vida (art. 5º da CF). A Administração Pública, na
condição de requerida, alega, frequentemente, sua impossibilidade de suprir os pedidos
dos administrados pela falta de verbas públicas ou pela impossibilidade de seu uso fora
HOFFMANN, Florian F., BENTES, Fernando R. N. M.. Litigância judicial dos direitos sociais no
Brasil: uma abordagem empírica. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel
(coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 383-416
105
da lei orçamentária, o que caracterizaria um tipo criminal. Outro argumento muito usado
pela Administração é que uma ordem judicial contra ela seria uma violação expressa do
princípio da separação dos poderes, o que leva o governo a administrar através de
ordens judiciais.
Já as decisões dos tribunais são motivadas principalmente no direito à vida,
depois no direito à saúde e na garantia da dignidade humana. Outros argumentos
utilizados nas decisões têm como base a consideração que os direitos fundamentais e a
dignidade humana devem prevalecer sobre normas administrativas, inclusive de
natureza orçamentária; que determinados direitos sociais fundamentais são uma parte
essencial da “democracia humanizada” estabelecida pela Constituição Federal; e que os
direitos sociais fundamentais têm direito não só a serem consagrados através de
tribunais ordinários como também à sua consecução por meio de ação jurídica.
O perfil dessas ações, em sua maioria, envolve casos de reivindicação de
fornecimento ou financiamento individual, seja de medicamentos seja de tratamento
médico especializado, ou seja, elas representam ações de obrigação de fazer contra o
Estado que falha no cumprimento das ações que garantam o princípio fundamental da
saúde. Impressiona o aumento do montante de dispêndio devido por essas demandas
que em 2003 representavam cerca de R$ 188.000,00 (cento e oitenta e oito mil reais)
enquanto no primeiro semestre de 2007 chegou a cerca de R$ 26.000.000,00 (vinte e
seis milhões de reais). 106
Fato interessante nesse estudo é que existe uma tendência muito forte dos
tribunais em outorgar os direitos quando instrumentalizados em ações individuais,
porém há uma negativa constante desses mesmos direitos nas ações coletivas. Nas ações
individuais, as decisões não estabelecem culpa ou negligência das autoridades públicas
na falta da prestação da Administração, mas concede o direito sob a chancela da
responsabilidade objetiva do Estado.
106
HOFFMANN, Florian F., BENTES, Fernando R. N. M.. Litigância judicial dos direitos sociais no
Brasil: uma abordagem empírica. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel
(coordenadores). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 415.
Assim, na prática diária do Judiciário, encontramos uma atividade de
controle
da
discricionariedade
nas
prevalentemente, as demandas individuais.
políticas
públicas,
embora
alcancem,
Conclusão
A proposta de realização de um Estado Constitucional como modelo adotado
pelo constitucionalista de 1988 no Brasil criou uma expectativa de desenvolvimento
social do país tendo como fundamento principal a dignidade do homem. O caráter
programático da Constituição Federal de 1988 evidenciou a preocupação com as
carências estruturais da sociedade, dentre elas a da saúde , e uma tendência a
formulação de normas constitucionais de garantia para a efetivação de políticas públicas
a fim de se diminuir as desigualdades e se instalar um pleno Estado Social, com
distribuição de serviços essenciais à parcela mais carente da população.
Dentro dessa lógica, o Estado passou a ter sua racionalidade pautada pelo
planejamento de ações voltadas para o respeito aos Direitos Fundamentais, assim como
o planejamento e realização de atividades que garantissem esse mesmo respeito. Tais
atividades se dào através das políticas públicas, concebidas como atividade estatal de
prestação de serviços e condições materiais que propiciem à sociedade um mínimo
existencial relacionado à dignidade humana, constitucionalmente protegida, e que
objetivam a efetivação dos direitos fundamentais sociais previstos na Constituição.
Acompanhando uma tendência universal, reconheceu o constituinte nacional a
saúde como direito fundamental, garantindo no texto constitucional a sua condição de
direito de todos e dever do Estado. Como conseqüência, elaborou o legislador as normas
que sintetizam a Lei Orgânica de Saúde e a estruturação do Sistema Único de Saúde
(SUS), principal instrumento de execução das atividades estatais ligadas à saúde.
A elaboração dessas políticas pelos poderes Legislativo e Executivo cumpre o
preceito do princípio democrático em que os agentes eleitos como representantes do
povo, verdadeiros detentores do poder de decisão do país, desenvolvem os projetos de
governo apresentados aos eleitores durante o processo eleitoral. Portanto, não há que se
discutir a legitimidade da produção dessas políticas por esses poderes, assim como não
há como ignorar a existência de um espaço, autorizado pela norma, para decisões do
legislador e do administrador público na escolha das opções a serem implantadas, ou
seja, a discricionariedade administrativa.
Porém, dentro de uma concepção principiológica de nossa Constituição, temos
uma grande limitação dessa discricionariedade. Apesar do constante apelo à “reserva do
possível”, principalmente no que toca às restrições orçamentárias, exsurge da
interpretação constitucional a exigência do cumprimento de um mínimo existencial, a
efetivação do núcleo essencial dos direitos fundamentais em que se preserva a dignidade
humana, e da proibição do retrocesso a condições inferiores às já alcançada por essas
políticas públicas.
Apesar das freqüentes manifestações da Administração Pública contrárias a um
controle na escolha e efetivação das políticas públicas, principalmente ancoradas na
legitimação de um governo democraticamente eleito, na melhor condição técnica de
escolha de tais políticas, e na separação dos poderes, não se pode negar um controle de
sua atividade discricionária na escolha dos meios que serão utilizados para a efetivação
dos Direitos Fundamentais Sociais.
Esse controle pode ser efetivado pela sociedade, seja pela maior participação dos
cidadãos e organizações sociais diretamente, ou através das instituições envolvidas na
proteção dos direitos dos cidadãos. Destaca-se a atuação do Ministério Público,
constitucionalmente legitimado a agir na proteção do ordenamento jurídico e na defesa
dos direitos transindividuais, tendo como instrumento a Ação Civil Pública e o Termo
de Ajuste de Conduta para interferir na condução das políticas públicas antes uma
atuação concreta do Judiciário.
Além do controle social, temos o controle jurisdicional da discricionariedade das
políticas públicas. Cada vez mais comum nas instâncias ordinárias, o controle
jurisdicional é plenamente justificado pelo princípio da inafastabilidade da atividade
jurisdicional do Estado. Nenhum litígio pode ficar isento de exame e decisão por parte
do Poder Judiciário, desde que preenchidas as condições que possibilitem tal exame.
Especificamente, no caso do controle da discricionariedade das políticas
públicas temos a legitimidade da sociedade como um todo, já que a ela é destinada tais
políticas na proteção dos seus interesses, e que se pode fazer representar pelo Ministério
Público. Além disso, a possibilidade jurídica está ancorada na realização dos princípios
constitucionais estabelecidos no campo dos direitos sociais, que devem ser prestados,
garantidos e efetivados pelo Estado em cumprimento à proteção da dignidade humana.
Objetivamente, esse controle deve buscar a presença do respeito aos princípios
da atividade administrativa do Estado, principalmente os princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Em se tratando de atividade
discricionária da Administração, a motivação dos seus atos deve ser clara e plenamente
vinculada aos princípios da boa administração. Qualquer desvio desses quesitos deve
levar ao questionamento e anulação desses atos.
Para não cair na armadilha de um subjetivismo judicante, deve o julgador utilizar
de algumas premissas objetivas no controle da discricionariedade dessas políticas. Um
primeiro passo é o de priorizar as ações coletivas, já que essas políticas têm como alvo a
sociedade como um todo, ou partes relevantes dela; num segundo momento deve avaliar
os limites dessa discricionariedade definidas na norma, como as determinações
orçamentárias presentes nas normas constitucionais; depois, deve apreciar se houve a
realização de uma prestação que garanta o mínimo existencial relacionado ao direito
assistido por aquela política, sem jamais permitir o retrocesso naquele campo, esta
avaliação pode ser corroborada pela assistência de especialistas nas áreas de atuação que
municiariam o julgador com elementos técnicos.
E, finalmente, a apreciação da reserva do possível, ou seja, caso a Administração
utilize deste argumento para a decisão de qual opção deveria tomar na instituição de
determinada política pública. Nesses casos, o julgador deve exigir da Administração
Pública provas que não havia condição para alocar recursos em determinadas atividades
que seriam exigíveis para a efetivação de direitos fundamentais sociais. Nesse campo,
seria possível ao julgador questionar a falta de empenho do administrador em buscar
tais recursos em outras fontes além do orçamento estabelecido, como em parcerias com
outros entes estatais ou com a sociedade civil.
Cumpre esclarecer que não se discute mais a possibilidade do controle da
discricionariedade da atividade do Estado, principalmente no que toca ao
desenvolvimento de políticas públicas. O que se nota é uma timidez da sociedade e do
Judiciário em adotar medidas concretas para fazê-lo. A sociedade, por sua própria
desorganização e falta de cultura no sentido de participar mais efetivamente dessas
políticas, e o Judiciário, por sua tradicional estruturação voltada para uma cultura liberal
em que os direitos individuais são mais importantes que os direitos coletivos.
Sendo assim, fica estabelecido que o controle dos limites da discricionariedade
nas políticas públicas é possível e necessário para que se cumpram as determinações
constitucionais de proteção à dignidade humana e plena possibilidade de
desenvolvimento da sociedade com seus direitos fundamentais sociais sendo efetivados
pelo Estado. A fundamentação desse controle está na própria Constituição e deve ser
estimulada para que a sociedade se aproxime do ideal de uma sociedade justa e sem
desigualdades.
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limitação da discricionariedade na implementação de