Jornal “O Público” 04-11-01 O primeiro orçamento pré-eleitoral Paulo Trigo Pereira* 1.O governo de coligação PSD-PP, e em particular o seu ministro das Finanças e da Administração Pública, estão de parabéns. Duas semanas depois de apresentar o Orçamento de Estado para 2005 conseguiu transmitir a ideia, junto de alguns comentadores, jornalistas e mesmo economistas, de que este era um orçamento que pugnava pela equidade e justiça social. Um orçamento que atacava a classe média, que favorecia sobretudo os mais desfavorecidos e isto tudo continuando a consolidação orçamental. Houve até quem referisse que se trata de um orçamento de esquerda. Tratase contudo de uma ilusão, só possível pelo desconhecimento da teoria económica e da realidade portuguesa. O sistema fiscal português apresenta uma característica que o assemelha ao de países menos desenvolvidos, e que o tornam particularmente iníquo. O peso dos impostos sobre bens e serviços (IVA, impostos especiais sobre o consumo) é muito grande comparado com os impostos directos. Em 2002 esse peso era de 41 por cento, muito superior ao de qualquer país da União Europeia e mesmo da OCDE, se exceptuamos o México e a Turquia. Contudo, são os impostos directos que têm potencialidades de promover melhor a justiça social pela implementação do princípio da capacidade contributiva. Ora, é sabido que este tipo de estrutura fiscal, baseada em impostos "indirectos", é muito pouco transparente e favorável à ilusão fiscal e irresponsabilidade política – pois os contribuintes pouco se apercebem do que pagam – e sobretudo é injusto, pois são impostos regressivos (a taxa média de imposto aumenta com o rendimento). Pense-se no efeito do aumento da taxa máxima de IVA de 17 para 19 por cento, assumindo repercussão total do imposto. Se todos os contribuintes consumissem a mesma proporção do seu rendimento, a incidência deste aumento seria proporcional, mas como a propensão a consumir é maior nas classes de mais baixo rendimento, elas suportam proporcionalmente mais. Poder-se-á argumentar que, na presença de evasão fiscal, a única alternativa é tributar a despesa. Exactamente por isso é que os países menos desenvolvidos, incapazes de tributar o rendimento, o fazem. Só que entre nós não se trata apenas de uma incapacidade, mas também de uma vontade. Os governos de Durão Barroso e Santana Lopes têm vindo a aumentar progressivamente o peso dos impostos indirectos primeiro o IVA, agora o ISP e o Imposto sobre o Tabaco - e a diminuir os directos, sobretudo sobre as empresas, que se traduz numa diminuição da colecta de 514 milhões de euros em 2005. Em que ficamos então? O OE 2005 apresenta uma ligeira redução nas taxas marginais de IRS mais baixas, que são muito visíveis e por isso concentraram a atenção dos media. A esses contribuintes de fracos recursos o Estado irá tributar proporcionalmente mais no tabaco, na gasolina (aumento de 25 por cento na taxa mínima da gasolina sem chumbo) e também no IVA, o que será reforçado se a inflação for superior a dois por cento. Convém não esquecer que se prevê que o IRS represente apenas 7,9 mil milhões de euros e os impostos indirectos sobre o consumo 17 mil milhões. Será possível continuar a afirmar que este orçamento beneficia 90 por cento dos contribuintes? Quanto à classe média, é óbvio que ela será afectada, sobretudo pela eliminação dos benefícios fiscais. Mas há que distinguir aqui pelo menos dois estratos sociais (e morais). O que não paga impostos também não usufrui de benefícios fiscais, pelo que não é penalizado; o que paga, nomeadamente os trabalhadores por conta de outrem, esse sim é castigado. 2.A novidade neste orçamento, ao contrário dos anteriores, é que tudo indica tratar-se de um orçamento expansionista, continuando a tradição portuguesa de orçamentos prócíclicos. Basta olhar para os saldos orçamentais (corrigidos do ciclo) para se ver que oficialmente se prevê que eles piorem. Ainda poderão piorar mais, pois a autorização para aumento do endividamento líquido do Estado (incluindo FSA) é cerca do dobro do défice oficialmente previsto, o que sugere que o défice realmente antecipado seja superior. Ou seja, este orçamento está preparado para a revisão "em alta" do PEC. Haja luz verde de Bruxelas e o défice aumentará, sem receitas extraordinárias, para pelo menos cinco por cento do PIB. 3.As eleições autárquicas estão à vista e os orçamentos (OE 2005 e rectificativo 2004) não se esqueceram. Tudo começa com uma verba de 120 milhões a título de compensação por hipotética quebra de receita de impostos municipais com a reforma da tributação do património. Hipotética porque não há dados que possam confirmar esta quebra. Depois, o aumento de 80 por cento nas verbas para contratos-programa que podem ser geridos de forma mais discricionária pelo executivo e que atingem os 36 milhões de euros. Face a esta verba, é irrisório o montante atribuído às áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais (três milhões). É este o empenho do Governo na sua grande reforma da administração do território? Há números que valem mais do que grandes discursos. 4.A esperança, como diz o povo, é a última a morrer. Resta esperar, muito sinceramente, que as medidas de combate à evasão fiscal passem do papel para a prática e sejam efectivamente implementadas. *Professor do ISEG