Jornal “O Público” 05-05-02
A hora da verdade e das medidas difíceis
Paulo Trigo Pereira*
Aproxima-se o momento em que a Comissão Europeia abrirá, pela segunda vez em cinco
anos, um procedimento por défice excessivo a Portugal. Ainda não é conhecido o valor
que o Governo português apresentará em Bruxelas, mas as estimativas do défice em 2004
– quer do Banco de Portugal, quer de outras instituições – rondam os seis por cento do
PIB.
Curiosamente, as finanças públicas continuam mal, mas as finanças privadas parecem
florescer. Qualquer que seja o indicador que se considere para evidenciar sinais de uma
certa afluência – seja o número de segundas habitações, as viagens de férias no
estrangeiro, a rapidez com que se esgotam bilhetes para espectáculos caros – eles
apontam todos no sentido de que as finanças privadas de alguns portugueses florescem,
enquanto as públicas agonizam.
A questão que se coloca é antes do mais saber porque chegámos à actual situação e
depois ter ideia de uma estratégia para a sua solução, sendo que há medidas politicamente
difíceis, isto é, impopulares, que não poderão deixar de ser tomadas – e é melhor que
sejam tomadas de imediato do que deixadas para o final da legislatura.
Se se tomar apenas o período de 1990 a 2003, e os dados da Conta Geral do Estado,
verifica-se o seguinte: a despesa consolidada do Estado (serviços integrados) cresceu à
taxa média anual de 6,5 por cento (preços constantes) e a dos Fundos e Serviços
Autónomos (FSA, que integram hospitais do SNS, universidades, politécnicos, institutos
públicos, etc) cresceu a 5,4 por cento ao ano. Quer o Estado (em sentido estrito) quer os
FSA cresceram de forma muito mais rápida que o PIB. O crescimento das receitas
públicas, em particular fiscais, não tem acompanhado o crescimento da despesa, daqui
resultando a necessidade crónica de recurso a receitas extraordinárias e o agravamento do
défice real.
Geralmente, olha-se para o ministro das Finanças como o que tem a responsabilidade da
solução do problema das contas públicas. Essa ideia está longe da verdade. Não é apenas
Luís Campos e Cunha, mas José Vieira da Silva (Trabalho e Solidariedade Social),
Correia de Campos (Saúde) e também António Costa (Administração Interna) os que
mais responsabilidades têm nesta matéria.
Numa estimativa recente, soube-se que a dívida das empresas à Segurança Social está
entre 3,2 e 3,3 mil milhões de euros, ou seja, perto de três por cento do PIB. Para quem
considera que o combate à evasão fiscal, sendo justo, não leva contudo a um acréscimo
de receitas públicas, não deixa de ser claro o alcance que poderão ter medidas neste
campo. O cruzamento das bases de dados da Segurança Social com as da Direcção Geral
de Impostos permitiria identificar a situação de muitos contribuintes que fazem
contribuições para a Segurança Social (para usufruírem das prestações sociais), mas não
declaram rendimentos em sede de IRS.
A saúde é o sector onde a derrapagem orçamental é quase permanente e onde os
mecanismos de controlo orçamental são mais difíceis de implementar, dado que o Estado
é prestador de serviços e comparticipa nos medicamentos e actos clínicos, cuja procura
não controla. Em sede de IRS existe dedução à colecta de despesas na saúde, sem
qualquer limite para doentes crónicos ou não. Aqui conviria analisar as melhores práticas
europeias nesta matéria. A liberalização do mercado dos medicamentos é claramente
positiva, mas outras são urgentes. Uma medida que permitiria poupar largas dezenas de
milhões de euros ao Estado seria a informatização dos Centros de Saúde, para que o
clínico ao prescrever soubesse exactamente qual o medicamento no mercado mais barato
com o mesmo princípio activo. Uma monitorização eficiente das prescrições traria
poupanças consideráveis.
No campo das finanças locais e regionais também há algo importante a alterar, que terá
repercussões nas finanças públicas. Antes do mais a chamada reforma da tributação do
património (IMI/autárquica e IMT/sisa) teve e terá, como a teoria económica previa e as
simulações então realizadas o mostraram, o efeito de aumentar as receitas, em particular
no IMI. Estima-se que o aumento do IMI em 2004 tenha sido entre 16 e 20 por cento.
Ora, não só o objectivo daquela pseudo-reforma não foi aumentar as receitas municipais,
como o orçamento rectificativo de 2004 "compensou" os municípios em 120 milhões de
euros pela "perda" de receita. Há aqui um acerto de contas a fazer. O Ministério das
Finanças não deve reduzir a banda de variação das taxas do IMI (agora entre 0,4 e 0,8 por
cento), mas sim fazer uma Proposta de Lei para alterar a Lei de Finanças Locais,
reduzindo progressivamente as transferências para compensar os aumentos de receita.
Algo que também não se percebe, e deveria ser suprimido, são as subvenções do Estado
aos municípios das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, respectivamente 91,4 e
62,8 milhões de euros em 2005. Convém lembrar que os Fundos Municipais e das
freguesias são uma percentagem fixa da média aritmética de IVA, IRS e IRC. Ora, sendo
a colecta destes impostos gerados nas regiões receita das regiões autónomas, é do IVA,
IRS e IRC regional que deveriam sair as subvenções para os respectivos municípios e não
da colecta destes impostos no continente. Cumprir-se-ia assim a Constituição da
República.
Finalmente, a "mãe de todas as medidas" seria melhorar o SIADAP (Sistema Integrado
de Avaliação do Desempenho na Administração Pública) e estendê-lo dos Serviços
Integrados do Estado e Institutos Públicos a todas as carreiras da administração,
nomeadamente dos FSA (incluindo professores universitários, o que exigiria revisão do
ECDU). A prática de progressão automática nas carreiras só pela passagem do tempo de
serviço deveria ser suprimida. A mudança de escalão deveria estar sempre associada a
uma avaliação, sendo que a proporção de mudanças de escalão deveria ser limitada. Só
assim, e não com uma redução incerta de efectivos na função pública, se conseguirá
conter a despesa corrente da administração central. Fazer isto sem erosão do capital social
das instituições da administração é o grande desafio.
Há muito que pode ser feito sem subir as taxas de impostos. Haja coragem política, bom
senso e capacidade de persuasão.
*Professor do ISEG
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